HERÓIS DOS QUADRINHOS NOS SERIADOS SONOROS AMERICANOS

janeiro 30, 2012

Desde o sucesso fenomenal de Superhomem / Superman: The  Movie / 1978 de Richard Donner, as transposições cinematográficas das histórias em quadrinhos estão aumentando cada vez mais nos últimos anos e se adaptando às tendências dos novos tempos.

Os modelos hollywoodianos dos seriados dos anos 30 e 40, que reproduziam os personagens dos comics tal como eram desenhados naquela época, não são mais utilizados, pois os enredos e as visualizações dos heróis foram mudando nos próprios quadrinhos, impondo-se a figura de um herói mais dark e mais  complexo psicologicamente.

Além disso, os recursos de produção B dos antigos serials não podem ser comparados aos dos blockbusters atuais com a sua tecnologia de efeitos especiais espetaculares e ritmo vertiginoso.

Mas, tanto os fãs dos seriados tradicionais como os admiradores das recentes superproduções, reclamam sempre quando não encontram nas telas os heróis reproduzidos tal como eles foram ilustrados nas tiras dos jornais ou revistas ou nas graphic novels.

Acho que os jovens de antigamente eram mais indulgentes, aceitando as liberdades que as “fitas-em-série” tomavam com os personagens dos quadrinhos:  eles sabíam que o repórter de rádio Billy Batson não adquiriu seus poderes de Capitão Marvel durante uma expedição arqueológica; notaram que o Capitão América perdeu seu escudo, as asinhas nas têmporas, seu amiguinho Bucky  passou de soldado raso Steve Rogers a promotor de justiça Grant Gardner; perceberam que o Hércules subitamente ganhou um irmão gêmeo; ficaram decepcionados ao ver o Mandrake sem o bigode e a companhia da linda princesa Narda (o personagem Lothar permaneceu mas, em vez do gigante africano ele assumiu as feições de um asiático, interpretado pelo havaiano Al Kikume); estranharam a ausência do pigmeu Guran da tribo Bandar ao lado do Fantasma Voador, substituido que foi por um tal de Moku; e repararam que, na tela,  todo uniforme de herói tinha dobras, uma descoberta desconcertante, que nunca ocorria nas histórias em quadrinhos – porém ninguém perdia as sessões das duas horas aos sábados no cinema de seu bairro.

A Universal foi a primeira companhia a utilizar os serviços de um herói dos quadrinhos, no período sonoro, quando trouxe para a tela Tailspin Tommy (HQ: Glenn Chaffin, Hal Forrest), em duas aventuras aéreas: O Rei das Nuvens / Tailspin Tommy / 1943 e O Grande Mistério Aéreo / Tailspin Tommy in the Great Air Mystery / 1935. No primeiro seriado, Tommy Tompkins (Maurice Murphy), um mecânico de automóvel, é escolhido pelo piloto Milt Howe (Grant Withers) da Three Points Airline, para voar com ele numa corrida contra o tempo, a fim de obter um contrato de entrega de correspondência. Milt ganha o contrato mas neste processo desperta a animosidade  de Tiger Taggart (John Davidson),  que quer ver a ruina da Three-Points. Tommy logo se torna um piloto da companhia e, sempre acompanhado de seu amigo Skeeter (Noah Beery Jr.) e sua namorada Betty Lou Barnes (Patricia Farr), combate os piratas aéreos de Taggart. No segundo seriado, Tommy (Clark Williams), Skeeter (Noah Beery Jr.) e Betty (Jean Rogers), ajudados por um piloto mascarado (Pat O’Brien) que surge inesperadamente  nos céus, frustram um plano concebido por dois indivíduos inescrupulosos para roubar valiosas reservas de petróleo situadas numa ilha da America Central.

Em 1936, a Universal comprou os direitos de um pacote de histórias em quadrinhos do King Features Syndicate. Encabeçando a lista estava Flash Gordon (HQ: Alex Raymond). O estúdio investiu muito dinheiro ao transferir o personagem de Alex Raymond para a tela e a escolha de Buster Crabbe para interpretar o papel principal foi um toque de gênio dos seus executivos. Flash Gordon tornou-se o seriado mais popular da Universal e duas sequências foram filmadas: Flash Gordon no Planeta Marte / Flash Gordon’s Trip to Mars / 1938 e Flash Gordon Conquistando o Mundo / Flash Gordon Conquers the Universe / 1940.

Os companheiros e/ ou inimigos do herói todos conhecem: Dr. Zarkov (Frank Shannon); Dale Arden (Jean Rogers); Imperador Ming (Charles Middleton); Princesa Aura (Priscilla Lawson); Rei Thun (James Pierce), rival de Ming; legítimo soberano do Planeta Mongo, Príncipe Barin (Richard Alexander);  Príncipe Vultan (John Lipson),  líder dos homens alados; Kala, lorde de uma raça submergida de Homens Tubarões; e outros personagens fabulosos, inclusive o Orangopoid (Ray “Crash” Corrigan vestido de gorila). Apesar da pobreza dos efeitos especiais e do ritmo lento, o espetáculo tem uma atmosfera de aventura e fantasia adequada e um charme que persiste através dos tempos.

Do pacote do King Features também saíram:  A Sorte de Tim Tyler ou A Patrulha do Marfim /  Tim Tyler’s Luck / 1937 (HQ: Lyman Young), cuja ação transcorre na África, para onde vai Tim (Frank Thomas), à procura de seu pai (Al Shean), que achou, na região dos gorilas, um valioso cemitério de elefantes. Durante a viagem, Tim conhece Lora Lacey (Frances Robinson). A moça que saber o paradeiro de Spider Webb (Norman Willis), ladrão de diamantes responsável por um roubo, pelo qual seu irmão foi injustamente acusado. Auxiliado por amigos humanos (Sargento Gates / Jack Mulhal), Cabo Spud, que na versão dos quadrinhos para o Brasil chamava-se Tom e/ou Tok / Bill Benedict) e animais (a pantera negra Fang, o macaco Juju), Tim consegue liquidar Spider e seus asseclas e encontrar o tesouro em marfim, cobiçado pelos bandidos;  Ás Drummond / Ace Drummond / 1935 (HQ: Eddie Rickenbacker, Clayton Knight) mostrando John King como o aviador Ace Drummond, que procura identificar na Ásia um vilão chamado The Dragon (Arthur Loft) e, ao mesmo tempo, ajudar Peggy Trainor (Jean Rogers) a encontrar seu pai e uma montanha escondida contendo enorme quantidade de jade; X-9, o Agente Secreto /  Secret Agent X-9 / 1937 com Scott Kolk no personagem inventado por Dashiel Hammett e desenhado inicialmente nos quadrinhos por Alex Raymond, à procura das jóias roubadas da coroa da Belgrávia, auxiliado pela jovem Shara Graustark (Jean Rogers) – outra versão foi feita em 1945, com o mesmo título em inglês, mas traduzido para o português como O Agente Secreto X-9, com Lloyd Bridges lutando contra os agentes do Eixo; Jim das Selvas / Jungle Jim / 1937 (HQ: Alex Raymond), no qual Jim (Grant Withers) e seu amigo Malay Mike (Raymond Hatton) procuram Joan (Betty Jane Rhodes), jovem branca criada na África, herdeira de uma fortuna na América e adorada pelos nativos como uma deusa. Evelyn Brent, atriz  do cinema mudo, faz o papel de Shanghai Lil, irmã do Cobra; Rádio Patrulha / Radio Patrol / 1937 (HQ: Eddie Sullivan, Charlie Schmidt) com Grant Withers no papel do Sargento Pat O’Hara, tentando solucionar um crime estranho, motivado por uma disputa pelo controle de uma fórmula para criar “aço flexível à prova de balas”; e, finalmente, Red Barry / Red Barry / 1938 (HQ: Will Gould) trazendo de volta Buster Crabbe como o detetive Red Barry envolvido,  juntamente com a jornalista Mississipi (Frances Robinson), numa trama sobre o roubo de dois milhões de dólares em ações, destinados à compra de aviões de combate para uma nação asiática.

As adaptações de quadrinhos restantes da Universal consistiram em duas aventuras navais, Don Winslow na Marinha / Don Winslow of the Navy / 1942 e Don Winslow na Guarda Costa / Don Winslow of the Coast Guard / 1943 (HQ: Comandante Frank V. Martinek, Tenente Leon A. Beroth, Carl Hammond),  nas quais o intrépido herói  (Don Terry) combate o espião chamado Scorpion (Nestor Paiva, Kurt Hatch); Buck Rogers / Buck Rogers / 1939 (HQ: Phil Nolan, Dick Calkins), uma tentativa  de repetir o êxito de Flash Gordon com o mesmo Buster Crabbe no papel principal, buscando,  na companhia de seu amiguinho Buddy (Jackie Moran), ajuda em Saturno, para livrar a Terra de Killer Kane (Anthony Warde) e um bando de supergângsteres do século 25; e Aventuras de Chico Viramundo / Adventure’s of Smilin’ Jack / 1943, (HQ: Zach Mosley) focalizando as peripécias  do piloto Smilin’ Jack  (Tom Brown) e seus amigos Tommy Thompson (Edgar Barrier) e Capitão Wing (Keye Luk) do Exército chinês, prejudicando os planos da espiã alemã, Fraulein von Teufel (Rose Hobart) e de seu capanga Kageyama (Turhan Bey), que desejam descobrir uma estrada secreta entre a China e a Índia, informação importantíssima em tempo de guerra. Na tela, o personagem de Zack Mosley (que na tradução dos quadrinhos no Brasil  recebeu o nome de Jack do Espaço), perdeu o bigode e alguns companheiros pitorescos (vg. o cozinheiro Fat Stuff, um caçador de cabeças regenerado dos Mares do Sul).

A Columbia, também fez adaptações dos comics, a começar por duas propriedades da King Features, que escaparam do pacote entregue à Universal: Mandrake e Terry e os Piratas. Em Mandrake, o Mágico / Mandrake, the Magician / 1939 (HQ: Lee Falk, Phil Davis), o mágico, interpretado por Warren Hull, impede que o bandido mascarado The Wasp, se apodere de uma máquina poderosa inventada pelo professor Houston (Forbes Murray). Em Terry e os Piratas / Terry and the Pirates / 1940 (HQ:  Milton Caniff), o Dr. Herbert Lee (J. Paul Jones), um arqueólogo americano, chefia uma expedição nas selvas da Asia, para descobrir uma civilização perdida. Ele é capturado por um chefe guerreiro mestiço Fang (Dick Curtis) e um bando de renegados brancos, que querem se apoderar do tesouro do templo de Mara. Terry (William Tracy), filho do professor e Pat Ryan (Granville Owen), assistente de seu pai, acompanhados pelo criado chinês Connie (Allen Jung) e pelo gigante Big Stoop (Victor De Camp), fazem amizade com o comerciante Allen Drake (Forrest Taylor) e sua filha Normandie (Joyce Bryant) e saem à procura do professor, envolvendo-se também com a Dragon Lady (Sheila Darcy), a guardiã do tesouro no Templo de Mara e inimiga de Fang.

Em 1943, o estúdio lançou O Morcego / Batman / 1943 (HQ:  Bob Kane, Bill Finger, Jerry Robinson), com Lewis Wilson como Bruce Wayne / Batman e Dick Grayson / Robin, (Douglas Croft) enfrentando o Dr. Daka (J. Carrol Naish), agente japonês, que prepara a conquista da América pela Nova Ordem do Eixo. Na trama aparecem ainda o fiel mordomo Alfred (William Austin) e Linda (Shirley Patterson), noiva de Wayne. Uma sequência, A Volta do Homem Morcego / Batman and Robin, foi feita seis anos depois com Robert Lowery como Batman e John Duncan como Robin, ajudando o Comissário de Polícia de Gotham City (Lyle Talbot) na sua busca por uma máquina de controle remoto roubada por um criminoso encapuzado, conhecido como The Wizard.


O melhor seriado da Columbia foi O Fantasma Voador / The Phantom / 1943 (HQ: Lee Falk, Ray Moore, Wilson McCoy) com Tom Tyler no papel de Godfrey Prescott, que se tornou o Fantasma, quando seu pai foi morto, continuando uma tradição transmitida de pai para filho há 400 anos. No enredo, o professor Davidson (Frank Shannon) e sua sobrinha Diana (Jeanne Bates) procuram na África a Cidade Perdida de Zoloz, onde deve estar escondido um enorme tesouro. Para localizá-la, é preciso manipular sete peças de marfim. Davidson possui três, um escroque chamado Singapore Smith (Joe Devlin) tem mais três; mas falta a mais importante para completar o quebra-cabeças: a que está pendurada no pescoço de um gorila (Ray “Crash” Corrigan). Ao mesmo tempo, o Dr. Bremmer (Kenneth Macdonald) pretende transformar Zoloz em uma base secreta para uma nação não identificada. Com o auxílio de seu cão Devil (Ace, The Wonder Dog, que nos quadrinhos traduzidos para o português chamava-se Capeto), o Fantasma  intervém para que e a paz volte a reinar na selva.


Os outros seriados da Columbia baseados nos quadrinhos foram: Brenda Starr, Repórter / Brenda Starr, Reporter / 1945 (HQ: Dalia (Dale) Messick) com Joan Woodbury no papel título, procurando uma mochila cheia de dinheiro roubada de um gângster, que ela, com a ajuda de seu amigo Tenente Larry Farrel (Kane Richmond) e de seu fotógrafo, Chuck Allen (Joe Devlin), acaba encontrando; O Terror das  Montanhas / The Vigilante / 1947 (HQ: Mort Wesinger, Mort Meskin), tendo como herói um agente secreto do governo que é na realidade, Greg Sanders (Ralph Bird), um astro de cinema especializado no gênero western. Uma missão o leva ao rancho do milionário George Pierce (Lyle Talbot), chefe de uma quadrilha conhecido como X-1, que prcoura um colar de pérolas amaldiçoado, chamado “as 100 lágrimas de sangue”; Brick Bradford / Brick Bradford / 1947 (HQ: William Ritt, Clarence Gray), com Kane Richmond personificando Brick. A pedido das Nações Unidas, ele tem que proteger o Interceptor Ray, um míssel que o Dr. Tymak (John Merton) está aperfeiçoando. Brick e seus amigos, Professor Salisbury (Pierre Watkin), a filha do professor, June (Linda Johnson) e Sandy Sanderson (Rick Vallin) são ameaçados pelos cúmplices de Laydron (Charles Quigley), que querem a invenção  para usá-la com fins maléficos. No decorrer da narrativa, Brick passa pela “Porta de Cristal”, inventada pelo Dr. Tymak, que o leva até a Lua, onde ele ajuda forças exiladas a vencerem seus opressores, os Lunários. De volta à Terra, Brick, através de uma cápsula do tempo, volta ao século dezoito na América Central,  a fim de obter uma fórmula  que o Dr. Tymak precisa, fabricada naquela época. Para isso, tem que lutar contra nativos e bucaneiros, antes de retornar são e salvo ao nosso planeta; Tex Granger / Tex Granger / 1948 (HQ: Lorence F. Bjorklund) com Robert Kellard como o “Midnight Rider of the Plains”  combatendo os malfeitores de Three Buttes ao lado de seu amiguinho Tim (Buzz Henry) e da corajosa jornalista Helen Kent (Peggy Stewart); Congo Bill / Congo Bill / A Rainha do Congo / 1948 (HQ: F. Whitney Ellsworth) traz Don McGuire como o treinador de animais Congo Bill à procura de Ruth Culver (Cleo Moore), herdeira de um circo desaparecida na África, que se tornara Lureena, uma rainha branca na selva; O Disco Voador / Bruce GentryDaredevil of the Skies/  1949 (HQ: Ray Bailey)  no qual Bruce (Tom Neal) impede que um disco voador mortífero, controlado eletronicamente por um agente inimigo conhecido como The Recorder (porque fala somente por meio de gravações) destrua o Canal de Panamá; O Falcão Negro / Blackhawk / 1952 (HQ: Charles Cuidera, Reed Crandall), tendo como centro das atenções o Falcão Negro (Kirk Alyn) e seus companheiros de esquadrão de nacionalidade diversas: Chuck, (John Crawford), Olaf (Don C. Harvey), Stanislaus (Rick Vallin), André (Larry Stewart), Hendrickson (Frank Ellis) e Chop Chop (Weaver Levy). Eles desbaratam os membros da International Brotherhood, organização devotada à espionagem, comandada por uma mulher Lasca (Carol Forman), sob as ordens de um chefão, conhecido apenas como The Leader (Michael Fox); e, encerrando a lista, Os Mistérios da África / King of the Congo / 1952 (HQ: Frank Frazetta) com Buster Crabbe num papel duplo: o Capitão Roger Drum da Força Aérea dos Estados Unidos e o Rei do Congo, Thunda. Roger abate um avião não identificado, cujo piloto se dirigia para a África a fim de entregar um microfilme para um grupo subversivo liderado por Boris (Leonard Penn). Quando seu avião sofre um desastre, Roger é resgatado pelo Povo da Rocha, chefiado por Pha (Gloria Dee). Por causa de sua força, Roger é rebatizado como Thunda, Rei do Congo e, no decorrer dos acontecimentos, ele enfrenta não somente Boris e seus homens como também uma tribo hostil, os Homens das Cavernas.


