MELODRAMAS DE ÉPOCA DA GAINSBOROUGH

setembro 4, 2010

A Gainsborough foi fundada em 1924 por Michael Balcon e, em 1927, se associou à Gaumont-British Picture Corporation, cujo controle fora assumido pelos Irmãos Ostrer (Isidore, Maurice, Mark). A Gaumont-British era uma subsidiária da companhia francesa Gaumont que, em 1914, começou a produzir filmes na Inglaterra. A partir de 1922, a Gaumont passou a ser uma companhia exclusivamente britânica e, no decorrer da década, tornou-se uma gigante no setor de exibição. Incluindo a sua atuação na área de distribuição, a Gaumont-British serve como um primeiro exemplo da integração vertical na indústria cinematográfica.

Michael Bacon tornou-se diretor de produção para ambas as companhias. A matriz Gaumont-British, sediada no Lime Grove Studio em Shepherd’s Bush, produzia filmes “de qualidade” e os estúdios da Gainsborough, em Islington, ocupava-se das produções menos dispendiosas. Em 1936, Balcon foi para a MGM-British, o estúdio da Gaumont em Shepherd’s Bush foi fechado e J. Arthur Rank adquiriu uma participação substancial na Gainsborough. Maurice Ostrer, assumiu o cargo de executivo encarregado da produção, tendo como principal colaborador o produtor Ted Black. Ostrer acreditava que o público do tempo de guerra queria escapismo e não realismo, e tratou de providenciá-lo. Assim, a partir de 1942, Black inaugurou uma série de melodramas de época, que dominaram o mercado doméstico até 1947.

Esses melodramas procuravam agradar ao público feminino, colocando as mulheres no centro das intrigas como modelos de virtude ou como trangressoras das convenções sociais. As narrativas, baseadas freqüentemente em romances populares, envolviam mulheres rebeldes, conflitos sobre classe e status e, sobretudo, a busca de aventuras por parte das personagens femininas. As protagonistas se alternavam entre mulheres da classe alta sufocadas pelo meio em que viviam e mulheres da classe baixa à procura de riqueza e respeitabilidade. Os homens eram sempre retratados como cruéis ou dominadores.

Diferentemente dos filmes históricos, que pretendem recriar a vida de indivíduos proeminentes, os melodramas de época são fictícios e representam livremente os contextos históricos. Eles eram produzidos com orçamentos modestos, embora tivessem uma aparência dispendiosa. Os cenários ficaram aos cuidados de desenhistas que estavam cientes da necessidade de conjugar eficiência artística com economia, entre eles, Walter Murton, John Bryan, Andrei Mazzei, Maurice Carter, que foram influenciados pelo estilo expressionista, inicialmente associado a diretores de arte como Vincent Korda e Alfred Junge. Os desenhistas se preocupavam mais com o prazer sensual dos ambientes do que com a exatidão ou verossimilhança histórica, uma concepção complementada pelos figurinos de Elizabeth Haffender. O decote profundo, tão perturbador para o censor americano, era um ingrediente essencial do melodrama de época inglês. A música estava sempre em primeiro plano, intrometendo-se na ação, nos momentos em que se pretendia criar uma atmosfera de romance ou tensão.

Os dois primeiros exemplares do ciclo, O Homem de Cinzento e Amor nas Sombras, foram fotografados por Arthur Crabtree. Ele subseqüentemente tornou-se diretor e foi responsável por Madona das Sete Luas e Espadas e Corações. Leslie Arliss dirigiu O Homem de Cinzento e Malvada; Anthony Asquith, Amor nas Sombras; e Bernard Knowles, Jassy, as Feiticeira. Jack Cox fotografou Madona das Sete Luas e Malvada; Stephen Dade e Cyril Knowles fotografaram Espadas e Corações e Geoffrey Unsworth cuidou da fotografia em cores de Jassy, a Feiticeira.

É preciso esclarecer que essas produções eram direcionadas especificamente para um novo tipo de platéia feminina. A Segunda Guerra Mundial fez com que um grande número de mulheres adquirisse um grau sem precedentes de independência financeira e sexual, causada pela necessidade que tiveram de sair de casa para trabalhar, a fim de compensar a ausência de seus maridos provedores do lar nos campos de batalha. A Gainsborough respondeu a essas mudanças criando fantasias escapistas, comumente ocorridas em um passado distante, que ofereciam imagens poderosas de independência e rebelião do chamado sexo frágil.

Outro fator que contribuiu para a popularidade desses filmes, foi a presença de novos astros na tela como Margaret Lockwood, James Mason, Phyllis Calvert, Stewart Granger, Jean Kent e Patrícia Roc que, embora desprezando os scripts, desempenharam muito bem suas respectivas funções.

Há muito que vinha procurando cópias em dvd desses melodramas de época da Gainsborough e, finalmente, conseguí obter os seis filmes do ciclo: O Homem de Cinzento / The Man in Grey / 1943, Amor nas Sombras / Fanny by Gaslight / 1944, Madona das Sete Luas / Madonna of the Seven Moons / 1944, Malvada / The Wicked Lady / 1946, Espadas e Corações / Caravan / 1946 e Jassy, a Feiticeira / Jassy / 1947.

O primeiro melodrama “oficial” de época da Gainsborouh, O Homem de Cinzento, não obteve uma calorosa aceitação por parte dos críticos, porém foi o filme inglês de maior sucesso popular no ano de sua exibição.

O espetáculo tem início num leilão durante a Segunda Guerra Mundial na Inglaterra, onde um casal de estranhos se encontra e medita sobre a história de suas famílias e as conexões possíveis. Um retrospecto para o período da Regência revela a história da doce e rica Clarissa Richmond (Phyllis Calvert) e sua amizade com a pobre e amargurada Hesther Shaw (Margaret Lockwood). Clarissa casa-se com o fisicamente atraente, mas cruel Lord Rohan (James Mason). Hesther torna-se atriz. Eventualmente, as duas mulheres se encontram de novo e Clarissa traz a intrigante Hesther para sua casa. Enquanto Clarissa procura o verdadeiro amor na pessoa de Peter Rokeby (Stewart Granger), um cavalheiro que se tornara ator, depois de perder seus bens por causa de uma revolta de escravos nas Antilhas. Hesther planeja tirar tudo o que pertence a ela.

Uma cigana prediz que Clarissa vai se casar com um homem, mas amará um outro. Clarissa casou-se por conveniência e Lord Rohan a aceitou, para ter um herdeiro. Infeliz no seu casamento, Clarissa espera alcançar a felicidade nos braços de Rokeby. Desprovida de bens e de berço, Hesther é ambiciosa e aventureira. Ela tenta usurpar a posição de Clarissa. No final, ambas acabam frustradas nos seus desejos. Pensando que Rohan vai se casar com ela, Hesther dá um sonífero para Clarissa e deixa a janela aberta para que ela morra de frio. Mas a assassina vem a ser morta por Rohan, que a destrói em nome da legitimidade, do patriarcado e da lei da primogenitura. Afinal, Clarissa era sua esposa e a mãe de seu filho e, como dizia um lema de sua família, “Quem nos desonra, morre”.

É difícil imaginar um filme americano, feito na mesma ocasião, ser tão franco na  descrição do medo de Clarissa em sua noite de núpcias ou do modo de vida de Lord Rohan. A cena na qual Rohan mata Hesther, espancando-a sem parar com uma bengala até o escurecimento total da tela, supera em violência qualquer outra produção Hollywoodiana dos anos 40.

Em Amor nas Sombras, dirigido por Anthony Asquith, a protagonista, Fanny Hooper (Phyllis Calvert), é obrigada a enfrentar um obstáculo após outro, até conquistar a sua respeitabilidade numa Londres Vitoriana.

O mistério em torno de sua identidade começa desde quando ela era criança. Brincando com sua prima Lucy, descobre sem querer, que seus pais adotivos mantêm um bordel no porão de sua casa. Um estranho vem visitá-la no dia de seu aniversário e lhe dá um broche de presente. O padrasto, William Hopwood (John Laurie), manda-a para um colégio interno. Quando Fanny retorna, já adulta, ela vê seu padrasto, ser morto, pisoteado pelo cavalo de Lord Manderstoke (James Mason), cujo acesso ao bordel fora negado por Hopwood. A morte do padrasto de Fanny é seguida do falecimento de sua mãe. Fanny finalmente encontra seu verdadeiro pai, aquele estranho que lhe dera o broche. Ele é Clive Seymour (Stuart Lindsell), um político importante e o relacionamento entre ele e a filha deve ser mantido em segredo. A esposa de Seymour, Alicia (Margaretta Scott), desconhecendo a identidade de Fanny, contrata-a como sua camareira. Quando Alicia viaja, Fanny e seu pai vão para o campo, onde vivem dias felizes, cavalgando, pescando, jogando xadrês. Voltando à cidade, Fanny continua levando uma vida miserável como criada e ela vê de novo o assassino de seu padrasto, Lord Manderstoke, que é amante de Alicia. Esta pede o divórcio de Seymour, para se casar com Manderstoke. Seymour recusa e Alicia ameaça revelar publicamente que ele tem uma filha ilegítima. Seymour comete suicídio e, de novo, Fanny perde um pai. Fanny vai morar e trabalhar numa estalagem e se apaixona pelo secretário de seu pai, Harry Somerford (Stewart Granger). A mãe (Helen Haye) e a irmã de Harry, Kate (Cathleen Nesbitt), opõem-se ao casamento, advertindo-o de que ele arruinará sua carreira. Pelo bem de Harry, Fanny desaparece. Ela tenta em vão arranjar emprego, é reduzida à pobreza e fica à beira da prostituição. Harry encontra-a novamente e os dois partem para Paris. Lá se deparam com Manderstoke, que se tornara amante de Lucy (Jean Kent). Manderstoke desafia Harry para um duelo. Manderstoke é morto por Harry e este fica seriamente ferido. Kate chega para cuidar de seu irmão e proibe a entrada de Fanny no quarto do doente. Fanny desafia Kate, promete se casar com Harry e dar à luz aos seus filhos. Quando enfrenta Kate, conquista finalmente a sua independência da estúpida estratificação de classe.

Outro aspecto abordado é o da ameaça das relações familiares respeitáveis pela promiscuidade feminina.  A proximidade do bordel com o lar dos Hopwoods é um indicio dessa ameaça. Fanny é vitima da impropriedade sexual de sua mãe. A família Seymour, por sua vez, é destruída pela promiscuidade de Alicia.

Em termos de cinema, a melhor cena do filme é aquela na qual Seymour lê, diante do espelho que triplica a sua imagem, a carta de Fanny, dizendo que ela ia se afastar dele para não atrapalhar sua vida. A câmera o focaliza em primeiro plano e aos poucos começamos a ouvir o barulho de um trem em movimento. Logo após, vemos um menino jornaleiro dando a notícia de sua morte.

Numa encarnação, como Maddalena, ela é a esposa de um banqueiro italiano, Giuseppe Labardi (John Stuart); na sua outra encarnação, como Rosanna, ela é a amante apaixonada por um ladrão cigano, Nino Barucci (Stewart Granger). Maddalena foi educada num convento onde, ainda adolescente, foi violentada por um camponês.

O filme continua a história de Maddalena muitos anos depois, quando sua filha, Angela (Patrícia Roc) já é adulta. E aí surge outro contraste: o das restrições da vida da mãe e as atitudes mais livres da filha. Maddalena é apresentada como uma mulher pudica, que fica chocada quando sua filha traz o futuro noivo para casa. Ela é excessivamente religiosa e suas roupas, tais quais a de uma freira, retratam bem o seu senso de decoro exagerado. Seu relacionamento com Angela é difícil, porque ela não consegue apreciar os valores e as crenças da filha, achando-os ofensivos à sua religião e à sua moral.

Ao reconhecer no amigo do noivo de Angela, o camponês que anos atrás a estuprara, Maddalena desmaia e é conduzida para o seu quarto. Quando acorda, ela assume sua outra identidade como Rosanna. Vestida de cigana, Rosanna, repete uma fuga anterior e volta para os braços de seu amante Nino. Rosanna é a antítese de Maddalena. Ela é sensual e parece ter uma atitude ambivalente com respeito à religião, sentindo-se incapaz de entrar numa igreja. A personagem complexa, interpretada por Phyllis Calvert, não tem idéia do seu “outro eu”, quando ela é Maddalena ou Rosanna. As únicas coisas que despertam sua consciência são símbolos religiosos, as “sete luas” e um conjunto de jóias.

Quando Maddalena sofre uma crise emocional ela, súbita e inexplicavelmente, desaparece de sua casa e reaparece em Florença como Rosanna.  Angela tenta decobrir a verdade sobre sua mãe, é raptada por Sandro (Peter Glenville), o irmão de Nino, e tudo acaba em tragédia.

A intriga é estranha e extravagante, porém o espetáculo constitui-se num bom entretenimento, desde que você perdoe a implausibilidade da situação. Calvert desempenha com eficiência o papel duplo, sendo muito convincente tanto como a mulher reprimida  quanto como a cigana sensual.  A trilha musical é impressionante no seu dinamismo, como, por exemplo, na cena clímax, quando Rosanna sobe a escada, vê o irmão de Nino atacando Angela, apunhala o agressor e ele, mortalmente ferido, arremessa sua faca, atingindo-a pelas costas.

Malvada foi o melodrama de época da Gainsborough de maior sucesso comercial. No tempo do reinado de Carlos II, Lady Barbara Skelton (Margaret Lockwood) rouba o noivo de sua ingênua e pura prima, Caroline (Patricia Roc), o rico magistrado Sir Ralph Skelton (Griffith Jones), e se casa com ele. Após perder um valioso broche no jogo, Bárbara assalta uma carruagem, para recuperar a sua jóia, fazendo-se passar pelo famoso ladrão de estrada, Capitão Jerry Jackson (James Mason). Quando ela conhece o verdadeiro Jackson, torna-se sua amante e os dois continuam atacando as diligências. Barbara envenena o velho pastor Hogarth (Felix Aylmer), que descobriu sua vida de aventura e encontra o homem que vai amar sinceramente, Kit Locksby (Michael Rennie). Para ficar com ele, Barbara tenta matar Ralph num assalto, porém Kit, que acompanha o magistrado, reconhece-a atrás de sua máscara e a fere gravemente. Barbara morre, depois de matar Jackson.

A protagonista tem uma índole hedonista, despreza a lei e a propriedade privada, não tem sentimento algum, pratica todas as trangressões condenadas pela sociedade civilizada, chegando até ao crime de assassinato. Suas escapadas aventurosas são também motivadas em parte pelo seu desejo de encontrar estimulação sexual e independência econômica. Ela rejeita totalmente qualquer imagem convencional de “feminilidade”, encarando de igual para igual os homens com os quais se envolve. Todos eles têm pelo menos alguma espécie de código moral – até Jackson hesita em matar – enquanto que Bárbara não respeita nada nem ninguém. Margaret Lockwood interpreta Bárbara de uma forma perfeita, exprimindo magnificamente a sua dissimulação, a sua crueldade fria, a sua perfídia.

A agonia do velho pastor é uma das cenas mais fortes do filme. Ele percebe subitamente que a mulher que está na cabeceira de sua cama é a autora de sua morte. Quer reagir, lutar, mas as forças o abandonam e a mulher termina asfixiando-o com um travesseiro.

Espadas e Corações foi o último filme do ciclo de melodramas de época da Gainsborough supervisionado por Maurice Ostrer, pois Jassy, a Feiticeira, ficaria sob o encargo de Sydney Box.

Numa noite do final do século dezenove, em Londres, o escritor Richard Darell ver (Stewart Granger) socorre Don Carlos (Gerald Heinz), que fôra atacado por dois ladrões. Richard está apaixonado pela bela Oriana (Anne Crawford) e a família decidiu que os dois só poderão se casar dentro de um ano, quando o rapaz tiver uma boa situação financeira. Don Carlos promete editar o livro de Richard, desde que ele leve para a Espanha uma jóia de grande valor, cobiçada por Sir Francis Castleton (Dennis Price), o rival de Richard pelo amor de Oriana. Sir Francis manda seu capanga Wycroft (Robert Helpmann) armar uma cilada para Richard durante a viagem. No meio do caminho, os homens de Wycroft assaltam Richard e deixam-no quase morto. Richard é salvo pela cigana Rosal (Jean Kent), mas perde a memória. Richard acaba se casando com Rosal enquanto que Oriana, julgando-o morto, cede ao assédio de Sir Francis e consente em ser sua esposa. Mas eis que Richard recupera a memória e escreve para Oriana, que vai ao seu encontro. Provada a culpabilidade de Sir Francis, este foge e, após Rosal ter recebido o tiro que fôra destinado para Richard, o vilão morre, afundando-se nas areias movediças de um pântano.

As oposições de classe afirmam-se desde o início do filme. A bem nascida Oriana torna-se o motivo do conflito e competição entre um nobre e um plebeu. O aristocrata é descrito como devasso, malévolo e sôfrego; o homem da classe baixa é o herói. As mulheres são igualmente contrastadas: Oriana é a esposa, Rosal, a amante. Oriana é associada com família e castidade; Rosal, a cigana, é associada com dança e sexualidade desenfreada. O matrimônio de Rosal é ilegítimo, porque ela se aproveitou da doença e da amnésia de Richard. Oriana casou-se com Sir Francis iludida acerca do falecimento de seu amado. A união entre iguais será apenas momentânea.

Se formos indulgentes, podemos desfrutar este espetáculo cheio de coincidências e clichês, sem dúvida, mas com uma vivacidade de ritmo, estranhas reviravoltas e uma deliciosa composição de Dennis Price como Sir Francis. A cena em que Richard obriga Sir Francis a entrar no pântano, é enfatizada por um céu de estúdio sombrio, fumaça e iluminação sinistra, que se combinam para produzir um dos momentos mais dramáticos do filme.

Segundo consta, Sydney Box só permitiu que o projeto de Jassy, a Feiticeira fosse adiante, porque não tinha um outro roteiro pronto e precisava manter os técnicos e as instalações do estúdio em constante funcionamento. – ele preferia o realismo social.

Jassy Woodroofe (Margaret Lockwood), uma cigana com o dom de vidência, faz amizade com um jovem da classe alta, Barney Hatton (Dermot Walsh). A família de Barney está vivendo dias difíceis por causa de seu pai, Christopher Hatton (Dennis Price), que perdera no jogo a sua propriedade para Nick Helmar (Basil Sydney), homem violento responsável pela morte do pai de Jassy, cruel com os seus arrendatários e abusivo com sua esposa e filha. .O pai de Barney suicida-se após perder de novo no jôgo. Jassy vai trabalhar para a família de Barney, mas é despedida pela mãe do rapaz (Nora Swinburne), que não aprova a amizade da cigana com o seu filho. Procurando emprego num colégio para moças, Jassy conhece Dilys (Patrícia Roc), a filha de Nick, que leva a nova amiga para sua casa. Nick ficou viúvo e simpatiza com Jassy, que lhe ensina como administrar o seu lar. Jassy aceita o pedido de casamento de Nick com uma condição: ele deve passar a casa para seu nome antes deles se casarem. Depois do casamento, Jassy repele os avanços sexuais de Nick. Num acesso de raiva, Nick sai a cavalo e leva uma queda, machucando-se seriamente. Jassy cuida dele com a ajuda de uma criada, Lindy Wicks (Esma Cannon), que havia sido brutalizada pelo pai e ficou muda. Linda envenena Nick e no momento em que Jassy vai ser condenada pela morte de seu marido, ela recobra a voz, assume a responsabilidade pelo crime e morre. Jassy passa a casa para o nome de Barney e os dois planejam se casar.

Ao contrário de outros filmes do ciclo, que restringiam a união de duas pessoas da mesma classe, Jassy, a Feitceira sustenta a promessa de ascenção social para a mulher por sua lealdade e assistência. Embora tenha Margaret Lockwood no elenco, seu papel aqui é bem diferente daquela sua habitual mulher que está disposta a desafiar as convenções na sua busca de prazer. Em vez disso, seus desejos são canalizados para objetivos familiares e a restauração de um herdeiro no seu devido lugar.

O espetáculo pode ter sido mais suntuoso do que os realizados em preto e branco por causa do Technicolor, porém notam-se as marcas da política de contenção de despesas da Gaisnboroug. Dramaticamente, a direção é um pouco sem vida e o filme sente a falta de astros como James Mason e Stewart Granger que, em anos anteriores, teriam interpretado os papéis agora entregues a Basil Sydney e Dermot Walsh. Jassy, a personagem da grande estrela britânica Margaret Lockwood, não é nem a sombra de Hesther ou Lady Barbara.

RAIMU

agosto 21, 2010

Raimu, juntamente com Harry Baur, foi um dos monstros sagrados do teatro e do cinema francês nos anos 30.

Seu nome verdadeiro era Jules Auguste César Muraire e ele nasceu em Toulon no dia 18 de dezembro de 1883, filho do tapeceiro Mucius Scaevola Joseph Marie Antoine Muraire e Élisabeth Gouzian. Quando criança, Jules Auguste sentia muito prazer em interpretar os heróis, cujas aventuras sua mãe lhe contava, transformando-se em mosqueteiro, rei ou corsário com algumas peças de ouro falso e retalhos de cortinas rasgadas.

Como o menino não gostava de estudar, seu pai resolveu que ele ia trabalhar no seu ateliê. Porém Jules não queria se tornar tapeceiro. Ele sabia muito bem o que queria fazer na vida. Ele queria ser Mayol, ou seja, Félix Mayol, o célebre chansonnier, seu conterrâneo. Entretanto, um detalhe o inquietava. Félix Mayol tinha um trunfo: uma voz maravilhosa. Este não era o seu caso. Mas ele já sabia como superar essa desvantagem: seria cantor cômico.

Alguns meses atrás Polin, o grande Polin, chegara a Toulon, para fazer uma apresentação excepcional de gala. Os Muraire não podiam perder o acontecimento. A família inteira compareceu: Papai, Mamãe, Valentin (o irmão de Jules) e Jules. Foi uma noite inesquecível!

Polin era então a maior vedeta do music hall e da canção francesa, especializado no gênero comique troupier, isto é, um comediante-cantor vestido de recruta em comédias evocando os dias de caserna. No Cassino de Toulon, Polin, “em carne e osso”, cantou seus maiores sucessos e, ao terminar a sessão, a platéia aplaudiu de pé seu ídolo por mais de dez minutos. Jules jamais esqueceria este espetáculo. Sua decisão estava tomada. Ele seguiria a carreira de Mayol, imitando Polin.

Jules começou seu itinerário de comique troupier exibindo-se diante do público em bistrôs e tavernas nos subúrdios de sua cidade natal e arredores, até que conseguiu ser contratado pelo Cassino de Toulon, adotando na ocasião o pseudônimo de Raimut (com um t).

Em janeiro de 1909, o jovem Jules Muraire, mais do que nunca desejoso de fazer carreira nos palcos, vai para Marselha, onde havia cerca de quarenta estabelecimentos de espetáculos consagrados ao teatro de variedades e à canção, entre eles o Alhambra. Para enfrentar esta nova fase de sua trajetória cênica, Jules mudou de pseudônimo, intitulando-se Rallum. Porém Rallum não estreou bem no Alhambra e o proprietário da sala, Paulus (que havia sido um ídolo do público nos anos 1880-90), com pena do rapaz, aproveitou-o como ponto, aquele auxiliar de cena que, fora da vista do público, vai recordando aos atores em voz baixa suas respectivas falas.

Um dia, a oportunidade de voltar à cena como ator lhe surgiu quando, por força das circunstâncias, teve que substituir o principal ator da companhia, Fortuné Aîné. A platéia aplaudiu Rallum entusiasticamente e ele ficou feliz em saber que havia escolhido a profissão certa.

Neste momento, o destino interveio. Seu pai, viciado no jogo, morreu coberto de dívidas. Todos os seus bens foram hipotecados e, sob pressão dos credores, tiveram que ser vendidos. Seu irmão Valentin acrescentou que seus próprios negócios iam de mal a pior e ele não podia socorrer a mãe. Jules é que teria de cuidar dela. O jovem foi trabalhar como crupiê e depois, tal como o irmão o fizera, estabeleceu-se como comerciante de sal numa loja em Marselha.

Jules Muraire, comerciante, não quis mais ouvir falar de arte mas, muitas vezes no fim do dia, ia beber um aperitivo no Petit Noailles, onde se reuniam os artistas. Certo dia propuseram-lhe uma participação num espetáculo de caridade. Os amigos insistiram e ele aceitou. Jules cantou quatro canções e foi um triunfo. Decididamente, ele não podia viver sem aquele sentimento, sem aquela emoção.

O dono do Palais de Cristal veio aos bastidores para lhe oferecer um contrato. Peça após peça seu talento se afirma e ele muda mais uma vez o pseudônimo para Raimu (sem o t). Seu êxito é enorme, sua notoriedade cresce. Falam dele em toda a região. Certo dia, o famoso Félix Mayol vai ao Palais de Cristal para cumprimentá-lo e acaba empregando-o no seu próprio teatro parisiense o Concert Mayol.  Jules estréia em 1910.

No ano seguinte, Raimu já está no principal music-hall de Paris, La Cigale de Gaston Flateau. O formidável ator, glória do teatro francês, Lucien Guitry, vai assistir ao espetáculo. Guitry aplaude Raimu longamente e deixa um recado no seu camarim, marcando um encontro no teatro Sarah-Bernhardt, onde se apresentava. A primeira pergunta que Guitry faz a Raimu: “Eu gostaria de saber, Monsieur Raimu, o que o senhor faz no music-hall?”. Resposta de Raimu: “Mas, Monsieur…Mestre. Que outra coisa o senhor queria que eu fizesse?”. Guitry lhe diz: “O teatro, meu caro. O teatro. Você devia representar no teatro…”.

No outono, o Folies-Bergère “rouba” Raimu do La Cigale, dobrando seu salário. Aos trinta anos, Raimu tinha todo o futuro pela frente. Mas só até o verão. No dia dois de agosto, de 1914, a França declara guerra à Alemanha e a Áustria-Hungria. Como soldado de segunda classe, Raimu parte para Orange, a fim de se juntar ao seu regimento. Em março de 1915, ele foi desligado do exército por motivo de doença.

De volta a Paris, o artista prosseguiu sua carreira alternando teatro de comédia com teatro de revista (vg. Monsieur chasse de Georges Feydeau; Plus ça change, ao lado de sua amante, a linda Spinelly; Faisons un rêve de Sacha Guitry; L’École des Cocottes de Armont e Gerbidon, um sucesso estrondoso; Le Roi de Flers et Caillavet; Édith de Nantes de Yves Mirande; L’Arlesienne de Alphonse Daudet; Bonjour Paris! apoiado pela famosa Mistinguett), até que ocorreu o seu encontro com Marcel Pagnol em Marius e, como consequência do êxito deste espetáculo, a sua introdução no cinema falado.

Raimu, que havia participado (como Rallum) em sete filmes mudos entre 1912 e 1917, fez 46 filmes sonoros, dos quais eu vi 22. Não conheço: Blanc et le Noir / 1931, Mam’zelle Nitouche / 1931, La Petire Chocolatière / 1932, Charlemagne / 1933, J’ai une Idée / 1934, Minuit, Place Pigalle / 1934, L’École des Cocottes / 1935, Le Secret de Polichinelle / 1936, Os Reis também Amam / Le Roi / 1936, Les Jumeaux de Brighton / 1936; Nada a Declarar / Vous n’avez rien a Déclarer? / 1937, A Casta Suzana / La Chaste Suzanne / 1937, Les Rois du Sport / 1937, Le Héros de la Marne / 1938, Noite de Farra / Nuit de Coco / 1939, Monsieur Brotonneau / 1939, Viciada / Dernière Jeunesse / 1939, L’Homme qui cherche la Verité / 1940, L’Arlesienne / 1942, Le Bienfaiteur / 1942, Les Petits Riens / 1942, Les Gueux du Paradis / 1946, O Eterno Marido / L’Homme au Chapeau Rond / 1946.

Entre os filmes de Raimu que conhecí, vou destacar alguns que muito me agradam, a começar por Marius, primeiro exemplar da trilogia Marius-Fanny-César, que revelou o mundo de Pagnol com sua humanidade simples e calorosa, seu folclore marselhês, imposto na tela pelo texto e por atores maravilhosos.

No velho porto de Marselha, o Bar de la Marine é mantido por César (Raimu), um bom sujeito, mas com cóleras pitorescas, que ali vive com seu filho Marius (Pierre Fresnay). Honorine (Alida Rouffe), vizinha e comerciante, que tem uma filha, Fanny (Orane Demazis), apaixonada por Marius. Porém o rapaz só sonha como o mar e com os grandes veleiros, que poderão levá-lo para lugares longínquos. Panisse (Fernand Charpin) , viúvo e rico, embora bem mais velho que Fanny, quer se casar com ela. Fanny torna-se amante de Marius, porém constata a amargura dele, contrariado nos seus projetos de evasão, e o incita a se engajar como marinheiro em um navio que está partindo.