Os maiores êxitos da Columbia foram Super-Homem / Superman / 1948 e O Homem Atômico contra o Super-Homem / Atom Man vs. Superman / 1950 (HQ: Jerry Siegel, Joe Shuster) com Kirk Alyn como Clark Kent, enfrentando (como Super-Homem) respectivamente a Spider Lady (Carol Forman) e Lex Luthor (Lyle Talbot), sem que seus colegas do Planeta Diário, Lois Lane (Noel Neill) ,Jimmy Olson (Tommy Bond) e Perry White (Pierre Watkin) soubessem que ele era “O Homem de Aço”. Os efeitos especiais funcionaram convincentemente em muitas proezas; porém, no que se refere às cenas de vôo, o produtor preferiu utilizar o desenho animado, prejudicando a credibilidade. Super-Homem tornou-se um tremendo sucesso financeiro, chegando a ser exibido em cinemas de primeiro lançamento, que nunca programavam seriados.



A Republic, a melhor das companhias produtoras de seriados, percebeu desde cedo que era mais barato desenvolver seus próprios personagens do que pagar direitos e entrar em discussões legais com obstinados donos dos copyrights. Entretanto, o estúdio dedicou dez das suas 66 produções aos heróis dos quadrinhos e, em cada caso,  acertou no alvo comercial e artisticamente.

Quatro dessas aventuras tinham Ralph Byrd  como o célebre detetive Dick Tracy e, na medida em que os seriados se sucediam, aumentava a qualidade das produções: Dick Tracy, o Detetive / Dick Tracy / 1937, A Volta de Dick Tracy / Dick Tracy Returns / 1938, Dick Tracy contra o Crime / Dick Tracy’s vs. G-Men / 1939 e Novas Aventuras de Dick Tracy / Dick Tracy vs. Crime Inc. / 1941 (HQ: Chester Gould). Em cada seriado, Tracy enfrentava um curioso vilão: The Lame One (Edwin Stanley), Pa Stark (Charles Middleton), Zarnoff (Irving Pichel) e The Ghost (Ralph Morgan);  Aventuras de Red Ryder / Adventures of Red Ryder /1940 (HQ: Fred Harman), um seriado bastante movimentado em cujo entrecho Red Ryder (Donald Barry), com a  ajuda de Little Beaver (Tommy Cook) e seus outros amigos, elimina os bandidos que assassinaram seu pai e queriam controlar o território de Mesquita, onde seria construida uma estrada de ferro. O personagem da história em quadrinhos que deu origem ao seriado intitulava-se Bronc Piler e depois passou a ser Red Ryder; no Brasil ele ficou conhecido como Bronco Piler e Little Beaver como Filhote de Castor. Donald Barry não gostava de interpretar Red Ryder, porque achava que tinha sido mal escolhido para o papel; porém  a maioria de seus fãs lembram-se dele com o apelido que adquiriu graças ao seriado: Don “Red” Barry; Allan Lane ficou famoso na Republic como um astro do western B nos anos seguintes, mas suas primeiras experiências nos filmes de ação foram em O Rei da Polícia Montada / King of the Royal Mounted / 1940 e Polícia Montada contra a Sabotagem / King of the Mounties / 1942 (HQ: Zane Grey, Allen Dean, Charles Flanders, Jim Gary), dois seriados excitantes nos quais o Sargento King (Allan Lane) da Polícia Montada Canadense lutava contr a Quinta Coluna.

A Republic tentou comprar os direitos de Superman em 1940, mas quando seus executivos viram que não iam conseguir, voltaram-se para um outro super-herói:  Capitão Marvel. Tom Tyler foi uma escolha perfeita para interpretar o papel título em O Homem de Aço (no Brasil curiosamente deram ao Capitão Marvel este título em português que deveria caber ao Super-Homem) / The Adventures of Captain Marvel, (HQ: Bill Parker, C.C. Beck, Jack Kirby, Otto Binder) assim como Frank Coghlan Jr. se parecia razoavelmente com Billy Batson. No seriado, como assistente de operador de rádio de uma expedição cientifica no Sião, Billy é o único do grupo que não penetra na câmara proibida  de um tumba sagrada e, por isso, recebe do velho guardião do templo, Shazam, o poder mágico de se transformar no indestrutível Capitão Marvel. Assim, ele vai enfrentar o Escorpião  – na realidade um dos membros da expedição, professor Bentley (Harry Worth) -, para impedir que este se apodere de uma arma perigosíssima encontrada na tumba. Trazer um herói sobre-humano dos quadrinhos para as telas, de um modo que a plateia o aceitasse, não era uma tarefa fácil, porém a Republic desempenhou-a com louvor. O que mais chama a atenção no seriado – um dos melhores de todos os tempos – são as cenas de vôo do Capitão Marvel, que parecem absolutamente reais graças aos efeitos especiais de Howard Lydecker e das acrobacias do excelente dublê David Sharpe.

Quando o estúdio Republic adquiriu os direitos do Capitão Marvel da Fawcett Publications, também ficou  autorizada a transpor The Spy Smasher (chamado de Hércules no quadrinhos brasileiros) para o celulóide no seriado O Terror dos Espiões / Spy Smasher / 1942 (HQ: Bill Parker). Neste, Kane Richmond interpreta dois papéis, como Allan Armstrong (nome verdadeiro do herói uniformizado) e como seu irmão gêmeo Jack. Ambos combatem o Máscara / The Mask (Hans Shumm), o chefe de uma rede de espionagem alemã na América. Eles protegem o Almirante Corby (Sam Flint) , pai da noiva de Jack, Eve (Marguerite Chapman) e contam com a colaboração de Pierre Durand (Frank Corsaro), combatente da França Livre. O seriado é excelente, não só pelos efeitos especiais e pela ação dos dublês, mas também porque tem uma trama bem construída, boas caracterizações e uma fotografia até, em certos momentos, artística.

No cinema, o Capitão América ficou sem Bucky, seu jovem companheiro, seu escudo e as asinhas adornando sua máscara. Por causa do método do estúdio de tratar as sequências de briga, estes três itens presentes na história em quadrinhos foram considerados um obstáculo e, portanto,  desprezados. Capitão América, o Vencedor / Captain America / 1944 (HQ: Jack Kirby, Joe Simon) com Dick Purcell, interpretando o papel principal, tem como vilão, o Dr. Maldor (Lionel Atwill), curador do Museu Drummond, que, chamando-se a si próprio de O Escaravelho, de posse de uma arma de grande poder destrutivo, o Vibrador Dinâmico, procura a outra parte de um mapa que conduziria ao tesouro dos maias. O Capitão América que, é na realidade o promotor público Grant Gardner, intervém e, com a ajuda de sua assistente Gail Richards (Lorna Gray), impede que os objetivos do Escorpião se concretizem. As cenas de briga, embora repetitivas e previsíveis quanto aos momentos em que iam acontecer, foram o ponto alto do seriado, sobressaindo o trabalho notável do stuntman Dale Van Sickel, que dublou Dick Purcell nas cenas de pancadaria e em vários lances emocionantes.

Outros seriados tiveram como personagens heróis dos quadrinhos, tais como O Guarda Vingador / The Lone Ranger / Republic, 1938; A Volta do Cavaleiro Solitário / The Lone Ranger Rides Again / Republic, 1939; A Sombra do Terror / The Shadow / Columbia, 1940; O Besouro Verde / The Green Hornet / Universal, 1940; Capitão Meia-Noite / Captain Midnight / Columbia, 1942; O Raio Destruidor / Hop Harrigan / Columbia, 1946, porém se originaram de programas de rádio, onde desfrutaram de maior popularidade.

Com Os Perigos de Nyoka / Perils of Nyoka / Republic, 1942, ocorreu que os quadrinhos, publicados como Nyoka, the Jungle Girl pela Fawcett Comics,  nasceram após o seriado. O personagem apareceu primeiramente no seriado A Filha das Selvas / The Jungle Girl / Republic, 1941, baseado vagamente em um romance de Edgar Rice Burroughs. Como foi a Republic que criou o nome de Nyoka, o estúdio ficou com o direito de filmar uma continuação, usando aquele nome, sem mais nenhuma ligação com Burroughs. Posteriormente, surgiu a comic strip da Fawcett.

Finalmente, com relação a Tarzan, embora tivesse sido objeto de uma HQ (Harold Foster, Burne Hogarth, Rex Maxon), ele foi basicamente um personagem dos romances de Edgar Rice Burroughs e por isso não incluímos Tarzan, o Tigre / Tarzan, the Tiger / Universal, 1929, Tarzan, o Destemido / Tarzan the Fearless / Principal / 1933 e Novas Aventuras de Tarzan / The New Adventures of Tarzan, Dearholt – Stout and Coen / 1935 entre os seriados advindos dos quadrinhos.

O CICLO EDGAR ALLAN POE DE ROGER CORMAN

janeiro 21, 2012

Começando com O Solar Maldito / 1960 e terminando com O Túmulo Sinistro /  1965, Roger Corman dirigiu oito filmes em cores e tela larga, adaptados livremente das obras de Edgar Allan Poe e distribuídos pela American International Pictures (AIP), que obtiveram enorme sucesso comercial e respeito dos críticos.

Escritos por talentosos argumentistas como Richard Matheson, Charles Beaumont, Robert Towne, entre outros, esses filmes, impregnados de terror psicológico, contém semelhanças formais e temáticas suficientes para serem considerados oito variações da mesma história.

Edgar Allan Poe

Edgar Allan Poe

A literatura gótico-romântica de Poe, explorando o lado sombrio da experiência humana – morte, alienação, ansiedade existencial, pesadelos, fantasmas, várias formas de insanidade e melancolia – , apesar de algumas discrepâncias radicais entre os textos dos contos (ou poemas) originais e o enredo dos filmes, encontrou um intérprete compreensivo em Corman, que soube manter o espírito do genial escritor.

A encenação dos filmes de Poe deve-se muito aos cenários bem detalhados do diretor de arte e desenhista de produção Daniel Haller. A um custo médio de 200 a 300 mil dólares (duas ou quatro vezes mais do que os orçamentos de Corman nos anos cinquenta) a série Poe tem um aspecto surpreendentemente luxuoso. Haller também merece crédito pela qualidade expansiva dos cenários, contruidos para dar à câmera o máximo de liberdade de movimento.

Esta liberdade de movimento é traduzida pelos fotógrafos Floyd Crosby , Nicolas Roeg e Arthur Grant (Crosby colaborou em todos os filmes da série menos nos dois últimos, que ficaram a cargo respectivamente de Roeg e Grant) por meio de uma grande quantidade de travelings e gruas, particularmente durante aquelas sequências detalhando a descida do personagem nos lugares mais recônditos da casa. Algumas vezes, os fotógrafos usam um movimento de câmera pouco comum como o zip pan (chicote), para enfatizar uma revelação chocante como, por exemplo, na cena final de A Mansão do Terror, Elizabeth Medina encerrada na caixa de ferro ou a primeira aparição de Verden em O Túmulo Sinistro.

O uso de efeitos especiais foram aperfeiçoados nesses filmes. A Mansão do Terror mostra talvez a utilização mais ambiciosa desses efeitos nas sequências de retrospecto, com as imagens tingidas de um azul fantasmagórico e alongadas para indicar o trauma do personagem, e especialmente durante a sequência culminante do filme, na qual as mudanças das cores vermelho, azul e verde contribuem para dar ainda mais relevância às já muito perturbadoras tomadas do pêndulo oscilante.

Mas o principal trunfo de Corman foi obviamente o ator Vincent Price (1911-1993) que, embora tivesse sido às vezes criticado por superrepresentar, tirou  excelente partido de sua voz suave e dicção perfeita, para expressar com exatidão os seres humanos atormentados e excêntricos dos filmes de Poe. Nunca, desde a Época de Ouro do Horror nos anos 30, um intérprete causou tanto impacto no gênero.

Acompanhei esta série famosa nos cinemas por ocasião do seu lançamento, reví depois em laser disc e recentemente em dvd.

O SOLAR MALDITO / THE FALL OF THE HOUSE OF USHER / 1960.

No século dezenove, após uma longa viagem, Philip Winthrop (Mark Damon) chega à mansão dos Usher à procura de sua noiva, Madeline (Myrna Fahey). Logo ele descobre que os sentidos de Roderick (Vincent Price), o irmão de Madeline, se tornaram dolorosamente aguçados enquanto que Madeline sofre de catalepsia. Roderick diz a Philip que a maioria dos seus  ancestrais sucumbiram à loucura e a uma morte horrível e que ele e Madeline estão morrendo. Após ter ouvido uma discussão entre Roderick e Madeline, Philip encontra-a morta no seu leito. Roderick enterra-a na cripta da família.  Achando que Madeline deve estar viva, Philip desce até a cripta e, quando abre o caixão, o corpo dela não está lá. Madeline despertara e encontrara forças para sair do caixão. Ela ataca Philip e depois Roderick, começando a estrangulá-lo. A casa começa a tremer e a se incendiar, até que desaba sobre os corpos de Roderick e Madeline. Com o auxílio de Bristol (Harry Ellerbe), o único criado dos Usher, Philip consegue escapar das chamas e do desabamento, e vê a casa afundar num lago.

O Solar Maldito foi o primeiro filme da série Poe e estabeleceu as convenções dos filmes que se seguiram. Ele marcou uma mudança decisiva na carreira do diretor sob várias maneiras: foi o primeiro dos seus filmes a despertar uma ampla (e na maioria das vezes positiva) reação crítica; assinalou sua passagem da realização de filmes baratos para os orçamentos mais caros; e lhe deu oportunidade de manifestar seu talento no uso da cor e para a encenação.

Tal como os filmes seguintes da série, o espetáculo cinematográfico diverge da obra original. O narrador da história no conto de Poe é um amigo de infância de Roderick,  que agora  se tornou Philip Winthrop, noivo de Madeline. A introdução deste personagem, amante putativo de Madeline, complica a relação de amor e ódio, pseudo-incestuosa entre ela e seu irmão Roderick, formando-se um triângulo letal entre dois homens e a mulher que ambos querem possuir.

A primeira convenção que o filme estabelece é a introdução de um personagem “normal” num ambiente extraordinário estigmatizado por imagens de morte e decadência. Aqui esse personagem é Philip, mas o mesmo tipo aparece em A Mansão do Terror (Francis Barnard), A Orgia da Morte (Francesca) e O Túmulo Sinistro (Rowena). A chegada desse personagem gera um conflito clássico entre o Bem e o Mal, um conflito que deve terminar na destruição do mundo maléfico e corrupto habitado por Usher ou Medina ou Prospero ou Verden Fell.

Outro personagem importante que o filme traz para a série é Roderick Usher, o esteta com uma sensibilidade mórbida, cabelos “de uma maciez qual teia de aranha”, rosto pálido e aparência frágil, que lhe fazem parecer um defunto. Roderick rejeita o mundo exterior, enclausurando-se na sua mansão, onde criaturas  insólitas, dedilha lânguidamente um alaúde e mantém um controle estranho sobre Madeline.

Ele explica que todo o sangue dos Usher está corrompido e a coisa mais humana seria deixar que a linhagem se extinguisse. A mansão é carregada de lembranças e fatos passados (parece que toda a transmissão genética da família teria ocorrido incestuosamente) e o medo de Usher está ligado a essas reminiscências. O título do conto é uma premonição da queda da casa, tanto da edificação em si quanto da família da qual Roderick e Madeline são os últimos descendentes. Quando fica claro que Madeline planeja desobedecer seu irmão e partir com Philip, Roderick encontra uma solução singular para o seu problema: ele pode mantê-la na casa ao mesmo tempo viva e morta. Philip ouve um grito depois de uma discussão entre Madeline e Roderick,  entra no quarto de Madeline, e vê Roderick, perto da cama da irmã, dizendo, “Ela está morta”. Durante o funeral, o filme mostra o que Roderick sabia: que Madeline estava de fato viva, mas num transe catalético. Ao colocá-la na cripta, Roderick procura eliminar seu objeto de desejo e as lembranças do passado; porém, mesmo após ser enterrada, Madeline continua a se manifestar por meio de ruídos e sons indefinidos até que, como uma fera enlouquecida, com os olhos vermelhos de sangue, ela sai do seu caixão e ataca o irmão. A destruição final da mansão remete à expiação de todos os erros e pecados mantidos ocultos por tanto tempo.

A MANSÃO DO TERROR / THE PIT AND THE PENDULUM / 1961.

Na Espanha do século dezesseis, Francis Barnard (John Kerr) chega ao castelo de Nicholas Medina (Vincent Price), o marido de Elizabeth (Barbara Steele), a irmã de Francis recentemente falecida. Francis fica sabendo que sua irmã estava deprimida pela atmosfera triste do castelo e passava a maior parte do tempo na masmorra construída pelo pai de Nicholas durante a Inquisição. O Dr. Charles Leon (Anthony Carbone), o melhor amigo de Nicholas, diz que Elizabeth  “morreu de medo”. Esta explicação não satisfaz Francis e ele decide permanecer no castelo por mais alguns dias. Uma noite, Nicholas ouve uma voz de mulher chamando seu nome e ele segue o som da voz até a sala de sepultamento, onde vê Elizabeth levantando-se do seu caixão. Ela se encontra com o Dr. Leon, enquanto a mente de Nicholas  entra em colapso, e os dois amantes regozijam-se de seu plano para deixá-lo louco e herdar sua fortuna. Transtornado, Nicholas subitamente assume a identidade de seu pai, luta com o Dr. Leon, que acaba caindo no poço do pêndulo, e tranca sua esposa infiel na caixa de ferro. Francis entra na câmara, é agarrado por Nicholas, e amarrado numa mesa sob um pêndulo oscilante e cortante. Porém, antes que a lâmina do pêndulo o alcance, ele é salvo pela irmã de Elizabeth, Catherine (Luana Anders) e pelo mordomo Maximilian (Patrick Westwood). Este luta com Nicholas que tem o mesmo fim do Dr. Leon, caindo no poço. Catherine resolve fechar a câmara de tortura para sempre – sem saber que dentro da caixa de ferro está a aterrorizada Elizabeth.

Enquanto que a história original de Poe aborda simplesmente  as experiências de um homem numa câmara de tortura da Inquisição Espanhola, o filme de Corman “abre” o original, tal como ocorre em todas as adaptações da série,  incorporando livremente elementos da intriga e/ou temas de outros contos do renomado escritor.

A Mansão do Terror começa, como O Solar Maldito, com a chegada de um personagem “normal”, Francis Barnard, à mansão de Nicholas Medina,  para investigar a morte misteriosa de sua irmã, esposa de Nicholas, Elizabeth. Mas, diferentemente de O Solar Maldito, que começa com uma tomada de estúdio, A Mansão do Terror se inicia com uma tomada exterior do oceano, quando Francis passa do mundo real para um mundo de corrupção e morte. No centro deste mundo encontra-se de novo uma figura frágil e atormentada, Nicholas Medina. E, como em  O Solar Maldito, a causa da agitação de Nicholas tem a ver com algo que ocorreu no passado.

À medida em que a trama se desenvolve, para justificar o diagnóstico do médico, segundo o qual Elizabeth morrera de medo, Nicholas conduz Francis, Catherine e Leon à câmara de tortura construída por seu pai, Sebastian, um Grande inquisidor da igreja espanhola (Vincent Price).

Num retrospecto, introduzido por uma tomada arcaica em íris e tingido de um azul fantasmagórico, uma Elizabeth de aparência sepulcral é vista inspecionando os objetos da câmara – a  roda, a caixa de ferro, os chicotes, os atiçadores – os seus longos dedos tocando-os sensual e vagarosamente. Subitamente, ouve-se um grito. Nicholas entra na câmara e vê Elizabeth trancada na caixa de ferro, com os olhos arregalados através da grade.

Em outro flashback, Catherine relata a traumática memória Edipiana que persegue  Nicholas: o menino Nicholas perambula pela câmara de tortura de seu pai e, escondido, presencia seu progenitor conduzindo sua mãe, Isabella (Mary Menzies) e seu amante / cunhado, Bartolome (Charles Victor) num “passeio” pelo museu assustador. As imagens, vistas pelo jovem Nicholas, tornam-se distorcidas quando seu pai pega um atiçador, golpeia Bartolome mortalmente,  começa a torturar sua mãe e depois a coloca na caixa de ferro. Catherine explica que seu irmão sente-se culpado pelo que ocorreu pois, em termos freudianos, ele não pôde “salvar” sua mãe do ataque mortífero do pai.

Uma noite, durante uma tempestade, Nicholas ouve sua mulher chamando-o e segue a voz de Elizabeth. Do caixão de Elizabeth levanta-se a criatura sangrenta de sua “mãe / esposa” (Nicholas não consegue mais distinguir uma da outra), que o insulta, rindo na sua cara, e ele cai no chão em estado de coma. Então chega o Dr. Leon, tornando-se Bartolome nesta reconstrução alucinatória do trauma primitivo. Elizabeth sorri ao abraçar o Dr. Leon, recriando simbolicamente a união sexual que levou o pai de Nicholas à loucura. O Dr. Leon declara Nicholas “morto” enquanto Elizabeth, ainda representando o plano dos dois para enlouquecer seu marido,  continua a escarnecer de Nicholas.

Quando ela  acaricia Nicholas com sua mão banhada de sangue, ele se levanta, renascido como seu próprio pai. “O que está acontecendo Isabella?”, ele diz. Beijando sua “mãe /esposa” Nicholas a empurra para a caixa de ferro. O doutor, aterrorizado, perde o equilíbrio, e cai no poço, mas ele é logo substituido na mente de Nicholas por Francis, que chegara até o local.

A cena final do filme é uma obra-prima de montagem. Nicholas enlouquecido amarra Francis na roda, sobre a qual está suspenso um pêndulo com uma lâmina em forma de meia-lua, que desce lentamente para cortar a vitima ao meio. Numa série de planos rápidos, alternados com mudanças de cor vermelha, azul e verde, o público assiste as roldanas e as engrenagens do terrível mecanismo em ação, a  face demente de Nicholas repreendendo seu “irmão”, a entrada de Catherine e do criado Maximilian, a luta entre Maximilian e Nicholas, a queda de Nicholas no poço, e o resgate de Francis das garras da máquina infernal.

OBSESSÃO MACABRA / THE PREMATURE BURIAL / 1962.

No século dezenove, Guy Carrell (Ray Milland), ajuda seu amigo, Dr. Gault (Alan Napier), a roubar um túmulo, a fim de obter um novo espécime para uma pesquisa científica. Quando abrem o caixão, um corpo em decomposição olha com os olhos fixos os intrusos e  sob a tampa do caixão estão as marcas sangrentas causadas pelas unhas do cadáver. Este acontecimento, combinado com o medo que há muito tempo ele tem de ser enterrado vivo, provoca em Guy uma grande depressão. Certo de que herdou de seu pai a condição de catalético, ele rejeita sua noiva Emily (Hazel Court), filha do Dr. Gault, e se retira com a irmã, Kate (Heather Angel), para a sua casa de campo, onde prefere pintar quadros satânicos e beber laudanum. Emily se recusa a ceder às fantasias mórbidas do noivo e o persuade a aceitar o matrimônio. Para mitigar seu medo, Guy constrói um mausoléu para si próprio, que dispõe de vários mecanismos de fuga, caso ele seja enterrado vivo. Ele tem um pesadelo, no qual isso acontece, e nenhum dos mecanismos de fuga funciona. Finalmente, ele cai num estado profundo de catalepsia, é enterrado vivo e, quando dois ladrões de túmulo desenterram seu caixão, suas mãos sangrentas os agarra, matando a ambos. Guy encontra Emily na cama com Miles Archer (Richard Ney), um amigo da família, deduzindo que sua mulher armara um plano para herdar sua fortuna. Ele arrasta Emily até o cemitério e a enterra viva. Antes que Guy possa matar também Archer, Kate chega, e põe um fim ao seu sofrimento com uma bala.

Alguns críticos reclamaram contra a substituição de Vincent Price por Ray Milland. Entretanto, a utilização de um ator realista como Milland ajuda mais a criar uma atmosfera de horror. Ao contrário de Price, que geralmente faz parte do mundo decadente que ele habita, Milland é uma pessoa normal envolvida em circunstâncias além do seu controle – a pessoa “real” encurralada num ambiente artificial. Enquanto que Roderick Usher e Nicholas Medina criaram o mundo em que vivem, Guy Carrell é a vítima deste mundo, no qual erra, paralizado pelo medo de ser enterrado vivo.

Os roteiristas deixam os espectadores em suspense, retardando a revelação de quem está querendo levar Carrell à  insanidade ou à morte. Eles sugerem que o próprio Guy pode ser o responsável, uma vez que ele é simultaneamente atraído e repelido pela morte; ou pode ser a misteriosa Kate, que aparece em determinados trechos da narrativa com se viesse de lugar nenhum, contradizendo as declarações de Carrell ou administrando-lhe laudanum (tal como Roderick Usher, Carrelll precisa tomar drogas para dormir); ou pode ser ainda Emily, embora o filme mostre a solicitude de seu personagem. Na verdade, a revelação final de que foi Emily que engendrou a morte de Carrelll, causa surpresa.

A melhor sequência é a do pesadelo, filmada com filtros azuis e verdes e marcada pela ausência de som. Carrell desperta dentro do seu caixão e não consegue abrir a tampa, até que ele cai no chão e se espatifa. Desesperado, Carrell tenta as opções de saída do mausoléu, e estas também falham: a escada de cordas se rompe; a dinamite vira cinza em suas mãos; e a sua “peça de resistência”, o cálice de veneno, contém apenas vermes.

Tal como Nicholas Medina, um acontecimento traumático – seu enterro e ressurreição – dá a Carrell uma nova personalidade, poderosa e violenta, determinada a punir seus inimigos. São quatro pessoas: os dois coveiros que tentaram desenterrá-lo para servir de espécime médico para o Dr. Gault; o próprio Dr. Gault; e Emily. Carrell estrangula os dois ladrões de túmulo; eletrocuta o cínico Dr. Gault  e, finalmente, aparece no quarto de Emily. Quando ela desmaia, Carrell a leva para o pântano e a enterra viva.

O cinegrafista Floyd Crosby mostra a sua capacidade pelos movimentos de câmera de caráter sonambúlico e seus close-ups catastróficos; os cenários de Daniel Haller expressam com perfeição a morbidez da história e o romantismo decadente do mundo de Poe / Corman; e Ray Milland dá uma contribuição notável ao espetáculo como intérprete, provando que a sua escolha como protagonista estava certa.

MURALHAS DO PAVOR / TALES OF TERROR / 1962.

MORELLA – Desde a morte de sua esposa, Morella (Leona Gage), Locke (Vincent Price) vive sozinho numa mansão sombria e afoga sua amargura no álcool. Um dia, recebe a visita de sua filha, Lenora (Maggie Pierce), a quem ele culpa pela morte da mãe, cuja saúde declinou rapidamente após o parto. Ao entrar no quarto de Morella, Lenora descobre o corpo mumificado da mãe. Lenora conta ao pai sobre sua doença terminal e sua incapacidade para amar os homens com os quais se relacionou, e os dois se abraçam ternamente. Numa noite, Locke ouve os gritos de Lenora, corre até o seu quarto e a encontra morta. Depois, ele vai ao quarto de Morella,  onde vê com horror o  fantasma de Morella se apoderando do corpo de Lenora. Locke derruba uma vela, causando um incêndio, e todos os três perecem nas chamas.

THE BLACK CAT – O alcoólatra Montresor (Peter Lorre) e o delicado Fortunato (Vincent Price) se encontram numa convenção de mercadores de vinho. Para escapar de Annabel (Joyce Jameson), sua esposa avarenta e, ao mesmo tempo, ter acesso à bebida sem pagar nada, Montresor desafia Fortunato para um concurso de prova de vinhos.  Fortunato acompanha Montresor à sua casa, conhece sua bela mas negligenciada esposa, e os dois se tornam amantes. Ao saber do adultério, Montresor põe uma droga no amontillado de Fortunato e o empareda juntamente com Annabel na adega de sua casa. O gato de Annabel, que Montresor odiava, foi também emparedado, sem que ele se desse conta. Quando um policial, a convite de Montresor, inspeciona a adega, os gemidos do animal denunciam o segredo do assassino.

THE FACTS IN THE CASE OF M. VALDEMAR – O Senhor Valdemar (Vincent Price) sofre de um tumor no cérebro e permite que o hipnotizador Carmichael (Basil Rathbone) o mantenha em um transe entre a vida e a morte,  para aliviar sua dor.  Porém Carmichael cobiça Helene (Debra Paget), a esposa de Valdemar que, embora apaixonada pelo médico de seu esposo, Dr. Elliot James (David Frankham),  permanece fiel ao marido. Enquanto o corpo de Valdemar agoniza em paz no seu leito, sua mente permanece sob o controle de Carmichael e este força o moribundo a consentir o seu casamento com Helene. Quando Carmichael  pressiona Helene fisicamente, seu poder sobre Valdemar cessa. Valdemar   levanta-se do seu leito de morte e estrangula o hipnotizador. Logo depois, o corpo de Valdemar começa a se decompor, até se transformar num líquido putrescente.