Como observou Jacques Siclier, o filme põe em jogo situações e sentimentos, que poderíamos qualificar de melodramáticos, se Pagnol não possuísse a arte para humanizá-los, torná-los naturais. Nos filmes deste cineasta só conta a verdade humana e a interpretação de atores. A cena na qual Raimu tenta trapacear no jogo de cartas, dizendo para seu parceiro “tu me partes o coração”, é apenas um dos vários momentos antológicos do espetáculo, filmado em exteriores bastante fotogênicos.

Marius / 1931 e Fanny / 1932 foram respectivamente realizados por Alexander Korda e Marc Allégret; mas o próprio Pagnol completou com César / 1936 a “Trilogia Marselhesa”, comédias de costume impregnadas de muito calor humano, que asseguraram a glória de seu autor e de seus intérpretes (Raimu-César, Pierre Fresnay-Marius, Orane Demazis-Fanny, Fernand Charpin-Panisse).

Outro filme favorito é A Mulher do Padeiro / La Femme du Boulanger / 1938. Aimable Castanet (Raimu), o novo padeiro da aldeia de Sainte-Cécile, na Provença, não tem rival para fazer um bom pão branco. Sua mulher, Aurélie (Ginette Leclerc), foge com Dominique (Charles Moulin), o pastor de ovelhas do marquês de Monelles (Fernand Charpin). O infortúnio do padeiro a princípio diverte a comunidade, porém Aimable não tem mais ânimo para o trabalho. Ele se embriaga, abandona o forno e quer se enforcar. Os aldeões então se organizam para trazer a infiel Aurélie de volta.

Esta crônica camponesa, tão rica de verdade humana quanto os outros filmes provençais de Pagnol, é um estudo preciso das reações que a infelicidade provoca em um homem simples de coração. O filme trata também da solidariedade de um grupo, que estava oculta e se manifesta em razão do desespero pela inação do padeiro.Toda a intriga gravita em torno de Raimu e ele nos proporciona uma de suas melhores composições: vejam a longa cena de embriaguez na qual ele ri, canta em italiano, diz obcenidades, se afoga em lágrimas e adormece, evocando com lirismo o odor dos braços de sua mulher. Fica-se com vontade de chorar quando Aimable, sem ousar se dirigir a Aurélie no retorno de sua fuga, expressa toda a sua dor, dirigindo-se à gata, que também fugira.

Em O Homem que vivia duas Vidas / L’ Êtrange Monsieur Victor / 1938 de Jean Grémillon e Les Inconnus dans la Maison / 1941 de Henri Decoin, Raimu teve mais uma oportunidade de oferecer aos espectadores duas brilhantes atuações.

O Homem que viveu duas Vidas se passa em Toulon. Victor Agardanne (Raimu) leva uma vida dupla: a de um comerciante honesto e respeitado durante o dia, que à noite se torna chefe de uma quadrilha de ladrões. Vítima de uma tentativa de chantagem, Victor mata um de seus cúmplices com um instrumento cortante pertencente a seu vizinho, o sapateiro Bastien Robineau (Pierre Blanchar). Este é preso e condenado. Sete anos depois, Bastien foge da prisão e se refugia na casa de Victor, que lhe oferece ajuda, até ser desmascarado e preso pela polícia sob o olhar incrédulo de toda a vizinhança.

O aspecto mais interessante da história é o relacionamento psicológico entre Monsieur Victor e seu vizinho Bastien. Victor é gordo, próspero, bonachão, casado com a encantadora Madeleine (Madeleine Renaud). Bastien é magro, pobre, taciturno, ridicularizado por uma esposa insatisfeita, Adrienne (Viviane Romance), que o engana. Victor comete um crime e deixa que Bastien leve a culpa. Ao retornar, Bastien é recolhido e escondido por Victor e se apaixona por sua mulher. O responsável por sua infelicidade lhe aparece como seu benfeitor e é ele que se sente culpado de traí-lo no mesmo lugar que o “honrado” comerciante lhe deu asilo. Raimu está magnífico, encarnando através da personagem de Victor a ambivalência própria da natureza humana.

Na intriga de Les Inconnus dans la Maison o advogado Hector Loursat (Raimu) tornou-se alcoólatra, depois que sua mulher o abandonou há dezoito anos, deixando-o com uma filha, Nicole (Juliete Faber), da qual ele nunca se ocupou. Um dia, após ter ouvido um tiro, ele encontra na sua casa um cadáver. Durante o inquérito, Loursat fica sabendo que Nicole anda com um grupo de rapazes que, para espantar o tédio, haviam fundado um “clube de roubos”. Émile Manu (André Reybaz), namorado de Nicole, é acusado de homicídio, porque a vítima era um bandido, que extorquia dinheiro do grupo. Loursat sai de sua habitual letargia para defender Émile e faz, durante o julgamento, o processo de uma sociedade.

A primeira parte do filme evoca com vigor o ambiente da pequena cidade e os caracteres dos personagens. A segunda é dedicada à atuação do advogado alcoólatra e decadente, até então confinado às suas lembranças e à sua amargura. Ele não perdeu sua lucidez e a usa para defender um jovem acusado de assassinato. Raimu, com cara de bêbado, está quase dormindo no tribunal, onde as testemunhas oprimem seu cliente. Finalmente ele desperta e explode, dizendo algumas verdades duras de serem digeridas pelos burgueses provincianos, que o escutam, com temor. Seu longo discurso – com aquela voz tonitroante inconfundível – ofereceu ao grande ator a chance de mostrar seu talento extraordinário.

Raimu era, sobretudo, um ator instintivo e a sua imensa popularidade explica-se certamente pelo fato de que, através de sua personalidade ora bonachã ora irascível, todo indivíduo identificava-se facilmente com ele. René Clair, que o admirava e chegou a convidá-lo para trabalhar em O Silêncio é de Ouro / Le Silence est d’or / 1947, via nele “uma força viva, que os piores papéis não conseguiam destruir”.

Outros personagens que Raimu representou e que não me saem da memória são: o Capitão Hurluret em Les Gaietés de l’Esquadron; o escroque Gédéon Tafard em Théodore et Cie / 1933; o escroque Gédéon Tafard em Ces Messieurs de la Santé / 1933; o caçador de leões fanfarrão e mentiroso em Tartarin em Tartarin de Tarascon / 1934; o marido traído em  Vamos Sonhar / Faisons um Rêve 1935; Samplan em  Gaspard de Besse / 1935; o rico industrial marselhês, que comprou a última pérola em As Pérolas da Coroa / Les Perles de la Couronnne / 1937; o professor de ginástica em Le Fauteuil 47 / 1937; o jurado Camille Morestan, em Mulher Fatal / Gribouille / 1937; o prefeito François Patusset, que se casa a si mesmo em Um Carnet de Baile / Un Carnet de Bal / 1937; Legendre em Os Novos Ricos / Les Nouveaux Riches / 1938; Pascal Amoretti em La Fille du Puisatier / 1941; o Padre Bolène em Le Duel / 1939; o Cura des Baux em Parade em Sept Nuits / 1941; o ex-professor de música que se torna mendigo em Monsieur la Souris; Hyacinthe, o ex-militar do exército de Napoleão conhecido como Chabert em A Grande Perfídia / Le Colonel Chabert /1942; Tio Hector  em França Eterna / Untel père et fils / 1945.

No final de novembro de 1937, Raimu é agraciado com a Légion d’honneur. Era raríssimo um ator receber esta condecoração. Até aquela data, somente três foram honrados: Cécile Sorel, Le Bargy e Dranem (pela sua dedicação às causas humanitárias). Raimu foi o quarto.

Em 1943, Raimu, apadrinhado por Marie Bell, entra para a Comédie-Française, o ponto alto de sua carreira, e interpreta, entre outras peças clássicas, Le Bourgeois Gentilhome e Le Malade Imaginaire de Molière. Mas não se afastou das câmeras.

O grande ator despediu-se dos fãs de cinema somente em 1946 e faleceu em 20 de dezembro do mesmo ano em Neuilly-sur-Seine, aos 63 anos (coincidência, com a mesma idade que morreu Harry Baur), em virtude de uma crise cardíaca, provocada por uma dose de anestesia, que ele não suportou, após uma operação cirúrgica benigna na perna, realizada por causa de um acidente automobilístico.

Sua mulher Esther e a filha desta, Paulette, organizaram o seu funeral, que foi assistido por milhares de pessoas. Nesta ocasião, Marcel Pagnol declarou: “Não se pode fazer um discurso sobre o túmulo de um pai, um irmão ou de um filho. Tu fostes os três ao mesmo tempo: eu não falarei sobre seu túmulo”.

Vou terminar este artigo, reproduzindo o texto final do excelente livro de Raymond Castans, L’Impossible Monsieur Raimu (Fallois, 1999), do qual extraímos muitas informações.

No decorrer da semana seguinte ao enterro de seu amigo, Marcel Pagnol é procurado por um americano bem alto, que lhe diz: “Estou chegando dos Estados Unidos e desejo saber o endereço do ator Rai-Miou. Eu vi várias vezes o seu filme La Femme du Boulanger e gostaria de ter a honra de cumprimentá-lo.

___Infelizmente não será possível. Ele faleceu na semana passada”.

Diante destas palavras, o rosto do visitante entristeceu-se e ele ficou muito comovido: “Não posso acreditar, murmurou”.

Pagnol lhe conta o que se passou. O desconhecido queria saber de tudo. Finalmente, ele se levanta, olha longamenta para um retrato-fotográfico de Raimu e depois diz para Pagnol: “É uma grande infelicidade para a nossa arte, disse ele, era o maior ator do mundo”.

Neste instante, o visitante percebe que Pagnol não o reconhecera. Então, ele se apresenta: “Eu sou Orson Welles”.

HARRY BAUR

agosto 14, 2010

Harry Baur e Raimu eram os reis do teatro e do cinema francês durante todo o período entre as duas guerras mundiais, verdadeiros monstros sagrados, idolatrados pelo público. Eles tinham em comum uma força, um talento, uma personalidade inegável. Todos dois eram inimitáveis. Vou começar falando sobre Harry Baur e dedicarei um artigo a Raimu, logo em seguida.

.   Os pais de Harry Baur deixaram a Alsácia após a derrota de 1870, a fim de preservar a cidadania francesa, instalando-se em Paris, onde monsieur Baur continuou exercendo um pequeno comércio de relojoaria-joalheria. Harry, cujo verdadeiro nome era Henri-Marie, ainda estava no berço, quando uma desgraça se abateu sobre a família. Dois homens penetraram na loja e, sob ameaça de um revólver, roubaram todas as jóias.

Os Baur ficaram arruinados e Henri passou uma infância pobre. Seu pai faleceu quando ele tinha dez anos de idade e sua mãe não lhe devotava nenhuma afeição; mas ele teve a sorte de receber o carinho de uma religiosa, irmã Catherine, pertencente à Congregação das Filhas de Caridade da ordem de São Vicente de Paulo.

Sob pressão dos vizinhos, que estavam preocupados com o distanciamento da mãe com relação ao filho, Henri foi matriculado numa instituição religiosa, que se destinava à formação de futuros seminaristas. Sem ter vocação para ser padre, Henri fugiu da escola, mas depois estudou num colégio leigo, inscrevendo-se posteriormente nos cursos da Escola de Hidrografia da Marinha, de onde veio a ser expulso por causa de uma discussão com um dos professores.

O rapaz então decidiu ser ator e ingressou no Conservatório de Arte Dramática de Marselha, do qual saiu aos 19 anos, em 1899, amplamente recompensado com um prêmio de comédia, obtido ao interpretar uma cena do Avarento de Molière e outro de tragédia, com o monólogo do Cid de Corneille. Após ter cumprido a obrigação do serviço militar, Baur se aproximou novamente do teatro, desta vez como uma espécie de secretário do célebre ator Mounet-Sully e, com o tempo, ele conseguiu ingressar em várias companhias de teatro. Em 1907, Baur foi contratado pelo Teatro Antoine e, pela primeira vez, a crítica começou a falar sobre ele.

Vamos omitir informações sobre a carreira de Harry Baur nos palcos – que chegou ao auge nos doze primeiros anos posteriores à Primeira Guerra Mundial – e também sobre os filmes dos quais participou no período da cena muda entre 1909 e 1923, para chegarmos logo à sua estréia diante das telas depois do advento do som.

Baur começou no cinema falado na versão francesa do filme Le Cap Perdu / 1930, filmado na Inglaterra sob a direção de E. A. Dupont. Quando a filmagem chegava ao fim, ele recebeu uma ligação telefônica de um produtor, fazendo-o saber que Julien Duvivier desejava que ele fosse o intérprete de seu novo filme, Tragédia de um Homem Rico / David Golder / 1930.

Duvivier revelaria depois que a contratação de Baur suscitou algumas reticências por parte dos produtores, devido à fama que o ator tinha de temperamental, porém não houve nenhum incidente durante a filmagem do romance campeão de vendas de Irene Nemirovsky.

No enredo do filme, David Golder (Harry Baur), judeu polonês imensamente rico, vai se encontrar em Biarritz com sua esposa Gloria (Paule Andral) e sua filha Joyce (Jackie Monnier). David e Gloria se detestam. Ela o trai com um aventureiro, o conde de Hoyos (Gaston Jacquet). David idolatra Joyce, que finge ser uma filha devotada, mas só pensa em explorar o pai. David sofre uma crise de angina e, durante uma discussão com Gloria no hospital, esta lhe revela que Joyce é filha de Hoyos. Para se vingar, David abandona seus negócios e vai viver sozinho. Atendendo às súplicas de Joyce, faz uma transação lucrativa na Rússia para ajudá-la e morre solitário a bordo de um navio na viagem de volta.

Grande parte do êxito do espetáculo deve-se à mestria de Duvivier, mas a outra, não menos importante, ao talento do intérprete de David Golder. Foi o que acentuaram não somente os críticos, mas também eminentes personalidades literárias e artísticas, igualmente extasiadas pela performance do ator. Na sua magnífica biografia de Harry Baur (Pygmalion, 1995), de onde colhemos muitos dados para este artigo, Hervé Le Boterf cita várias opiniões a respeito do trabalho de Baur, das quais reproduzimos apenas a do poeta Jules Supervielle: “Harry Baur interpreta o papel particularmente difícil de David Golder com uma intensidade e uma riqueza que fazem dele uma das grandes figuras da tela”.

A cena mais contundente do filme – realizado praticamente segundo a técnica do cinema mudo, mas cumprindo inteligentemente as exigências da reprodução do som – é aquela em que Golder, gravemente enfermo, se defende das manobras de sua mulher, querendo lhe arrancar um testamento em seu favor. Quando Gloria se inclina sobre seu corpo e lhe diz cruelmente que Joyce não é sua filha, Golder estende o braço e aperta o pescoço da mulher com o seu colar de pérolas. É um momento terrível, no qual o ódio e a maldade se manifestam com uma intensidade impressionante.

Harry Baur fez 37 filmes no cinema sonoro (dos quais pude ver 19 – não conheço: Le Cap Perdu / 1930, Le Juif Polonais / 1930, Criminel / 1932, Os Três Mosqueteiros / Les Trois Mousquetaires / 1932, Ave de Rapina / Cette Vieille Canaille / 1933, Rotchild / 1933, Um Homem de Ouro / Un Homme em Or / 1934, Le Greluchon Délicat / 1934, Noites Moscovitas / Les Nuits Moscovites / 1934, Olhos Negros / Les Yeux Noirs / 1935, Tarass Boulba / Tarass Boulba / 1936, Paris / 1937, Nitchevo, Agonia do Submarino / Nitchevo / 1937, Nostalgia / Nostalgie / 1937, Les Secrets de la Mer Rouge / 1937, Ódio / Mollenard / 1938, Rasputin / La Tragédie Imperiale / 1938, O Patriota / Patriote / 1938. Vou falar somente sobre os filmes que eu vi.

Depois do sucesso de A Tragédia de um Homem Rico, Duvivier propôs a Baur, Les Cinq Gentlemen Maudits / 1931, que contava a aventura de cinco jovens em Tanger onde, após uma rixa por motivo fútil, um árabe predizia uma morte rápida e brutal para eles. O script não continha um papel correspondente à idade de Baur, mas somente cinco reservados para artistas jovens (René Lefèvre, Robert Le Vigan, Marc Dantzer, Jacques Erwin e Georges Péclet). Duvivier então incluiu um personagem suplementar para Baur, que podemos qualificar de episódico.

Um acontecimento impressionante ocorreu durante a filmagem. Baur e outros membros da equipe estavam sentados sobre algumas ruínas, comendo seus sanduíches, quando apareceu um mendigo que lançou uma maldição contra aqueles europeus, porque eles estavam profanando um cemitério muçulmano. No dia seguinte, alguns membros da equipe foram vitimados por uma doença desconhecida e outros sofreram do mesmo mal nos dias subseqüentes. Rose Grane, esposa de Baur, que estava em Oran no dia da dita profanação, também não escapou à vingança do mendigo que, conforme explicou um intérprete, era um religioso. O médico diagnosticou um caso de tifo e Rose veio a falecer. Sempre que podia, Baur visitava a esposa internada num hospital na Algéria. Suas ausências e as doenças sucessivas dos atores e técnicos atrazaram a filmagem dos exteriores que, prevista para três semanas, durou mais de três meses. Nos estúdios de Epinay, onde deveria prosseguir a produção, um imenso cenário foi destruído por um incêndio inexplicável e, posteriormente, três quartos dos negativos das tomadas feitas no Marrocos, foram estragados em virtude de uma pane de eletricidade ocorrida nos laboratórios de revelação. Finalmente, por ocasião da estréia do filme, a viúva de Luitz-Morat, realizador da versão muda da mesma história, moveu uma ação judicial para impedir a exibição do filme.

Apesar desta experiência desastrada, Duvivier se dedicou, poucos meses depois, a uma outra refilmagem, a de Poil de Carotte, que ele mesmo realizara em 1925.  No romance de Jules Renard, François Lepic (Robert Lynen), um menino de 12 anos de idade e cabelos ruivos, apelidado de Poil de Carotte, é detestado pela mãe (Catherine Fonteney), mulher tirânica que reserva seu carinho para o filho mais velho, Félix (Max Fromiot). François sofre profundamente por não ser amado. Seu pai parece indiferente, preocupado com as próximas eleições municipais. Após diversas tentativas, François resolve se suicidar enforcando-se no celeiro. Felizmente M. Lepic (Harry Baur) chega a tempo de salvá-lo. Pela primeira vez o pai tem uma conversa com o filho. A partir de então, Poil de Carotte terá um defensor contra sua mãe.

Este personagem de pai rabugento, que salvava do desespero um filho destinado a servir de bode expiatório para a sua mãe, ofereceu a Baur a oportunidade de fazer uma de suas grandes composições. O ator teve um cuidado meticuloso na elaboração de M. Lepic, a ponto de exigir quinze tomadas sucessivas, a fim de encontrar a entonação e os gestos mais exatos na cena patética em que Lepic procura ganhar a afeição de seu filho, um momento de grande emoção.

Como explicou Le Boterf, em Pega-Fogo (título em português da versão de 1932), Baur havia descoberto um reflexo de seu filho Jacques, morto três anos antes (Baur tinha mais um filho, Cecil Grane, e uma filha, Loëna). Ele ficou impressionado, desde seu primeiro encontro com Robert Lynen, por uma certa semelhança existente entre este e seu próprio filho, na idade de sua primeira comunhão. Esta cumplicidade sentimental, travada entre os intérpretes do pai Lepic e Poil de Carotte, contribuiu provavelmente para a qualidade emotiva do filme de Duvivier.

Não desejando se privar de seu astro fetiche, Julien Duvivier propôs a Harry Baur que ele encarnasse um personagem bem diferente, o do comissário Maigret em A Cabeça de um Homem / La Tête d’un Homme / 1932. O que interessava ao diretor nesta ilustração do romance de Georges Simenon era menos a intriga do que uma análise de caracteres motivada pelo confronto entre um comissário de polícia e um paranóico, devorado pela ambição de cometer um crime perfeito espetacular. No filme não há mistério, mas somente oposição, a luta entre dois temperamentos. Trata-se, enfim, de um estudo psicológico e, graças à presença de dois grandes atores – Baur no papel de Maigret e Valéry Inkijinoff no papel do assassino Radek -, Duvivier conseguiu reconstituir com perfeição esse duelo entre duas personalidades fortes.

O próximo de filme de Harry Baur, que eu vi e gostei, foi Os Miseráveis / Les Misérables / 1934, dirigido por Raymond Bernard, no qual ele encontrou o papel mais marcante de sua carreira. Apesar da compressão da intriga, o grande afresco romântico e social de Victor Hugo foi levado à tela com muita fidelidade. A interpretação de Harry Baur, que está sublime em todas as encarnações do personagem – de Jean Valjean a Fauchelevent e Madeleine, aos quais ele ainda acrescentou a figura episódica de Champmathieu – jamais foi superada por outro ator. Também admiráveis foram os trabalhos de Charles Vanel, como o inflexível Javert; Florelle, assumindo os traços luminosos de Fantine; Charles Dullin e Marquerite Moreno, formando uma dupla dissimulada e sarcástica nos papéis de Thénardier e senhora, Jean Servais e Josseline Gaël, compondo com graça juvenil o par romântico de Marius e Cosette, sem esquecermos de Henry Krauss (Bispo Myriel), Orane Demazis (Eponine), Robert Vidalin (Enjolras), Emile Genevois (Gavroche), Max Dearly (Gillenormand) e a pequenina Gaby Triquet (Cosette menina).

Abro um parênteses para dizer que lamento muito não ter visto os filmes do chamado “ciclo eslavo” de Baur, propulsionado pelo êxito de Noites Moscovitas. Inspirado no romance de Pierre Benoit, o enredo focaliza um mercador de trigo, Piotr Brioukow (Harry Baur) e um oficial do exército de Nicolau II acusado injustamente de traição (Pierre Richard-Willm), que estão apaixonados por uma jovem aristocrata (Annabella). No final, o comerciante grosseiro e beberrão testemunha em favor de seu rival, salvando-o da execução e se sacrifica, para que o casal possa viver alguns dias felizes antes da Revolução de Outubro. Depois do sucesso deste filme, os produtores passaram a oferecer ao ator muitos papéis de russos e assim sucederam-se – em alternância com outros filmes não relacionados com a Rússia – Olhos Negros, Tarass Boulba, Rasputin e O Patriota, nos quais Baur era visto pela ordem como Ivan Ivanovitch Petroff, Tarass Boulba, Rasputin e o Tsar Paulo I.

Segundo Le Boterf, a composição de Baur como Tarass Boulba foi uma das mais prodigiosas de sua carreira. Beberrão, colérico, violento e subitamente preocupado com os filhos, com sua cabeça raspada e seus enormes bigodes, ele traçou um retrato ao mesmo tempo feroz e pungente do personagem de Nicolas Gogol. Baur soube extrair efeitos maravilhosos das cenas principais: a execução de seu filho André (Jean-Pierre Aumont), os regabofes e a dança cossaca no acampamento e sobretudo a morte inesquecível do grande líder ao pé de uma árvore cuja folhagem abrigava sua agonia. Como escreveu seu notável biógrafo, “Nunca, depois de Os Miseráveis, Harry Baur havia usufruido de um triunfo tão grande na tela”.

Entre esses intermédios de atmosfera eslava, Baur encontrou tempo para atuar em outros filmes, entre os quais destaco: Assassino sem Culpa / Crime et Châtiment / 1935 e Um Grande Amor de Beethoven / Un Grand Amour de Beethoven / 1937.

Em Assassino sem Culpa, Pierre Chenal compreendeu que era difícil reproduzir a significação metafísica da obra literária e preferiu fazer uma adaptação simplesmente dramática do romance de Dostoievski, usando a iluminação e os enquadramentos expressionistas, para criar uma atmosfera russa estilizada, carregada de tristeza, sordidez e miséria. Porém o ponto alto do filme é a confrontação psicológica em um jogo de gato e rato, entre o juiz astuto tentando obter uma confissão do criminoso e o estudante atormentado que, no fundo, deseja se liberar do seu segredo.

Baur aceitou o papel do comissário Porfírio, porque teria oportunidade de contracenar com seu colega Pierre Blanchar, encarregado de personificar o estudante Raskolnikov, num duelo artístico estimulante. A interpretação de Pierre Blanchar com aquele olhar alucinado, a dicção estranha, os risos nervosos, contrasta com a atuação mais sutil e contida de Harry Baur, ambos magníficos atores. Mas foi Blanchar, e não o seu parceiro, que obteve o prêmio Volpi de Melhor Ator na Mostra Internacional de Veneza em 1935. Entretanto, Baur não manifestou nenhum despeito e consentiu que seu nome figurasse em segundo lugar nos letreiros e nos cartazes do filme. “Por causa do papel. Por causa de Pierre Blanchar”, declarou ele com fidalguia.

Em O Grande Amor de Beethoven, Abel Gance preferiu evocar – com seu lirismo desmesurado – o período mais doloroso vivido por Beethoven, que coincidiu com a constatação de sua surdez total, seus desgostos sentimentais e a expansão do seu gênio artístico, a fim de dar um máximo de intensidade dramática ao espetáculo.

O grande amor é o de Beethoven (Harry Baur) por Giulietta Guicciardi (Jany Holt), sem compreender que ela apenas lhe dedica amizade e admiração. Giulietta se casa com o conde Gallenberg (Jean Debucourt). Ao receber esta notícia e perceber que está totalmente surdo, Beethoven cai em depressão. O compositor se retira para o velho moinho de Heiligenstadt, onde permanece sozinho por algum tempo. Retornando a Viena, Beethoven recebe em sua casa uma mulher doce e apaixonada, Thérèse de Brunswick (Annie Ducaux), a prima de Giulietta. Esta acaba reconhecendo seu erro ao se casar com Gallenberg e Beethoven a perdoa, escrevendo a famosa carta à “amada imortal”. Thérèse pensa que esta declaração de amor se refere a ela e Beethoven não ousa dissipar o engano. Porém Thérèse depois percebe que a sonata “Appassionata” é dedicada à memória de Giulietta e se resigna a ser apenas uma amiga de Beethoven. O grande compositor morre durante uma tempestade, em presença de Giulietta, que viera para lhe dar o último adeus. Na mesma noite, um concerto, ao qual assiste a amiga fiel, Thérèse de Brusnwick, consagra o gênio musical de Beethoven.

Gance estabelece uma simbiose perfeita entre imagem e música, por exemplo, na declaração de amor ao som da Sonata ao Luar, na surpreendente execução da Nona Sinfonia sem trilha sonora para evocar o mundo dos surdos, na Sinfonia Pastoral ajudando a compreender o mecanismo da criação. Baur levou muito a sério a composição do personagem. Bom músico que era, pôs-se a executar as sonatas do compositor no piano, em cujo teclado não tocava desde o falecimento de seu filho Jacques, e freqüentou numerosos concertos sozinho ou na companhia de Rika Radifé, que ele havia esposado alguns meses antes. Baur ficou mesmo deslumbrado com a oportunidade de ser Beethoven na tela, então disse: “É uma recompensa na carreira de um ator ver seu nome unido à existência mais bela, mais comovente, depois da vida do Cristo. Este homem crucificado pela música, que ele não podia ouvir”.

Outros papéis que Harry Baur representou e que não me saem da lembrança: o tetrarca Herodes em Golgotha / Golgotha / 1935, o imperador Rodolfo II em Golem, o Monstro de Barro / Le Golem / 1936, o banqueiro Jacques Brachart em Sansão / Samson / 1936, o construtor Bourron em Les Hommes Nouveaux / 1937, o monge regente do coro infantil em Um Carnet de Baile / Un Carnet de Bal / 1937, César Sarati, o ex-estivador quase incestuoso que impõe sua lei nas docas de Argel, em Sarati le Terrible / 1938 (no qual teve ao seu lado Rika Radifé), o médico colonial Dr.Bourdet em L’Homme du Niger / 1939, o magistrado Haudecoeur em Le Président Haudecoeur / 1939 (contracenando com seu filho Cecil Grane),  o avarento esperto e mesquinho em Volpone, o Demônio de Paris / Volpone / 1940, o fabricante de mapas-múndi Père Cornusse em L’Assassinat du Père Noel / 1941, o quinquagenário Lacalade que procura os filhos nascidos de suas relações na juventude em Péchés de Jeunesse / 1941 e o maestro Stéphane Melchior em Sinfonie eines Lebens / 1942

Durante a Ocupação, após ter atuado como astro de dois filmes (L’Assassinat du Père Noel e Péchés de Jeunesse) produzidos pela Continental, a companhia destinada a produzir na França filmes com capital alemão e mão de obra francesa, dirigida por Alfred Greven, Baur tornou-se, no plano artístico, um símbolo da colaboração franco-alemã. Em diversas ocasiões ele foi visto congratulando-se com artistas do cinema nazista de passagem por Paris e se deixou fotografar com eles. Baur não recusou o convite de Greven para participar de um jantar oferecido pela Continental em homenagem a Zarah Leander, a famosa estrela dos estúdios alemães nem da recepção organizada no Maxim’s para acolher o grande ator germânico, Heinrich George. Baur tentou escapar das garras da Continental e caiu em outras, muito mais comprometedoras, da Tobis, cuja sede não era em Paris, mas no coração mesmo do Terceiro Reich. Ele assinou um contrato de seis meses com a Tobis, para fazer um filme cem por cento alemão, Sinfonie eines Lebens, que, por um cachê de seis milhões de francos, faria dele o primeiro astro trabalhando nos estúdios nazistas depois da derrota da França e serviria assim como prelúdio a uma política de trocas cinematográficas entre Paris e Berlim.