Muralhas de Pavor reúne três contos de Poe , “Morella”, The Black Cat”, The Cask of Amontillado” e “The Facts in the Case of M. Valdemar” e os combina em três episódios filmados.

O primeiro, Morella, prefigura O Túmulo Sinistro e, como em O Solar Maldito, a exploração de uma mansão gótica é uma metáfora para uma jornada psicológica. Neste caso, o explorador é a loura Lenora, cujo pai, Locke, a rejeita, enviando-a para um internato após a morte de sua mãe, a morena Morella (com as cores de cabelo opostas das duas mulheres Corman estabelece um contraste de luz e escuridão que é também comum na obra de Poe). Quando Lenora volta para casa seu pai a recebe friamente e diz para o retrato de Morella: “Sua assassina voltou”. Lenora explora a mansão de sua infância e encontra o corpo mumificado da mãe. A insinuação de necrofilia é óbvia quando o pai entra no cômodo e exclama: “Quando ela morreu, eu morrí com ela … tudo o que restou foi este cadáver ambulante”, apontando para si mesmo. Depois que Lenore morre, Morella, como se fosse um vampiro, suga a vida de sua filha, sua rival, e se reúne com seu marido – uma situação edipiana digna de Freud.

O segundo episódio, The Black Cat, combina o conto de Poe do mesmo nome com seu outro conto “The Cask of the Amontillado”. É  um tour-de-force cômico para Vincent Price como o delicado Fortunato e Peter Lorre como o alcoólatra Montressor. Ambos brindam o público com uma performance hilariante, que atinge o auge com a competição entre os dois provando vinho. Sem falar na visão surreal de uma sequência de sonho, na qual Fortunato e sua esposa jogam bola com a cabeça de Montressor.

O episódio final, The Facts in the Case of M. Valdemar, tem Basil Rathbone num desempenho arrogante maravilhoso. O filme se inicia com uma cena de hipnotismo, na qual as luzes vermelho, azul e amarelo vindas de uma lanterna passam ritmicamente sobre o rosto em primeiro plano do Senhor Valdemar e termina em um clímax memorável  com aquele efeito delisquescente.

Muralhas de Pavor foi um sucesso financeiro maior do que filme anterior, Obsessão Macabra. Corman afirmou que o lucro de 1 milhão e meio de dólares  encorajou-o a transformar o clássico de Poe, “The Raven”, num projeto de comédia de horror e a contratar os dois ( Price e Lorre) novamente”.

O CORVO / THE RAVEN / 1963.

No século quinze, o mágico estabanado Dr. Erasmus Craven (Vincent Price), lamenta a morte de sua esposa Lenore (Hazel Court). Uma noite ele se espanta com o aparecimento de um corvo falante, que vem a ser o Dr. Adolphus Bedlo (Peter Lorre), um pequeno mágico alcoólatra, irritadiço e também desastrado, transformado num pássaro, por ter desafiado o poder do mestre feiticeiro Dr. Scarabus (Boris Karloff). Depois que Craven o faz retornar à sua forma humana, Bedlo lhe informa que uma mulher parecida com Lenore está vivendo no castelo de Scarabus. Acompanhados pela filha de Craven, Estelle (Olive Sturgess) e pelo filho de Bedlo, Rexford (Jack Nicholson), os dois mágicos visitam o castelo e verificam que Lenore fingiu-se de morta, para se tornar amante de Scarabus. O mestre feiticeiro aprisiona seus hóspedes e ameaça torturar Estelle, a não ser que Craven revele os segredos de seus poderes mágicos. Bedlo, que na realidade era cúmplice de Scarabus, tenta romper seu acordo com o mestre feiticeiro e este o transforma em corvo novamente. Entretanto, o pássaro corta as cordas que prendem Craven, permitindo que ele desafie Scarabus para um duelo de mágica. Durante a formidável disputa, o castelo se incendeia e Scarabus e Lenore  emergem das ruínas, ela reclamando para seu resignado amante, sobre o estado em que ficou seu vestido. Craven leva o corvo para sua casa, mas não tem pressa em lhe devolver a forma humana.

Em O Corvo, Corman parodia o gênero do horror e especificamente a própria série Poe, reunindo e opondo Price, Lorre e Karloff em um conflito burlesco. Um exemplo é a cena em que o Dr. Erasmus Craven brinca com seus poderes mágicos, desenhando um corvo no ar com seu dedo. Quando a ave desaparece inesperadamente, Craven chora como uma criança que quebrou seu brinquedo favorito.

Com a chegada do corvo do poema de Poe, Craven (uma caricatura do hipersensitivo Roderick Usher)  lhe pergunta, tal como no poema, se ele verá de novo sua Lenore. A resposta do corvo, entretanto, não é o agourento “nunca mais” do original. Numa voz estridente e irritada, ele responde: “Como diabos é que vou saber? O que você pensa que eu sou, um adivinho?”.

O ponto alto do filme, no qual Craven e Scarabus se batem “num duelo até a morte”, é uma sucessão de efeitos especiais extravagantes, com os mágicos usando seus dedos telecinéticos para transformar objetos: uma cobra torna-se uma echarpe, um morcego transforma-se num leque japonês, uma bala de canhão atirada contra Craven explode no meio do caminho e se dissolve em confete. Scarabus dá vida às suas gárgulas de pedra e Craven as transforma em filhotes de cachorro latindo. O  torneio mágico aumenta de intensidade, envolvendo transformações cada vez mais elaboradas, até que o castelo se incendeia e suas paredes desabam em volta dos  mágicos.

O CASTELO ASSOMBRADO / THE HAUNTED PALACE / 1963.

Em 1765, no vilarejo de Arkham na Nova Inglaterra, Joseph Curwen (Vincent Price), com a ajuda de sua assistente Hester Tillinghast (Cathie Merchant), vem atraindo as moças da aldeia para o seu velho castelo, trazido da Espanha, “pedra por pedra” (que teria pertencido a Torquemada). Alí, segundo os habitantes da aldeia, Curwen ajuda um dos “deuses antigos” (que tem a forma de um grande réptil) a engravidar as virgens locais, numa tentativa de criar uma nova raça. Os aldeões, liderados por Ezra Weeden (Leo Gordon) e Micah Smith (Elisha Cook Jr.), invadem o castelo e Curwen é queimado vivo. Enquanto agoniza no meio das chamas, ele jura vingar-se dos algozes e seus descendentes. Em 1875,  Charles Dexter Ward (Vincent Price) e sua esposa Ann (Debra Paget) chegam a Arkham, para tomar posse do castelo de Curwen, que receberam de herança. Os moradores se mostram hostís e apenas o médico, Dr. Wlillet (Frank Maxwell) parece amigável. Ward descobre alguns mutantes que, de acordo com o Dr. Willet (Frank Maxwell), o médico da aldeia, são descendentes diretos das vítimas de Curwen.  Auxiliado pelo seu criado Simon Orne (Lon Chaney Jr.), Dexter , incorporando o espírito de Curwen, mata os descendentes de Ezra Weeden e de Micah Smith por meio de  fogo, ressucita Hester, e, finalmente, oferece Ann para o grande réptil; porém,  a esta altura, os aldeões, repetindo o passado, entram no castelo e o incendeiam. Ward recobra o controle de sua mente e liberta sua esposa. Quando Ann lhe pergunta se ele tem certeza de que está bem, Ward, de costas para a câmera, responde, “Estou absolutamente certo”; mas quando Ward se vira, seu rosto é a face arrogante de Curwen.

Este filme, cujo roteiro foi escrito por Charles Beaumont, colaborador constante da série de TV, Além da Imaginação / Twilight Zone / 1959-64, é usualmente citado como fazendo parte da série de Corman sobre Poe, porém o argumento é derivado de uma novela de H.P. Lovecraft chamada “The Case of Charles Dexter Ward”. A única conexão com Poe é o título, retirado de um de seus poemas, publicado em 1839 e mais tarde incorporado ao conto “The Fall of the House of Usher”.

O filme possui todos os elementos típicos do horror gótico como o imenso castelo sombrio localizado numa colina e perto de um cemitério e a aldeia misteriosa que causa medo aos seus visitantes (o condutor da carruagem que trouxe Ward e a esposa insiste para que eles não fiquem na vila). A cena antológica é aquela em que o casal está caminhando à noite pela ruas  de Arkham e são surpreendidos por um grupo de mutantes, pessoas que nasceram deformadas em virtude das experiências de Curwen ao inseminar as moças com as lendárias criaturas.

A ORGIA DA MORTE / THE MASQUE OF THE RED DEATH / 1964.

No século doze, na Itália, Prospero (Vincent Price), um príncipe adorador de Satã, manda enjaular dois camponeses, Gino (David Weston) e Ludovico (Nigel Green), por terem desafiado sua autoridade ao taxar os cidadãos. Francesca (Jane Asher), filha de Ludovico e noiva de Gino, suplica por suas vidas e Prospero concorda em poupar aquele que ela escolher. Mais tarde, o príncipe verifica que a peste da morte rubra chegou à aldeia e ordena que todas as casas da área infetada sejam queimadas. A doença obriga Pospero a se recolher no seu castelo e ele leva Francesca consigo, para que o veja entregando-se aos prazeres sádicos como parte de sua instrução em diabolismo. Juliana (Hazel Court), a amante do príncipe, fica com ciúmes de Francesca, mas ajuda-a na sua tentativa de libertar Gino e Ludovico. O plano falha e, como parte dos acontecimentos que precedem o baile anual de máscaras, o príncipe manda os dois homens se cortarem com cinco facas, uma das quais está envenenada. Ludovico perece pela espada do príncipe, ao tentar matá-lo e Gino é banido para a aldeia queimada. Este encontra uma figura estranha vestida de vermelho que o leva de volta ao castelo, instruindo-o para que aguarde do lado de fora por Francesca. Quando o intruso misterioso penetra no baile, Prospero e seus convidados morrem vitimados pela peste rubra enquanto Gino e Francesca são poupados.

A Orgia da Morte difere de seus predecessores por ser o primeiro filme da sequência de filmes Corman / Poe rodado na Inglaterra e o primeiro que não utiliza a sua equipe técnica costumeira (Daniel Haller como diretor de arte foi exceção). O uso de uma equipe britânica, e principalmente Nicholas Roeg no lugar de Floyd Crosby, mostra como as convenções da série se tornaram formalizadas – de modo que outros além dos criadores do “estilo Poe” puderam  trabalhar nos filmes, obtendo o mesmo resultado – e, por extensão, como os filmes foram um produto das idéias de Corman e de seus roteiristas. O esplêndido trabalho de câmera móbil de Roeg, por exemplo, tem antecedentes claros nos esmerados travelings e gruas em A Mansão do Terror enquanto que o uso de esquemas de cor e efeitos especiais tem precursores em O Solar Maldito e Obsessão Macabra.

O filme funde dois contos de Poe, a história título e “Hop-Frog” mas, apesar da eficiência do episódio de Hop-Frog em si (a vingança do anão artista contra Alfredo vestindo-o de macaco para o baile e então queimando-o vivo), ele não tem nenhuma relação com a história como um todo.

A Orgia da Morte contrasta duas sociedades opostas – os camponeses sofredores e os convidados ricos dissolutos no castelo –  e focaliza a disputa básica entre o Bem e o Mal, dentro de uma estrutura de questionamento religioso / existencial. Prospero se entrega ao  Satanismo, porém ele não é um admirador do demônio comum, abraçando o Mal pelo Mal. Ele escolheu Satã como uma alternativa mais realista para um Deus Cristão. No quarto preto ele diz para Francesca: “ Você pode olhar este mundo e acreditar na bondade de um deus que o governa? Fome, peste, guerra, doença, morte – elas dirigem o mundo”.

Corman mostra Prospero cometendo crimes abomináveis um atrás do outro: mandando queimar a aldeia dos camponeses; alvejando com flechas o casal de amigos que está procurando refúgio contra a peste; ordenando que seu falcão ataque e mate Juliana. Porém Prospero tem seus momentos de bondade: recusando assassinar uma criança ou implorando para que Morte poupe Francisca da carnificina durante uma dança macabra altamente estilizada no baile. Ela até, num ato de gratidão, beija Prospero na face, um gesto chocante considerando a posição de Prospero como o vilão do drama.

Beneficiando-se do aproveitamento dos cenários de Beckett, o Favorito do Rei/ Beckett / 1964 e influenciado pelo cinema de Ingmar Bergman, Corman elaborou uma mise-en-scène à altura da história do “diabólico” Prospero e suas tentativas de lograr a Morte Rubra (e a morte em geral). Algumas idéias foram tomadas emprestado literalmente de Poe,  por exemplo, os quartos monocromáticos, um amarelo, um roxo, etc., que terminam no quarto preto e vermelho, no qual Prospero adora o diabo. Outras cenas são visualizações originais como os “monges” mensageiros da morte que perambulam pela região rural, cada qual vestido com uma cor diferente.  Sem dúvida, A Orgia da Morte é mais rico em paleta de cores do que os filmes precedentes., sendo particularmente notável o uso do vermelho no traje da Morte Rubra, a encarnação da mortalidade humana, que Prospero tenta desesperadamente repelir.

O TÚMULO SINISTRO / THE TOMB OF LIGEIA / 1965.

Em 1821, Verden Fell (Vincent Price), usando óculos escuros que o protegem de “uma mórbida reação à luz do sol”, enterra sua esposa, Ligéia (Elizabeth Sheperd), no cemitério de uma igreja, apesar das objeções do pastor de que ela não era cristã. Um gato preto empoleirado no caixão, mia com força, e os olhos de Ligéia se abrem por um momento, antes da sepultura ser fechada. Algum tempo depois, Lady Rowena (Elizabeth Shepard), filha de um nobre proprietário rural, ao participar de uma caçada à raposa, cai do cavalo perto do túmulo de Ligéia. Verden aparece subitamente, e logo em seguida Christopher Gough (John Westbrook), admirador de Rowena. Verden leva Rowena até a abadia lúgubre onde vive, a fim de curar seus ferimentos. Rowena sente-se estranhamente atraída por Verden   e,  apesar

dele ter uma conduta reservada, os dois se casam. Após o retorno de sua lua-de-mel, o melancólico Vernon torna-se cada vez mais distante de Rowena. Esta começa a ter sonhos envolvendo o gato preto e Ligéia. Numa noite, ela descobre uma raposa morta na sua cama. Christopher suspeita de que algo estranho está acontecendo, exuma o caixão de Ligeia, e encontra uma figura de cera no seu interior.

Rowena abre as cortinas de uma cama, vê o corpo preservado de Ligeia, cai “acidentalmente” em seus braços num abraço mortal, e luta para se livrar de um véu negro que as envolveu. Neste momento, chegam Verden e depois Christopher e o criado de Verden, Henrick (Oliver Johnston). Henrick  revela o segredo de seu amo: no seu leito de morte, Ligéia hipnotizou Verden , “ela o prendeu com seus olhos” e o obrigou a “cuidar dela” mesmo depois da morte, a ressuscitar seu corpo e substituí-lo por um outro feito de cera, a fim de que “pudesse ser sempre sua esposa”. Rowena tenta ajudar Verden, assumindo a identidade de Ligéia, para libertá-lo da sujeição aquele controle póstumo. Rowena diz que está morrendo e desmaia. Verden abre a cortina do leito e vê Ligéia morta na cama. Ele carrega Ligéia e a joga no fogo da lareira. Surge repentinamente o gato preto, que cai sobre o corpo de Rowena. Verden o espanta. Rowena parece voltar à vida. Verden percebe um vulto vestido de gaze, caminhando em sua direção. Ele levanta o véu que o cobre e vê Ligéia, sorridente. Verden começa a estrangulá-la e ela ri dele. Verden pensa que se trata de Ligéia, mas é Rowena. Finalmente, Verden diz, “Eu sei quem é o culpado” e, enquanto entram Christopher e Henrick e levam o corpo de Rowena, Verden sai à procura do gato preto. O gato pula no seu rosto e Verden, com os olhos sangrando, esbarra num candelabro de pé, e provoca um incêndio. O gato mia, Rowena recobra a vida, e Verden e Ligéia perecem abraçados entre as chamas.

O Túmulo Sinistro foi o último filme da série de adaptações de obras de Poe feitas por Corman, rodado na Inglaterra, a maior parte em exteriores naturais perto da ruinas de Stonehenge e uma abadia de novecentos anos de idade, captadas em cores e esplêndido CinemaScope por Arthur Grant, fotógrafo habitual da Hammer.

O tema do filme é  a possibilidade de vencer a morte pela força da vontade. Numa cena particularmente arrepiante, Verden demonstra para seus convidados uma nova técnica conhecida como hipnotismo. Usando Rowena como sujeito de experiência, ele fica surpreso quando sua esposa hipnotizada fala com a voz de Ligéia (“Eu serei sempre sua esposa … sua única esposa”). Mas não fica claro se é a vontade de Ligéia ou a de Verden que a traz de volta do mundo dos mortos.

Depois de outras ocorrências espectrais, várias aparições do gato preto, uma  sequência de pesadelo e uma exumação reveladora, ocorre a apoteose do horror macabro, quando Rowena encontra Verden catatônico num quarto secreto da abadia, descerra as cortinas do leito de quatro colunas e vê o cadáver de Ligéia de braços abertos enrijecidos.

A sequência final é bastante complexa, com as identidades Rowena-Ligéia se alternando freneticamente, porém bem realizada em termos de cinema.

OS FILMES MUDOS DE FRITZ LANG

janeiro 7, 2012

Sempre comprometido com a perfeição, Fritz Lang trouxe para a tela uma visão do mundo fatalista, expressa por meio de recursos visuais impressionantes e por uma narrativa econômica e fluente. Ele usou o cinema para explorar uma fascinação pessoal, para usar suas palavras, “pela crueldade, medo, horror e morte”. Lang se relacionou com mais de uma estética (expressionismo, realismo) e com vários gêneros (aventura exótica e de guerra, fantasia, ficção científica, drama criminal e social, western), influenciou diretamente seus contemporâneos (de Eisenstein a Hitchcock), e deixou a sua marca de grande cineasta na cinematografia de dois países e em duas fases da História da 7a Arte.

Friedrich Christian Anton Lang nasceu no dia 5 de dezembro de 1890 em Viena, filho do construtor Anton Lang e de Pauline (Paula) Schlesinger. Ele cursou a K und K Staatsrealschule – um dos melhores colégios secundários de Viena, que preparava rapazes da classe média para exercer cargos no serviço público, comércio ou em profissões técnicas – mas não passou nos exames finais. Em outubro de 1909, Lang se matriculou na Technische Hochshule, uma escola  técnica para estudos avançados nas ciências; porém não obteve a frequência necessária para poder fazer as provas.

Nesta ocasião, começou a trabalhar em dois cabarés, o Femina Revue Bühne e o Theaterkabarett Holle, criando pôsters para os mesmos. A fim de acalmar o pai, quando este soube que o filho estava negligenciando seus estudos, Lang disse ao seu progenitor que ia estudar pintura. Não se sabe se o rapaz fez isso mesmo ou pintou algum quadro; o trabalho artístico de Lang consistia principalmente de pôsters de cabarés, esboços e até cartões postais, para os quais havia uma longa tradição vienense. Todavia, Lang ressentia-se com o fato de ser  financeiramente dependente da boa vontade do pai e, após muitas brigas com ele, resolveu sair da casa paterna e de Viena.

Depois de passar por Bruxelas e Munich, Lang chegou no mês de abril de 1913 em Paris, onde estudou na Maurice Denis École de Peinture em Montparnasse durante o dia e frequentou aulas noturnas na Académie Julian. Ele voltou para Viena em agosto de 1914, e se alistou como voluntário no exército austríaco em 12 de janeiro de 1915, servindo numa divisão da artilharia. Lang foi condecorado mais de uma vez durante a guerra por atos de bravura, culminando com a permissão de usar a cruz militar, a Karl -Truppen – Kreuz.

Numa das ocasiões em que esteve hospitalizado, ele conheceu um “empregado de banco”, que era também compositor, e os dois começaram a escrever roteiros em parceria. Logo, este indivíduo (nunca identificado por Lang nas suas entrevistas) tornou-se somente seu agente e conseguiu fazer negócio com Joe May, dono da May-Film GmbH. May comprou e filmou dois roteiros de Lang, Die Hochzeit im Exzentrikklub / 1917 e Hilde Warren und der Tod / 1917 e, para May, Lang  escreveu o episódio final do seriado A Soberana do Mundo / Die Herrin der Welt.

O próximo passo importante na trajetória de Lang no cinema deu-se quando foi apresentado a Erich Pommer, fundador da Decla (Deutsche Éclair). Pommer ofereceu-lhe um emprego como Dramaturg – que abrangia as funções de leitor de roteiros e roteirista.

Em 1919, Lang escreveu roteiros para cinco longas-metragens dirigidos por Alwin Neuss e Otto Rippert (Neuss dirigiu Die Rache ist mein, Die Bettler – GmbH ; Rippert dirigiu: Die Frau mit den Orchiden, Totentanz, Die Pest in Florenz); colaborou com Wolfgang Geiger na redação do roteiro de Wolkenbau und Flimmerst (de diretor desconhecido); fez sozinho o roteiro de Lilith und Ly (dirigido por Erich Kober); estreou na direção com Halbblut (a história de uma mestiça, que dirige um cassino clandestino e, tentando fugir da Europa para o México com o produto de suas trapaças, é morta por uma de sua vítimas) e O Senhor do Amor / Der Herr der Liebe (cuja trama envolve um nobre húngaro e sua noiva, que se traem mutuamente, até que ele a mata e depois se suicida), ambos os filmes hoje considerados perdidos. O ano de 1919 foi também aquele em que Lang  (provavelmente, porque ninguém sabe ao certo) se casou com  Elisabeth (Lisa) Rosenthal e fez Die Spinnen (emduas partes)e Harakiri.

Em Die Spinnen – 1. Der Goldene See, o desportista e playboy Kay Hoog (Carl de Vogt) recolhe uma garrafa no mar. Ela contém uma mensagem  que revela o local do tesouro dos Incas no Lago Dourado. Kay Hoog fala sobre o tesouro no Clube Standard em San Francisco na presença da bela Lio Sha (Ressel Orla), que dirige a organização secreta das Aranhas, encarregada pelo Serviço Secreto da Índia de recuperar um diamante com a cabeça do Buda. Segundo a lenda, aquele que o possuir, libertará os povos da Ásia e se tornará o dono do mundo. Lio Sha, pensando que o diamante talvez estivesse no Lago Dourado, segue Kay Hoog, ocorrendo várias peripécias: Kay Hoog impede que Naela (Lil Dagover), a Sacerdotiza do Sol dos Incas, seja picada por uma serpente; depois, salva Lio Sha, que os Incas pretendem sacrificar à sua divindade; e finalmente o bando dos Aranhas morre na gruta onde está o tesouro, devido a uma inundação. Alguns meses mais tarde, em San Francisco, Lio Sha revela seu amor por Kay Hoog, mas ele se casara com Naela, e Lio Sha decide se vingar. Quando Kay Hoog retorna à cidade, encontra Naela morta sobre um arbusto florido de seu jardim com uma aranha sobre o peito.

Em Die Spinnen – 2. Der Brillantenschiff, os Aranhas ficam sabendo que o diamante com a cabeça do Buda está na posse do Rei do Diamante, o inglês John Terry (Rudolf Lettinger). Depois de alguns contratempos, o bando chefiado por Lio Sha, que se esconde nos subterrâneos de uma cidade chinesa situada debaixo de San Francisco, sequestra  Ellen (Thea Zander), a filha do Rei do Diamante, para trocá-la pela pedra preciosa. Terry apela para Kay Hoog, que descobre que o diamante deve estar nas ilhas Malvinas.  Novos incidentes ocorrem após os quais os Aranhas e Lio Sha morrem envenenados por vapores sulfurosos. Em San Francisco, O Grande Mestre dos bandidos (Georg John) é morto por agentes indianos, que começavam a desconfiar dele,  e Kay Hoog consegue salvar Ellen no último instante.

Die Spinnen reflete claramente a paixão do cineasta pelo universo exótico do romance de aventuras do século dezenove, pelos seriados americanos e de Feuillade, pelas gigantescas arquiteturas que esmagam os personagens e já contém alguns de seus grandes temas: a opressão do indivíduo por um destino incompreensível, a mulher como força salvadora e destrutiva, a  vingança, o fascínio pelo poder, os mundos subterrâneos (a cidade chinesa subterrânea, o território inca), etc.

A 1ª Parte, fotografada por Emil Schünermann, marca a primeira colaboração de Lang com os diretores de arte Hermann Warm e Otto Hunte. Warm foi o mais prolífico dos decoradores associados com o “look” expressionista de O Gabinete do Dr. Caligari / Das Cabinett des Dr. Caligari e serviu a Lang também em Pode o Amor mais que a Morte / Der müde Tod. Hunte, um dos desenhistas de produção mais respeitados  do cinema alemão dos anos10 aos 40, trabalhou ainda com Lang em Dr. Mabuse, o Jogador / Dr. Mabuse, der Spieler; Siegfried / Sigfried – A Vingança de Kriemhild, A Esposa de Siegfried / Kriemhilds Rach / Die Nibelungen; Metropolis / Metropolis; Espiões / Spione;e A Mulher na Lua / Frau im Mond. A 2ª Parte foi o primeiro filme de Lang fotografado por Karl Freund, com o qual faria ainda Metropolis.

Em meados de 1919, Erich Pommer apresentou a Lang um script sobre o diretor de um asilo de loucos que manipulava um sonâmbulo para cometer assassinatos e lhe perguntou se estaria interessado em dirigir este seu novo projeto. Durante as discussões sobre o script, Lang deu pelo menos uma sugestão importante: que o filme tivesse um prólogo e um epílogo realista para transmitir o ponto de vista do personagem principal, um louco, pois isto intensificaria o terror das sequências expressionistas. Pommer adotou esta proposta, adicionando uma cena no jardim do asilo no começo e no final de Caligari. Entretanto, o sucesso extraordinário de Die Spinnen obrigou Lang a deixar a produção de Caligari, para se dedicar à segunda parte  do referido filme.

HarakiriDie Geschitte einer jungen Japanerin foi rodado entre a filmagem das duas partes de Die Spinnen. É uma adaptação da peça “Madame Butterfly” de David Belasco sobre o trágico romance de uma mulher japonesa com um oficial da marinha americana, que produz um filho ilegítimo. No filme, O-Take-San (Lil Dagover) foi escolhida para se tornar Sacerdotisa do Buda na Gruta Sagrada, porém seu pai, Tokujawa (Paul Biensfeldt), quer que ela decida por si própria. O monge local (Georg John) repreende Tokujawa por ter perdido a fé no Oriente. O-Take-San diz ao monge que se sente indigna de ser sacerdotisa. Tokujawa recebe ordem de se suicidar e pratica o haraquiri. O monge prende O-Take-San na Gruta Sagrada, mas um servidor do templo a liberta e a entrega ao proprietário de uma casa de chá no quarteirão dos prazeres – o Yoshiwara de Nagasaki. O oficial da marinha dinamarquesa, Olaf Anderson (Niels Prien), se encontra por acaso na casa de chá e aceita esposar O-Take-San por 999 dias, segundo a lei de Yoshiwara. Seus amigos o desencorajam porque sua viagem de retorno à Europa se aproxima. Ele de fato deve partir, mas promete a O-Take-San que voltará. Já em casa, Olaf mostra para sua noiva Eva (Herta Héden) as lembranças de sua viagem, entre outras, a foto de uma “pequena geisha sem importância”. Quatro anos depois Olaf toma conhecimento do nascimento de seu filho através de uma carta. Ele retorna ao Japão na companhia de Eva, com quem se casara, e aí ocorrem certos incidentes que culminam com o suicídio de O-Take-San com o punhal de seu pai.

Durante muitos anos Harakiri foi considerado um dos “filmes perdidos” de Lang até que, nos anos 80, surgiu uma versão holandesa encontrada no Netherlands Film Museum em Amsterdam. Os críticos da época gostaram das cenas em exteriores, “esplêndidas e pitorescas”, particularmente as das festividades japonesas bem como os efeitos de iluminação, que “aumentam o charme da vida nas ruas à noite”.

Descontente com as circunstâncias de produção da segunda parte de Die Spinnen, Lang cancelou seu contrato com a Decla e assinou contrato com Joe May e a May-Film GmbH. Foi May quem apresentou Lang a Thea von Harbou, uma mulher cuja afinidade estreita com o diretor a tornaria a sua mais importante – e controvertida – colaboradora. Thea foi uma das mais famosas roteiristas da Alemanha, não somente por sua parceria com Fritz Lang mas também por ter escrito scripts para outros cineastas notáveis como F. W. Murnau e Carl Dreyer. Ela estava muito ocupada com a adaptação de seu romance, “Das indische Grabmal”, quando Joe May contratou Lang para ajudá-la e planejar os detalhes da produção.

Ao mesmo tempo, Thea e Lang começaram a desenvolver um segundo projeto, uma história original, “Madonna im Schnee”, recheada de melodrama e mitologia cristã. No enredo, a jovem Irmgard (Mia May) se entrega a John Vanderheit (Hans Marr), um adepto do amor livre, e dá à luz um menino. A mãe solteira se casa com o irmão gêmeo de John, Georg (Hans Marr), para que seu filho tenha um pai. John forja seu próprio suicídio e vai viver como eremita nas montanhas. Ao passar por uma estátua da Virgem Maria com a criança, ele promete que só vai voltar quando a estátua se puser em movimento na direção do vale. Irmgard, desesperada, sai à procura de John. Após alguns acontecimentos, como a morte de Georg, o filme termina com uma tempestade de neve. Uma avalanche espetacular derruba a estátua da Virgem Maria, o eremita pensa que foi a Santa Virgem que realizou o milagre, e retorna para os braços de sua Madona. Os críticos elogiaram as tomadas da natureza impecavelmente fotografadas e principalmente a cena da tempestade, quando uma porta se abre e um clarão ilumina a paisagem de neve.

Joe May deu prioridade à filmagem de Das wandernde Bild, reintitulada como “Madonna in Schnee” , pois estava querendo assumir ele mesmo as rédeas de Das indische Grabmal, que acabou realizando, e se chamou no Brasil, Dono e Senhor. Inconformado com esta traição, Lang voltou a trabalhar para Erich Pommer, levando Thea com ele.