Depois que o filme alemão terminou, Baur retornou a Paris tranqüilamente. Pouco depois, no dia 30 de maio de 1942, sua esposa e ele foram presos pela polícia alemã e transferidos respectivamente para a prisão de la Santé e du Cherche-Midi. Rika foi libertada após cento e quinze dias de detenção. Seu marido foi impedido de receber visitas, correspondência e até remédios. Ele foi solto em 19 de setembro de 1942, em condições físicas lamentáveis.

O aprisionamento do ator suscitou diversas interpretações (entre elas a de que era membro da Resistência ou um agente inglês, que teria favorecido a evasão de vários prisioneiros), mas segundo sua viúva declarou após a Libertação, ele foi motivado por uma denúncia feita por um certo Edouard B…, ator obscuro que Baur conhecera na sua juventude. O conteúdo do bilhete do delator era sucinto: “Harry Baur é judeu, casado com uma judia, sua filha se casou com um judeu argelino, seus filhos foram educados na religião judaica”. Baur, que já vinha sendo apontado como judeu e franco-maçom pela imprensa colaboracionista e anti-semita, foi acusado de ter obtido um certificado falso de ascendência ariana.

Existem duas hipóteses para a sua libertação: ou os alemães o soltaram porque constataram que ele não era judeu ou o deixaram ir para casa, bastante enfraquecido, para dar ao seu fim próximo a aparência de uma “morte natural”.

Baur sempre afirmara que era “um velho católico” e morreu aos 63 anos de idade, em 8 de abril de 1943, assistido pelo padre que o visitava cotidianamente nos seus dias de agonia. O funeral ocorreu na igreja Saint-Philippe-du-Roule e seu corpo, com um rosário atado nos seus dedos, foi enterrado no cemitério Saint-Vincent em Montmartre.

Quanto à Rika Radifé, ela se dizia muçulmana e, após a morte de Bauer, teria se convertido ao catolicismo, conquistada pela piedade do sacerdote que trouxera conforto espiritual para seu marido. Rika aparentemente, não foi mais incomodada pela Gestapo durante os últimos anos da ocupação. Ela veio a falecer em 1983, após ter dirigido, durante trinta anos, o Thêatre des Mathurins em Paris.

NORMA TALMADGE

agosto 6, 2010

Norma Talmadge foi atração de bilheteria por mais de uma década. Sua carreira atingiu o auge no começo dos anos 20, quando ela figurava entre os ídolos mais populares do cinema mudo americano.

Especializada em melodramas, com um dos rostos mais expressivos da tela, elegante e glamourosa, Norma era adorada pelos espectadores e pelos críticos. Hoje, infelizmente, quase ninguém mais se lembra dela, porque seus filmes são menos acessíveis do que os de outras grandes estrelas da época. Alguns historiadores recentes, sem dispor das fontes primárias, mencionam o seu nome apenas de passagem ou emitem um julgamento impreciso sobre a sua capacidade artística.

Como se isto não bastasse, Norma inspirou duas caricaturas injustas que continuam vivas num par de filmes famosos. Em Cantando na Chuva / Singin’ in the Rain / 1952 ela é parodiada como Lina Lamont (Jean Hagen), uma estrela da cena muda, cujo sotaque do Brooklyn prejudica sua estréia no cinema falado num drama histórico francês (muita gente atribuiu erroneamente o fracasso do segundo filme sonoro de Norma, Du Barry, a Sedutora / Du Barry, Woman of Passion / 1930, ao seu sotaque do Brooklyn). Billy Wilder usou Norma Talmadge como o modelo óbvio, embora não reconhecido, de Norma Desmond, a decadente e grotesca estrela do cinema silencioso no seu filme Crepúsculo dos Deuses / Sunset Boulevard / 1950. Interpretada entusiasticamente por Gloria Swanson, uma das rivais de Norma Talmadge nos anos 20, a personagem de Norma Desmond inspira-se na reclusão de Norma (que abandonou o cinema no começo da década de trinta e foi morar numa mansão em Beverly Hills com a enorme fortuna que ganhou nos seus dias de glória), no seu conhecido romance com um homem bem mais jovem do que ela, Gilbert Roland, seu parceiro em vários filmes de sucesso e no seu comportamento excêntrico (sofrendo de artrite, ela se tornou viciada em remédios para aliviar a dor).

Apesar de que uma alta percentagem de seus filmes ainda sobreviva, eles não costumam ser reapresentados e, até o presente momento, existe apenas um dvd em cópia muito boa: Kiki / Within the Law, lançada pelo Kino International em 2010. De modo que escrevo este artigo, baseando-me em matérias publicadas nas revistas de cinema antigas e nas conversas que tive com o maior fã brasileiro de Norma, o saudoso Rozendo Marinho, que organizou, nos anos 60, uma inesquecível Mostra de Cinema Americano.

Norma Talmadge nasceu em Jersey City, New Jersey em 1894. Ela era a filha mais velha de Fred Talmadge, um alcoólatra crônico, que estava sempre desempregado e Margaret “Peg” Talmadge, mulher arguta e decidida. A infância de Norma foi marcada pela pobreza. Numa manhã de Natal seu pai saiu de casa para comprar alimento e não voltou, deixando para a esposa a tarefa de criar as três filhas pequenas do casal.

“Peg” educou-as no Brooklyn em Nova York com muito esforço e determinação até que, ao saber que uma colega de colégio de Norma posava para as illustrated songs (canções ou hinos patrióticos ilustrados por slides de lanterna mágica, mostrando as letras das canções e poses de modelos, representando trechos das mesmas, que eram apresentados antes dos filmes de um rolo nos primeiros cinemas), Mrs. Talmadge procurou o fotógrafo e marcou uma entrevista para sua filha Norma. Após uma rejeição inicial, a mocinha acabou sendo aprovada. Quando “Peg” e suas filhas foram ver a sua “estréia” como modelo, a resoluta progenitora resolveu encaminhar as três filhas (as outras chamavam-se Constance e Natalie) para o cinema.

Norma era a mais bonita e foi a primeira a ser estimulada pela mãe a iniciar uma carreira como atriz cinematográfica. Mãe e filha rumaram para os estúdios da Vitagraph em Flatbush, Nova York, que ficava perto da casa onde moravam. Norma fez uma quantidade de pequenos papéis em filmes curtos entre 1909 e 1912 e, em 1911, chamou a atenção como Mimi, a costureirinha que acompanha Sidney Carton para a guilhotina na primeira versão cinematográfica de A Tomada da Bastilha / A Tale of Two Cities de Charles Dickens, épico de três horas de duração, estrelado pelo principal ator do estúdio, Maurice Costello.

Em 1913, a filha mais velha de “Peg” era uma das jovens atrizes mais promissoras da Vitagraph. Dois anos depois, ela teve um papel de destaque em A Invasão dos Estados Unidos ou Invasão dos Bárbaros / The Battle Cry of Peace, curioso filme de propaganda anti-germânica em chave de fantasia, descrevendo uma futura próxima invasão dos Estados Unidos por legiões comandadas por um ditador chamado “Emanon” (ou, lendo de trás para diante,  “no name “ / sem nome) e a subjugação do povo americano.

A ambiciosa “Peg” percebeu que poderia levar mais adiante a carreira da filha e partiu com a família para a Califórnia, onde Norma assinou um contrato de dois anos com a National Pictures Corporation, para a realização de oito filmes com o salário de 400 dólares semanais. Entretanto, o primeiro filme na National, Captivating Mary Carstairs, foi um fracasso e a companhia logo fechou as portas.

Sem desanimar, “Peg” bateu na porta da Triangle Film Corporation e conseguiu que Norma fosse contratata pela Fine Arts Company, nome da firma criada para produzir os filmes supervisionados por D.W.Griffith. Durante oito meses, Norma foi a atriz principal de sete filmes entre os quais  Malditos Homens / The Social Secretary / 1916, comédia escrita por Anita Loos, que anos depois escreveria The Talmadge Girls: A Memoir (Viking Press, 1978).

Quando o contrato com a Fine Arts terminou, as irmãs Talmadges voltaram para Nova York. Numa festa, Norma conheceu Joseph M. Schenck, exibidor rico, que tinha a pretensão de produzir seus próprios filmes. Dois meses depois, em 20 de outubro de 1916, eles estavam casados. Norma chamava seu marido bem mais velho, de “Papai”. Ele passou a dirigir, controlar e impulsionar a carreira de Norma em aliança com a mãe dela.

Em 1917 o casal fundou a Norma Talmadge Film Corporation e a empresa se tornou muito lucrativa. Schenck queria fazer de sua esposa a maior de todas as estrelas, reservando para ela as melhores histórias, os figurinos mais luxuosos, os cenários mais opulentos, os elencos mais talentosos e os diretores de maior prestígio, juntamente com uma publicidade espetacular. Em pouco tempo, as mulheres de todo o mundo queriam ser a romântica Norma Talmadge e afluíam em massa para ver seus filmes extravagantes.

Schenck logo passou a ter um grupo de astros atuando no seu estúdio de Nova York com a Norma Talmadge Corporation produzindo dramas no andar térreo, a Constance Talmadge Film Corporation produzindo comédias sofisticadas no segundo andar, a Unidade Cômica com Roscoe “Fatty” Arbuckle no último andar e Natalie Talmadge exercendo a função de secretária e interpretando ocasionalmente pequenos papéis nos filmes de suas irmãs. Arbuckle trouxe para o estúdio seu sobrinho Al St. John e o artista do vaudeville Buster Keaton. Quando Schenck decidiu que era financeiramente mais vantajoso alugar os serviços de Roscoe para a Paramount Pictures, Keaton assumiu seu lugar na unidade cômica e pouco depois casou-se com Natalie, reforçando seu relacionamento com a família Talmadge. Natalie teve um momento de fama, atuando ao lado de Keaton em Nossa Hospitalidade / Our Hospitality / 1923.

O primeiro filme de Norma para a sua companhia foi Pantéia / Panthea / 1917, dirigido por Allan Dwan, tendo como assistentes Erich Von Stroheim e Arthur Rosson. Neste melodrama tendo como pano de fundo a Rússia imperial, Panthea (Norma Talmadge) é uma jovem pianista, cuja beleza atraí o Barão de Duisitor (Roger Lytton), que arma um esquema para conquistá-la; mas ela consegue fugir para a Inglaterra, onde se casa com o compositor Gerard Mordaunt (Earle Fox), filho de um nobre britânico. O sonho do marido é ver sua ópera encenada. Sem conseguir realizar o seu sonho, ele fica doente e os médicos acham que, se a ambição do rapaz não for concretizada rapidamente, não haverá cura. O casal vai para Paris e ali Panthea reencontra o barão, que tem muita influência no meio musical, e consente em se sacrificar, para salvar o marido. O filme foi muito admirado pelos efeitos de luz audaciosos inventados por Dwan e seus fotógrafos Roy Overbaugh e Harold Rosson. Eles sugeriram um vasto cenário simplesmente com a ajuda da iluminação e jogaram um pó de alumínio nos feixes de luz para dar mais substância aos raios luminosos. O espetáculo foi um sucesso e consagrou Norma como uma excelente atriz dramática.

Sob a supervisão de Schenck seguiram-se vários filmes entre eles Papoula Viçosa ou Visão de Amor / Poppy / 1917, no qual Norma contracenava com Eugene O’Brien. A dupla deu tão certo, que foram realizados mais dez filmes com Norma e Eugene: As Duas Mulheres / The Ghosts of Yesterday / 1917, A Mariposa / The Moth / 1917, Por Direito de Compra / By Right of Purchase / 1918, Annie de Luxo / De Luxe Annie / 1918, Recurso Supremo / Her Only Way / 1918, Pano de Segurança / The Safety Curtain / 1918, A Voz do Minarete / The Voice from the Minaret / 1923, A Única Mulher / The Only Woman / 1924, Segredos / Secrets / 1924 e Amor de Príncipe / Graustark / 1925.

Em Papoula Viçosa, Norma é Poppy Destinn, uma órfã maltratada, que foge de sua casa no interior da África e se perde na selva. Perseguida por um nativo, ela é salva por Sir Evelyn Carson (Eugene O’ Brien); mas se recusa a ficar muito tempo com ele, porque tem medo. Poppy depois procura refúgio na casa de Luce Abinger (Frederick Perry), um homem que não respeita as mulheres. Sob o pretexto de adotar Poppy, Luce se casa com ela e, como a cerimônia de casamento é falada em francês, Poppy não entende o que está acontecendo. Quando Luce está viajando, Carson reencontra Poppy e os dois se apaixonam, ocorrendo, em conseqüência, desdobramentos dramáticos da intriga. Por causa deste filme, os fãs brasileiros deram a Norma o apelido de “Papoula Viçosa” (vg. em Cinearte de 8/6/1927 pg.28).

Cidade Proibida / The Forbidden City / 1917, dirigido por Sidney Franklin, foi um dos filmes mais expressivos de Norma no período anterior aos anos 20. Ela interpreta o papel duplo de San San e Toy. San San, filha de um mandarim chinês, casa-se secretamente com John Worden (Thomas Meigham), secretário assistente do Consulado Americano e vive feliz com ele, até que seu pai decide, na ausência de Warden, oferecê-la para o harem do imperador chinês. Quando o imperador vê Toy, a filha de San San, ele fica furioso e manda matar a mãe da criança. Worden deixa o país. Dezoito anos mais tarde, Toy, criada pelas mulheres do harém, escapa para Manila, onde vai servir como enfermeira da Cruz Vermelha. Ela fica noiva de um tenente americano, Philip Halbert (Reed Hamilton), porém o tutor do rapaz proíbe a união. Mais tarde, Toy é chamada para cuidar do guardião enfermo que, no seu delírio, revela que é o pai de Toy. Worden, lembrando-se com saudade de San San, finalmente abençoa o casamento dos dois jovens.

O Variety comentou: “Miss Talmadge interpreta ambos os papéis com uma habilidade e talento artístico que vão aumentar a sua já grande reputação como uma favorita da tela”. Foram muito lembradas pelos fãs a prece de San San para Buda (“Oh, Buddha traga homem do amor aquí para me dar um milhão de beijos doces”) e a declaração de Toy: “Eu americana, não necessito ancestrais”.

Nos anos 1921-1922, Norma teve pelo menos quatro filmes de muito êxito nas bilheterias: Flor de Paixão / Passion Flower / 1921, Quanto Pode o Amor / Love’s Redemption / 1921, Morrer Sorrindo / Smilin’ Through / 1922 e A Duquesa de Langeais / The Eternal Flame / 1922.

A personagem de Norma em Flor de Paixão tem o nome de Acácia. Ela despreza o seu padrasto, Esteban (Courtenay Foote), e aceita casar com seu primo, Norbert (Harrison Ford). Secretamente apaixonado por Acácia, Esteban arma um esquema para acabar com o noivado, desenrolando-se vários acontecimentos trágicos. O filme, realizado por Herbert Brennon, recebeu muitos elogios, tendo sido classificado como o drama mais forte no qual Norma apareceu.

Em Quanto Pode o Amor, Norma é Jennie Dobson, uma jovem órfã conhecida como Ginger, que vive sob a tutela do Capitão Bill Hennessey, um lobo-do-mar. Ginger conhece e se apaixona por Clifford Standish (Harrison Ford), um inglês exilado e alcoólatra, dono de uma plantação, que lhe propõe casamento. O irmão de Clifford (Michael M. Barnes) chega da Inglaterra, para lhe dizer que ele herdou uma fortuna e fica chocado ao saber do casamento com Ginger. Na Inglaterra, Ginger é recebida friamente por seus parentes. Clifford volta a levar uma vida dissipada. Quando Ginger descobre um convidado roubando no jogo de cartas, segue-se uma confusão e o pai de Clifford (Montagu Love) insiste para que ela retorne à Jamaica. Percebendo quanto vale o seu amor, Clifford rejeita sua família e volta com ela.

Quanto Pode o Amor, sob a direção de Albert Parker, segundo os comentaristas da época, era apenas um bom espetáculo, sem ter nada de extraordinário. Porém o filme seguinte de Norma, Morrer Sorrindo / Smilin’ Through / 1922, dirigido por Sidney Franklin e refilmado duas vezes, uma com Mary Pickford em 1932 e outra com Jeanette MacDonald em 1941, tem sido aclamado como o mais popular de toda a sua carreira.

No dia em que John Carteret (Wyndham Standing) vai se casar com Moonyeen (Norma Talmadge), Jeremiah Wayne, um dos pretendentes rejeitados por Moonyeen mata-a inadvertidamente ao tentar atirar em John. Vinte anos depois, a sobrinha de John, Kathleen (Norma Talmadge), para espanto do tio, anuncia que vai se casar com o filho de Jeremiah, Kenneth (Harrison Ford). Amargurado, John se opõe a esta união e proibe Kathleen de ver Kenneth de novo. Irrompe a Guerra Mundial e Kenneth parte para a França, onde é gravemente ferido. Retornando aos Estados Unidos, ele faz Kathleen (que aguardava pacientemente a sua volta) acreditar que voltou para amar uma outra mulher. Kathleen fica de coração partido e John, sentindo imensamente a sua tristeza, dá um jeito de reuní-la com Kenneth. Com o par de amantes juntos novamente, John morre em paz, juntando-se ao espírito de Moonyeen no outro mundo.

O colunista da Moving Picture World escreveu, com a devida alteração de pormenores: “Norma faz um papel duplo e em cada personagem ela demonstra uma capacidade de interpretação contida, que é uma façanha da mais alta categoria”.

A Duquesa de Langeais é uma adaptação livre do romance de Honoré de Balzac, dirigida por Frank Lloyd, contando a história, passada no reinado de Louis XVIII, da coquette Antoine de Langeais (Norma Talmadge), esposa do Duque de Langeais (Adolphe Menjou), que brinca com fogo, provocando o General-Marquês de Montriveau (Conway Terle), loucamente apaixonado por ela. O flerte acaba em amor e o general acredita que ela é sincera, até que fica sabendo de que a duquesa vangloriou-se de sua conquista. Furioso, Montriveau rapta Antoine, porém, incapaz de lhe infligir o castigo que planejara, liberta-a. Achando que seu amor não é correspondido, a duquesa entra para um convento. O general se arrepende e vai à procura de sua amada, encontrando-a pouco antes dela fazer os seus últimos votos para se tornar freira.

O resenhista do Variety disse que as cenas no convento, com seu ambiente austero admiravelmente iluminado, dão ao filme um efeito pictórico formidável e elogiou também a seqüência do baile, quando centenas de dançarinos nos trajes vistosos da época rodopiam graciosamente pelo salão. Um outro crítico, referindo-se a Norma, mencionou seu “tipo essencial de beleza, seu rosto eloqüente”, porém acrescentou que essa produção dispendiosa “tinha muito pouco poder emocional e dramático”.

Os filmes seguintes eram típicos de Norma Talmadge, mas sem qualidades apreciáveis, embora continuassem agradando ao público. Entretanto, num deles, Segredos / Secrets / 1924, dirigido por Frank Borzage, a atriz, na opinião unânime dos comentaristas, teve seu melhor desempenho.

Em Segredos, os espectadores a viam em 1865, como uma mocinha fugindo com seu namorado contra o desejo da família; em 1870, uma jovem esposa na região da fronteira, junto com o marido resistindo a um ataque de bandidos e perdendo seu filho recém-nascido; em 1888 como uma mulher de meia idade rica, cujo esposo havia se apaixonado por uma mulher mais jovem; e em 1923, como uma avó idosa encarando corajosamente a morte de seu devotado companheiro que há muito tempo havia se arrependido de seu mau comportamento.

Uma das características marcantes da atriz, seu virtuosismo para viver personagens femininas de variadas etnias, classes sociais e idades, ficou mais do que evidente. Os críticos louvaram o trabalho de Borzage, a maneira pela qual ele conduziu Norma, fazendo-a revelar a sua arte interpretativa, tal como nunca havia feito antes. A predileção de Borzage por temas de sacrifício e força redentora do amor, combinou perfeitamente com a sensibilidade e sutileza de Norma Talmadge e o filme foi recebido calorosamente.

Ainda orientada por Borzage em A Grande Dama / The Lady / 1925, Norma teve a oportunidade de interpretar de novo uma mulher em várias fases de sua vida. Sua personagem, Polly Pearl, cantora do music hall, casa-se, fora do seu meio social, com um cavalheiro muito rico, Leonard St. Aubyns (Wallace McDonald). O pai de Leonard (Brandon Hurst) imediatamente deserda o filho e este depois morre, deixando Polly sozinha com seu bebê e sem dinheiro. Polly vai cantar no cabaré / bordel de Madame Blanche (Emily Fitzroy) em Marsellha.. Quando o avô tenta obter a guarda do neto, Polly deixa-o sob os cuidados de um pastor e sua mulher, que o levam para a Inglaterra. Logo depois, Polly vai a Londres em busca do filho, mas não o encontra, e vende flores na rua para se sustentar. A pobre mãe reza para que seu filho se torne um cavalheiro, porque ela gostaria de ser uma dama. Passam-se alguns anos, Madame Blanche morre e deixa suas economias para Polly. Esta abre um bar em Marsellha, onde uma dia chegam dois soldados britânicos, um embriagado e o outro tentando protegê-lo. O bêbado puxa uma briga e durante a luta é morto acidentalmente pelo companheiro. Polly descobre que este é seu filho e quer assumir a culpa pelo crime, porém seu filho, com o instinto de um cavalheiro, não permite que ela se sacrifique por ele. O rapaz consegue escapar das autoridades e parte para a América a fim de começar uma nova vida. Então surge um estranho e Polly, em êxtase, diz-lhe que está feliz, por seu filho ser um cavalheiro. E o estranho diz a Polly que o motivo pelo qual seu filho é um cavalheiro, é porque sua mãe é uma grande dama.

Segundo Jeanine Basinger (Silent Stars, 1999), “a trama é puro melodrama, mas Norma e Borzage lhe dão credibilidade…A Grande Dama é típico do seu tempo e os tempos mudaram, porém é um obra inteligente, apresentando sua história sentimental com dignidade e simplicidade”. Como explicou Basinger, Norma era o gênero em que habitava – o filme para mulheres.

Em Kiki / Kiki / 1926, Norma é uma jovem parisiense tentando ser corista. Ela vive brigando com Paulette (Gertrude Astor), a estrela e namorada do gerente do teatro, Victor Renal (Ronald Colman) e acaba conquistando o amor dele. Clarence Brown dirigiu esta comédia dramática – escrita por Hans Kräly – na qual Norma, apesar de não ter a mocidade que o papel requeria, demonstra seu talento histriônico. Brown declarou numa entrevista que Norma possuia um dom natural para a comédia e Jeanine Basinger deu como exemplo uma seqüência, na qual ela finge que está inconsciente e dura como uma tábua. O seu timing enquanto o médico levanta e abaixa sua perna e seu braço se levanta, diz Jeanine, “é digno de Mack Sennett”. Já o comentarista da nossa Cinearte achou a cena em que Norma toma o cartão da candidata ao lugar de corista, “engraçadíssima”. Ao ver Norma no dvd de Kiki, concordei com ambos: tanto a sequência descrita por Jeanine, na qual o doutor diagnostica um ataque de catalepsia quanto a da estratégia da jovem vendedora de jornais para chegar ao empresário são muito divertidas e fiquei ansioso para ver outros filmes da “Papoula Viçosa”.

Norma fez A Dama das Camélias / Camille em 1927 e A Mulher Cobiçada / The Dove e Pecadora sem Mácula / The Woman Disputed em 1928. Estes filmes foram virtualmente o seu fim. Ela esteve fora das telas em 1929 e retornou em 1930, para tentar o filme sonoro com Noites de Nova York / New York Nights e Du Barry, a Sedutora / Du Barry, Woman of Passion, dois fracassos. Então sua carreira estava oficialmente encerrada, e ela nunca mais fez outro filme.

A Dama das Camélias tinha um bom elenco de apoio para Norma: Gilbert Roland (Armand), Maurice Costello (Monsieur Duval), Lilyan Tashman (Olympe) e altos valores de produção; mas, como observou o Variety, ao filme propriamente dito, do modo como foi dirigido por Fred Niblo, “faltava vigor”.

Durante a filmagem, Norma se apaixonou por Gilbert Roland. Ela pediu o divórcio para Schenck, porém este não estava pronto para concedê-lo. Apesar de seus sentimentos pessoais, ele continuou produzindo os próximos três filmes reunindo Norma e Gilbert, que passaram a ser distribuídos pela United Artists, companhia da qual acabara de assumir a presidência.

Em A Mulher Cobiçada Norma é Dolores, uma dançarina conhecida como “The Dove” (A Pomba), que está apaixonada por um jogador chamado Johnny Powell (Gilbert Roland). Don José, um rico caballero fascinado pela beleza de Dolores, faz com que Powell seja acusado de assassinato. Dolores consente em se casar com Don José, para livrar Powell da prisão; porém, no dia da cerimônia matrimonial, Powell retorna do exílio para buscar Dolores. Após uma fuga frustrada, Powell e Dolores estão prestes a serem mortos, quando uma multidão de cidadãos força Don José a libertá-los.

Pecadora sem Mácula apresenta Norma como uma prostituta de coração nobre, regenerada por dois amigos militares de licença em Lemberg na Áustria,, um austríaco, Paul Hartman (Gilbert Roland) e um russo, Nika Turgenov (Arnold Kent). Quando a guerra entre Áustria e Russia é declarada, os dois rapazes são chamados para os seus regimentos. Mary promete casar-se com Paul e Nika jura vingança. Uma unidade do exército russo comandada por Nika depois ocupa Lemberg e Mary sente que tem que se submeter aos seus abraços, para obter a liberdade de um espião capturado. No dia seguinte, o exército austríaco, guiado pelas informações do espião, retoma Lemberg e Paul fica sabendo do sacrifício de Mary. Ele a princípio recusa-se a perdoá-la, mas quando dez mil homens ajoelham-se aos pés dela em sinal de gratidão, Paul se junta a eles emocionado.

Norma volta a ser uma corista em Noites de Nova York, desta vez chamada Jill Deverne, que sustenta seu marido Fred (Gilbert Roland), um compositor com forte tendência para o alcoolismo. Quando ele termina uma nova canção, Jill consente em mostrá-la a Joe Prividi (John Wray) um escroque, produtor do seu espetáculo musical; porém Fred não quer receber favores dele. Não obstante, Prividi, que cobiça Jill, concorda em usar a canção. Fred e seu parceiro Johnny Dolan (Roscoe Karns) chegam bêbados para um compromisso em uma buate e, numa batida, os policiais descobrem Fred com Ruthie (Mary Doran), que também é corista. Com raiva de Fred, Jill torna-se namorada de Prividi, sucedendo-se outras peripécias, até o final feliz entre Jill e Fred.

Com esses três filmes, dirigidos, pela ordem, por Roland West, Henry King e Lewis Milestone, Norma manteve seu poder de atração intacto; entretanto, como observou Jeanine Basinger, tanto ela quanto os críticos estavam ficando desencorajados. Du Barry, a Sedutora, também decepcionou, e pôs um fim na sua carreira.

Em 1929, Schenck estava fora da vida de Norma embora eles ainda não estivessem oficialmente divorciados (Schenck só lhe concedeu o divórcio em 1934 e, nove dias depois, ela se casou, não com Gilbert Roland, mas com o comediante George Jessel). Norma passou o ano inteiro preparando-se para a sua estréia no cinema sonoro. Entretanto, seus dois últimos filmes, nos quais ela “falou”, foram um desastre, mas não pelo motivo geralmente citado. Sua voz não tinha qualquer traço de um sotaque do Brooklyn. Os tempos simplesmente estavam mudando e um público enlouquecido pelos talkies, queria uma nova safra de estrelas para ver (e ouvir) na tela.