Na Decla eles fizeram então Kämpfende Herzen, também conhecido como Die Vier um die frau. Neste filme, o falsário Meunier (Robert Forster-Larrinaga) entrega um maço de notas falsas para o negociante Harry Yquem (Ludwig Hartan). Este, disfarçado, vai até um lugar subterrâneo, onde se encontra o receptador Upton (Rudolf-Klein Rogge), e compra uma jóia para sua esposa Florence (Carola Toelle), pagando com dinheiro falso. Um outro indivíduo está presente: é Werner Kraft (Anton Edthofer), que deixara a Europa há cinco anos, fora apaixonado por Florence, e tem um irmão gêmeo. Segue-se uma intriga complicada que termina com a solução de todos os mistérios, quando os personagens principais se encontram na casa de Yquem, que se torna cena de uma série de atos violentos e de crimes.

Alguns críticos viram em Kämpfende Bild uma transição óbvia para Dr. Mabuse, o  primeiro dos seus filmes focalizando com realismo as ruas e a sociedade de Berlim, mostrando o contraste entre os clubes privados dos ricos, jogadores de cartola e o submundo. Juntamente com o filme anterior da dupla Lang-Harbou, Das wandernde Bild, Kämpfende Herzen foi localizado em 1986 na Cinemateca de São Paulo por Walther Seidler da Stiftung Deustche Kinemathek de Berlim.

Mais do que qualquer outra das suas obras precedentes, Pode o Amor mais que a Morte / Der müde Tod / 1921, firmaa reputação de Lang como um grande criador. Uma jovem (Lil Dagover) quer salvar o seu noivo (Walter Janssen) das garras da Morte (Bernhard Goetzke). Esta conduz a jovem até uma catedral gigantesca cheia de velas acesas. A Morte, agente do Destino, lhe mostra três velas, que representam a vida de três almas em perigo em diferentes partes do mundo. Se a jovem conseguir impedir que pelo menos uma vela se extinga, a Morte poupará seu noivo. Nos três episódios, a jovem e seu noivo são perseguidos por um tirano cruel. Três vezes a jovem tenta impedir o tirano de matar seu amado; três vezes o tirano realiza seu intento assassino com a ajuda da Morte que, em cada caso, é encarnada pelo executor das mortes. As três velas se apagam e, de novo, a jovem implora a misericórdia da Morte. Esta então lhe dá a última chance: se a jovem lhe trouxer uma outra alma, ela está disposta a restituir a vida do seu amado. Mas nem um velho farmacêutico que se dizia cansado de sua existência, nem um mendigo miserável, nem as velhas de um hospital que viviam dizendo que a Morte tinha esquecido delas, aceitam fazer tal sacrifício. Um incêndio irrompe no hospital e a jovem salva um bebê que ficara esquecido no local. Neste momento, a Morte, cumprindo sua promessa, estende as mãos para tomar sua vida; porém ela entrega o bebê para a mãe aflita. No meio das chamas, a Morte guia a jovem moribunda até o seu noivo morto e, unidos para sempre, suas almas caminham em direção ao céu.

Filme estranho, conjugando o fantástico, o onírico, a alegoria e a fábula, para contar o jogo fascinante de uma jovem com a morte (lembrando o Sétimo Selo / Der Sjunde Inseglet de Bergman), que nos leva para a Bagdad das Mil e uma Noites, a Veneza da Renascença e uma China antiga, onde se desenrolam as provas sobre as quais a heroína deve triunfar, a fim de salvar a vida do seu amado. O tema abordado é o diálogo / disputa que a Morte trava com o Amor com a conclusão de que a nossa existência é um combate perdido com o Destino,  axioma que vem da literatura romântica alemã.

Lang expõe esta idéia com extraordinária riqueza narrativa e visual, colocando as linhas verticais (das velas) e as linhas horizontais (dos degraus da escada da morte) em contraste perpétuo. A audaciosa interação entre luz e sombra, as imagens refletidas na água e nos espelhos, a fumaça das chamas noincêndio final, o desfile das almas entrando no reino dos mortos, a floresta de velas acesas servem como exemplo das qualidades fotográficas do espetáculo. O segmento da China está repleto de feitos miraculosos: o seu cavalo alado, o exército liliputiano e o tapete voador inspiraram Douglas Fairbanks a fazer O Ladrão de Bagdad / The Thief of Bagdad / 1924, uma exposição de truques mágicos semelhantes.

No elenco, sobressaem Lil Dagover e Walter Janssen como os dois amantes (que voltam em todos os episódios), Rudolf Klein-Rogge, que está no segmento oriental e veneziano e Bernhard Goetzke, como a Morte esquelética e angustiada. Um número impressionante de colaboradores, cada qual um artista no seu domínio – destacando- se o decorador Herman Warm e o fotógrafo Fritz Arno Wagner, nesta sua primeira colaboração com Lang (eles estariam juntos novamente em Espiões, M, o Vampiro de Dusseldorf / M e O Testamento do Dr. Mabuse / Das Testament des Dr. Mabuse) – , criaram em uma harmonia rara uma obra que desperta sentimentos  profundos e cria uma atmosfera quase religiosa.

No dia 25 de setembro de 1920, a mulher de Lang, Elisabeth, morre em circunstâncias misteriosas. Não era segredo que Lang e Thea von Harbou haviam se apaixonado quase que à primeira vista. Quando Thea se separou de seu marido, Rudolf Klein-Rogge, ela se mudou para um apartamento no mesmo prédio em que Lang morava. Elisabeth teria surpreendido Lang e Thea em flagrante e teria ficado com raiva ou em estado de depressão. O que aconteceu em seguida ninguém sabe. Apenas uma coisa é certa: Elisabeth foi morta naquele dia por uma bala que varou o seu peito, desferida por um revolver Browning, de propriedade de Fritz Lang. Segundo uma versão, Elisabeth depois de ter visto Lang nos braços da sua roteirista no sofá do seu apartamento, foi para o seu quarto e se matou. Karl Freund  e Hans Feld, editor do Film-Kurier, lançaram a suspeita de que Lang teria, intencional ou acidentalmente, assassinado Elisabeth. Lang insistiu que foi suicídio e Thea confirmou o depoimento dele. O atestado médico que apontou a causa da morte dizia  “tiro no peito, acidente”. Fritz Lang se casaria com Thea von Harbou em 26 de agosto de 1922.

Devido ao sucesso alcançado por Pode o Amor mais que a Morte, Lang e Thea puderam pensar num projeto mais ambicioso: um filme baseado num romance  de Norbert Jacques sobre um criminoso que dissemina o medo e a desordem na Berlim da época, capital de um país assolado pela crise financeira e pela corrupção moral. Dividido em duas partes, Der grosse Spieler, tendo como subtítulo, Ein bilt der Zeit (Um retrato de nossa época) e Inferno, com o subtítulo, Ein Spiel von Menschen unserer Zeist (Uma peça sobre os homens de nossa época), Dr. Mabuse, o Jogador / Dr. Mabuse, der Spieler / 1922 se concentra num gênio do crime que declarou guerra à sociedade.

À frente de uma verdadeira organização, que ele controla pelo terror, Mabuse (Rudolf Klein-Rogge) prepara seus atos criminais com uma precisão científica, disfarçando-se em múltiplos personagens – banqueiro, falsário, boêmio elegante, médico psicanalista ou vagabundo – , uma espécie de Fantomas germânico, encarnando o mal absoluto. Seu grande adversário é o promotor von Wenck (Bernhard Goetzke), guardião da lei escrupuloso e meticuloso que, com muita dificuldade e sacrifícios, acaba encontrando o supercriminoso megalômano, completamente louco na sua oficina de fabricação de moeda falsa, onde ele havia se refugiado, mas de onde não conseguira escapar, porque o edifício estava todo cercado.

Inspirando-se ao mesmo tempo na tradição do seriado e nos acontecimentos contemporâneos o filme é ao mesmo tempo uma obra expressionista e um quase-documentário da Alemanha decadente e perdida dos anos 20. O caráter demoníaco do personagem exprime a profunda inquietação dos tempos, perfilando-se no horizonte do século XX como uma figura premonitória ao nível das atrocidades politicas que se aproximavam.

No plano estritamente estético, avultam numerosas cenas como, por exemplo, aquela da da Bolsa de Valores, a cena do encontro de Mabuse (disfarçado) com o promotor von Wenk no clube Andalusia; a cena da performance de Mabuse (usando um outro disfarce) no teatro fazendo com que uma caravana árabe surja no palco e desça até a platéia, para demonstrar uma experiência de sugestão de massas; a cena da dançarina semi-nua,  que desce do teto do Petit Casino para esconder as mesas de jogo no caso de a polícia chegar;  a sessão de espiritismo; a cena do cerco à casa de Mabuse, suas alucinações e a compreensão de sua impotência, etc.

O ritmo do filme, numa montagem sofisticada, impressionou o público e os técnicos de cinema (inclusive o eminente diretor russo Eisenstein) e a estupenda fotografia de Carl Hoffmann (com Lang também em Siegfried – A Vingança de Kriemhilde) estabeleceu com precisão o clima noir da narrativa.

O filme seguinte de Lang e Thea, Die Nibelungen / 1922-24, grande produção de Erich Pommer para a Decla-Bioscop – UFA, também é em duas partes: Siegfried / Siegfried e A Vingança de Kriemhilde, A Esposa de Siegfried / Kriemhilds Rache, cada qual dividida em sete Cantos.

Na primeira parte, Siegfried (Paul Richter), mata um dragão e, banhando-se no seu sangue, torna-se invulnerável, a não ser no ombro esquerdo. Depois, ele derrota o Rei dos Anões, Alberich (Georg John) que, antes de morrer, entrega ao vencedor o tesouro dos Nibelungos e  a malha mágica, que torna a pessoa que o usa, invisível ou capaz de se transformar em qualquer pessoa. Sigfried deseja casar-se com Kriemhild (Margaret Schön), princesa dos burgúndios, mas o irmão dela, o rei Gunther (Theodor Loos), só aceita conceder a sua mão, se o pretendente ajudá-lo a conquistar Brunhild (Hanna Ralph), a rainha amazona da Islândia, que jurara esposar o homem que a vencesse nas armas. Brunhild esperava que seu pretendente fosse Sigfried, e não Gunther. Graças à malha mágica, Siegfried se transforma em Gunther e vence a guerreira nas três provas exigidas. Em Worms celebra-se o casamento de Siegfried com Kriemhild e o de Gunther com Brunhild bem como a cerimonia que faz de Siegfried e Gunther dois irmãos de sangue. Brunhild diz a Gunther que é sua prisioneira e não sua esposa. Gunther pede de novo auxílio a Siegfried e este, assumindo a forma de Gunther, passa a noite de núpcias com Brunhild. Chega a Worms o presente de casamento de Siegfried para Kriemhild: o tesouro dos Nibelungos. No caminho da missa, Kriemhild e Brunhild discutem e Kriemhild, ofendida, lhe conta como Siegfried, e não Gunther a derrotou. Para se vingar, Brunhild diz a Gunther que Siegfried foi seu amante e o incita a matar Siegfried. O assassinato será cometido por Hagen von Tronje (Hans Adalbert von Schlettow), o conselheiro de Gunther. Kriemhild, inadvertidamente, lhe revela qual é o único ponto vulnerável de Siegfried e Hagen o mata, arremessando um dardo naquela parte do corpo. Brunhild suicida-se diante do túmulo de Siegfried.

Na segunda parte, o rei dos Hunos, Átila (Rudolf Klein-Rogge), pede a mão de Kriemhild. Ela aceita, e parte para o país dos hunos, a fim de preparar sua vingança. Kriemhild dá um filho a Átila e consegue convencer seu marido a convidar Gunther e sua comitiva para uma visita ao seu reino. Kriemhild pede a Átila que mate Hagen Tronje, porém ele se recusa, alegando que um convidado é considerado sagrado. Kriemhild oferece ouro para os hunos pela cabeça de Hagen Tronje. Os hunos atacam os burgúndios durante um festim. A saber do ataque traiçoeiro, Hagen Tronje mata o filho de Átila. Os hunos mantém os burgúndios cercados dentro da casa de hóspedes de Átila. Num ato final de desespero, Kriemhild manda incendiar o edifício. Hagen Tronje e Gunther escapam das chamas. Kriemhild ordena que Hagen Tronje diga onde está o tesouro dos Nibelungos, que ele roubara. Quando Hagen Trojen lhe conta que jurou não revelar o esconderijo do tesouro enquanto um de seus reis ainda estivesse vivo, Kriemhild manda decapitar Gunther. Como Hagen Trojen continua se negando a indicar o local do tesouro, Kriemhild o mata com a espada de Siegfried e morre em seguida de um ataque do coração. Nas palavras finais de Átila,  Kriemhild deve ser levada para perto de seu falecido marido, Siegfried, porque ela nunca pertenceu a outro homem.

O filme é na verdade um puro filme de Lang, parecido com muitos outros anteriores e posteriores do autor: uma história de ódio, morte e vingança. O ódio e o desejo de vingança trazem a morte,  o incessante avanço das trevas onde perecem, um a um, todos os personagens. Thea e Lang  quiseram mostrar os heróis da lenda como simples homens. Die Nibelungen é mais uma história de homens e de mulheres do que de Heróis e de Deuses.

Siegfried Kracauer estigmatizou o filme  como um incipiente documento nazista, que antecipou a propaganda de Goebbels do Terceiro Reich, mas Lang explicou que, para contrariar o espírito pessimista da época, ele queria apenas filmar a grande lenda de Siegfried, a fim de que a Alemanha  pudesse se inspirar no seu passado épico.

Transformando uma série de pinturas célebres (de Wilhelm von Kaulbach, Franz von Stuck, Gaspar David Friedrich, Arnold Böcklin, Heinrich Vogeler, Max Klinger, etc.) em imagens cinematográficas, Lang ilustrou a lenda em todo o seu esplendor bárbaro com imagens muito belas – percebendo-se uma tendência para a abstração e estilização formal -, que permanecem constantemente fiéis ao mito: Siegfried forjando sua espada na caverna do ferreiro iluminada em esplêndido claro-escuro; Siegfried cavalgando seu corcel branco pela floresta gigantesca invadida pela bruma e por raios de sol; a fileira de soldados como pilares em primeiro plano de costas para a câmera, e ao fundo a procissão da corte que se aproxima lentamente da catedral de Worms; Brunhild saindo de seu navio e os soldados fazendo uma espécie de ponte flutuante com os seus escudos; os interiores do castelo e da catedral de Worms; o caminho pedregoso e o mar de fogo que circundam o castelo de Brunhild; o jardim florido onde se encontram Siegfried e Kriemhild; a cerimônia do casamento duplo; o conflito entre Brunhild e Kriemhild na longa escadaria; o corpo de Siegfried no caixão cercado de velas, tendo a seu pé, à esquerda,  Brunhild vestida de preto, morta pelo seu próprio punhal e, à sua cabeceira à direita, Kriemhild ainda com sua roupa branca, pranteando-o; as crianças nuas com grinaldas no cabelo ao lado de uma árvore bem fina e de Atila numa armadura montado no cavalo; e a visão, particularmente notável, dos anões acorrentados servindo de pedestal para ornamentar uma urna imensa, que contém o tesouro de Alberich – quando amaldiçoados por seu mestre, as criaturas escravizadas se metamorfoseiam em figuras de pedra gigantesca.