Norma recebeu um telegrama de sua irmã Constance com o seguinte conselho: “Não abuse de sua sorte, baby. Os críticos não podem destruir aqueles investimentos que mamãe fez para nós”. Percebendo a sabedoria destas palavras, Norma Talmadge deixou o Cinema para sempre. Ela se divorciou de Jessel em 1939 e, em 1946, casou-se com o seu médico, Dr. Carvel James.

Nos derradeiros anos de sua vida, Norma, que nunca esteve à vontade com o fardo da celebridade pública, tornou-se uma reclusa, cada vez mais incomodada pela artrite e, segundo consta, dependente de drogas para aliviar a dor, vindo finalmente a falecer em 1957.

Pouco depois de sua aposentadoria, uma horda de caçadores de autógrafos cercou-a, quando ela saía de um restaurante em Hollywood. Norma disse para eles docemente: “Vão embora, meninos, não preciso mais de vocês”.

OS WESTERNS DE BUDD BOETTICHER – RANDOLPH SCOTT

julho 30, 2010

Entre 1956 e 1960, Budd Boetticher dirigiu um maravilhoso ciclo de sete westerns, todos interpretados por Randolph Scott, dos quais cinco (O Resgate do Bandoleiro / The Tall T / 1957, Entardecer Sangrento / Decision at Sundown / 1957, Fibra de Herói / Buchanan Rides Alone / 1958, O Homem Que Luta Só / Ride Lonesome / 1959 e Cavalgada Trágica / Comanche Station / 1960) foram produzidos por Scott e Harry Joe Brown e distribuídos pela Columbia. O primeiro filme da série, Sete Homens sem Destino / Seven Men from Now / 1956, foi produzido pela companhia Batjac de John Wayne e Um Homem de Coragem / Westbound / 1959 por Henry Blanke para a Warner que, tal como havia feito com Sete Homens sem Destino, se encarregou da distribuição. Entretanto, costuma-se denominar o ciclo pelo nome da companhia de Scott e Brown, a Ranown, alusão ao nome do ator (Ran) e ao de Harry Joe Brown (Own), porque existem múltiplos elementos repetitivos ou semelhantes nos sete filmes, mais constantemente o tema da vingança.

Oscar “Budd” Boetticher Jr. (1916-2001) nasceu em Chicago, Illinois. Sua mãe morreu de parto, o pai momentos depois, atropelado por um bonde, e ele foi adotado por Oscar e Georgia Boetticher de Evansville, Indiana.

Atleta na Ohio State University, Boetticher viajou para o México nos meados dos anos 30, decidido a aprender a arte de tourear. Ele estudou principalmente com Fermin Espinoza, apelidado “Armillita” e seu jovem novillero Carlos Arruza e, graças à sua experiência na arena, ingressou na indústria cinematográfica. Boetticher foi contratado como consultor técnico de Rouben Mamoulian em Sangue e Areia / Blood and Sand / 1941. Ele trouxe Armillita para dublar Tyrone Power nas cenas de tourada e concebeu a coreografia do torero’s paso doble, dançado por Rita Hayworth e Anthony Quinn.

Porém o mais importante para a sua futura carreira de diretor, foram as duas semanas que passou com a montadora Barbara McLean, que o chamara para ajudá-la. Na sua autobiografia (When in Disgrace, Fallbrook, 1996), Boetticher disse que Barbara lhe ensinou a narrar uma história pela maneira mais prática. Ele nunca pensou em cinema, mas subitamente lhe deu vontade de fazer filmes. No ano seguinte, Boetticher trabalhou em tempo integral na Columbia, ascendendo de mensageiro a assistente de George Stevens e Charles Vidor.

Seu nome apareceu nos créditos como diretor pela primeira vez em O Caso do Diamante Azul / One Mysterious Night / 1944, filme da série Boston Blackie, produzida pela Columbia e protagonizada por Chester Morris, assinando como Oscar Boetticher Jr. Depois de uma breve interrupção para o serviço militar no Photographic Science Laboratory da Marinha, Boetticher continuou na área das produções classe “B” por toda a década de 40 (Eagle Lion, Monogram, etc.) até que, em 1951, nasceu o Boetticher que nós conhecemos como Budd em Paixão de Toureiro / The Bullfighter and the Lady, o primeiro espetáculo que ele reconheceu como “um de seus filmes”, produzido pela companhia Batjac de John Wayne e distribuído pela Republic.

Boetticher foi indicado para o Oscar de Melhor História Original, a Universal imediatamente lhe ofereceu um contrato e ele aceitou entusiasmado, pensando que, com orçamentos mais folgados e melhores atores, teria mais oportunidade criativa. Ele de fato passou a ter à sua disposição no novo estúdio melhores recursos de produção, mas não podia escolher o que ia filmar. Mesmo assim, conseguiu fazer cinco westerns interessantes (O Último Duelo / The Cimarron Kid / 1951, O Império do Pavor / Horizons West / 1952, Seminole / Seminole / 1953, Sangue por Sangue / The Man from de Alamo / 1953 e Revolta do Desespero / Wings of the Hawk / 1954, nos quais parece que estava se preparando para a fase seguinte de seu itinerário artístico.

Farto da Universal, Boetticher deixou o estúdio para filmar uma produção independente, The Americano, no Brasil, com Glenn Ford no papel principal; porém surgiram problemas financeiros e ele se desligou do projeto. William Castle (que fora aprendiz de Boetticher na Columbia) assumiu a direção, convocando outros atores secundários e rodando o filme inteiramente nos Estados Unidos, embora incorporando algumas das tomadas feitas por seu antecessor em nosso país.

Em seguida, Boetticher preparou sua nova produção, O Magnífico Matador / The Magnificent Matador / 1955, a história de um toureiro renomado que foge da arena e perde a sua reputação, até que um admirador o ajuda a recuperar sua coragem e ele retorna ao estádio em triunfo. Foi a primeira colaboração de Boetticher com o fotógrafo Lucien Ballard, que se tornaria um de seus melhores amigos.

O Assassino Anda Solto / The Killer is Loose / 1956, a trama do criminoso cuja mulher foi morta por um detetive da polícia durante a sua prisão e que pretende vingar-se matando a esposa do policial, reuniu novamente Boetticher com Ballard, desta vez num thriller criminal de baixo orçamento.

A carreira de Boetticher não estava melhorando como independente. Ele teve um projeto abortado, um filme de orçamento médio filmado apressadamente (como Boetticher admitiu numa entrevista) e um thriller barato. Então John Wayne chamou-o para lhe mostrar um argumento original elaborado por um jovem escritor, que ele contratara para a Batjac. O autor era Burt Kennedy e o argumento, “Seven Men From Now”.

Como vimos, Boetticher já havia feito westerns interessantes, mas foi com o ciclo Ranown que se projetou diante do público e da crítica. O mérito de ter descoberto Sete Homens sem Destino foi de André Bazin (“Un western exemplaire: Sept Hommes à Abattre” – Cahiers du Cinéma, 1957), que via no filme “o melhor western do pós-guerra juntamente com O Preço de um Homem / The Naked Spur / 1953 de Anthony Mann e Rastros de Ódio / The Searchers / 1956 de John Ford. Segundo Bazin, “O primitivo encantamento que nos oferece Sete Homens e um Destino tem a ver com a perfeição de um argumento que consegue a proeza de nos surpreender sem parar, a partir de uma trama rigorosamente clássica”.

Ben Stride (Randolph Scott), ex-xerife de Silver Springs, persegue os sete homens que mataram sua mulher durante um assalto. No percurso, Stride ajuda um casal, Annie (Gail Russell) e Jack Greer (Walter Reed), a tirar sua carroça do atoleiro. Preocupado com eles, resolve acompanhá-los, a fim de protegê-los dos índios Chiricahuas esfomeados, que vagueam pela região. Ao mesmo tempo, Masters (Lee Marvin), um fora-da-lei e seu cúmplice Clete (Donald Barry), unem-se a eles e, com a intenção de se apropriar dos vinte mil dólares que os assaltantes procurados por Stride levaram, oferece auxílio ao xerife. A certa altura, Stride e Masters descobrem que Jack fora inocentemente encarregado de transportar o dinheiro roubado. Em vários incidentes, os bandidos vão sendo eliminados e só resta o duelo final entre Stride e Masters, no deserto, diante do cofre com o tesouro.

Trata-se de um enredo convencional na sua ação e nos seus personagens, porém é a maneira pela qual a história foi tratada, que torna o filme interessante. A primeira seqüência basta para nos revelar o estilo sêco, conciso e eficaz do cineasta. Chove e os relâmpagos iluminam um canto do deserto, vendo-se ao fundo o fraco clarão de uma fogueira crepitando sob uma gruta. Stride aparece no quadro de costas e caminha em direção ao fogo. No interior da gruta dois homens que tomam café, ficam espantados de ver chegar um estranho. Plano próximo do rosto duro e fechado de Stride. Uma discussão começa em simples e belos campos / contracampos. Apesar da aparente ausência de encenação, tudo isto é de uma grande força, pois muitas coisas se passam no cinema de Boetticher mais por intermédio dos olhares e dos gestos do que pela expressão oral. A tensão aumenta. Vemos os dois homens se levantarem para puxar seus revólveres. Depois de um corte, a câmera mostra dois cavalos sob a chuva no mesmo instante quando estalam dois tiros violentos. Escurecimento. Na tomada seguinte, é dia e Stride se apropriou dos cavalos cujos donos ele matou. No duelo do final do filme, Boetticher utiliza de novo a elipse de maneira audaciosa: em nenhum momento vemos o xerife sacar sua arma e atirar – a câmera permanece apontada para Masters desabando no solo e, quando se volta para Stark, ele já está colocando sua arma na cartucheira.

Boetticher renova constantemente a narrativa com um acontecimento inesperado (vg. a aparição dos índios e o susto de Annie; o homem que Stride acabara de salvar, volta-se bruscamente contra ele; Masters, depois de eliminar todo o resto do bando rival, no mesmo impulso atira contra seu próprio auxiliar), realizando um filme surpreendente do começo ao fim.

Tal como John Ford, Boetticher tinha o seu John Wayne na pessoa de Randolph Scott, seu Monument Valley em Lone Pine (área perto de Los Angeles), e um método e estilo inimitáveis. Boetticher gostava muito de Scott, “um verdadeiro gentleman” e seu modo de filmar minimalista ajustava-se perfeitamente ao personagem que o ator costumava interpretar.

O diálogo foi escrito como se toda palavra fôsse importante: a tagarelice de John Greer,  as interrupções de Annie para acalmar os ânimos dos homens, os comentários insolentes de Masters, as observações e respostas monossilábicas de Stride, que na maioria das vezes responde uma pergunta com outra, como um desafio.

O tema da vingança, exposto sem psicologismos, sem pitorescos inúteis, e com poucas digressões é enriquecido por um percuciente estudo de comportamentos e também não há floreios no que se refere à encenação.

O estilo austero e sucinto de Boetticher atingiu a perfeição em O Resgate do Bandoleiro, O Homem que luta Só e Cavalgada Trágica, que se distinguem pelos seus finais imprevisíveis.

O Resgate do Bandoleiro é um filme quinta-essencial de Boetticher com alguns dos temas principais do diretor: orgulho e honra e como as pessoas escolhem seus caminhos na vida em um oeste que está se tornando cada vez mais civilizado, porém, paradoxalmente, mais violento e amoral.

Depois de ter perdido seu cavalo em uma aposta com o antigo patrão, Pat Brennan (Randolph Scott) é recolhido por uma diligência que, conduzida por seu velho amigo Rintoon (Arthur Hunnicut), transporta os recém-casados Willard (John Hubbarb) e Doretta Mims (Maureen O’ Sullivan). Frank Usher (Richard Boone) e seus jovens companheiros Billy Jack (Skip Homeier) e Chink (Henry Silva) capturam a diligência. Após matarem Rintoon, os bandidos ficam sabendo (por intermédio do medroso Willard) que o pai de Doretta possui uma grande fortuna e decidem pedir resgate pela filha. Enquanto Frank vai buscar o dinheiro, Pat consegue eliminar Billy Jack e Chink. Depois será a vez de Frank.

A narrativa é desenvolvida com brevidade, suspense e uma abordagem psicológica interessante. Dos quatro personagens principais do filme, três apresentam uma persona pública diferente de seus pensamentos e desejos secretos. Willard Mims parece ser um homem gentil, apaixonado por sua esposa, mas na realidade ele se casara com Doretta por dinheiro e a trai para salvar sua própria vida. Doretta se comporta como uma boa filha e esposa submissa, porém, após a morte de Willard, admite que se casou com ele para fugir à solidão e escapar de um pai que a odiava. Frank Usher também está se enganando a si mesmo, imaginando que algum dia terá o seu rancho e deixará de ser um fora-da-lei; ele se considera um homem melhor do que os seus companheiros, que descreve como “animais”. Somente Pat Brennan não nos dá a impressão de ser alguém diferente do que realmente é.

Pat e Frank são inversões um do outro, como imagens na frente de um espelho. Sua discordância resulta do fato de que “Pat é um homem moral com tendências violentas e Frank, um homem violento com tendências morais”. O conflito entre os dois é descrito como um equilíbrio delicado de poder, no qual Pat, a força do Bem, não é necessariamente mais forte ou mesmo melhor do que Frank – mas apenas mais esperto no final.

Neste momento derradeiro, Pat e Frank são os únicos sobreviventes do Velho Oeste e  estão intrigados com a possibilidade de começar uma nova vida. Ambos têm condições de obter sucesso no mundo civilizado, só que Frank não quer tentar pacificamente, por esforço próprio. “Gosto de você”, Frank diz a Pat, mas acrescenta que, se tivesse que escolher entre Pat, Chink e Billy Jack, “Eu cavalgaria com eles”. Uma das ironias do filme é que, em circunstâncias diferentes, Pat e Frank poderiam ter sido amigos.

Em O Homem que luta Só, o xerife Ben Brigade (Randolph Scott) e dois jovens malfeitores, Sam (Pernell Roberts) e Wild (James Coburn), disputam a posse do assassino Billy John (James Best), que deverá ser conduzido para Santa Cruz. Ben atrasa propositadamente a viagem, na esperança de ser alcançado por Frank (Lee Van Cleef), o irmão de Billy que, em passado distante, matara sua mulher. Sam e Wild sonhando com um pequeno rancho, desejam obter o perdão prometido pela captura de Billy. No final, Ben mata Frank, põe fogo simbolicamente na árvore onde sua esposa fora enforcada e permite que os dois rapazes partam com Billy e Carrie (Karen Steele), uma viúva que eles encontraram no caminho.

O filme se organiza em seqüências bem delimitadas no espaço e no tempo, que fazem progredir a ação com uma lentidão bem planejada. Boetticher desenvolve a história com um rigor quase matemático. Ao redor de Ben, os comparsas – um bandido que serve de isca, dois jovens desencaminhados que querem se tornar cidadãos honrados, uma mulher cujo marido foi morto pelos índios – são apenas peças de um jogo de xadrez: cada gesto, cada palavra sendo calculados para produzir o máximo de efeito. Assim, no final do filme, Ben sacia o seu desejo de vingança e, ao mesmo tempo, torna claras todas as combinações do jogo; os dois rapazes podem apoderar-se do bandido e ganhar sua anistia; a mulher, cuja presença sugeria um idílio possível com o herói, pode partir com eles, porque para Ben só importa a lembrança da esposa. A fogueira que consome a árvore da vingança não põe fim aos sofrimentos de um homem, cuja solidão é reavivada sem cessar pela imagem do ente desaparecido.

A maneira com que Boetticher opõe seus personagens uns aos outros, o cuidado com que escolheu as paisagens – a assombrosa clareira tendo no meio a “árvore dos enforcados” – e o rigor da realização dão ao filme uma beleza geométrica.

No início de Cavalgada Trágica, Jefferson Cody (Randolph Scott) liberta a mulher de um fazendeiro, Mrs. Lowe (Nancy Gates), dos comanches e a conduz para junto do marido, sem saber que este oferecera um prêmio para sua entrega. No percurso encontra-se com três bandoleiros que fogem dos índios: Ben (Claude Akins) e seus dois jovens companheiros Frank (Skip Homeier) e Dobie (Richard Rust). Os três pretendem ficar com a mulher para cobrar a recompensa. Ben freqüentemente comenta sobre a covardia do marido, por ter mandado outro homem fazer o que ele deveria ter feito. Frank é morto pelos índios, Dobie morre pelas mãos de Ben. Cody oferece a Ben, a quem sempre respeitara, uma chance para escapar; mas Ben puxa sua arma e é morto por Cody. Este leva a mulher até seu marido, que vem a ser um cego.

Cavalgada Trágica não trata de vingança, mas sim de esperança. Cody sabe que sua esposa foi raptada pelos Apaches há dez anos, porém ignora se ela ainda está viva. Ele tenta arrancar dos acampamentos indígenas, uma por uma, todas as mulheres retidas como prisioneiras, esperando encontrar um dia a sua. É uma busca permanente, insensata, movida por um amor infinito.

Entre Cody e Ben as relações são instáveis, meio desconfiadas, meio familiares, quase cúmplices, mas os dois mantêm um respeito mútuo. A diferença entre ambos é que, aderindo à estrutura mítica do herói do western, Cody permanece fiel aos ideais de honestidade, coragem e necessidade de socorrer os que precisam de ajuda enquanto seu antagonista, um sujeito cínico, mas amável, acha tudo isso inútil, preferindo a excitação e a compensação financeira que a vida de fora-da-lei lhe oferece. No final, Ben cai sob as balas de Cody e perde a oportunidade de ganhar os cinco mil dólares do prêmio, dizendo simplesmente: “É vergonhoso o que o dinheiro pode fazer com os homens”.

A direção de Boetticher, bastante despojada, dá uma densidade particular aos personagens e não esquece os vastos espaços que fazem a grandeza dos westerns, forjando alguns enquadramentos inspirados em uma sábia utilização do CinemaScope.

Os três westerns restantes do ciclo Ranown não possuem o mesmo nível artístico dos filmes já mencionados – provavelmente pela intromissão de outros roteiristas (Charles Lang Jr. em Entardecer Sangrento e Fibra de Herói; Berne Giles em Um Homem de Coragem), porém têm muitas qualidades.

Em Entardecer Sangrento, um estranho, Bart Allison (Randolph Scott), chega a Sundown com seu amigo Sam (Noah Beery Jr.), interrompe as núpcias de Tate Kimbrough (John Carroll) e o desafia para um duelo de morte. Outrora, Tate teria seduzido a mulher de Bart e esta, em seguida, se suicidara. Porém, Bart descobre que Tate fora apenas mais um na vida de sua esposa. Quando vai se dar o confronto entre Bart e Tate, a amante deste (Valerie French) lhe dá um tiro no ombro, para impedi-lo de enfrentar Bart. O vingador então abandona a cidade embriagado e deprimido.

Neste western psicológico, no qual um homem procura encontrar no extermínio do outro a solução para os problemas advindos da traição da esposa, Boetticher acompanha o desespero em que se debate o herói e mostra também a tomada de consciência coletiva da população, o itinerário moral de uma comunidade que, diante da aventura individual dos dois homens, envergonha-se de sua sujeição ao corrupto manda-chuva da cidade. A presença de Bart em Sundown estimulou o rompimento da ordem social estabelecida.

Tal como Anthony Mann, Boetticher usa a geografia do western como paralelo do estado psicológico do herói. Porém, em contradição com Mann, Boetticher não emprega panoramas recortados para simbolizar distúrbios íntimos. Ele prefere usar ambientes pequenos, claustrofóbicos, para colocar seus personagens angustiados: o saloon, a igreja e interiores domésticos.

À medida em que a história de desenrola, percebemos que o desejo de vingança de Bart não tem nada de heróico. Sam revela que a mulher de Bart mantinha não só um romance com Kimbrough, mas também com outros homens. Ficamos sabendo também que Bart estava ciente destes fatos, mas preferiu desconsiderar a infidelidade da esposa. Bart não parece mais ter sido motivado por uma questão de honra. Agora ele é visto como um homem atormentado por seu orgulho ferido e obcecado por uma vingança sem sentido, ou melhor, por uma obsessão psicótica.

O protagonista de Fibra de Herói, Buchanan (Randolph Scott), chega ao povoado de Agry Town, dominado pelos irmãos Agry: Lew (Barry Kelley), o xerife; Simon (Tol Avery), o juiz; e Amos (Peter Whitney), o dono do hotel. Quando defende Juan (Manuel Rojas), um jovem mexicano rico que matou o filho do juiz, para vingar a honra de sua irmã, ambos são presos. Buchanan é obrigado a sair da cidade, mas ele consegue reverter a situação e derrotar a família corrupta, que já estava dividida por causa do dinheiro do resgate pedido ao pai de Juan. Carbo (Craig Stevens), guarda-costas dos Agry, um sujeito basicamente decente, assume o controle da cidade.

Passado inteiramente no ambiente urbano, o filme contém boas cenas de violência e lances imprevistos. Certa dose de originalidade é dada pela presença de uma família que detém todos os postos importantes e cujos membros se matam uns aos outros por causa da ambição. Curiosamente, o herói escapa várias vezes da morte, não por ser mais forte, rápido no gatilho ou esperto do que seus oponentes, mas simplesmente porque tem sorte.

Um Homem de Coragem foi o filme que mais sofreu, na comparação com as quatro obras-primas do ciclo, mas tem alguns méritos. Nele, John Hayes (Randolph Scott), capitão nortista, recebe o encargo de transportar ouro para abastecer o Exército da União. Ele usa a linha de diligências, que possuía antes da guerra, contratando os serviços de um soldado de seu regimento, Rod Miller (Michael Dante), que se reformara por ter perdido um braço. O povoado no qual Hayes monta as suas operações secretas, está dominado por seu antigo amigo Putnam (Andrew Duggan), casado com a ex-noiva de Hayes, Norma (Virginia Mayo), e simpatizante do Sul. Os capangas de Putnam destroem sistematicamente as diligências e matam Rod. Putnam lamenta este assassinato e, na batalha final, faz-se matar, tentando impedir uma carnificina.

O diretor cria uma atmosfera de tensão sufocante desde o momento em que Hayes chega à cidade e é publicamente humilhado pelo capanga de Mace (Michael Pate). Nem Rod, o mutilado de guerra condenado ao ostracismo e insultado pelos bandidos, merece compaixão: o dono de um restaurante local oferece-lhe comida estragada.   O filme contém pelo menos um lance admirável: a da morte de Rod num tiroteio inesperado, justamente quando ele havia aprendido a manejar o rifle, apesar da sua deficiência física.

Uma singularidade do espetáculo é o fato de que os “maus” não se contentam em destruir e matar. Eles pensam; e seu chefe até sucumbe a louváveis remorsos. Nota-se também uma tentativa sincera de dar um peso e um valor aos personagens: é muito comovente a cena em que a jovem mulher descobre, abraçando Rod, que ele não tem mais o braço.

Quando sua arte estava começando a ser reconhecida – inclusive pela realização de um filme de gangster bem recebido pela crítica, O Rei dos Facínoras / The Rise and Fall of Legs Diamond – e ele atingira uma segurança financeira, Boetticher foi para o México, para filmar um documentário sobre a carreira de seu amigo, o grande toureiro Carlos Arruza. Obstinado por este documentário, ele recusou propostas lucrativas de Hollywood e sofreu humilhação e desespero para concretizar seu projeto – ficou sem dinheiro, divorciou-se, passou sete dias na cadeia, uma semana num asilo de loucos e quase morreu, primeiramente de inanição e depois de uma grave doença no pulmão.

Neste ínterim, Arruza, o herói de seu filme, faleceu num desastre de automóvel assim como boa parte de sua equipe. Voltando para Hollywood em 1967, Boetticher iniciou uma associação com Audie Murphy. Murphy produziu e Boetticher dirigiu na Espanha A Time for Dying, um filme que poderia rejuvenescer suas carreiras. Eles tinham outros projetos no estágio de planejamento, quando Murphy foi morto num desastre de avião em 1971.

Depois do ciclo Ranown, Randolph Scott, com uma fortuna de cerca de cem milhões de dólares, não precisava mais trabalhar e, com 60 westerns no seu currículo, não havia muita coisa mais que ele poderia fazer no gênero.  Mas ele deixou bem claro para Boetticher e Kennedy que, se por acaso surgisse um bom script, daria uma olhada nele. E então um grande script apareceu. Chamava-se Guns in the Afternoon, que gerou Pistoleiros do Entardecer / Ride the High Country / 1962, o filme com o qual Scott encerrou, de forma magnífica, a sua longa jornada cinematográfica.

OS HERÓIS FANTASIADOS

julho 12, 2010

Os heróis fantasiados sempre desfrutaram de muito prestígio nas histórias em quadrinhos e nas telas. Talvez os mais populares, apesar (ou…por causa?) da maldade que  inventaram a respeito deles, tenham sido Batman e Robin.

Lançado em maio de 1939 na revista Detective Comics, Batman apareceu no Brasil em 1942 no Globo Juvenil com o nome de Morcego Negro e depois Homem Morcego. Com argumentos de Bill Finger e desenhos de Bob Kane, o personagem foi inspirado no seu antecessor, O Super Homem, mas não possuía superpoderes ou capacidades extraterrestres para ajudá-lo. Entre os requintados equipamentos para enfrentar os malfeitores ele tinha: a Bat-caverna, o Bat-plano, o Bat-móvel, o Bat-corda, etc.

Sua gênese pode ser sintetizada assim: para vingar a morte de seus pais, assassinados por um bandido, o milionário Bruce Wayne torna-se um combatente do crime, conhecido como Batman. Ao sofrer o ataque de um morcego, lhe vem a idéia de adotar uma personalidade secreta por trás de uma máscara inspirada naquele mamífero, para causar medo aos seus inimigos.

No início de suas aventuras nos comics, Batman era um solitário, que fazia justiça pelas próprias mãos. Posteriormente, os editores da história em quadrinhos acharam que o personagem devia ser trazido mais para o lado da lei. No número de abril de 1940 da Detective Comics a “humanização” de Batman foi completada com o acréscimo de seu jovem companheiro, Robin, chamado aquí no Brasil de Robin, o Menino Prodígio, na realidade Dick Grayson, um garoto órfão adotado por Wayne, que trabalhava num circo.

A introdução de Robin serviu para dar aos jovens leitores alguém com o qual eles podiam se identificar. Os outros coadjuvantes nos quadrinhos incluíam o Comissário Gordon, que controlava o Bat-sinal e Alfred, o mordomo fiel da mansão de Bruce Wayne. Porém os mais memoráveis foram os vilões, distinguindo-se entre eles, o Pingüim, a Mulher Gato e o Coringa. Kane declarou numa entrevista que o Coringa foi produto da imaginação de Bill Finger, baseando-se numa fotografia de Conrad Veidt em um filme de 1928, O Homem que Ri / The Man Who Laughs. Finger, na verdade, participou da criação de quase todos os vilões de Batman assim como da maioria de seus equipamentos, do Bat-plano à Bat-caverna. Depois de certo tempo, o assistente de Bob Kane, Jerry Robinson começou a susbtituí-lo e a sua versão logo se tornou a definitiva.

Em 1943, Batman e Robin chegaram ao cinema através de um seriado da Columbia, O Morcego / Batman, dirigido por Lambert Hillyer com Lewis Wilson e Douglas Croft nos papéis centrais; mas quem “roubava” as cenas era J. Carrol Naish como o Dr. Daka, sinistro espião japonês, que se deliciava em alimentar seus crocodilos com carne humana. Infelizmente, no seu conjunto, o espetáculo foi mal concebido e realizado além das dificuldades causadas pelos baixos valores de produção, falta de tempo para corrigir as falhas e  inexpressividade de Wilson e Croft.

Em 1949, a mesma companhia realizou uma continuação, A Volta do Homem- Morcego / Batman and Robin, dirigida por Spencer Bennet com Robert Lowery e John Duncan. Este novo seriado era um pouco melhor do que o anterior, mas feito ainda com falta de imaginação, poucos recursos e impossibilidade de retakes. Foi somente nele que apareceu o personagem do Comissário Gordon (Lyle Talbot), ficando de fora desta vez o fiel mordomo Alfred que, no primeiro seriado era interpretado por William Austin. Eles seriam representados pelos veteranos Neil Hamilton e Alan Napier na série de televisão de 1966, com Adam West e Burt Ward – a melhor versão das aventuras de Batman e Robin por seu espírito de brincadeira, estilização, técnica moderna e o charme dos vilões excêntricos.

Entretanto, além dos seriados citados, existiram vários outros, com heróis que eram apenas homens comuns, vestindo uma fantasia, para lutarem contra as forças do mal. O Fantasma Voador / The Phantom / 1943, por exemplo, produzido também pela Columbia, tinha um bom diretor, B. Reeves Eason e Tom Tyler no papel do misterioso vingador das selvas africanas.

Como conseqüência do sucesso de Mandrake, Lee Falk trouxe outro personagem para as histórias em quadrinhos: O Fantasma / The Phantom. Em fevereiro de 1936, ele apareceu em tiras diárias no Journal American, desenhado por Ray Moore. Entretanto, Moore sofreu um acidente grave em 1942 e foi sendo gradualmente substituído por seu assistente Wilson McCoy. De 1947 a 1961 McCoy assumiu sozinho a responsabilidade pelos desenhos e, após sua morte, Sy Barry ocupou seu lugar.

O Fantasma nasceu assim: há quatrocentos anos, um lorde inglês em viagem de navio para a Índia, é vítima de um ataque pirata nas costas de Bengala. Mais tarde, seu filho, que conseguira escapar, jura dedicar sua vida contra a pirataria ou qualquer forma de crime. Não só ele, como também todas as gerações que o sucederam, cumprem a mesma promessa. O Fantasma torna-se o protetor de uma tribu de pigmeus Bandar e impõe a crença de que é invencível e imortal. O líder Guran é o único que sabe a verdade sobre “o fantasma que anda”. Tal como todas as figuras legendárias, ele tem o seu símbolo – “a marca da caveira” – e conta com a ajuda do seu cão (ou seria um lobo?) Devil, que na versão brasileira dos quadrinhos atendia pelo nome de Capeto.

Vestido com uma malha colante escura, meia máscara, calção com listras em diagonal e um par de pistolas no coldre, o Fantasma vive numa caverna, cuja entrada em forma de caveira abriga uma grande fortuna, que através do tempo seus antecessores acumularam,  ficando com o produto dos roubos dos criminosos. Ele possui também um anel com uma caveira em relevo, que deixa uma marca, quando ele esmurra os bandidos. Uma outra característica desse herói é a sua identidade civil: com um pesado capote, chapéu e óculos escuros, ele é tratado como Mr. Kit Walker e conhecido pelas autoridades como um defensor da floresta. Walker / Fantasma é o eterno noivo de Diana Palmer.

No enredo do seriado, o professor Davidson (Frank Shannon, o Dr. Zarkof de Flash Gordon) e sua filha Diana (Jeanne Bates) procuravam a cidade perdida de Zoloz, onde deveria estar escondido um fabuloso tesouro. Para localizá-la, é preciso manipular sete peças de marfim. Davidson possui três peças, um escroque chamado Singapore Smith (Joe Devlin) tem mais três: mas falta a mais importante. Ao mesmo tempo, o Dr. Bremmer (Kenneth MacDonald) pretende transformar Zoloz em uma base secreta para nações inimigas (presumivelmente os nazistas). O Fantasma entra em cena para ajudar Davidson e Diana a reprimir a ação de Bremmer.

O Fantasma Voador é, a meu ver, o melhor seriado da Columbia, embora o Fantasma da tela não seja exatamente igual ao das histórias em quadrinhos (vg. Guran aquí se chama Moku, o Fantasma não anda a cavalo pelas selvas como fazia nos quadrinhos e Kit Walker recebeu o nome de Godfrey Prescott). Entre os momentos de vibração destacam-se o desafio que a Princesa do Fogo faz ao Fantasma, incitando-o a caminhar no meio das chamas e a luta com o gorila, chamado Brutus, que traz a última peça de marfim pendurada no pescoço.

Anos mais tarde, aproveitando as tomadas de arquivo desse seriado, o estúdio realizaria uma continuação disfarçada, Capitão África, o Aventureiro / The Adventures of Captain África / 1955, dirigida por Spencer Bennet com John Hart que, no futuro, seria o Lone Ranger na televisão durante certo tempo enquanto Clayton Moore estava de greve.

A Columbia fez outro seriado, com Bennet atrás das câmeras, desta vez com um herói fantasiado que não tinha sido oriundo das histórias em quadrinhos: O Código Secreto / The Secret Code / 1942, cujo personagem principal interpretado por Paul Kelly, ficou conhecido como Comando Negro.

Designado para prender uma quadrilha de sabotadores, o tenente Dan Barton (Paul Kelly) forja uma demissão da força policial e se infiltra entre os espiões. Concomitantemente, disfarçado com a indumentária do Comando Negro e com a ajuda da repórter Jean Ashley (Anne Nagel) e de seu colega Pat Flanagan (Clancy Cooper), ele consegue localizar o código secreto dos inimigos e desmascarar o chefe da quadrilha.     Valorizado pela boa história e a simpatia e irreverência de Paul Kelly, o seriado pode ser incluído entre os melhores da Columbia. Uma das cenas mais excitantes é aquela em que o Comando Negro luta com o piloto do avião. A aeronave é alvejada pela artilharia antiaérea e explode. No episódio seguinte, vemos o piloto caindo de pára-quedas, o Comando Negro agarrando-se a ele, os dois se atracando em pleno ar e, finalmente terminando a briga em terra firme.

Todavia, nenhum dos seriados da Columbia conseguiu sobrepujar os da Republic no mesmo gênero. Nesta outra companhia foram feitos O Terror dos Espiões / The Spy Smasher / 1942 e Capitão América / Captain America / 1944, que muitos apontam como os dois melhores seriados de todos os tempos.

No primeiro, com a ajuda de seu irmão gêmeo Jack, o Spy Smasher, na realidade Allan Armstrong (Kane Richmond em papel duplo) combate o Máscara, líder de uma rede de espionagem alemã na América. Eles protegem o almirante Corby (Sam Flint) pai da noiva de Jack, Eve (Marguerite Chapman) e contam com a colaboração de Pierre Durand (Frank Corsaro), combatente da França Livre.

O personagem foi criado em 1940 por Bill Parker com desenhos de C.C. Beck e Pete Costanza e apareceu pela primeira vez na revista Whiz Comics. No Brasil, foi publicado a partir de 1943 no Globo Juvenil Mensal sob o nome de Hércules. Na medida em que a  Segunda Guerra Mundial se aproximava, o Spy Smasher tornou-se um símbolo visível do patriotismo americano. Charles Sultan assumiu a execução dos desenhos durante os anos de 1941 e 1942 e renovou a roupa do herói aviador: ele trocou a vestimenta cáqui por um uniforme verde brilhante com um emblema vermelho em forma de diamante no peito.

O seriado, na minha opinião, é excelente, não só pelos efeitos especiais (Howard Lydecker) e pela ação dos dublês (tendo à frente David Sharpe), mas também porque tem uma trama bem construída, boas caracterizações e uma fotografia até, em certos momentos, artística. A sequência mais espetacular é aquela em que o Spy Smasher e Jack perseguem o carro dos bandidos em uma motocicleta. Eles cortam caminho subindo uma colina, mas a motocicleta derrapa. O Spy Smasher então corre para o alto da colina e salta sobre o carro dos bandidos, que passa lá embaixo em alta velocidade.

Captain América foi outro seriado patriótico, surgido pouco antes dos Estados Unidos entrarem na guerra. A capa do primeiro número da história em quadrinhos publicada pela Marvel Comics, que mostrava o herói irrompendo através de um bando de nazistas para esmurrar Hitler, realizou o sonho de milhões de americanos.

Criado por Joe Simon e desenhado por Jack Kirby, o Capitão América era na realidade Steve Rogers, um jovem franzino que fora considerado incapaz para o serviço militar. Rogers se apresenta como voluntário para testar os efeitos de um super-soro, que pode multiplicar as fôrças do corpo e do cérebro. O soro transforma o rapaz rejeitado para o exército num soldado superior – um “super-agente: o Capitão América.

Usando um meio capuz sobre o rosto, asinhas nas têmporas e um “A” na testa, o personagem traz ainda no peito e no escudo redondo, uma estrela e as listas com as cores da bandeira americana. Uma noite, quando Steve está se vestindo como Capitão América na sua barraca, ele é surprendido por um jovem, Bucky Barnes, o “garoto mascote” do regimento (“De agora em diante nós temos que compartilhar este segredo…quer dizer que você agora é meu companheiro Bucky!”). Segundo o roteirista Simon, Bucky foi acrescentado à história em quadrinhos, para que o Capitão América tivesse alguém com quem falar.

O Capitão América era símbolo perfeito para uma nação ameaçada pela guerra. Steve Rogers, representava os soldados que estavam sendo convocados para se tornar heróis de seu país. A revista em quadrinhos logo estava vendendo milhões de cópias por mês e rivalizou com Batman e Superman em popularidade. Além do apelo patriótico, as ilustrações dinâmicas de Jack Kirby ajudaram a assegurar o êxito da publicação.

No seriado da Republic, o Dr. Maldor, curador do Museu Drummond, chamando-se a si próprio de O Escaravelho (Lionel Atwill), de posse de uma arma de grande poder destrutivo, o Vibrador Dinâmico, procura a outra parte de um mapa, que conduziria ao tesouro dos maias. O Capitão América, que é na realidade o promotor público Grant Gardner (Dick Purcell), intervém e, com o auxílio de sua assistente Gail Richard (Lorna Gray), impede que os objetivos de Maldor se concretizem.

O Capitão América perdeu o escudo, as asinhas na máscara, o parceiro Bucky e até seu nome verdadeiro, Steve Rogers; mas o uniforme continuou vistoso e nacionalista. Particularmente emocionante é aquele lance quando, após uma boa luta contra dois asseclas do Escaravelho e antes que o edifício atingido pelo Vibrador Dinâmico se despedace, o herói salta pela janela para o terraço de um prédio contíguo. O seriado fez muito sucesso graças à direção precisa de John English e Elmer Clifton e sobretudo pela habilidade de uma equipe de dublês de primeira ordem, entre os quais, Dale Vam Sickel (que substituiu Dick Purcell nas cenas arriscadas), Joe Yrigoyen, Fred Graham, Ken Terrell, Duke Green e Tom Steele, cujos golpes e sopapos não tinham nada a ver com violência e realismo, mas com excitação e fantasia.

OS FILMES DE HORROR DE VAL LEWTON

junho 30, 2010

Entre 1942 e 1946, uma série de filmes de horror realizados pela RKO-Radio em Hollywood, conjugando escassez de recursos com qualidade artística, tornou-se surpreendentemente lucrativa, fortalecendo o estúdio e dando mais respeitabilidade à linha de produção “B”. Com sua originalidade temático-visual, esses filmes renovaram o gênero e ofereceram verdadeiras lições de Cinema, estampando no conjunto a personalidade de um produtor meticuloso e criativo. Seu nome era Val Lewton.

Vladimir Leventon (1904 – 1951) nasceu em Yalta, Rússia. Sua mãe, Nina Leventon, irmã de Alla Nazimova, a famosa atriz da cena muda, após abandonar o marido, partiu com os dois filhos, Lucy e Vladimir, para Berlim, emigrando depois os três para a América.

Em 1916, Nazimova estava fazendo filmes em Nova York e conseguiu arranjar emprego para Nina no escritório da Metro como leitora de argumentos. Quando, em 1928, Nina assumiu um posto mais elevado, incluiu seu filho Val no setor de publicidade do estúdio, sob a supervisão de Howard Dietz. Paralelamente à esta atividade, Lewton escrevia romances (usando os pseudônimos de Carlos Keith e Cosmo Forbes) e outros textos sem ser de ficção, tendo publicado inclusive um livro de poesia e uma obra erótica, Yasmine, belissimamente ilustrada. Em 1932, ao celebrar contrato com a editora Vanguard e se reponsabilizar por um seriado radiofônico, ele deixou a Metro, que passara a se chamar Metro-Goldwyn-Mayer..

No ano seguinte, David O. Selznick pediu a Nina que lhe indicasse um autor de origem russa, que pudesse escrever o roteiro de Taras Bulba e ela lhe entregou uma lista de seis nomes, entre eles o do próprio filho. Os outros, por vários motivos, não aceitaram o cargo e Lewton foi contratado. Depois de prestar o serviço (Taras Bulba porém não chegou a ser filmado), continuou trabalhando com Selznick, aconselhando-o na escolha de argumentos, checando a fidelidade histórica dos cenários (como, por exemplo, o de A Queda da Bastilha /  A Tale of Two Cities / 1935) e remendando certos trechos imperfeitos de roteiros. Foi Lewton quem persuadiu o produtor a adquirir os direitos de Intermezzo, uma História de Amor / Intermezzo, a Love Story / 1939 e trazer Ingrid Bergman para Hollywood e, segundo informou Joel E. Siegel no seu precioso livro The Reality of Terror (Viking, 1973), escreveu várias cenas para …E O Vento Levou / Gone With the Wind / 1939, inclusive o travelling aéreo sobre os corpos dos sobreviventes da batalha de Gettysburg. Em 1942, após oito anos de paciente colaboração com o genioso Selznick, recebeu o convite que mudaria o curso de sua vida.

Charles Koerner, recentemente nomeado chefe de produção da RKO, decidira competir com a Universal no gênero de horror e incumbiu Lewton de formar uma equipe destinada exclusivamente à realização de filmes desse gênero, com orçamento limitado e duração máxima de 75 minutos, típicos programmers, para serem exibidos como complemento de programa. No futuro, Lewton recordaria com graça: “Há alguns anos eu escrevia romances para ganhar a vida e quando a RKO procurava um produtor de filmes de horror, alguém disse que eu havia escrito romances horríveis. Eles compreenderam mal, trocando a palavra horrível por horror e me deram o emprego”.

A equipe originária constituiu-se do argumentista DeWitt Bodeen, do diretor Jacques Tourneur e do montador Mark Robson. Lewton conheceu Bodeen quando ainda estava trabalhando com Selznick e o recomendou para assistente de pesquisa de Aldous Huxley, que estava escrevendo o roteiro de Jane Eyre, afinal filmado pela Fox. Tourneur, filho do renomado diretor francês, Maurice Tourneur, radicado nos Estados Unidos durante a fase do cinema silencioso, fora assistente e montador dos filmes do pai e havia dirigido quatro filmes na França, antes de se fixar definitivamente na América em 1934, onde trabalhou como diretor de segunda unidade (cena da tomada da bastilha em A Queda da Bastilha) e shorts, integrando o célebre departamento, no qual também se exercitavam Fred Zinnemann, George Sidney, Jules Dassin, David Miller, Joseph Newman, Harold S. Bucquet, Roy Rowland, Gunther Von Fritsch, etc. Antes de ingressar na RKO, Tourneur dirigiu os longas-metragens Escravos do Mal / They All Come Out / 1939, Nick Carter, Super-Detetive / Nick Carter, Master Detective / 1939, Nick Carter nas Nuvens / Phantom Raiders / 1940 e Silêncio do Médico / Doctors Don’t Tell / 1941, este último na Republic. Robson iniciou sua carreira, em 1932, no almoxarifado da RKO, onde começou a chamar atenção como assistente de Robert Wise em Cidadão Kane / Citizen Kane / 1941 e Soberba / The Magnificent Ambersons / 1942.

Koerner achou que vampiros e lobishomens já haviam sido bastante explorados na tela e quís fazer algo com felinos. Como um dos títulos testados numa pesquisa de mercado, Cat People, obtivera bons índices, ele convocou Bodeen e Lewton e lhes disse: “Vamos ver o que vocês podem fazer com isso”.

Lewton pensou em aproveitar um conto de Algernon Blackwood, Ancient Sorceries, mas depois decidiu escrever ele próprio a história, cuja ação se passava numa aldeia dos Bálcãs ocupada por uma divisão Panzer nazista. Na trama, durante o dia, os habitantes eram dóceis e cooperativos, porém de noite transformavam-se em bestas carnívoras, que trucidavam os soldados alemães. Posteriormente, Lewton mudou de idéia e preferiu transferir a história para a Nova York contemporânea.

Depois de comunicar a Bodeen o que tinha em mente, Lewton fez um resumo de duas páginas detalhando os personagens e a ação e, nas reuniões democráticas com toda a equipe, surgiu uma espécie de fórmula, que iria marcar todos os filmes da série, assim sintetizada por ele: “A nossa fórmula é simples. Uma história de amor, três cenas de horror apenas sugerido e uma de violência explícita. Escurecimento. Tudo está terminado em menos de 70 minutos”.

Descartando os monstros tradicionais, os filmes de horror de Lewton não lidavam com o horror realístico, mas com a expressão de algum medo ou superstição universal através de meios estritamente cinematográficos ou da simples sugestão da câmera. Pode-se dizer que suas histórias eram dramatizações da psicologia do medo. O medo do desconhecido, da escuridão, da loucura, da morte ou dos mortos. Como dizia Lewton: “O que o homem conhece e pode ver com os olhos, ele não teme. Mas o desconhecido e o que ele não pode ver, inundam-no de um básico e compreensível terror”.

Bodeen desenvolveu a sinopse e uma cópia foi remetida para Simone Simon em Paris, sendo os outros papéis mais importantes entregues a Kent Smith, Jane Randolph e Tom Conway, já pertencentes ao elenco contratado do estúdio.

Na trama de Sangue de Pantera / Cat People / 1942, Irena Dubrovna (Simone Simon), uma garota da Sérvia, desenhista de moda, vive na cidade de Nova York, obcecada pela idéia de que é descendente de uma antiga raça de mulheres-felinas, as quais, quando excitadas, transformam-se em panteras. Por isso, tem medo de consumar seu casamento com Oliver Reed (Kent Smith), arquiteto de uma firma de construção naval. Ele persuade a esposa a consultar o Dr. Judd (Tom Conway), um psiquiatra; mas este não consegue melhorar o estado de Irena. Oliver então se consola, contando seus problemas para Alice (Jane Randolph, após ter sido cogitada Phyllis Isley, que depois mudou seu nome para Jennifer Jones), uma colega de escritório. Subseqüentemente, Alice é ameaçada duas vezes por uma fera desconhecida. Oliver ameaça deixar Irena e, na mesma noite, ele e Alice são atacados. O Dr. Judd visita Irena e tenta conquistá-la à força. Ela se transforma em pantera e o mata. Ferida por Judd, Irena morre no Jardim Zoólogico do Central Park, depois de libertar uma pantera enjaulada.

“Nós todos concordamos num ponto: a transformação da heroína em fera e vice-versa seria apenas sugerida…Estávamos convencidos também de que os diálogos tinham de ser usados somente para fazerem prosseguir a história, quando ela não pudesse ser plenamente compreendida por intermédio da ação visual e do som natural”.

Tourneur tinha uma grande capacidade para criar seqüências tenebrosas, talvez herdada de seu pai, que foi o primeiro mestre do claro-escuro no cinema mudo. Numa das melhores seqüências do filme, Alice entra de noite numa piscina deserta e quando se prepara para seu exercício de natação, sente a aproximação de algo ameaçador. Sem possibilida de fuga, atira-se na água. A câmera focaliza Alice só com o rosto à tona em alternância com a som bra das águas turvas nas paredes e a repercussão sonora dos urros de uma pantera.

Outra seqüência memorável é a caminhada noturna de Alice pelas imediações do Central Park, um percurso que vai se tornando cada vez mais nervoso, quando ela ouve passos de alguém a seguí-la. Alice pára diante de um poste de luz e olha para trás nas trevas. O barulho dos passos se interrompe; ela não vê nada, mas sente que continua sendo seguida por algo que roça na folhagem. Assustada, corre até o próximo poste. No momento em que a tensão da platéia está no auge, um ônibus surge bruscamente dentro do quadro e dá uma freada súbita, para alguns passageiros desembarcarem. A inesperada aparição do ônibus, o ruído estridente dos freios dá um susto tremendo nos espectadores. Na mesma noite, uma ovelha é encontrada morta no parque e a câmera segue o rastro das patas de um felino afastando-se do corpo do animal morto até que, subitamente, as patas viram marcas de saltos de sapato de uma mulher.

Um momento menos aterrorizante, mas esplêndido, é o encontro de Irena com a outra mulher-pantera (Elizabeth Russell) no restaurante. Uma linda mulher contempla de longe Irena e diz no idioma sérvio: “Moja sestra? (Minha irmã?)”. Lewton costumava freqüentar a casa de Salka Viertel. Ele pediu ao seu filho, Peter, para ajudá-lo a encontrar uma atriz para interpretar o papel da outra “mulher-pantera”. Quando Viertel foi apresentado à atriz Elizabeth Russell, a companheira de quarto de sua namorada Maria Montez, ele lhe disse: “Eu tenho um amigo na RKO que precisa de uma mulher para seu novo filme e que se pareça com um gato”. “Você quer dizer que eu pareço um gato?”, perguntou Elizabeth. “Bem, eles vão falar da sua semelhança com um gato”, respondeu Viertel, tentando não ofendê-la. Elizabeth aceitou fazer essa pequena aparição, numa cena estranha, misteriosa e   inesquecível.

A direção de fotografia a cargo de Nicholas Musuraca, especialista na iluminação contrastada em preto e branco, seguia o estilo expressionista alemão de Robert Wiene, Frtiz Lang, Lupu Pick, Paul Leni e Richard Oswald. Musuraca, depois de grande atividade nos anos 20 em faroestes e filmes de ação baratos, tornou-se, na década de 30, um dos mais destacados cameramen da RKO, onde faria ainda O Beijo da Traição / The Fallen Sparrow / 1942, Silêncio nas Trevas / The Spiral Saircase / 1945, Angústia / The Locket / 1946, Fuga ao Passado / Out of the Past / 1947, Trágico Destino / Where Danger Lives / 1950    etc. e mais quatro filmes com Lewton (A 7ª Vítima, O Fantasma dos Mares, A Maldição do Sangue de Pantera e Asilo Sinistro). Eric Shaefer disse a respeito do grande cinegrafista: “Usando a escuridão e a luz como seus instrumentos Musuraca criou a topografia da ameaça com uma consistência e uma criatividade incomparáveis”.

Na direção de arte, Albert S. D’Agostino e Walter E. Keller, atuantes em todos os filmes da série, por medida econômica, aproveitaram sets já usados anteriormente em outras produções do estúdio (o do Central Park, por exemplo, em vários musicais de Fred Astaire e Ginger Rogers) e espalharam por todos os cantos referências a felinos – como a estátua de Bibastis, os lírios astecas (Flor-tigre) na vitrine do florista, os gatos na reprodução do quadro de Goya, etc. – para sublinhar a obsessão da heroína.

Rodado em 24 dias, o filme custou 134 mil dólares e rendeu mais de três milhões. Tornou-se um sleeper, ou seja, um sucesso inesperado de público, salvando a RKO da falência. De todos os aplausos, Lewton gostou mais do telegrama que recebeu de seu antigo patrão, David O. Selznick, que dizia: “Acho que Sangue de Pantera definitivamente e de uma só vez o firmou como um produtor de grande competência e não conheço ninguém nos anos recentes, que fez tanto com tão pouco no seu primeiro filme”.

No Brasil, Vinicius de Moraes, então crítico do Diário Carioca, “descobriu” o filme e escreveu três crônicas apontando-lhe os méritos. “O filme é riquíssimo em material puro e conta, a meu ver, entre os mais importantes desses últimos cinco anos de cinematografia … Jacques Tourneur realizou uma pequena obra-prima de Cinema, em essência, silenciosa”.

Antes mesmo de Sangue de Pantera começar a ser filmado, Korner informou a Lewton que sua próxima produção seria baseada num artigo de Inez Wallace, publicado na revista American Weekly, intitulado I Walked with a Zombie. Após um dia de intensa preocupação, Lewton chamou Bodeen e lhe disse: “Provavelmente eles jamais irão perceber isso, mas o que eu vou lhes dar em I Walked with a Zombie é uma Jane Eyre nas Antilhas”.

No enredo, escrito por Curt Siodmak e Ardel Wray, e inspirado livremente na obra de Charlotte Bronte, Betsy Connell (Frances Dee), enfermeira canadense, chega a St. Sebastian nas Antilhas, para cuidar de Jessica Holland (Christine Gordon), uma inválida que parece estar sofrendo de paralisia nervosa. Betsy apaixona-se por Paul (Tom Conway), marido de Jessica e é cortejada por Wesley Rand (James Ellison), o meio-irmão de Paul. Acreditando que este continua enamorado da esposa, Betsy, altruisticamente, leva Jessica a uma cerimônia de vodu, na esperança de restituí-la ao marido. Sua intenção falha, mas força Mrs. Rand (Edith Barrett), viúva missionária e mãe de Paul e Wesley, a revelar que havia usado o vodu para transformar Jessica numa zumbi, quando ela anunciara sua partida de St. Sebastian com Wesley. Este mata Jessica a fim de libertá-la da maldição da “morte em vida” e se afoga, carregando o corpo dela mar adentro.

Logo no início, Betsy e Paul estão a bordo de um veleiro comercial. O céu estrelado e o oceano cintilante deixam-na extasiada. Seus devaneios são interrompidos por Paul: “Não é bonito” – ele lê seu pensamento. “Tudo parece bonito porque você não compreende. Aqueles peixes-voadores não estão pulando de alegria, eles estão pulando aterrorizados. Os peixes maiores querem comê-los. Aquela água luminosa – ela tira o seu brilho de milhões de cadáveres, o brilho da putrescência. Aquí não há beleza, somente morte e decomposição”. Depois de uma tomada mostrando o céu e uma estrela cadente, ele acrescenta: “Tudo que é bom morre aquí, até as estrelas”.

Dirigido por Tourneur com grande inspiração, magnificamente fotogrado por J. Roy Hunt (Voando para o Rio / Flying Down to Rio / 1933, Os Últimos Dias de Pompéia / The Last Days of Pompeii / 1935, Heróis do Mar / Sea Devils / 1937, Última Confissão / Full Confession / 1939, etc.) e interpretado com segurança por Frances Dee, Tom Conway, James Ellison, Edith Barrett, Christine Gordon e os atores negros Sir Lancelot (cantor de calipso) e Darby Jones (Carre-Four), o filme é considerado por muitos críticos o melhor da série, “um dos raros exemplares de pura poesia visual fabricado por Hollywood” (cf. Siegel).

Esta qualidade é perceptível em sequências como a do primeiro encontro de Betsy com Jessica; a da caminhada das duas à sede da macumba através dos canaviais sob o batuque enervante dos tambores e o soprar do vento até se depararem com o zumbi; e a do desenlace, em notável montagem alternada, encerrando-se quando a agulha é espetada na boneca representando Jessica e, em seguida, num corte brusco, aparece Wesley, que acabara de matar a verdadeira Jessica com a flecha da estátua de São Sebastião.

A Morta-Viva / I Walked with a Zombie / 1943 foi exibido com atraso no Brasil por causa da censura e, nessa ocasião, Moniz Vianna deu a medida exata de seu valor: “Grande não; nem perfeito. Mas inegavelment, um filme muito bom”.

A terceira produção de Lewton, O Homem-Leopardo / The Leopard Man / 1943, um drama fantástico-criminal escrito por Ardel Wray com base em Black Alibi, romance de Cornell Woolrich (William Irish), também foi dirigido por Jacques Tourneur.

Numa pequena cidade da fronteira do Novo México, um leopardo que o empresário teatral Jerry Manning (Dennis O’ Keefe) havia usado num truque publicitário de sua vedete, Kiki Walker (Jean Brooks), assusta-se com o som de castanholas e foge. A fera mata uma adolescente, Teresa Delgado (Margaret Landry). Posteriormente, duas outras jovens, Consuelo Contreras (Tula Parma) e a dançarina Clo-Clo (Margo), são mortas; mas, desta vez, por um assassino demente, que usa o leopardo para encobrir suas atividades. Perseguido por Jerry e Kiki, o criminoso vem a ser preso e morto pelo namorado de uma das vítimas.

A narrativa, sem ter personagens centrais, é um tanto fragmentada, prejudicando um pouco a dramaticidade, mas há seqüências de excelente Cinema. Numa delas, sem dúvida a mais aterrorizadora de toda a série, Teresa é forçada pela mãe a sair de noite para comprar farinha. A mocinha está assustada, pois ouvira dizer que um leopardo andava solto pelas redondezas. A mãe empurra-a para fora de casa e tranca a porta. A pobrezinha encontra a mercearia fechada e tem de atravessar um longo caminho na escuridão, até chegar à única loja ainda aberta. Na volta, ela vê os olhos de um felino brilhando nas trevas. Num efeito semelhante ao da parada repentina do ônibus em Sangue de Pantera, quando ela está sob uma passagem elevada da estrada de ferro, um trem irrompe estridentemente. Logo depois, ela se depara com a fera, cai, derramando a farinha e foge. O resto da sequência é filmado do interior da casa. A menina bate aflita na porta, suplicando à mãe para deixá-la entrar; esta, zangada com a demora, decide puní-la, fazendo-a esperar. Quando finalmente se convence de que a filha corre perigo, não consegue abrir o ferrolho e vê o sangue da menina escorregando por debaixo da porta.