A arquitetura plástica do filme é quase sempre baseada na simetria, no equilíbrio, na ordem e numa busca evidente de harmonia. Porém na segunda parte estes valores degeneram, se destróem: o espaço da ação torna-se um espaço asfixiado, onde triunfam a selvageria e o caos. Aos castelos majestosos, às arcadas e nichos, ao arco-íris em torno da montanha, aos gestos e trajes com desenhos geométricos, correspondem, na segunda parte, as tendas apertadas e apinhadas de gente, o chão de barro, as peles de animais nas paredes, as estepes áridas, em marcante contraste com o ambiente nativo de Kriemhild. O ritmo também muda entre as duas partes, passando de majestoso, solene para um maior dinamismo, por causa do número incessante de cenas de ação.

Lang disse que seu fotógrafo, Carl Hoffmann, foi capaz de executar visualmente tudo o que o diretor havia imaginado por meio da luz e da sombra. Mas também importante foi a contribuição do inventivo segundo cameraman, Günther Rittau (que realizou duplas exposições com a câmera em vez de usar o laboratório), dos decoradores Otto Hunte, Erich Kettelhut e Karl Vollbrecht (construtor do dragão), sem falar no “sonho dos falcões”, um trecho de pura animação, providenciado por Walter Ruttmann e na contribuição de Eugen Schüfftan na petrificação dos anões.

Em 2 de outubro de 1924, Lang, Erich Pommer e a Gertrude, mulher Pommer foram aos Estados Unidos para a estréia americana de Die Nibelungen. A primeira visão  que Lang  teve de Nova York  foi do convés do navio. “Alí”, Lang gostava de declarar em várias entrevistas, “Eu concebí Metropolis”. Entretanto, Erich Pommer já vinha comentando sobre este novo projeto de Lang durante os últimos dias de filmagem de Die Nibelungen , meses antes da viagem à América.

Reunindo quase a mesma equipe técnica de Die Nibelungen (com exceção de Carl Hoffmann, agora substituído por Karl Freund), Metropolis foi concebido para ser o filme mais caro e ambicioso feito até então na Europa, com milhares de figurantes, cenários monumentais e efeitos especiais. O criativo Günther Rittau idealizou alguns dos melhores efeitos especiais do filme, inclusive a mutação diante da câmera do robô-Maria de uma criatura de metal cubista para um ser de carne e osso enquanto Eugen Shüfftan, com o seu famoso processo de espelhos, tornou imensas as maquetes da cidade.

Thea von Harbou imaginou uma cidade futurista construída sobre os ombros do trabalho escravo. No alto da cidade vive uma classe ociosa presidida por Joh Fredersen (Alfred Abel), o senhor de Metropolis; no subsolo, labutam  os trabalhadores escravos. Um dia, nas portas do Jardim Eterno, onde Freder  (Gustav Fröhlich), o filho de Fredersen passa dias felizes na companhia de seus amigos, aparece Maria (Brigitte Helm), rodeada por um grupo de crianças miseráveis. Maria é expulsa do local, mas Freder fica como que hipnotizado pela moça. Tentando reencontrá-la, ele descobre a cidade em baixo, revolta-se contra o sistema odioso, e decide compartilhar a sorte de seus irmãos, substituindo um dos operários na manutenção da Máquina Central. O descontentamento dos operários é refreado por Maria, uma pregadora que, nas profundezas da antigas catacumbas, anuncia para breve a chegada de um mediador que “unirá as mãos com o cérebro, porque ele será o coração”. Informado pelo contramestre Groth (Heinrich George) dos planos de insurreição dos operários, Fredersen pede ao cientista Rotwang (Rudolf Klein-Rogge), que mora numa casa antiga no centro da cidade, para construir um robô, duplo perfeito de Maria, a fim de desmoralizar e confundir as massas. Aproveitando para se vingar de Fredersen, que no passado havia lhe roubado a noiva, Hel, Rotwang programa a Maria-robô para liderar a revolta dos operários, a fim de destruir o império do senhor de Metropolis.  O plano do cientista surte efeito, a falsa Maria provoca o caos nos subterrâneos, causando a destruição das máquinas e uma inundação. Freder e Maria salvam as crianças do afogamento. Rotwang, enlouquecido, pensa que Maria é Hel, e a persegue, acabando por despencar do telhado da catedral, após uma luta com Freder. Groth e os operários revoltam-se contra a Maria robô e a queimam em uma fogueira. Finalmente, Fredersen cai em si, e se reconcilia com os trabalhadores.

Tal como em Die Nibelungen, estão presentes o estilo decorativo, a monumentalidade dos cenários, as cenas de multidão, e a direção criativa de Lang,  resultando uma sucessão de visões alucinantes, nas quais se encontram  expressionismo e surrealismo, e que são trechos de antologia: os grupos geométricos de trabalhadores, vestidos de uniforme, marchando sincopadamente  com os ombros arqueados e de cabeça baixa em direção aos elevadores que conduzem ao subsolo, onde estão as máquinas; Freder vendo a Máquina Central como um Moloch de boca aberta e olhos brilhantes, devorando os homens; Freder no paredão branco e os feridos passando em silhueta; Maria pregando nas catacumbas com as cruzes brancas ao fundo contrastando com os vultos negros e pálidos dos operários; a coluna ondulante de milhares de escravos de cabeça raspada arrastando uma pedra enorme  na construção da Torre de Babel; a criação de Maria-robô diante de um líquido borbulhante e flashes de eletricidade, fumaça e vapor; o delírio de Freder na catedral vendo as estátuas dos Sete Pecados e a da Morte com sua foice se animarem; Rothwang perseguindo Maria nas catacumbas, a escuridão iluminada apenas por um simples feixe de luz de sua lanterna, que revela o horror do ambiente cheio de esqueletos e caveiras; Maria-robô piscando o olho para Freder e depois tudo começando a rodar quando ele a avista com seu pai; os frequentadores do Clube Ioshiwara fascinados pela falsa Maria dançando com um vestido transparente e coberta de jóias; a destruição da Máquina Central pela população sublevada; a pirâmide de braços que se elevam em súplica durante a inundação  e as crianças agarradas ao corpo de Maria na última ilhota de concreto ainda não submersa pelas águas.

Lang manipula admiravelmente a iluminação. A luz chega mesmo a dar uma impressão de sonoridade: o assobio da sirene da fábrica é representado por quatro faróis, cujos fachos luminosos se ejetam como gritos. A luz desempenha igualmente um papel essencial na criação do robô assim como na sinfonia das máquinas.

Além de ser palco de uma manifesta luta de classes, Metropolispode ser vista também como o espaço de um conflito entre o mágico e o oculto (o mundo de Rothwang) e a tecnologia moderna (o mundo de Fredersen). É pela magia que Rothwang quer se vingar de Fredersen e o intermediário escolhido é uma mulher, que no seu duplo aspecto e no seu duplo rosto, é a única que tem acesso aos dois mundos.

Muitos críticos não se conformaram com o sentimentalismo e ingenuidade do desenlace, quando os operários fazem (superficialmente) as pazes com o senhor de Metropolis no pórtico da catedral gótica; mas ele não obscurece a enorme realização técnica do filme.

Em junho de 1927, Lang anunciou que havia formado sua própria companhia, Fritz Lang-FilmGmbH, com dois sócios, Herman Fellner e Joseph Somlo. Porém na tela o título de “produtor” seria somente de Lang enquanto a UFA cuidaria da distribuição e publicidade dos filmes da nova empresa. Lang e Thea começaram então a preparar seu próximo projeto, um thriller de mistério e espionagem chamado simplesmente, Espiões / Spionen.


O banqueiro Haghi (Rudolf Klein-Rogge) é o chefe de uma organização de espionagem. Ele manda uma de suas agentes, a russa Sonja Barranikowa (Gerda Maurus), seduzir o Coronel Jellusic (Fritz Rasp), a fim de comprar documentos importantes de seu país. Ela cumpre sua missão e Jellusic, confrontado com seus superiores, é obrigado a se matar. Haghi obriga Sonja, cada vez menos disposta a realizar este tipo de trabalho, a ganhar a confiança  do agente 326 (Willy Fritsch), o melhor elemento de que dispõe o chefe dos serviços secretos, Burton Jason (Craighall Sherry), para lutar contra os espiões. Sonja e o agente 326 apaixonam-se. Haghi suspeita dos sentimentos de Sonja pelo agente 326 e, quando ela se recusa a agir contra ele, Haghi tranca-a num quarto de seu esconderijo secreto. Enquanto isso, Haghi manda outra de suas colaboradoras, Kitty (Lien Dyers), atrair o Dr. Masimoto (Lupy Pick), encarregado da segurança do cofre que contém um tratado secreto de importância vital para o Japão. Kitty se apodera do documento e o entrega para Haghi. Em desgraça, Masimoto comete haraquiri. O agente 326 envia a Jason o número das séries das notas do banco usadas para pagar Jellusic e Jason as transmite para o agente 719, que trabalha disfarçado como o palhaço Nemo num circo, a fim de que ele siga o rastro das notas. O agente 326 escapa de um desastre de trem preparado por Haghi . Em seguida, ele manda cercar o banco de Haghi e todo o bando de espiões escondido no subsolo é preso. Um funcionário do banco informa a Jason e ao agente 326 que o número das séries das notas de banco que o agente 719 lhe deu para rastrear não são as notas verdadeiras. Os dois agentes secretos percebem que o agente 719 era o próprio Haghi. Quando o palhaço Nemo entra em cena no circo, ele percebe que está cercado pela polícia, e se mata com uma bala na cabeça, antes de dizer: “Cortina”. O público, pensando que a cena  faz parte do espetáculo, aplaude.

Considerado como um dos filmes precursores dos filmes de espionagem, mais dinâmico do que Dr. Mabuse, o Jogador, Os Espiões oferece inúmeras sequências admiráveis: a primeira expondo, numa montagem excitante, uma série de crimes  – roubo de documentos secretos e assassinatos – , as reações frenéticas da polícia e de outros agentes que termina com um dos policiais gritando: ”Meu Deus, quem está por detrás disso?” e, logo em seguida, o close-up de Haghi olhando diretamente para a câmera  e declarando: “Eu”; a sequência no salão de danças onde, após uma luta de boxe, surgem pares de dançarinos rodopiando em torno do ringue; o haraquiri de Masumoto depois de ver os fantasmas de seus três emissários; as cenas da colisão dos trens, com os números 33-133 sobrepostos às rodas da locomotiva, que corre a toda velocidade e vai se chocar com o vagão, onde se encontra o herói; a sequência de suspense e sensualidade (e de um jogo de luz e sombras) na qual Sonja tenta se livrar das cordas que a prendem a uma cadeira enquanto o chofer luta contra dois asseclas de Hagui; a sequência do banco sendo invadido metodicamente pelas forças policiais, Haghi contra atacando com o gás mortal e o agente 326 tentando desesperadamente salvar Sonja; a sequência final quando o palhaço Nemo / Haghi, em sua performance no palco, avista os policiais armados na platéia e nos bastidores do teatro e, abruptamente, dá um tiro na cabeça. Esta última sequência é um dos maiores desfechos de filme da História do Cinema.

As semelhanças entre Os Espiões e Dr. Mabuse são inequívocas. Em ambos os filmes, Rudolf Klein-Rogge interpreta um criminoso onipresente e misterioso e em ambos Lang se aproxima do mundo “real” e de personagens reais, um mundo imediatamente reconhecível pelo público, descartando os elementos fantásticos, que eram predominantes nos seus primeiros trabalhos.

Em Os Espiões, o diretor abandonou o formalismo e a estilização de Die Nibelungen e Metropolis e retornou ao estilo de Dr. Mabuse, realizando um filme de aventuras de tirar o fôlego, afastando-se cada vez mais do pictórico e do visual, para privilegiar o movimento e os acontecimentos da trama. Também, tal como no filme Dr. Mabuse, todos os elos da intriga mirabolante se entrosam, um incidente faz surgir e precipita o próximo por uma associação de idéias e ainda existe o  uso da elipse para acelerar a ação, a mesma lógica matemática, como observou Lotte Eisner.

O derradeiro filme mudo de Fritz Lang, A Mulher na Lua / Die Frau im Mond / 1929 focaliza a tripulação da primeira expedição à lua. Ela inclui Wolf Helius (Willy Fritsch), um cientista dedicado, que atua como piloto; Hans Windegger (Gustav von Wangenheim), o engenheiro-chefe de caráter fraco; Friede Welten (Gerda Maurus), uma  estudante de astronomia; Walt Turner (Fritz Rasp), representante sinistro de uma obscura organização financeira; e  Georg Manfeldt (Klaus Pohl), um velho professor cuja teoria favorita – a de que na lua  existe muito ouro – tornou-o alvo do ridículo na comunidade científica. O jovem Gustav (Gustl Stark-Gstettenbaur), apaixonado por revistas de ficção científica, junta-se ao grupo como clandestino. Wolf Helius está enamorado secretamente de Friede, noiva de Hans. Entretanto, Friede sente-se cada vez mais afastada do seu noivo durante a viagem à lua. Walt mostra que está disposto a tudo para se apoderar dos depósitos de ouro espalhados pelo nosso satélite. No decorrer da história, o professor Manfeldt descobre ouro nas cavernas lunares. Ele encontra Turner, assusta-se, e cai numa fenda na rocha. Turner parte em direção ao foguete e amarra Hans. Turner não consegue penetrar no foguete, porque Friede fechou as portas. Hans consegue se libertar e luta contra Turner que, antes de morrer, atira num dos tanques de oxigênio. Hans e Helius examinam os danos; uma pessoa deverá permanecer na lua. Eles tiram a sorte, Hans perde e entra em pânico.  Então Helius decide  ficar. É Gustav que pilota o foguete de volta à Terra. Helius vê o foguete alçar vôo e desaparecer. Ele chora e, olhando para trás, vê que Friede também ficou na lua.

A Mulher na Lua é uma mistura de dois gêneros: espionagem e ficção científica. Na sua primeira parte, passada na Terra, predomina a trama de espionagem (roubo de documentos, chantagem, perseguição, etc.); na segunda, passada na Lua, sobressai a ficção científica (as grandes estruturas metálicas, a partida do foguete,  os círculos de gravitação em torno da Terra e da Lua, o espaço vazio do solo lunar magnificamente iluminado por Curt Courant / Otto Kanturek, etc.).

Alguns críticos consideraram o argumento banal e os personagens esquematizados, implicando também com o conflito amoroso melodramático; porém ninguém  contestou a inventividade formal do diretor e a sua habilidade na condução das tensões psicológicas entre os personagens.

A preocupação principal de Lang foi com a autenticidade e, por isso, ele contratou como conselheiros técnicos Hermann Oberth e Willy Ley, dois grandes especialistas em construção de foguetes e viagens interplanetárias, que lhe forneceram preciosas informações a respeito. Isto porém não impediu que ocorressem algumas licenças artísticas em benefício da intriga como, por exemplo, a existência de ouro e  oxigênio na lua; mas, muito do que ele e seus consultores idealizaram, se tornaria realidade a contagem regressiva por ocasião da partida do foguete e o seu lançamento em dois estágios.

Segundo Lang, em  1937, a Gestapo confiscou os dossiês da produção que ainda existiam, as maquetes, e todas as cópias do filme que pôde recuperar, “porque eles tiveram receio de que o foguete se assemelhasse muito ao projeto dos mísseis V 1 e V 2”. O filme foi proibido sob o Terceiro Reich. Oberth ficou na Alemanha e contribuiu para a pesquisa científica nazista. Ley fugiu do regime nazista e se radicou nos Estados Unidos, onde se tornou um convidado frequente para  jantar na residência de Fritz Lang em Hollywood.