O virtuoso emprego do som e das sombras e a sucessão tensa das imagens continua no momento das outras mortes – a de Consuelo no cemitério e a de Clo-Clo tocando castanholas pelas ruas escuras, antes de perecer nas mãos do assassino. Boa parte do êxito destes instantes aconteceram devido aos perfeitos shots em chave baixa do fotógrafo Robert de Grasse (Kitty Foyle / Kitty Foyle /1940, A Morte Dirige o Espetáculo / Lady of Burlesque / 1943, Museu de Horrores / Crack-Up / 1946, Nascido para Matar / Born to Kill / 1947, Ninguém Crê em Mim / The Window /1949, Clamor Humano / Home of the Brave / 1949, Espíritos Indômitos / The Men / 1950, etc.), que faria ainda com Lewton O Túmulo Vazio.

Filmado em um mês, O Homem Leopardo custou menos de 150 mil dólares e deu bons lucros para a RKO. Lewton sabia reconhecer e respondia muito bem à qualidade em filmes poucos dispendiosos. Nesta oportunidade, James Agee escreveu que os filmes mais imaginosos e criativos de Hollywood eram os feitos por Lewton e sua equipe.

Tourneur observaria mais tarde que esses exercícios de terror “foram feitos durante a guerra e, durante a guerra, por alguma razão misteriosa, as pessoas gostam de ser amedrontadas. Subconscientemente nós todos gostamos de sentir medo e, em tempo de guerra, as pessoas tinham dinheiro ganho nas fábricas, dinheiro para gastar e todos amavam aquele tipo de filme”. Já Alexandre Nemerov, num estudo intitulado Icons of Grief (University of Califórnia, 2005), argumentou recentemente que os filmes de Val Lewton cristalizavam a ansiedade e tristeza experimentadas pelos americanos na frente doméstica durante a Segunda Guerra Mundial, emoções em desacôrdo com a insistência oficial sobre coragem, patriotismo e otimismo.

O estúdio viria quebrar a parceria Lewton-Tourneur conduzindo este último para a área das produções classe “A”, onde estrearia com Quando a Neve Tornar a Cair / Days of Glory / 1944, drama de guerra na Rússia com Gregory Peck e Tâmara Toumanova. Lamentando a separação, Tourneur diria: “Mantínhamos uma perfeita colaboração – Val era o sonhador, o idealista e eu o materialista, o realista. Devíamos ter continuado a fazer filmes mais importantes e ambiciosos e não somente filmes de horror.

Sem Tourneur, Lewton teve que escolher outro diretor para o novo projeto já programado, A Sétima Vítima / The Seventh Victim / 1943, história mórbida e pessimista, escrita por DeWitt Bodeen e Charles O’ Neal a partir das idéias do produtor.

Mary Gibson (Kim Hunter) chega a Manhattan à procura da irmã, Jacqueline (Jean Brooks), que desaparecera . A investigação que faz, com o auxílio de Gregory Ward (Hugh Beaumont), marido de Jacqueline, leva-a aos Palladists, culto diabólico do qual Jacqueline é adepta. Os Palladists tentam matar Jacqueline por ter revelado os segredos da ordem a um psicanalista, Dr. Louis Judd (Tom Conway), mas falham no seu intento. Ela acaba pondo fim à vida, deixando Mary e Gregory um nos braços do outro.

A trama é conduzida de um modo um tanto intrincado, mas contém elementos de susto e suspense dentro de um clima inquietante, como na cena em que Mary descobre o laço e a cadeira no quarto alugado pela irmã no andar superior de um restaurante em Greenwich Village ou quando ela, no chuveiro, através da cortina de plástico, vê a sombra da lésbica, Mrs. Redi (Mary Newton), lembrando a cena de Norman Bates em Psicose / Psycho / 1960 de Hitchcock. Como disse Carlos Clarens, “raramente um filme conseguiu captar tão bem a ameaça noturna numa grande cidade, o terror subjacente no cotidiano e a sugestão de um espírito maligno oculto”.

Como acentuou Siegel, “nos seus melhores filmes, Lewton abraça as forças sombrias, negativas – suicídio, diabolismo, feitiçaria. A Sétima Vítima é a sua negação mais direta, um filme no qual a existência é retratada como um vácuo infernal, de onde todas as almas anseiam pela doce libertação da morte”.

Isto fica claro na cena do suicídio de Jacqueline, sugerido pelo som de uma cadeira sendo empurrada enquanto, fora de cena, ela se enforca e uma voz repete a epígrafe de John Donne que inicia o filme: “Eu corro para a Morte e a Morte logo me encontra…e todos os meus Prazeres são como os Dias de Ontem”.

Satisfeito com Mark Robson, Lewton entregou-lhe a direção do filme seguinte, O Fantasma dos Mares / The Ghost Ship / 1943, algo parecido com uma versão psicanalítica de O Lobo do Mar, romance de Jack London, feito para aproveitar um cenário de navio que a RKO havia construído para o filme Transpacífico / Pacific Line / 1939 (Dir: Lew Landers).

No relato (escrito por Donald Henderson Clarke com apoio numa história de Leo Mittler), Tom Merriam (Russell Wade), jovem oficial do navio mercante “Altair”, impressionado com as atitudes de um comandante autoritário, Capitão Will Stone (Richard Dix), vai percebendo aos poucos que este é um assassino psicopata, responsável pela morte de vários tripulantes. Ninguém acredita nas suas acusações e ele quase vem a ser morto, antes de Stone ser apunhalado por Pollo (Skelton Knaggs), um tripulante mudo, cujos comentários em voz over predizem que vão ocorrer mortes durante a viagem.

Logo após a estréia do filme, dois indivíduos, Samuel R. Golding e Norbert Faulkner, impetraram uma ação judicial contra o produtor, alegando plágio. Alguns meses antes, eles haviam deixado por conta própria um manuscrito da peça que haviam escrito nas mãos da secretária de Lewton que, seguindo um procedimento usual no estúdio, devolveu-o aos autores. Embora a história de O Fantasma dos Mares não tivesse nada a ver com a do texto, a ação foi julgada procedente e, em conseqüência, sustada a distribuição. Entretanto, o filme chegou a passar no Brasil e hoje podemos revê-lo em dvd na magnífica caixa da Warner, The Val Lewton Horror Colection

O filme é atraente do ponto de vista narrativo e pictórico, com fotografia de Musuraca desta vez menos contrastada e cenas de horror apoiadas mais em efeitos auditivos do que visuais, como no assassinato do marujo, quando apenas se ouvem seus gritos, abafados pelo barulho das pesadas correntes que o soterram.

Tal como em todos os filmes de Lewton, o horror não provém de nenhum elemento sobrenatural explícito, mas sim dos recônditos insondáveis da mente humana. Numa cena, Stone admite que algo estava perturbando sua paz de espírito e ele tinha que resolver seus conflitos psicológicos. No caso, uma mente civilizada, porém instável, que não foi capaz de lidar com o problema de uma autoridade sem limites.

Em seguida, Koerner encomendou uma continuação de Sangue de Pantera, porém Lewton driblou suas instruções e fez um filme mais poético do que terrorífico. No enrêdo  de Dewitt Bodeen, Oliver Reed  (Kent Smith) preocupa-se porque sua filhinha Amy (Ann Carter) vive num mundo de fantasia. A mãe, Alice (Jane Randolph), atribui o fato simplesmente à imaginação infantil, mas Oliver suspeita da influência de sua primeira esposa Irena (Simone Simon), que falecera acreditando ser uma mulher-pantera. Amy freqüenta a mansão ocupada por Barbara Farren (Elizabeth Russell) e sua progenitora Julia (Julia Dean), uma velha atriz de uma outra época. Julia gosta da menina e Barbara a odeia, achando que a menina está lhe roubando o amor de sua mãe. Amy vê uma fotografia de Irena e imagina que ela é sua amiga. Quando insiste que Irena é “real”, Oliver fica mais impaciente e a castiga. Ela foge para a casa das Farren, sem saber que Barbara prometera matá-la. Julia tenta esconder Amy, mas sofre um colapso. Bárbara ameaça Amy; fica, porém, desarmada diante da inocência da menina, no exato momento em que Oliver chega com a polícia. Oliver então mostra-se indulgente com as fantasias da filha, fazendo-a esquecer-se de Irena.

Fascinante análise da psicologia infantil e talvez o mais pessoal dos filmes de Lewton, A Maldição do Sangue de Pantera / The Curse of the Cat People / 1944 foi prejudicado por cortes e inserções ordenados pelos chefões do estúdio e tumultuado pela substituição do diretor. Gunther Von Fritsch, inicialmente escolhido, havia se sobressaído em dois shorts da MGM, Fala, o Cachorro do Presidente / Fala, the President’s Dog / 1943 e Mãos Videntes / Seeing Hands / 1943, este último indicado para o Oscar; mas, na sua primeira intervenção num longa-metragem, deixou que a filmagem se atrasasse e colocaram Robert Wise no seu lugar. Wise, contratado como auxiliar do departamento de montagem da RKO, tornara-se montador com O Homem Que Vendeu a Alma / All That Money Can Buy / 1941, Cidadão Kane / Citizen Kane / 1941, Soberba / The Magnificent Ambersons / 1942 montando também Sete Dias de Licença / Seven Days Leave / 1942, Bombardeiro / Bombardier / 1943 e O Beijo da Traição / The Fallen Sparrow / 1943, até preencher a vaga de Von Fritsch, ascendendo à direção.

Apesar dos problemas, o filme tem muitos admiradores (Agee elegeu-o um dos melhores do ano) e, sem dúvida, alguns efeitos góticos e de horror interessantes como na cena em que, no sombrio casarão a velha ex-atriz narra a Amy a historia do cavaleiro-sem-cabeça e depois, ao ouvir o barulho de um carro com o pneu furado, a menina tem a impressão no escuro de ver o personagem fantasma se aproximando.

Após um breve intervalo, no qual realizou Youth Runs Wild / 1944 e Mademoiselle Fifi / 1944 (exibido no Brasil apenas na televisão), o primeiro sobre delinqüência juvenil e o segundo extraído de dois contos de Guy de Maupassant, Lewton voltou ao gênero de horror com três filmes ambiciosos, todos protagonizados por Boris Karloff, que havia sido contratado pela RKO.

No primeiro, A Ilha dos Mortos / Isle of the Dead / 1945 – com roteiro de Ardel Wray  e Josef Mischell inspirado num quadro famoso do pintor suíço Arnold  Böcklin (1827 – 1901) e direção de Mark Robson -, o General Pherides (Boris Karloff), um repórter americano, Oliver (Marc Cramer), um cônsul britânico, St. Aubyn (Alan Napier), sua esposa (Katherine Emery substituindo Rose Hobart) e outras pessoas ficam de quarentena numa ilha grega durante a Guerra de 1912.  A cólera é descoberta entre o grupo embora uma velha camponesa, Kyra (Helene Thimig) suspeite da presença de demônios chamados vorvolakas, acusando Thea (Ellen Drew), uma bela jovem do local, de ser vampiro, responsável pelas mortes. A mulher do cônsul é enterrada prematuramente, mas ressucita, possuída por uma espécie de espírito assassino. Perturbado pela peste, Pherides tenta matar Thea, porém a ressucitada o liquida, antes de cometer suicídio, atirando-se num precipício. O perigo da cólera passa, permitindo ao americano deixar a ilha na companhia de Thea, que conquistara seu coração.

O filme tem de início um compasso um pouco arrastado, mas por toda a sua extensão sente-se uma atmosfera intensamente trágica, que vai preparando o final, quando se acumulam os acontecimentos mais empolgantes. A certa altura, a câmera se aproxima lentamente do caixão, no qual sabemos que a mulher atacada de catalepsia está enterrada e a qualquer momento pode acordar. O único som são as gotas d’água caindo sobre a tampa de madeira do caixão. De repente, ouvimos um grito do seu interior e o ranger das dobradiças que são forçadas por dentro para abrir. Num suspense angustiante a platéia fica aguardando o despertar da mulher, enlouquecida pela horrível experiência. Nesta e em outras cenas do desfecho, Robson, ajudado por Jack Mackenzie, fotógrafo geralmente confinado às séries da RKO – Scattergood (Guy Kibbee), Mexican Sptfire (Lupe Vélez), Falcon (Tom Conway), Gildersleeve (Harold Peary) – mais vigor e valor artístico. Moniz Vianna considerou A Ilha dos Mortos uma pequena obra-prima e James Agee, “um dos melhores filmes de horror jamais feito”.

O Túmulo Vazio / The Body Snatcher / 1945 começou a ser rodado durante uma interrupção na filmagem de A Ilha dos Mortos e foi lançado antes deste. Lewton abordou um conto de Robert Louis Stevenson e, pela primeira vez, assinou o roteiro juntamente com Philip MacDonald, usando o pseudônimo de Carlos Keith.

Em Edinburgh, Escócia, 1831, o médico MacFarlane (Henry Daniell) dirige uma escola de medicina. Ele é chantageado por John Gray (Boris Karloff), um cocheiro que certa vez o encobertara numa investigação por roubo de cadáveres e cumprira longa pena de prisão em seu lugar. Fettes (Russel Wade), jovem estudante idealista, torna-se assistente de MacFarlane e pede ao mestre que opere uma criança paralítica, Georgina (Sharyn Moffett). Em pouco tempo, Fettes vem a descobrir que, por meios ilegais, Gray arranja cadáveres para a escola e que o ladrão de túmulos traz MacFarlane sob estranho contrôle. Os recentes roubos de Gray fazem com que sejam colocados guardas nos cemitérios e então, para conseguir mais corpos, ele dá início a uma série de assassinatos. Atormentado, MacFarlane mata Gray e, como a operação em Georgina é bem sucedida, convence Fettes a ajudá-lo a roubar o cadáver de uma mulher. No retôrno da sinistra expedição, durante uma tempestade, Fettes cai do carro funerário descontrolado. MacFarlane, cada vez mais alucinado, pensa ser de Gray o cadáver que está transportando e que está sendo atacado por ele enquanto a viatura se encaminha para o abismo.

A narrativa é um tanto literária, mas o filme tem uma ambientação eficiente e algumas cenas de horror no esquema plástico-sonoro lewtoniano, soberbamente dirigidas por Robert Wise com o apoio do fotógrafo Robert de Grasse.  Numa das cenas, uma cantora de cega (Donna Lee) – que atua como uma espécie de coro ligando os episódios com suas canções escocesas – afasta-se da objetiva, penetra numa passagem escura com entrada em forma de arco e o som do seu canto continua sendo ouvido. Em seguida, a carroça de Gray entra no quadro e desaparece nas trevas atrás da jovem. O canto cessa repentinamente e a câmera permanece focalizando o arco de entrada até a imagem se dissolver.

Outra cena tétrica muito lembrada é a do epílogo, quando MacFarlane imagina que Gray ressuscitara para vingar-se. A voz do morto (repetindo “Nunca se livrará de mim”) ecoa no ritmo do galope dos cavalos, vendo-se MacFarlane e o “fantasma” de Gray em luta na carruagem desgovernada, iluminados pelos flashes dos relâmpagos. Na verdade, existia uma ligação profunda, metafísica entre os personagens de MacFarlane e Gray. O cocheiro era sem dúvida o alter ego do médico, sua consciência selvagem.

O último filme de Lewton para a RKO, Asilo Sinistro / Bedlam / 1946, inicialmente intitulado Chamber of Horrors, inspirou-se temática e visualmente na série de ilustrações satíricas A Rake’s Progress do artista inglês William Hogarth (1697-1764), que foram intercaladas entre as seqüências, comentando-as antecipadamente e sugerindo ainda vários enquadramentos (“Hogarth foi nosso desenhista de produção”).

O entrecho, de autoria de Lewton e Mark Robson, transcorre na Londres de 1761. Nell Bowen (Anna Lee) atriz protegida do gordo Lord Mortimer (Billy House), deseja melhorar as condições do asilo de loucos de St. Mary of Bethelem (Bedlam), dirigido pelo ambicioso e sádico Master Sims (Boris Karloff) . Sua intromissão, encorajada por Hannay (Richard Fraser), um quaker, provoca a ira de Mortimer, a quem Sims deve o cargo. Após algum tempo, por intriga de Sims, Nell é conduzida ao asilo como punição. Embora amedrontada pelos loucos ela se esforça por melhorar a condição daquelas pobres criaturas. Quando Sims ameaça fazer mal a ela, é capturado pelos internos, que formam um tribunal para julgá-lo. Reconhecendo que sua crueldade é uma doença, os loucos o deixam partir, absolvido; mas um infeliz, maltratado pelo impiedoso diretor, o apunhala. Temendo o castigo, os loucos resolvem emparedar Sims ainda vivo e, com seu misterioso desaparecimento, Bedlam transforma-se numa instituição humanitária.

Esta trama, um tanto bizarra, se desenrola num clima asfixiante, criado pelo método fotográfico típico de Musuraca e, apesar de conter diálogos excessivos (porém cultos  e irônicos), segue com fluência.

O estúdio deu ao produtor um orçamento maior do que o de costume (350 mil dólares); mesmo assim, ele teve que enxugar os gastos, usando como sempre antigos cenários (o asilo, por exemplo, era a igreja de Os Sinos de Santa Maria / The Bells of St. Mary’s / 1945).

O horror irrompe nas cenas da morte do jovem louco – personificando a Razão diante dos ricos convidados do banquete em Vauxhall – com os poros obstruídos pela tinta dourada que lhe cobre o corpo; na cena do confronto sob o olhar maquiavélico de Sims, entre a heroína e um demente furioso que a jovem apazigua com doçura; na cena das mãos que surgem para fora das grades acompanhadas de gritos lancinantes; na cena do julgamento de Sims por suas vítimas; e na cena em que ele abre os olhos ao cair sobre sua cabeça a última pedra, que haveria de sepultá-lo vivo – um instante digno de Edgar Allan Poe.

Entre outros projetos irrealizados, Lewton produziu ainda mais três filmes de outros gêneros: Meu Verdadeiro Amor / My Own True Love / 1948, Crê em Mim / Please Believe Me / 1950, Flechas da Vingança / Apache Drums / 1951, pela ordem, para a Paramount, MGM e Universal.

Examinando a carreira de Val Lewton em Fearing the Dark (McFarland, 1995), Edmund G. Basak, dedica um capítulo inteiro (“Dark Legacy”) à influência póstuma de Lewton sobre uma geração de realizadores, não somente nos EUA, mas também na França e Inglaterra, elaborando uma lista abrangente de filmes para exemplificá-la. Recentemente, Martin Scorsese admitiu a influência direta de Val Lewton sobre seu filme A Ilha do Medo / Shutter Island / 2010.

O grande produtor faleceu prematuramente aos 46 anos, vitimado por um ataque cardíaco, a 14 de março de 1951.

Alguém disse uma frase que lhe cai sob medida como epitáfio: “Ele usou a Beleza para criar o Horror”.

TOM MIX

junho 25, 2010

William S. Hart deu certa estatura e realismo ao western. Tom Mix introduziu o senso de espetáculo e, como personalidade, ultrapassou-o. Nenhum outro astro de Hollywood, de qualquer espécie, pode ser comparado com ele sob este aspecto. Para reforçar o faz-de-conta que colocava nas telas, Mix tornou-se na vida real o cowboy-herói que interpretava, forjando uma biografia aventurosa e gastando em grande estilo os milhares de dólares ganhos no Cinema.

Deixando de lado o que foi inventado, podemos dizer que o Tom Mix (Thomas Hezekiah Mix) verdadeiro nasceu a seis de janeiro de 1880, em Drift Run, lugar também conhecido como Mix Run, perto de Cameron, Pennsylvania, EUA, filho de Elias Mix, um lenhador e condutor de uma parelha de cavalos que conduzia as toras de madeira e de Elizabeth Hiestand, sendo falsa a afirmação de que veio ao mundo em El Paso e descendia de um capitão do 7º Regimento de Cavalaria.

Em 1884, a família se mudou para Driftwood, onde Elias trabalhou para um grande madereiro, John E. DuBois, dono de uma vasta propriedade nas vizinhanças. DuBois percebeu a habilidade de Elias com cavalos e contratou-o como administrador de seus estábulos. Tom herdou do pai o amor por aqueles animais e todo dia passava algum tempo nos estábulos. Ele aprendeu inclusive a ficar de pé nas costas do cavalo enquanto este corria e, com o dinheiro que ganhou cuidando de umas vacas, comprou um velho revólver e um rifle.

Na adolescência, Tom destacou-se no futebol americano, mas não foi, como disseram, o craque da Academia Militar de Virginia, porque nunca esteve lá.  Ele praticou também basebol, ciclismo, boxe e levantamento de peso, mantendo-se sempre em forma no ginásio de seu colégio. O exame das fotos de Tom durante toda a sua vida revela que seu físico equiparava-se aos dos modernos triatletas.

Em 28 de abril de 1898, dia em que o governo americano declarou a guerra à Espanha, Tom Mix (aumentando sua idade, para que não fosse preciso o consentimento de seus pais), alistou-se no exército e, em vez de partir para Cuba e levar um tiro na boca, como diz a lenda, incorporou-se à Bateria M do 4º Regimento da Artilharia dos Estados Unidos, cuja missão era proteger os depósitos de pólvora DuPont, no rio Delaware, contra a possibilidade de um ataque à Filadélfia.

Quando a guerra hispano-americana terminou, foi transferido para a Bateria O, em Fort Monroe, Virginia, chegando ao posto de sargento. Não seguiu para as Filipinas, como consta do seu currículo fabricado e sim participou da evacuação de Fort Monroe, depois de uma epidemia de febre amarela, sem praticar nenhum feito heróico.

Após seu desligamento em 1901, realistou-se, esperando, talvez, entrar na Guerra dos Boers. Alguns militares tiveram permissão de partir para a África do Sul como “voluntários”, mas não consta de nenhum arquivo do Exército Americano que um primeiro-sargento Thomas E. Mix (nome falso que ele dera à junta de recrutamento, trocando Hezekiah por Edwin) estivesse entre eles. Tampouco esteve na China lutando na rebelião dos Boxers, nem domou cavalos para as forças armadas britânicas ou escapou de um pelotão de fuzilamento na Revolução Mexicana.

O que se sabe é que, durante esse período, Tom Mix conheceu e se casou com Grace Allin, a primeira de suas cinco esposas, e encerrou a carreira militar, desertando do seu posto em Fort Hancock e rumando com a mulher para o Oeste.

Na cidade de Guthrie, Território de Oklahoma, Tom arranjou emprego como professor de educação física no porão da Carnegie Library e depois como garçom de bar no Blue Belle Saloon na West Harrison Avenue. Tom ainda ganhou algum dinheiro extra domando cavalos para os fazendeiros locais. Zack Mulhall, dono do Mulhall Ranch e os irmãos George e Zack Miller, donos (juntamente com um terceiro irmão, Joe) do Miller Brothers 101 Ranch encontravam-se sempre com Tom no curral e no bar e simpatizaram com aquele jovem de corpo atlético. O editor de jornal, Thomas B. Ferguson, governador do Território de Oklahoma, nomeado pelo Presidente Theodore Roosevelt, também tinha Tom em alta estima.

Quando Grace deixou Tom, insatisfeita com a vida desconfortável que levava naquele ambiente selvagem, Mulhall e Ferguson sugeriram a Tom que ingressasse na Banda da Cavalaria de Oklahoma como tambor-mor. Tom não era músico, mas foi aceito. A função do tambor-mor era vestir um uniforme resplandecente com dragonas e enfeites e marchar na frente da banda carregando um bastão. Ele era responsável por levantar e abaixar o bastão enquanto marchava de acordo com o ritmo da música, em essência conduzindo a banda tal como um maestro numa orquestra.

Quando a Feira Mundial foi inaugurada em St.Louis, Missouri em 1904, Tom e a Banda da Cavalaria de Oklahoma participaram da inauguração do pavilhão dedicado a Oklahoma. Tom conduziu a banda e foi descrito por um jornal de St.Louis como “uma figura galante que chamava muita atenção, especialmente por parte do público feminino”.

Foi a primeira vez em que Tom percebeu que roupas vistosas fariam com que ele atraísse os olhares e isto se tornou um hábito para ele. Pelo resto de sua vida Tom usaria roupas chamativas e quando ele se tornou o astro mais bem pago do mundo, suas vestes foram o assunto de muitas conversas, principalmente o seu cinturão de fivelas ornamentadas com platina e jóias preciosas.

Após ter deixado a Banda da Cavalaria de Oklahoma e trabalhado novamente como garçom, Tom foi contratado como vaqueiro pelos irmãos Miller. A fazenda de criação de gado de propriedade deles, Miller Brother’s 101 Ranch, era tão grande, que foi preciso aproximadamente 480 mil quilômetros de arame farpado para cercá-la. A riqueza da família Miller era inimaginável, mesmo antes de ter sido descoberto petróleo em suas terras. Os três irmãos eram também donos de um Wild West Show de enorme sucesso.

Os vaqueiros trabalhavam no 101 Ranch durante a primavera, verão e outono e ficavam livres para procurar outras ocupações nos meses de inverno, até o próximo recolhimento do gado na primavera. Assim, depois de se casar com Kitty Perrine, Tom foi procurar emprego para os meses de inverno e acabou realizando um de seus sonhos de infância: tornar-se um homem-da-lei no Oeste.

No início de 1906, Tom Mix foi contratado como peace officer (cargo parecido com o de delegado) na cidade de LeHunt, Kansas, que abrigava a Hunt Construction Company e sua fábrica de cimento. Posteriormente, Tom exerceu novamente a função de delegado, desta vez numa cidade de mineração chamada Richard City no Condado de Marion County, Tennessee e, após ter se divorciado de Kitty, ele foi nomeado deputy sheriff (auxiliar do xerife) em Dewey, Oklahoma. Mas Tom nunca fez parte dos Texas Rangers, como inventaram os publicistas da Fox.

Depois desta experiência como “domador de cidades”, Tom retornou ao 101 Ranch e, em 1908, teve um bom aumento de salário, por ter conquistado o título de campeão do rodeio promovido pela fazenda. Este era um título de grande prestígio e quase que imediatamente a figura de Tom foi estampada nos cartões postais distribuídos pelos Millers para promover o seu espetáculo circense. Os turistas que chegavam na fazenda começavam a perguntar por Tom e pediam para serem apresentados a ele.

No final de 1908, Tom ficou mais uma vez sem emprego durante o inverno e decidiu voltar para Dewey, não para assumir novamente a posição de auxiliar de xerife, mas para cortejar Olive Stokes, que conhecera na Feira Mundial de St. Louis há quatro anos e nunca se esquecera dela. Olive possuia certos atributos que agradavam a Tom: ela gostava do campo e se interessava por atividades masculinas como montar, laçar, lidar com os cavalos e gado. Era visivelmente mais adequada para ser Mrs.Tom Mix do que Grace Allin ou Kitty Perrine, ambas acostumadas com os confortos modernos da cidade.

Em 1909, Tom já estava com o sangue do show business nas veias. Ele não queria mais ser um vaqueiro ganhando quinze dólares por mês nem um sub-xerife mal pago. Casou-se com Olive e foi trabalhar com a esposa (de quem teve a filha Ruth, que também foi atriz) no Widerman Wild West Show em Amarillo, Texas.

Tom não estava designado oficialmente como o astro do show, mas ficou óbvio que todo o espetáculo girava em torno dele. No momento em que ele irrompia na arena montado no seu cavalo Old Blue, os espectadores deliravam. No cinema, Tom montou Old Blue e um cavalo preto chamado Colt 45 nos seus primeiros filmes entre 1910 e 1918. Após a morte de Old Blue em 1919, Tom usou o cavalo Tony (Tony Boy) em todos os seus filmes mudos e depois Tony, Jr. nos filmes sonoros. Porém, nas cenas arriscadas, usava dublês como Buster, Argie ou Satan.

Passado algum tempo, o casal formou companhia própria, The Tom Mix Wild West Show, e, afinal, ambos se uniram ao Will Dickey’s Circle D Ranch Wild West Show and Indian Congress, que fornecia cowboys e índios para os filmes de faroeste da Selig Polyscope Company.

O pessoal da Selig resolveu usar o jovem Mix como vaqueiro fora da tela até que ele teve a chance de aparecer diante das câmeras numa cena de Ranch Life in the Great Southwest, semi-documentário curto sobre cowboys num rodeio.

A maioria dos westerns da Selig era de um rolo, durando cerca de cinco minutos e filmados em uma semana, porém a companhia fez também filmes de dois, três até cinco rolos como, por exemplo, Para a Terra do Ouro / In the Days of the Thundering Herd / 1914 ou No Coração do Texas / The Heart of Texas Ryan / 1917. Os enredos eram simples, num estilo cômico-folclórico à maneira de Will Rogers, e havia muita ação, destacando-se as cenas espetaculares que mostravam os extraordinários talentos de Mix em cima da sela, saltando sobre precipícios ou arremessando o laço, atirando e lutando, sempre com roupas vistosas, chapelão e um tremendo magnetismo pessoal.

Em 1917, a Selig ficou em péssima situação financeira. Tom Mix foi trabalhar para William Fox e, passando aos longas-metragens, fez logo um estrondoso sucesso. Segundo a maioria dos comentaristas a melhor fase de sua carreira foi o período em que trabalhou na Fox.

Cinco anos mais tarde, já casado com Victoria Forde (parceira em vários filmes e mãe da segunda filha, Thomasina) ganhava um salário de 17.500 dólares semanais (quase um milhão por ano), morava numa magnífica mansão em Sunset Drive, Beverly Hills e levava uma vida suntuosa que, aliada ao seu passado fictício, reforçava a imagem lendária do astro-cowboy.

Mas ele deu duro para ter direito a esse luxo, filmando em locações autênticas no Wyoming, Arizona, Utah, Death Valley, dispensando os stuntmen na maioria das vezes, comparecendo em público pessoalmente ao lado de seu cavalo Tony. Em Hollywood, Tom filmava numa aérea em Edendale, Califórnia que o estúdio batizou de Mixville, reservada para a unidade de produção dos seus westerns.

Mix preocupava-se com a concepção geral de seus filmes que, de certo modo, eram tão pessoais como os de William S. Hart. Ele dava sempre um jeito de introduzir lances arriscados curiosos – e até elementos modernos como aviões ou carros de corrida – no meio da narrativa, sem se preocupar com a verossimilhança ou continuidade, e seu personagem de western idealizado, possuía todas as virtudes e nenhum dos vícios.

Mix tinha uma idéia definida do tipo de cowboy que deveria interpretar: “Chego a um lugar com meu próprio cavalo, sela e rédeas. A briga não é minha, mas meto-me em complicações defendendo alguém. Quando as coisas entram nos eixos, jamais recebo recompensas em dinheiro. Posso me tornar o capataz do rancho ou ficar com a mocinha, mas nunca há uma ardente cena de amor”.

Conforme acentuaram George N. Fenin-William K. Everson (The Western from Silents to the Seventies, Penguin, 1973), “esta descrição simplista e aparentemente estereotipada não faz justiça aos filmes de Mix. Seus westerns podem não ter sido “poéticos” ou “adultos”, mas eram bem escritos, com personagens em três dimensões, motivações sensíveis e geralmente intrigas imaginosas”.

Cumpre ressaltar ainda a preciosa colaboração do cameraman Daniel B. Clark, que serviria ao astro também na fase da Universal e no seriado da Mascot, e dos diretores mais assíduos: Lynn Reynolds, John G. Blystone, Edward J. Le Saint, Eugene Forde, Lewis Seiler, George Marshall, Edward Sedgwick, além de Cliff Smith e Lambert Hillyer, ex-“alunos” de William S. Hart e Jack (John) Ford, então adestrando-se para se tornar o maior cineasta de seu país. Tom Mix também dirigiu e escreveu histórias para alguns de seus filmes.

Uma das fotos mais famosas (e controvertidas) de Tom Mix é aquela dele saltando sobre o Newhall Pass no filme Descendo Abismos / Three Jumps Ahead / 1923 sob direção de John Ford. Alguns historiadores dizem que o pulo foi apenas um truque de câmera; outros insistem que o pulo foi de verdade, mas executado por um stuntman chamado Ed Simpson. Ford afirmou durante anos que o próprio Tom Mix fez essa cena arriscada. Infelizmente o filme até o presente momento é considerado perdido.

Quando o contrato com a Fox terminou, Mix foi para a FBO (antiga Robertson-Cole), companhia independente dirigida por Joseph P. Kennedy, pai do Presidente John F. Kennedy, e a série de cinco filmes ali produzidos manteve bom nível, apesar dos orçamentos modestos. Com o advento do som, a FBO reorganizou-se como RKO e excluiu os faroestes da programação.

Nessa época, Mix casou-se com a trapezista Mabel Hubbel Ward e fez excursões com o Sells-Floto Circus, onde ambos trabalhavam, aparecendo diante dos fãs como atração especial.

Em 1932, voltou às telas em nove filmes sonoros da Universal, todos de bastante agrado popular: A Volta de Tom / Destry Rides Again, A Mina do Deserto / The Rider of Death Valley, O Malfeitor do Texas / Texas Bad Man, Meu Amigo, O Rei / My Pal, The King, O Quarto Cavaleiro / The Fourth Horseman, Ouro Oculto / Hidden Gold, Perigo Delicioso / Flaming Guns, A Trilha do Terror / Terror Trail e Mascarado Magnânimo / Rustlers Roundup. De início Tom sentiu alguma dificuldade em dizer as suas falas, quando a câmera estava rodando. Na verdade ele sempre ficava nervoso quando tinha que falar em público, porque há anos que usava dentadura e temia que os fãs pudessem notar o som estranho que ela fazia. Tom ficava aterrorizado com os diálogos, achando que não poderia dizer um texto muito longo sem problemas.

Sua trajetória no cinema sonoro foi interrompida quando o seu cavalo Tony Jr caiu com ele numa tomada de O Mascarado Magnânimo e Tom se machucou seriamente, tendo de deixar o Cinema. Nos oito anos seguintes, viajou com o gigantesco Sam B. Dill Circus, que havia comprado e transformado no Tom Mix Circus.

Apenas em 1935, precisando de dinheiro para manter o circo, Tom aceitou a oferta de Nat Levine e entrou num seriado da Mascot, O Cavaleiro / Alado / The Miracle Rider. Nos quinze capítulos ele interpretava um Texas Ranger seguindo a pista do vilão, Zaroff (Charles Middleton), que estava aterrorizando a população com um poderoso explosivo, conhecido como X-04. Aos 55 anos, Mix ainda montava bem, mas por causa da idade e dos vários ferimentos que sofrera no passado, foi dublado por Cliff Lyons em algumas cenas de ação. Após três temporadas seguidas com as rendas diminuindo, o circo teve que encerrar suas atividades e, nos últimos anos de vida, Mix exibiu-se com Tony II na Europa.

Em 12 de outubro de 1940, Tom Mix rumava em direção a Tucson, dirigindo seu automóvel amarelo marca Cord, feito sob encomenda, com um par de chifres engastado no radiador. Ele vestia um extravagante traje de cowboy, com a fivela do cinturão cravejado de diamantes, botas feitas à mão e chapéu Stetson branco. Na parte traseira do Cord havia duas maletas de metal. Perto de Florence, Arizona, ele não viu um grupo de operários trabalhando na estrada e, ao tentar se desviar, o Cord capotou. Umas das maletas voou longe, atingiu-o na nuca e quebrou seu pescoço. Quando retiraram o corpo debaixo do carro, ele estava morto.

Tom Mix foi o ídolo de uma Era, dos velhos tempos em que, batendo com as mãos nas pernas como se fosse o mocinho a cavalo, as crianças corriam pelas ruas pacatas da vizinhança atrás das fantásticas aventuras de faroeste que viam nas salas escuras dos cinemas. Um mundo mágico, desaparecido para sempre.

FILMOGRAFIA

Vou mencionar apenas os filmes de Tom Mix exibidos no Brasil com os respectivos títulos em português (fruto de uma pesquisa feita anos atrás com a colaboração de Gil Araújo e a ajuda inestimável de Danilo Diegues, na época o maior conhecedor dos filmes de TM no Brasil), que é a informação que o imdb não dá.  De TM conheço apenas: Pelas Alturas, Tony, O Passo da Morte, A Grande Emboscada, A Última Trilha, O Passo da Morte, A Mina do Deserto, O Malfeitor do Texas, A Volta de Tom, Meu Amigo, o Rei, Ouro Oculto, Perigo Delicioso, A Trilha do Terror e o seriado O Cavaleiro Alado. Assim sendo, não me sinto qualificado para afirmar quais os melhores filmes do grande cowboy. Entre os filmes que eu vi, O Passo da Morte (mudo) e A Mina do Deserto (sonoro) são os meus prediletos. Filmes na Selig: 1910 – DEVOÇÃO DE ESPOSA ÍNDIA / An Indian Wife’s Devotion; TREINANDO ANIMAIS SELVAGENS / Taming Wild Animals; ENFEITES COM FLORES SELVAGENS / The Trimming of Paradise Gulch. 1911 – SELVA DESAPARECIDA / Lost in the Jungle; TEMPOS PRIMITIVOS / Back to the Primitive; NOS DIAS DO OURO / In the Days of Gold; CORAÇÕES DO OESTE / Western Hearts. 1913 – COMO ISTO ACONTECEU / How It Happened; O FORA-DA-LEI / The Law and the Outlaw. 1914 – CARICATURISTA HERÓICO / Chip of the Flying U; UM TORNEIO REAL DE COWBOYS / The Real Thing in Cowboys; O MEXICANO / The Mexican; PARA A TERRA DO OURO / In the Days of the Thundering Herd (depois, Wagon Trail); COMPANHIAS RIVAIS / The Rival Stage Line; UMA CAÇADA DE BÚFALOS /  Buffalo Hunting; O SEDUTOR / The Lure of the Indigo. 1915 – ENLAÇANDO UMA NOIVA / Roping a Bride; CORAÇÃO DA FLORESTA / Hearts of the Jungle; O ROCEIRO TOM / Sagebrush Tom; A NOIVA DO BANDIDO / The Outlaw’s Bride; O HEROISMO DE TOM MIX, AMIGOS DA FILEIRA ou O SOLDADO / Pals in Blue; SALVA POR SEU CAVALO / Saved by her Horse; CORAÇÃO DE XERIFE / The Heart of the Sheriff; ROUBO NO RANCHO / The Foreman of Bar Z Ranch; A GUARDIÃ E O COWBOY / The Range Girl and the Cowboy; A MOÇA DO CORREIO / The Girl and The Mail Bag;  AMOR NO OESTE / The Stagecoach Driver. 1916 – PAI POR DESASTRE /; O Trilby’s Love Disaster; O TRANSVIADO / The Man Within; DUELO AO SOL / Some Duel; AVISO LEGAL / Legal Advice; ALMA DOS CAMPOS / An Angelic Attitude; A HISTÓRIA DO URSO / A Bear of a Story; ENLAÇANDO UMA NAMORADA / Roping a Sweetheart; ESTRATÉGIA DE TOM /  Tom’s Strategy; O ATAQUE / The Raiders; UM ERRO EM HOMENS ATIVOS / A Mistake in Rustlers; SACRIFÍCIO DE TOM / Tom’s Sacrifice; O ERRO DO XERIFE /  The Sheriff’s Blunder; COMO ISTO ACONTECEU / Mistakes Will Happen; CAMINHOS TORCIDOS / Twisted Trails; ERA APENAS DOURADO /  The Golden Tought;

O TEMERÁRIO / In the Days of Daring. 1917 – SELAS E BARRIGUEIRAS /  The Saddle Girth; INVEJADO POR TER SORTE E FORTUNA / The Luck that Jealousy Brought; NO CORAÇÃO DO TEXAS ou PAIXÃO DE GAUCHO / Single Shoot Parker ou The Heart of Texas Ryan. Filmes na Fox: O CAÇADOR SOLITÁRIO / The Lone Cowboy; CAIPIRAS E CAIPORAS / Hearts and Saddles; UM VAQUEIRO ROMANO / A Roman Cowboy; O MOÇO BONITO / Six Cilinder Love; ASTROLÁBIO DO RANCHO / A Soft Tenderfoot; JUSTA RETRIBUIÇÃO / Durand of the Bad Lands; OS DOIS RIVAIS / Tom and Jerry Mix. 1918 – CAPRICHOS DE CUPIDO / Cupid’s Roundup; AJUSTANDO CONTAS / Six Shooter Andy; SANGUE DE GAUCHO ou SANGUE DE COWBOY / Western Blood; A FILHA DA NEVE / Ace High; AMOR DE GAUCHO / Mr. Logan; FAMA E FORTUNA / Fame and Fortune. 1919 – PATRULHANDO / Treat’em Rough; RELIGIÃO À FORÇA ou BIBLIA À PISTOLA / Hell-Roarin Reform; SANGUE DE FIDALGO / Fighting for Gold; O IMPÉRIO DA LEI / The Coimng of the Law; NO DESERTO DO GÊLO / The Wilderness Trail; ROMANCE DO SERTÃO / Rough-Riding Romance; VERTIGEM DA VELOCIDADE ou O COMBATE / The Speed Maniac; ÓDIO FEUDAL / The Feud. 1920 –

CICLONE / The Cyclone; O DESTEMIDO DIABÓLICO  ou O ARRISCADO DIABÓLICO / The Daredevil; AMOR E JUSTIÇA /  Desert Love; O TERROR /  The Terror; AS TRÊS MOEDAS DE OURO / Three Gold Coins; O INDOMADO / The Untamed; O TEXANO / The Texan; ROMANCE DAS PLANÍCIES ou ROMANCE DAS CAMPINAS / Prairie Trails. 1921 – O DEMÔNIO DA ESTRADA / The Road Demon; AVENTURAS DO FAR-WEST / Hands Off; ROMEU CAVALEIRO / A Ridin’ Romeo; VAQUEIRO LUTADOR ou LUTADOR DOS CAMPOS / Big Town Roundup; NO SEU ELEMENTO / After Your Own Heart; OS CAVALEIROS DA NOITE / The Night Horsemen; DE ROCEIRO A GENERAL ou DE VAQUEIRO A GENERAL / The Rough Diamond; A VOZ DO SANGUE / Trailin’. 1922 – PELAS ALTURAS / Sky High; VIAGEM À ETERNIDADE ou O ENVENENADO / Chasing the Moon; O AVENTUREIRO / Up and Going; VICISSITUDES DE UM FERREIRO / The Fighting Streak; O REPENTINO / For Big Stakes; TONY / Just Tony; A PROVA DE FOGO / Do and Dare; O FILHO DO SULTÃO / Tom Mix in Arabia; A VOLTA DO VAQUEIRO / Catch My. Smoke. 1923 – MANIA ROMÂNTICA / Romance Land; DESCENDO ABISMOS / Three Jumps Ahead; TESOURO FATAL / Stepping Fast; O SANGUE CORRE NAS VEIAS / Soft-Boiled; ESTRELA SIMBÓLICA / The Lone Star Ranger; UM ROMEU A GALOPE / Mile-a-Minute Romeo; JORNADA DA MORTE / North of Hudson Bay; SENTINELA DAS MATAS / Eyes of the Forest. 1924 – RENEGADO A MUQUE / Ladies to Board; UMA AVENTURA GALANTE / The Trouble Shooter; MENSAGEM QUE SALVA / The Heart Buster; O FILHO DO VALENTÃO / The Last of the Duanes; UPA,UPA,TONY! / Oh, You Tony!; COLMILHOS /

Teeth; O TEIMOSO / The Deadwood Coach. 1925 –  BANDIDO MASCARADO / Dick Turpin; O PASSO DA MORTE / Riders of the Purple Sage; A TRILHA DA VINGANÇA / The Rainbow Trail; DON JUAN DE SEVILHA / The Lucky Horseshoe; MURMÚRIO ETERNO / The Everlasting Whisper; BANDOLEIRO POR ESPORTE / The Best Bad Man. 1926 – HERDEIRO PERDIDO / The Yankee Senor ou Conquering Blood; DE PEITO A PEITO / My Own Pal; O CAMPINEIRO / Tony Runs Wild; MÉDICO ENDIABRADO, PROFESSOR DE ENERGIA ou OH, DOUTOR! / Hard-Boiled; OURO SEM DONO / No Man’s Gold; A GRANDE EMBOSCADA / The Great K and a Train Robbery;

O HERÓI DESCONHECIDO / The Canyon of Light. 1927 – A ÚLTIMA TRILHA / The Last Trail; SUSTENTANDO A NOTA / The Broncho Twister; A MALTA DO RIO VERMELHO / Outlaws of Red River; O ÁS DO CIRCO / The Circus Ace; O RIO DAS SURPRESAS / Tumbling River; O VALE DA PRATA / Silver Valley; O GATO DO ARIZONA / The Arizona Wildcat. 1928 – DINHEIRO DE ARRELIA / Daredevil’s Reward; CAVALEIRO DAS PLANÍCIES / A Horseman of the Plains; ALÔ CHEYENNE / Hello Cheyenne; DINHEIRO É SANGUE / Painted Post. Filmes na FBO: O FILHO DO OESTE DOURADO / Son of the Golden West; O REI COWBOY / King Cowboy. 1929 – UM CONTRA TODOS / Outlawed; O PEREGRINO DAS MONTANHAS / The Drifter; O ROUBO DO DIAMANTE / The Big Diamond Robbery. Filmes da Universal: 1932 – A VOLTA DE TOM / Destry Rides Again; MINA DO DESERTO / The Rider of Desert Valley; O MALFEITOR DO TEXAS / Texas Bad Man; MEU AMIGO, O REI / My Pal, The King; O QUARTO CAVALEIRO / The Fourth Horseman; OURO OCULTO / Hidden Gold; PERIGO DELICIOSO / Flaming Guns. 1933 – A TRILHA DO TERROR / Terror Trail; MASCARADO MAGNÂNIMO / Rustlers Roundup. Filme da Mascot: 1935 – O CAVALEIRO ALADO / The Miracle Rider.

…E O VENTO LEVOU: O FILME MAIS FAMOSO DE TODOS OS TEMPOS

junho 18, 2010

Anos atrás, ou mais precisamente em novembro de 1983, no nº 7 da extinta revista Cinemin, publicada pela editora Brasil-América, Sergio Leemann e eu escrevemos uma matéria com o título acima mas, por descuido do diagramador, não saíram os nossos nomes.

Aproveitando agora este blog, resolvemos pôr fim ao anonimato, assinando juntos este artigo, no qual revisamos o texto anterior  e introduzimos mais algumas informações.

David O. Selznick prometera a seu pai, Lewis J., que uma dia recuperaria o prestígio do seu nome no mundo do Cinema, abalado pela falência da Select Pictures, antiga companhia da família. Para tal, teve de passar por vários estágios dentro dos estúdios hollywoodianos, até chegar à formação de sua própria empresa, a Selznick International, surgida em 1935.

Os primeiros filmes da nova firma refletiam a preferência do produtor por adaptações de obras literárias, detectada desde os tempos em que trabalhava na Metro e assim não constituiu surpresa quando adquiriu, em meados de 1936, por 50.000 dólares, os direitos do romance Gone With the Wind de Margaret Mitchell, antes mesmo dele se tornar um êxito de vendas. A história tinha sido oferecida a Katherine Brown, chefe do escritório de Selznick em Nova York, por Annie Laurie Williams, agente literário da editora MacMillan e só foi aceita após certa hesitação motivada pelo tema (a Guerra Civil geralmente não garantia boa bilheteria) e pela própria grandiosidade do projeto.

Selznick contratou o consagrado escritor Sidney Howard para condensar as 1.037 páginas do caudaloso best seller, detentor do Prêmio Pulitzer de 1937. Outros membros vieram a compor a equipe: o diretor George Cukor, amigo pessoal de Selznick e o desenhista de produção William Cameron Menzies. Foram estes os principais responsáveis pela planificação do filme.

Paralelamente, Selznick imaginava quem poderia interpretar os papéis centrais. Para Rhett Butler, o personagem que arrebatava os corações femininos da América, ele pensou inicialmente em Gary Cooper, Ronald Colman e Errol Flynn enquanto Basil Rathbone era o preferido de Margareth Mitchell (e não Groucho Marx, como tem sido jocosamente divulgado); porém o escolhido pelo público era mesmo Clark Gable.

No lugar de Ashley Wilkes, Selznick tinha apenas um ator em mente, Leslie Howard (embora Melvyn Douglas e Jeffrey Lynn tivessem feito testes e Ray Milland e Lew Ayres chegassem a ser cogitados). Howard só aceitou o encargo quando lhe foi assegurada uma participação como produtor associado em Intermezzo, uma História de Amor / Intermezzo, a Love Story / 1939.

A contratação de uma atriz para Melanie não tardou, pois Olívia de Havilland logo ganhou o posto, sucedendo a Maureen O’ Sullivan, Janet Gaynor, Marsha Hunt, Geraldine Fitzgerald, Priscilla Lane, Dorothy Jordan, Elizabeth Allan, Andréa Leeds, Frances Dee, Ann Shirley e a irmã de Olívia, Joan Fontaine, na lista de candidatas.

Faltava apenas escolher a intérprete de Scarlett O’ Hara. A primeira cogitada, Norma Shearer, recusou o convite. A seguir, uma série infindável de estrelas (Bette Davis, Tallulah Bankhead, Paulette Goddard, Miriam Hopkins, Joan Crawford, Claudette Colbert, Margaret Sullavan, Carole Lombard, Jean Arthur, Loretta Young, Katharine Hepburn, Ann Sheridan Joan Bennett), algumas novatas (Lucille Ball, Doris Davenport) e centenas de desconhecidas (entre elas Margaret Tallichet, futura esposa do diretor William Wyler e Catherine Campbell, que viria a ser mãe de Patty Hearst) figuraram nos planos do produtor.

A fim de conseguir Clark Gable, Selznick teve de entrar em acordo como seu então sogro, Louis B. Mayer. A Metro cederia o astro, entraria com uma participação no valor da metade dos dois milhões e 250 mil dólares e, em troca, seria responsável pela distribuição e receberia 50% dos lucros. Em 1944, a marca do leão adquiriu direitos totais sobre o filme e Selznick deve ter se arrependido amargamente porque, com os vários relançamentos, o espetáculo tornou-se o “campeão de bilheteria de todos os tempos” (levando-se em conta o número de espectadores e o preço relativo dos ingressos).

Finalmente, a 10 de dezembro de 1938, nos velhos estúdios da RKO-Pathé, em Culver City, as filmagens começaram, mas não havia ainda Scarlett O’ Hara. Sob o comando de William Cameron Menzies, encenou-se diante das câmeras Technicolor a seqüência do incêndio de Atlanta, com a utilização de antigos cenários (de King Kong / King Kong / 1933, Jardim de Alá / Garden of Allah / 1936, etc.), disfarçados com falsas fachadas. Sete câmeras Technicolor fotografaram os dublês dos personagens de Rhett e Scarlett em planos médio e geral com o fogo ao fundo. Foi necessário filmar esta cena antes do verdadeiro início da produção, a fim de limpar a área para a construção do cenário de Tara, partes de Atlanta e vários outros exteriores.

A imprensa e a sociedade local estavam presentes e Selznick aguardava ansioso a vinda do irmão Myron, que chegou acompanhado do ator Laurence Olivier e sua namorada Vivien Leigh, uma jovem e promissora atriz inglesa. A apresentação de Vivien por Myron tornou-se célebre: “Quero que conheça Scarlett O’Hara”. A busca chegara ao fim.

Orientada por George Cukor, a filmagem propriamente dita iniciou-se a 26 de janeiro de 1939, porém o cineasta só dirigiu cerca de 5% do filme, incluindo as seguintes cenas: a de abertura com Scarlett e os gêmeos Tarleton; Mammy amarrando o espartilho de Scarlett antes do churrasco; Rhett visitando Scarlett com o chapéu parisiense; Scarlett ajudando o parto de Melanie; Scarlett enfrentando o desertor nortista; Scarlett sentada na escada ao lado de soldados sulistas sobreviventes dos campos de batalha. Cukor principiou também a seqüência do baile de Atlanta e, nessa ocasião, afastou-se da equipe. Segundo consta, houve divergência entre produtor e diretor com relação ao tom da narrativa, uma vez que Cukor imprimia estilo intimista, contrário à espetaculosidade desejada por Selznick (que havia até pensado em convocar D.W. Griffith para prestar consultoria)

Visando agradar Clark Gable, Selznick forneceu-lhe uma lista de nomes de diretores disponíveis: King Vidor, Jack Conway, Robert Z. Leonard e Victor Fleming. Sem vacilar, o galã optou por Victor, que estava ocupado com O Mágico de Oz / The Wizard of Oz / 1939 e teve de deixar as últimas duas semanas de trabalho aos cuidados de King Vidor, responsável pela sequência de Judy Garland cantando Over the Rainbow.

Victor Fleming dirigiu aproximadamente 45% do filme. À exceção da já mencionada passagem do chapéu parisiense, ele filmou toda a história principal envolvendo Rhett e Scarlett; as poucas cenas de Rhett sem Scarlett; o retorno de Scarlett a Tara; a declaração de amor de Scarlett a Ashley no barracão; a licença de Ashley; a colheita no campo de algodão e a morte de Melanie. Em meados de abril, esgotado pelos aborrecimentos seguidos com Vivien Leigh (que, a exemplo de Olívia de Havilland, ia ensaiar em sigilo na casa de Cukor) e insatisfeito com as reclamações de Selznick, Fleming sofreu um colapso nervoso. Concluindo que o cineasta não reunia condições de prosseguir, o produtor convocou Sam Wood e, a 1º de maio, este iniciava seus 15% de participação no filme com a seqüência em que Scarlett e Melanie saem da igreja em Atlanta e são abordadas na escadaria por Belle Watling. Seguiram-se a do período da Reconstrução; o casamento de Scarlett com Frank Kennedy; Scarlett na serraria; Índia Wilkes surpreendendo Scarlett com Ashley; o aniversário de Melanie; as mulheres reunidas na sala de estar de Tia Pittypat, aguardando a volta dos maridos; a conversa de Melanie com Mammy sobre a vida na mansão dos Butler após a morte de Bunnie Blue.  Com o auxílio imprescindível de Cameron Menzies, Wood manteve a unidade visual do filme. A parceria foi tão bem sucedida, que prosseguiria mais tarde em outras produções (Nossa Cidade / Our Town / 1940, Em Cada Coração um Pecado / Kings Row / 1942, Ídolo, Amante e Herói / Pride of the Yankees / 1942, Por Quem os Sinos Dobram / For Whom the Bells Toll / 1943, Ivy, a História de uma Mulher / Ivy / 1947). Quando Fleming se recuperou e voltou, Selznick conservou Wood e os astros passaram a ser mobilizados por cada um separadamente em horas e sets diferentes.

Na segunda unidade funcionaram James Fitzpatrick (conhecido produtor de shorts para a Metro), B. Reeves Eason, Chester Franklin e Cameron Menzies que, além da seqüência do incêndio, filmou Scarlett e o pai em silhueta; Scarlett e Melanie no hospital; Scarlett nas ruas de Atlanta durante o bombardeio de Sherman e o retorno de Scarlett a Tara após ser deixada por Rhett nos limites da cidade, num total de 15% da realização. Porém o mérito maior de Menzies foi tê-la planificado inteiramente, elaborando cada uma das suas quase 700 cenas em detalhados desenhos, que incluiam desde a concepção cenográfica até a seleção de ângulos de câmera. Eloqüente exemplo do pioneirismo de Menzies neste campo é a sequência em que Scarlett caminha entre os corpos dos sobreviventes da batalha de Gettysburg. A câmera acompanha a personagem num impressionante travelling aéreo, conseguido graças à utilização de um guindaste de 43 metros de altura, que rolava por uma rampa de cimento armado. Cerca de mil figurantes misturados com outros tantos bonecos de cera, contribuíam para a magnificência da tomada. O restante são efeitos especiais e transparência desenvolvidos por Jack Cosgrove, Lee Zavits e a equipe. Muito da suntuosidade de diversos trechos do filme resultou dos truques de laboratório.

Entretanto, apenas Fleming recebeu crédito pela direção o que, curiosamente, acarretou-lhe certa antipatia, sobretudo por ter aceitado substituir Cukor.  O roteirista John L. Mahin desmentiu que eles não se dessem bem, lembrando que ouvira Fleming dizer várias vezes: “George poderia ter realizado um trabalho tão bom quanto o meu. Ele provavelmente faria melhor as cenas intimistas. Acho que me dei bastante bem com o material mais espetaculoso”.

O roteiro escrito por Sidney Howard sofreu sucessivas alterações por Oliver H. P. Garrett, Jo Swerling, John Van Druten e pelo renomado romancista F. Scoot Fitzgerald, todos procurando cumprir as exigências do perfeccionista Selznick, que lhes ordenava, sobretudo, extrema fidelidade ao texto original. Com a demissão de Fitzgerald, o produtor continuou se servindo de roteiristas, que o ajudavam a reescrever o script como John Balrderston, Donald Ogden Stewart, John Lee Mahin, Edwin Justus Mayer, Winston Miller, Michael Foster, Charles Mac Arthur e, principalmente, Ben Hetch. Mas só o nome de Sidney Howard viria a figurar nos créditos, porque Selznick acabou compreendendo ser dele a contribuição mais importante e, ao mesmo tempo, queria prestar-lhe uma homenagem póstuma (Howard faleceu em agosto de 1939).

Selznick já havia produzido filmes em Technicolor (Jardim de Alá, Nasce uma Estrela A Star is Born / 1937, Nada é Sagrado / Nothing Sacred / 1937, As Aventuras de Tom Sawyer / The Adventures of Tom Sawyer / 1938) e estava convencido da eficiência do processo de três negativos monocromáticos. Pagando uma taxa adicional, obteve os serviços compulsórios de Natalie Kalmus, esposa do inventor da nova técnica, como consultora, além do habitual cameraman assistente especializado para atuar como assistente. Assim, Lee Garmes, o diretor de fotografia, teve a seu lado nos estúdios Paul Hill, Wilfrid M. Cline e Ray Rennahan, para aconselhá-lo na escolha de enquadramentos, filtros e iluminação e nos outros mistérios da cinegrafia em cores. Isto causou transtornos não apenas a Garmes como ao figurinista Walter Plankett, o diretor de arte Lyle R. Wheeler e Joe Platt (responsável pelos interiores), obrigando o produtor a eleger Cameron Menzies como árbitro nas diferenças de opiniões entre eles e o pessoal da Technicolor. “Trabalhei umas dez, doze semanas – afirmou Garmes. Usávamos um novo tipo de filme com tons suaves, mas David estava acostumado a cores de cartão-postal. Fotografei um terço do filme; cronologicamente, quase tudo até o parto de Melanie com exceção do incêndio, filmado antes por Ray Renahan”. As diferenças entre Selznick e Garmes culminaram com a demissão deste em março de 1939. Substituiu-o Ernest Haller (o favorito de Bette Davis), que nunca havia experimentado a cor, mas se entendeu melhor com Rennahan e o produtor. Na versão feita para o relançamento em cópias de 70 milímetros e som estereofônico em 1967 a Metro atenuou em laboratório as cenas originais tentando “modernizá-las” e desrespeitando a notável contribuição dos citados fotógrafos.

Selznick sempre admirou o compositor vienense Max Steiner, verdadeiro precursor da utilização de partituras sinfônicas como acompanhamento de diálogos e a ele confiou o departamento musical do seu estúdio. Porém o insaciável apetite de Steiner não se satisfazia com as poucas realizações da Selznick International e ele se transferiu para a Warner em 1936, entre empréstimos a outras companhias. O ano de 1939 foi o mais ativo de sua carreira: ele criou nada menos que doze partituras, inclusive a de…E O Vento Levou, uma das mais longas já concebidas para um filme (apenas 30 dos 222 minutos não possuem comentário musical). Cada personagem mereceu uma tema, o mesmo acontecendo com os três relacionamentos amorosos. Algumas canções sulistas e hinos patrióticos foram adicionados mas, predominante, é o “Tema de Tara”, motivo central da trama. Preocupado, Selznick pediu secretamente a Franz Waxman, que providenciasse um “score de segurança”, para o caso de Steiner não completar a tarefa a tempo e sondou Herbert Stothart a respeito de uma possível colaboração. Este cometeu a indiscreção de se proclamar publicamente o novo compositor e Steiner, ao tomar conhecimento disso, apressou seu ritmo de trabalho.

Em 1° de julho de 1939, terminou a filmagem e Selznick tinha diante de si uma montanha de celulóide revelado – cerca de 60.000 metros de filme, equivalente a 28 horas de projeção. Trancado dia e noite com o editor Hal C. Kern e seu assistente James Newcom, o produtor montou o filme sem consultar nenhum dos diretores que nela tomaram parte e ordenou a filmagem de cenas adicionais, como aquela em que Scarlett se esconde debaixo da ponte numa tempestade, enquanto uma tropa da União passa sobre a mesma. Sob o comando de Victor Fleming, a cena de abertura foi mais uma vez encenada. A montagem final redundou em 4 horas e 25 minutos de projeção. Efetuaram-se novos cortes e o filme terminou com a duração de 3 horas e 42 minutos.

A primeira apresentação ao público aconteceu em 9 de setembro de 1939, numa sneak preview em Riverside, Califórnia. David Selznick, sua esposa Irene Mayer Selznick, o sócio de Selznick, Jock Whitney e o montador Hal Kern chegaram ao Fox Riverside Theatre, onde estava programada uma sessão dupla com os filmes Noites Havaianas / Hawaiian Nights / 1939 e Beau Gest / Beau Geste / 1939. Quando terminou o primeiro filme, eles pediram ao gerente para exibir…E O Vento Levou. Ao ser anunciada a pré-estréia de surpresa, a platéia delirou. A resposta dos espectadores foi entusiástica. Mesmo assim, Selznick resolveu começar a segunda parte com a marcha de Sherman através da Geórgia e encomendou ao Departamento de Efeitos Especiais uma edição de trechos já filmados com efeitos sonoros de guerra.

Em novembro, o produtor convenceu o chefe da censura, Will Hays, a deixar passar a famosa frase final de Rhett Butler (“Frankly, my dear, I don’t give a damn” – Francamente querida, eu pouco me importo”). A palavra damn era considerada pesada na época, mas Selznick conseguiu sua liberação.

Organizada pelo diretor de publicidade do escritório de Nova York, Howard Dietz, a première teve lugar em Atlanta na noite de 15 de dezembro de 1939, com a frente do cinema Lowe’s Grand decorada como a mansão de Twelve Oaks. Encorajado por Dietz, o Governador da Geórgia, E. D. Rivers, tornou-se provavelmente o único a decretar feriado estadual em virtude do lançamento de um filme. Para não ficar atrás, o Prefeito de Atlanta, William B. Hartsfield, programou três dias de festividades, substancialmente patrocinadas pela Metro. A imprensa estimou em um milhão o número de pessoas aglomeradas na cidade – então habitada por 500 mil cidadãos – no dia da estréia de…E O Vento Levou.

No dia 12 de setembro de 1940, às 20h45m, o filme foi lançado no Cine Metro do Rio de Janeiro (na ocasião só existia o da Rua do Passeio), numa avant-première de gala, sob o patrocínio da Sra. Darcy Vargas, em benefício da Cidade das Meninas. Com os 1.400 lugares inteiramente ocupados, no único intervalo da sessão, às 23 horas, o príncipe D. João de Orleans e Bragança, auxiliado pelas Srtas. Perla Lucena e Maria da Penha Affonseca e pelo Sr. Carlos de Laet, coordenou o leilão de exemplares da obra de Margareth Mitchell, autografados pelos astros principais e em rica encadernação oferecida pela Casa Vallele. Na platéia, conforme um jornal da época, “a mais brilhante representação do nosso oficialíssimo Corpo Diplomtático e a elite patriota”, além do galã John Boles que, de passagem pela cidade, fez questão de participar da festa. No mesmo dia, diretamente de Hollywood, numa transmissão da Hora do Brasil, servindo de locutor Luis Jatobá, Clark Gable e Vivien Leigh e o produtor Selznick saudaram D. Darcy e contaram alguns detalhes da filmagem.

Na sexta-feira, 13, o filme iniciou sua exibição normal em sessões ao meio-dia, 16h e 20h a preços variados de acordo com o dia e a hora do ingresso no cinema, permanecendo oito semanas em cartaz. Nas telas das outras salas de projeção do Rio, Minha Esposa Favorita / My Favorite Wife / 1940, Carnaval de Veneza / Il Carnevale di Venezia / 1939, Rival Sublime / It’s a Date / 1940, A Bela Lillian Russell / Lillian Russell / 1940, Fogo nas Veias / Three Cheers for the Irish / 1940, Último Encontro / Till We Meet Again / 1940 e Charlie Chan e o Estrangulador / Charlie Chan’s Murder Case / 1940 disputavam a preferência do público, mas nenhum filme conseguia arrebatar multidões como…E O Vento Levou.

Os Prêmios:

Oscar de Melhor Filme, Direção (Victor Fleming), Atriz (Vivien Leigh), Atriz Coadjuvante (Hattie McDaniell), Roteiro (Sidney Howard), Fotografia em Cores (Ernest Haller e Ray Rennahan), Direção de Arte (Lyle Wheeler), Montagem (Hal C. Kern e James M. Newcom), Prêmio Irving Thalberg (David O. Selznick), Prêmio técnico-científico pelo pioneirismo no uso de equipamentos coordenados na produção de …E O Vento Levou (Don Musgrave e Selznick International Pictures), Prêmio especial pelo emprego da cor na dramatização das cenas de …E O Vento Levou (William Cameron Menzies).

A ÉPOCA DE OURO DAS REVISTAS DE FÃS AMERICANAS

junho 13, 2010

Os industriais que organizaram o comércio de filmes achavam que estavam fabricando um produto e esperavam que o consumidor o procurasse pelo nome de sua marca. Não reconheciam a presença do ator no cinema. Por volta de 1910, ficou óbvio que os espectadores gostavam mais de certos atores e começaram a expressar suas preferências.  Mesmo assim, a identidade dos atores continuou no anonimato, porque os produtores tinham receio de que o reconhecimento e o clamor público resultassem em um pedido de aumento de salário por parte de seus contratados. Por outro lado, certos atores esperavam que sua participação nos filmes não fosse notada, com medo de que os produtores teatrais lhes pagassem menos ou não lhes dessem mais emprego, ao saberem de sua atuação em um estúdio de cinema.

Foi sob a pressão dos espectadores que os produtores começaram a revelar o nome de seus intérpretes. Centenas de cartas pediam cotidianamente o nome da Biograpgh Girl (Florence Lawrence), da Vitagraph Girl (Florence Turner), da Little Mary (Mary Pickford) ou do Dimples (Maurice Costello, chamado de Dimples por causa de suas covinhas) e outros favoritos. Até que Carl Laemmle atraiu a atriz Florence Lawrence da Biograph para a sua companhia e colocou seu nome verdadeiro nos créditos do filme, nascendo assim a primeira estrela de cinema. Laemmle conduziu pessoalmente a campanha de publicidade de outra aquisição sua, Mary Pickford, que se tornaria a atriz mais popular do cinema mudo americano. Esta prática tomou conta de toda a industria pois, como se constatou, a presença de um astro reduzia os riscos de financiamento, garantindo um certo retorno do capital investido nos filmes.

Enquanto os estúdios disputavam entre si os astros, os atores e atrizes viram o valor de seus salários elevar-se à razão vertiginosa de cinco a quinze dólares por dia antes de 1910 para duzentos e cinquenta a dois mil dólares por semana em 1914. Em seguida, todos os produtores passaram a incorporar o sistema de astros (star system), fazendo vastas campanhas publicitárias para seus principais contratados e fornecendo fotografias deles para serem expostas nos saguões dos cinemas. Alguns exibidores vendiam cartões-postais com as fotos dos astros e estrelas para os espectadores; outros promoviam bailes com a presença dos artistas.

As revistas de fãs surgiram logo em seguida, criando colunas para responder à correspondência dos leitores, publicando artigos sobre a vida particular dos artistas, ilustrando com fotos o resumo da historia de seus próximos filmes, fornecendo notícias sobre os filmes em produção bem como resenhas dos lançamentos. Essas revistas, sempre enfatizando o glamour, eram dirigidas para as mulheres, que costumavam copiar os modelos de vestidos ou os penteados das atrizes mais famosas, achando que assim ficariam iguais a elas. As revistas estampavam fotos das estrelas ao lado de anúncios de sabonetes como Lux ou Palmolive ou outros produtos de higiene feminina e até junto de suas receitas de culinária.

O alcance das revistas de fãs se estendia para países de além-mar. Anthony Slide, no seu livro, Inside the Hollywood Fan Magazine (University Press of Mississipi, 2010), estupenda pesquisa e percuciente estudo sobre o assunto (de onde extraímos informações para o nosso artigo), lembra que, no seu esconderijo em Amsterdam durante a ocupação nazista da cidade, Anne Frank colava fotografias de Deanna Durbin e outras atrizes, recortadas das revistas de fãs na parede de seu quarto. A revista de fãs – comentou Slide – podia não ocultar a tragédia da vida real, mas poderia oferecer pelo menos um escudo temporário contra ela. Essas revistas eram tanto uma fuga da realidade como a própria Hollyywood.

Certamente havia colunas de mexericos nas páginas das antigas revistas de fãs, porém elas nunca se rebaixaram ao nível do jornalismo marron, como faria depois, por exemplo, a Confidential, um “jornal de escândalos” típico. Pode-se argumentar que a maioria das entrevistas publicadas nessas revistas não tinha substância, porém os redatores quase sempre providenciavam um comentário intelectual sobre os depoimentos dos astros, que geralmente versavam sobre futilidades..

Assim como toda a comunidade de Hollywood necessitava daquelas revistas como um porta-voz coletivo, as ditas revistas dependiam da indústria do cinema para a sua sobrevivência. Sem as fotos de publicidade e acesso aos astros e ao processo de filmagem as revistas de fãs não teriam nada para oferecer. Ao mesmo tempo, não demorou muito para que Hollywood percebesse que a revista de fãs era um valioso instrumento de publicidade.

Muitos redatores delas estavam também a serviço dos astros ou dos estúdios dos quais os astros eram empregados. Este relacionamento nunca foi revelado aos leitores mas, no meio da indústria cinematográfica, vários redatores eram identificados como publicistas e vice versa.

Essa relação era baseada na confiança e na necessidade mútua. Mesmo no auge dos primeiros escândalos de Hollywood dos anos 20 – os julgamentos de Roscoe “Fatty” Arbuckle, o assassinato nunca solucionado do diretor William Desmond Taylor e a morte por indução de drogas do galã Wallace Reid – as revistas de fãs publicaram comentários comedidos ao contrário das reportagens exageradas dos jornais diários.

Nos anos 30, as revistas de fãs poderiam muito bem ter sido suplantadas pelos jornais diários, que estavam oferecendo cada vez mais cobertura sobre Hollywood, porém os estúdios mantiveram-se fiéis aos seus velhos e confiáveis amigos. Todavia, nos meados daquela década, os produtores estavam exercendo um controle mais intenso sobre as revistas de fãs, obrigando-as a submeter suas histórias à aprovação do estúdio, antes de sua publicação. A MGM elaborou uma lista do que não podia ser mencionado, incluindo, por exemplo, a notícia de que Norma Shearer e Robert Montgomery ambos tinham filhos, revelação que poderia prejudicar suas imagens românticas. Como resultado desse controle cerrado, as revistas de fãs adquiriram uma tal mesmice, que ficava difícil para os leitores distinguirem uma da outra.

Alguns anos antes do lançamento da primeira revista de fãs, diversos periódicos dedicados especificamente ao comércio do cinema, disseminavam informações sobre os filmes e seus realizadores como Views and Film Index (depois Film Index), cujo primeiro exemplar surgiu em abril de 1906; The Moving Picture World, difundido a partir de março de 1907 e seu maior rival, Motion Picture Views, inicialmente publicado com o título de Moving Picture News em maio de 1908. O Variety, apelidado de “Bíblia do Show Business”, data de dezembro de 1905 e começou a resenhar os filmes de maneira regular em janeiro de 1907. Outros periódicos tais como The Billboard, The New York Clipper, The New York Dramatic Mirror e The New York Morning Telegram começaram uma cobertura regular da indústria cinematográfica mais ou menos na mesma época. Nenhuma dessas publicações dirigia-se ao consumo do público, circulando apenas no âmbito empresarial. Havia ainda jornais editados pelos próprios produtores, para serem lidos somente pelos exibidores. Durante certo tempo nos meados dos anos 10, um grande estúdio, a Universal, converteu o seu jornal de uso interno, The Universal Weekly, numa semi-revista de fãs, The Moving Picture Weekly.

A Época de Ouro das revistas de fãs abrange três décadas: os anos 20, 30 e 40, uma era na qual os americanos reconheciam o cinema como sua principal fonte de entretenimento e o interesse do público em geral por qualquer coisa relacionada com os filmes estava no auge.

A primeira revista de fãs foi a Motion Picture Story Magazine, fundada em 1911 por J. Stuart Blackton, em colaboração com Eugene V. Brewster, ex-aluno da Universidade de Princeton, que havia trabalhado na campanha presidencial de Grover Cleveland em 1892. Filho de operários inglêses que imigraram para a América, Blackton, havia fundado a Vitagraph Company of América, a produtora e distribuidora mais importante nos primeiros anos do cinema.

Em setembro de 1915, a Motion Picture Magazine (novo nome da revista desde 1914) introduziu uma publicação semelhante, Motion Picture Supplement. Ela era publicada no décimo quinto dia de cada mês enquanto a Motion Picture Magazine saía no dia primeiro. A partir de dezembro do mesmo ano, a Motion Picture Supplement foi reintitulada Motion Picture Classic, continuando a ser uma companheira da Motion Picture Magazine até agosto de 1931, quando seu nome mudou para Movie Classic.

Outra publicação do mesmo grupo foi a Shadowland: Expressing the Arts, que começou a ser impressa em setembro de 1919. Esta nova revista, mais cara do que as outras, abordava não somente assuntos sobre cinema, mas também sobre artes em geral e era muito sofisticada, dando ênfase à qualidade literária e mostrando fotos ousadas de “nús” artísticos. Anunciada como “A Revista Mais Formosa do Mundo”, não seria exagêro identificar suas capas como obras de arte. Entre seus colaboradores estavam o romancista Louis Bromfield, Willard Huntington Wright (depois conhecido como S.S.Van Dine), e Frank Harris. Albert Vargas contribuiu com um poster e Anna Pavlova escreveu um artigo sobre dança, “The Dance”, em janeiro de 1921. Em novembro de 1923 Shadowland se fundiu com a Motion Picture Classic. O derradeiro número incluía crítica literária, ficção, poesia, e ensaios sobre arquitetura, drama , música, pintura, artes e ofícios e fotografia.

Em 1919, a Motion Picture Magazine e a Motion Picture Classic organizaram juntas os concursos Fame and Fortune que produziram duas grandes estrelas: Mary Astor e Clara Bow. Nos anos 30, faziam parte do júri, entre outros, Mary Pickford, Thomas H. Ince, Cecil B. DeMille e Maurice Tourneur.

A princípio, a Motion Picture Magazine dedicava-se a publicar histórias adaptadas dos filmes de um e dois rolos em cartaz. A partir de julho de 1916 sob o cabeçalho de “Photoplay Review”, a revista começou a fazer resenhas dos filmes em exibição. Na coluna mais popular, “The Answer Man”, as perguntas dos espectadores eram respondidas por um indivíduo com um conhecimento enciclopédico do assunto, no caso, uma mulher chamada Elizabeth M. Heinemann. Para provar aos anunciantes e aos produtores o poder e a circulação da revista, a Motion Picture Magazine inaugurou uma série de concursos de popularidade nos quais os leitores eram estimulados a votar no seu intérprete favorito.

Houve outras revistas de fãs na época como, por exemplo, a Picture-Play Weekly, porém a maior concorrente da Motion Picture Magazine foi a Photoplay, que começou a sair em agosto de 1911 e cujo crescimento e fama foi fruto em grande parte à orientação editorial de James R. Quirk.

O nome de Quirk (que nos anos 10 era mencionado apenas como vice-presidente e gerente comercial da empresa), surge como editor no número de janeiro de 1920. Quirk exerceu um poder considerável, usando seus editoriais mensais para lutar contra a censura, pedir o apoio do público para o que ele determinava serem “bons filmes” e louvar ou denegrir os líderes da indústria. Ele era tão importante no meio da indústria quanto Will Hays foi na formação da Motion Picture Producers and Distributors of América (MPPDA) e na posterior efetivação do Código de Produção. A missão de Hays não era apenas limpar a indústria ocinema, mas também enfrentar a ameaça de censura federal e a Photoplay defendia um ponto de vista parecido.

Se existe uma coisa nos anos 20 que se destaca em termos de legado de Quirk é o seu patrocínio de uma série sobre a História do Cinema, “The Romantic History of the Motion Picture” de Terry Ramsaye, publicada em 36 partes de 1922 a 1925. Sob a forma de livro como A Million and One Nights, esta é a primeira história clássica do cinema, que até hoje serve de guia para os estudiosos da 7ª Arte.

Uma das colunas principais da Photoplay era “The Shadow Stage”, na qual Julian Johnson (que foi editor da revista até 1919) estabelecera um padrão de crítica de cinema até então desconhecido pelas revistas de fãs. Seus comentários eram sérios, inteligentes e sem preconceitos. Nos anos 20, a página do editorial intitulava-se “Speaking of Pictures” e abordava uma variedade de assuntos. No final da década de vinte, a coluna editorial passou a se chamar “Close-Ups and Long-Shots”, com o hífen desaparecendo sem explicação nos anos 30.

Inovação importante foi a introdução da Photoplay Medal of Honour (depois conhecida como Photoplay Gold Medal), outorgada anualmente ao produtor do melhor filme do ano. Os leitores é que escolhiam o vencedor, votando por via postal e o primeiro ganhador do prêmio foi Adoração de Mãe / Humoresque, produzido por William Randolph Hearst  e dirigido por Frank Borzage.

A mulher mais famosa associada a Photoplay, onde ela ingressou em 1919, chamava-se Adela Rogers St. Johns, embora seja um erro classificá-la simplesmente como uma articulista de revista de fãs. Adela era uma estrela tal como aquelas cuja vida e carreira ela cobria e, por sua suposta intimidade com as mesmas, foi apelidada de “Mother Confessor of Hollywood”. Seu patrão na Photoplay, James R. Quirk, declarou que “Adela sabia mais sobre Hollywood  e sobre a colônia do cinema do que qualquer outra pessoa no mundo”.

Adela Rogers St. Johns desempenhou um papel importante na indústria cinematográfica de Hollywood. Ela escreveu vários argumentos ou fez adaptações para filmes silenciosos como The Red Kimona / 1925 e Entre Luvas e Baionetas / The Patent Leather Kid / 1927 e seu primeiro romance serviu de base para Dominada pela Vaidade / The Skyrocket / 1926, um dos  seus trabalhos levados à tela nos anos 20. Adela foi vivida na tela por Norma Shearer em Uma Alma Livre / A Free Soul /1931, adaptação de outro romance de sua autoria, tratando, de maneira ficcional, o seu relacionamento com o pai. Entre outras de suas contribuições para o cinema está Hollywood / What Price Hollywood? / 1932, pelo qual ela recebeu uma indicação para o Oscar de Melhor História Original.

Em agosto de 1935, a Photoplay foi comprada pela Macfadden Publications e, em janeiro de 1941, ela se fundiu com a Movie Mirror, outra publicação do grupo Macfadden.  Nesta ocasião, um editorial anunciou o acréscimo de uma nova seção de retratos em cores, utilizando as fotos Kodachrome dos estúdios juntamente com retratos especialmente fotografados por Hyman Fink, contatado com exclusividade pela revista.

No dia 15 de abril de 1980, Photoplay publicou seu último número, não com sua capa cor de rosa e escarlate mostrando um dos astros do cinema que ela ajudou a se tornar famoso, mas com duas atrizes da televisão, Victoria Principal e Charlene Tilton do seriado Dallas.

Fundada em 1931, dois anos depois a Modern Screen já havia se estabelecido como a única concorrente da Photoplay, orgulhando-se de ser a revista de fãs de maior circulação nos Estados Unidos. No seu número de setembro do mesmo ano, oferecia aos seus leitores o trabalho do mais célebre fotógrafo de glamour de Hollywood, George Hurrell, mostrando suas fotos sob o título de “A Great Photographer’s Greatest Portraits”. Entre os retratos incluíam-se os de Jean Harlow, Constance Bennett, Douglas Fairbanks Jr., Johnny Weissmuller, Joan Crawford, Carole Lombard, Helen Hayes, Sally Eilers e Joe E. Brown e seu filho.

Nos anos 40, Louella Parsons escrevia uma coluna de mexericos intitulada de forma variada “Good News” ou “Louella Parsons in Hollywood”, que continuou a ser publicada até os anos 70. As resenhas de filmes estavam a cargo de Christopher Kane e depois Florence Epstein. Em acréscimo, a revista recebia a colaboração esporádica de personalidades como o crítico do New York Times, Bosley Crother ou o dramaturgo Moss Hart.

No início dos anos 50, a revista oferecia artigos supostamente escritos pelas estrelas, porém redigidos por publicistas anônimos: “An Open Lettter from Judy Garland”, “Sex is not Enough” por Lana Turner, “What Men Have Done To Me?” por Joan Crawford  e  dois artigos “de autoria” de Marilyn Monroe: “I Am an Orphan” e “Who’d Marry Me?”.

Como não pretendo esgotar o assunto, mas apenas lembrar algumas revistas de fãs mais importantes da “Época de Ouro”, vou citar particularmente aquelas que chegaram aos anos 70 e 80 e que eu comprava nas nossas bancas de jornais  entre o final dos anos 40 e meados de 50, quando, aos poucos, fui encontrando outras publicações mais substanciosas como a Cahiers du Cinéma ou Télérama. Eram elas: a Photoplay (1911-1980) e a Modern Screen (1931-1985), já mencionadas; Movie Life (1937-1980), Screen Stories (1919-1975), Screenland (1920 até 1952, quando se fundiu com a Silver Screen) e Silver Screen (1930-1976). Quem quiser se aprofundar no assunto  procure o livro de Anthony Slide, o mais completo sobre revistas de fãs americanas.

Poderosos colunistas de mexericos era o que os jornais possuíam e as revistas de fãs não – e o que os estúdios temiam. Por exemplo, “Cal York” era o nome do colunista de mexericos da Photoplay, porém tal pessoa não existia – o “Carl” era abreviação de Califórnia e o “York” de Nova York, indicativo dos dois escritórios editoriais, que forneciam as fofocas para a coluna. Não existia nenhum “Carl York” escrevendo nos jornais, porém havia Louella Parsons no final dos anos 30 e também Hedda Hopper. O poder dessas duas mulheres é legendário e elas eram intocáveis pelos estúdios. Portanto, não foi surpresa as duas terem sido muito bem recebidas como colaboradoras pelas revistas de fãs. Antes de ser colunista, Hedda Hopper foi atriz desde o tempo do cinema mudo até 1966, quando teve uma participação em Confidências de Hollywood / The Oscar; porém vocês devem se lembrar mais dela na ponta que fez em Crepúsculo dos Deuses / Sunset Boulevard / 1950, jogando pôquer com Buster Keaton, H. B. Warner e Anna Q. Nilsson.

Uma terceira colunista, Sheila Graham, gostava de se colocar no mesmo nível de Louella Parsons e Hedda Hopper. Sheila manteve um relacionamento com F. Scott Fitzgerald, sobre o qual ela escreveu em Beloved Infidel. O livro se tornou um filme de 1959 (Ídolo de Cristal / Beloved Infidel), no qual Sheila foi protagonizada por Deborah Kerr, que ela havia entrevistado para a Photoplay em novembro de 1947. Tal como suas colegas Louella (The Gay Illiterate) e Hedda (Under my Hat), Sheila escreveu um livro de memórias (Confessions of a Hollywood Columnist). Ela trabalhou para a Photoplay de 1944 a 1963.

Em dezembro de 1952, o mundo das revistas de fãs mudou para sempre, quando apareceu o primeiro número da Confidential. Ela fez com os astros de Hollywood o que aquelas revistas não puderam fazer. Revelou os seus hábitos e costumes escandalosos, sem pedido de desculpas e sem constrangimento, “contando os fatos e dando os nomes”, como prometia o seu cabeçalho – e geralmente os fatos eram corretos e os nomes bem conhecidos.  A Confidential não deve ser confundida com uma revista de fãs, mesmo que sua influência sobre estas viesse a ser, no final das contas, devastadora.

Foi somente no seu terceiro número, de agosto de 1953, que a Confidential começou a dar prioridade a Hollywood com uma matéria sobre Robert Mitchum, visto completamente despido e todo coberto de ketchup, numa festa cujo anfitrião era Charles Laughton.

Houve vários processos judiciais nos quais a Confidential quase sempre ganhava as causas, mas a distribuição do seu número de julho de 1957 foi proibida pelo Procurador-Geral do Estado. Em setembro de 1957, a revista publicou uma declaração de duas páginas, intitulada “Hollywood vs. Confidential”, na qual anunciava: “A Califórnia nos acusou de um crime – o crime de dizer a verdade”.

As ações na justiça forçaram o fundador da revista, Robert Harrison, a vendê-la em julho de 1958 e o novo proprietário, Hy Steirman, tentou se manter afastado dos mexericos de Hollywood. Na realidade, a revista estava para ser ultrapassada por uma nova publicação, a National Enquirer. Tanto a Confidential como o seu fundador morreram no mesmo ano, 1978.