DESENHOS ANIMADOS DE PROPAGANDA AMERICANOS DURANTE A 2ª GUERRA MUNDIAL

dezembro 10, 2011

No dia do ataque japonês a Pearl Harbor, 7 de dezembro de 1941, o Exército se instalou no estúdio de Walt Disney. Como era domingo, Walt ouviu as notícias sobre o ataque pelo rádio e depois recebeu um telefonema do gerente do estúdio, avisando-o  de que  soldados armados haviam entrado no terreno de Burbank. Sua tarefa era construir uma bateria anti-aérea, para proteger a fábrica da Lockheed, que ficava perto e fabricava aviões para as forças armadas. Logo, caminhões do exército entraram no terreno, a camuflagem foi estendida em torno dos prédios, as garagens do estacionamento e os galpões de armazenagem convertidos em depósitos de munição, a segurança militar  introduzida e todos, inclusive Walt e seu irmão Roy,  obrigados a usar um crachá de identificação.

Desde 1940, Walt havia começado a solicitar trabalho ao governo como um caminho para tirar o estúdio de seus problemas financeiros. Em 3 de abril de 1941, Walt  ofereceu um almoço e uma conferência no estúdio para funcionários do governo e representantes das indústrias de defesa. Ele disse:  “Temos as instalações, o equipamento e o pessoal e estamos querendo fazer tudo o que pudermos para ajudar de alguma forma”.

Enquanto aguardava uma resposta, ele contratou um engenheiro da Lockheed, George Papen, para ajudá-lo a produzir um desenho animado educacional chamado Four Methods of Flush Riveting (tradução literal: Quatro Métodos de Embutir Rebites), o qual mostrou para o documentarista John Grierson, presente na conferência como representante da National Film Board of Canadá. Pouco depois, Walt conseguiu seu primeiro contrato, através de Grierson, para fazer um filme instrutivo sobre um rifle antitanque (Stop That Tank!) e 4 curtas para promover a venda de bônus de guerra: The Thrifty Pig, The Seven Wise Dwarfs, Donald’s Decision e All Together.

Stop That Tank! contém um ou dois episódios cômicos mas é essencialmente um filme de instrução sério sobre a utilização de um novo rifle antitanque, misturando tomadas reais e animação (vg. quando o tanque de Hitler é destruído pela nova arma, ele vai para o Inferno esbravejando, porém o Diabo, não o suportando mais, espanca-o com um porrete); The Thrifty Pig é uma refilmagem de Os Três Porquinhos com o Lobo Mau transformado em nazista, tentando (mas fracassando) destruir a casa que um dos porquinhos construiu com os bônus de guerra; em The Seven Wise Dwarfs, após um dia de trabalho na mina de diamantes, os anões caminham carregando sacos de pedras preciosas, graças aos quais eles vão comprar seus bônus de guerra – a famosa canção “Heigh Ho” de Branca de Neve e os Sete Anões é utilizada, mas com outra letra: “Lend your savings / Keep your money fighting / Invest in Victory”; Donald’s Decision, usa trechos do desenho O Outro Donald / Donald’s Better Self e Calma em Tudo / Self Control: o lado demoníaco do personagem de Donald incita-o a gastar seu dinheiro enquanto seu lado angélico aconselha-o a poupar, para comprar bônus de guerra; All Together mostra um desfile de personagens de Disney: Pinocchio, Geppeto e Figaro (trechos do filme Pinocchio), Donald e seus sobrinhos (trechos do desenho Bons Escoteiros / Good Scouts / 1938), Mickey e a orquestra do desenho A Banda do Barulho / The Band Concert / 1935, Pluto e os sete anões marchando diante do Parlamento Canadense com cartazes incentivando a compra de bônus de guerra.

Em maio de 1941, com a greve de seus empregados se aproximando, Walt sentiu nova urgência em obter trabalho do governo e o estúdio intensificou seus esforços para isso. Walt despachou Vera Caldwell, do departamento de treinamento, para Washington, e fez com que ela fosse de escritório em escritório, inclusive s do General Marshall. Walt continuou insistindo em que a companhia fazia apenas seu dever patriótico mas que o estúdio precisava dos contratos, nem que fosse para manter os animadores trabalhando e cobrir as despesas gerais. Então, quando Pearl Harbor foi atacada, Walt já estava profundamente envolvido em trabalhos para o governo e disposto a fazer mais.

Em 8 de dezembro, a Marinha ofereceu ao estúdio um contrato para a confecção de 20 filmes sobre a identificação de aviões e navios de guerra e, dez dias depois, o Departamento do Tesouro pediu a Walt para fazer, com urgência,  um filme no qual pudesse estimular os americanos a pagar seus impostos. Walt reuniu-se com seus colaboradores Joe Grant e Dick Huemer que esboçaram, em dois dias, uma história com o Pato Donald no papel do cidadão comum, que  não paga seus impostos até o momento em que lhe explicam que este dinheiro servirá para o esforço de guerra do país.

Quando as storyboards para o filme, intitulado The New Spirit / 1942, ficaram prontas, Walt, acompanhado de Grant e Huemer, partiu para Washinghton, a fim de mostrar ao Secretário do Tesouro, Henry J. Morgenthau, o desenvolvimento do projeto. Morgenthau não ficou satisfeito e disse a Disney que esperava que ele criasse um Senhor Contribuinte para o filme em vez de utilizar um dos personagens do estúdio. “Estou desolado”, respondeu Walt, “mas existem muitas pessoas que o amam … Eu lhe dou Donald. Para o nosso estúdio é como se a MGM  lhe desse Clark Gable”.  Morgenthau não teve outra escolha senão  aceitar, mesmo porque, se o filme tivesse que ser recomeçado do zero, não terminaria a tempo. A resposta do público foi espantosa. No ano de 1942, o pagamento dos impostos foi o mais rápido registrado na história da administração fiscal americana. O crítico do New York Times, Bosley Crowther, qualificou-o como “o filme de propaganda mais eficaz jamais realizado por um governo”.

Em 1943, Disney realizou para Morgenthau uma continuação de The New Spirit. Em The Spirit of ’43, o Pato Donald é novamente retratado como um homem comum, que acabou de receber seu salário semanal. Ele encontra duas manifestações físicas de sua personalidade: o pato poupador, que o aconselha a guardar o dinheiro para pagar fielmente seu imposto de renda a cada três meses,  e a do esbanjador, que o incentiva a gastar tudo rapidamente. O “pato bom” aparece vestido de saiote e gorro escocês e tem uma semelhança com o Tio Patinhas; o “Pato ruim” surge com um traje com ombros largos, paletó muito comprido, calças amplas e muito estreitas em baixo, o “zoot suit”, popularizado nos anos 40 por jovens rebeldes de comunidades negras, mexicanas e italianas.

O narrador explica que os americanos devem “com prazer e orgulhosamente” pagar seu imposto de renda que estava mais caro naquele ano  “graças a Hitler e Hiroito”. A segunda parte do filme é uma montagem mostrando como os impostos são usados para construir aviões, bombas, navios e outros materiais de guerra e estes sendo usados contra as forças do Eixo.

A maior contribuição do Pato Donald para o esforço de guerra americano foi,  incontestavelmente, Vida de Nazista / Der Fuherer’s Face / 1943 (ex-Donald in Nutzi Land). Inicialmente concebido com a finalidade de vender bônus de guerra, este desenho animado anti-nazista obteve um sucesso retumbante e levou o Oscar de Melhor Curta-Metragem Animado para 1942 (embora tivesse sido lançado em  1 de janeiro de 1943).

Donald sonha que é um operário numa fábrica de armamentos em Nutziland (onde tudo, desde árvores e nuvens, é decorado com suásticas), esgotando-se para atender às exigências exageradas do Fuherer.  Além da comédia (o café da manhã de Donald composto de um único grão, uma fatia de pão duro e um spray que tem o gosto de ovos com bacon) o desenho tem momentos de surrealismo quando Donald executa seu trabalho de montar peças de artilharia e fotos de Hitler numa esteira cada vez mais acelerada. Depois de umas “férias pagas”, o que consiste em ficar alguns segundos em frente a um painel dos Alpes, Donald é forçado a fazer hora extra e acaba sofrendo um colapso nervoso com alucinações em que tudo se transforma em peças gigantescas de artilharia. Quando as alucinações acabam, Donald percebe que está na sua cama na América e tudo não passou de um pesadelo. Na última cena, um tomate atinge um retrato de Hitler, formando as palavras “The End”.

Vida de Nazista foi um ataque frontal dirigido contra o Terceiro Reich, uma sátira muito eficiente da vida na Alemanha hitlerista, tornando-se um clássico da animação. O desenho ficou igualmente célebre graças a sua canção irreverente, composta por Oliver Wallace (que começou sua carreira como pianista no tempo do cinema mudo e foi contratado por Disney em 1936) e depois gravada por Spike Jones,  o líder da banda “City Slickers”, com grande sucesso.

Educação para a Morte / Education for Death / 1943 foi outro desenho de propaganda dos estúdios Disney com um forte teor anti-nazista,  inspirado no livro de Gregor Ziemer, “Education for Death – the Making of a Nazi”, que denunciava a influência do partido nacional socialista sobre a educação dos jovens alemães.

O filme começa num estilo documentário, mostrando a maneira pela qual a burocracia nazista controla a vida de suas vítimas desde o seu nascimento – os pais do personagem central, Hans, devem seguir à risca as instruções para escolher o nome de seu filho. Depois, evoca uma nova versão de A Bela Adormecida, ameaçada por uma feiticeira malvada, chamada “Democracia”; é então que o príncipe encantado chega como um cavaleiro da Idade Média e beija a princesa adormecida. Tudo isto se passa na penumbra e, quando a luz se acende, vemos que a bela princesa é de fato uma alemã obesa, bebendo cerveja, e cujo prenome é Germania; seu príncipe é uma caricatura de Hitler, que tem dificuldade de erguer a gorducha, para colocá-la no seu cavalo.

Hans torna-se um membro das Juventudes Hitleristas e o filme termina com um comentário do narrador: “e agora sua educação está completa … ele está preparado para morrer”. Aparece então um desfile de soldados que se transformam em milhares de cruzes gamadas sobre os túmulos de um cemitério sem fim.

A atmosfera de Educação  para  a Morte é sufocante. As sombras que caem sobre os personagens reforçam a idéia de clausura. A música é lancinante e as cores preta e vermelha, unidas, evocam a violência. A metamorfose é usada para narrar os acontecimentos: a Bíblia é transformada num exemplar de Mein Kampf e um crucifixo numa espada nazista. A animação dos humanos é muito convincente,  sobretudo no que concerne Hans e a mãe. Os personagens parecem impotentes diante da administração alemã e o interlúdio cômico entre Germania e Hitler não chega a mudar a atmosfera sinistra do filme.

Em Razão e Emoção / Reason and Emotion / 1943, o narrador destaca a necessidade de um bom equilíbrio entre a Razão e a Emoção, para resistir à propaganda nazista.

Se o povo alemão não tivesse se deixado dominar pelos apelos diabólicos dos nazistas às suas emoções primitivas e tivessem somente exercido seus poderes de raciocínio, provavelmente o Partido Nazista não existiria. Os animadores puseram esta idéia no desenho da seguinte forma: eles mostraram um corte transversal no cérebro humano. No cérebro estão os lugares da Razão e da Emoção. São como lugares num automóvel. Na frente, no assento do motorista, senta-se a Razão, personificada por uma figura sóbria, intelectual – um tipo comum de professor. Ele  dirige os controles do cérebro humano da mesma maneira com que nós dirigiríamos  um automóvel. Porém no assento traseiro está, de mau humor, a Emoção, personificada por um inculto e enfezado homem das cavernas.

O que aconteceria nesta peça delicada de maquinaria, o cérebro humano, se a Emoção assumisse  a direção do automóvel? A seguir, o filme explica como Hitler manipulou as emoções do povo alemão. É mostrada uma caricatura excelente do Fuherer, usando medo, simpatia, orgulho e ódio para  fazer  a Emoção dos alemães virar contra a sua Razão. Uma cena muito eficaz mostra a Emoção escravizando a Razão num campo de concentração. No final, Razão e Emoção se unem como co-pilotos, manobrando um avião de guerra, para derrotar o inimigo.

O tom de Raposa Boateira / Chicken’s Little / 1943, era radicalmente diferente. A ação se desenrola numa granja habitada por aves, protegida por um muro de madeira bem alto, o que não impede que a raposa Foxy Loxy consiga dizer para Chicken Little, um galinho simplório e campeão de iô-iô,  que o céu está caindo e que ele deve convencer as aves a se refugiarem numa gruta, onde ela pretende devorá-las. A raposa pensa então que uma simples dose de psicologia é necessária e murmura por um buraco no muro que Chicken Little é um líder nato e Cocky Locky, o galo supervisor do galinheiro (que havia refutado a afirmação alarmante do galinho), não serve para nada. Esta campanha de difamação funciona e, induzidas por Chicken Little, as aves saem todas em pânico da granja, indo se refugiar numa gruta. Na cena final, vemos a raposa palitando os dentes e arrumando uma fileira de cruzes feitas com ossos semelhante a um cemitério de guerra. O filme foi destinado a prevenir os americanos contra os rumores e as notícias falsas, que eram moeda corrente na época. Originariamente, devia conter mais conotações políticas. A raposa deveria ler “Mein Kampf”(Minha Luta) e as cruzes sobre os túmulos das aves mortas, seriam  suásticas; porém Disney preferiu extirpar essas referências.

Em complemento a toda essa atividade abundante, os estúdios Disney produziram igualmente um desenho em longa-metragem de propaganda, A Vitória pela Força Aérea / Victory through Air Power / 1943, um filme misturando animação e tomadas reais (confiadas a H.C. Potter, que havia acabado de terminar Pandemônio / Hellzapoppin) baseado no livro controvertido do Major Alexander de Seversky do mesmo nome, no qual este propunha a criação de uma força aérea estratégica para a vitória aliada. Tratado como excêntrico pela maioria dos altos-responsáveis de Washington, de Seversky apresentou seus argumentos no referido livro, que se tornou um sucesso de vendas.

A parte principal do filme desenvolve três temas. O primeiro descreve certos acontecimentos da guerra, Dunkerke, a queda da Noruega e a de Creta, a batalha da Inglaterra, Pearl Harbor, preocupando-se em mostrar as consequências da presença ou não da aviação. O segundo tema evoca as dificuldades do transporte dos reforços aliados. O terceiro tema consiste  na exposição feita pelo próprio Seversky das diferentes teorias de estratégias aéreas, todas descartadas menos a sua evidentemente, a idéia de que a aviação de longo alcance seria a única capaz de propiciar a vitória e abreviar a guerra.

A sequência final de Vitória pela Força Aérea mostra os bombardeiros em plena ação, decolando para o Japão, atacando as cidades e as fábricas e neutralizando sua força. Então uma águia gigante surge no céu tendo por alvo um polvo. A águia investe contra o polvo várias vezes até que ele bate em retirada e larga o facão que mantinha sob seus tentáculos e que cravara sobre um mapa múndi. A águia se empolera então triunfalmente na superfície de um globo, que vem a ser o alto de um mastro com a bandeira americana, sobre a qual se inscreve a frase Vitória pela Força Aérea.

Vitória pela Força Aérea não foi o único projeto de adaptação para um longa-metragem de uma obra literária sobre aviação. Foi mais ou menos nessa  mesma época, que Disney começou a trabalhar em um outro projeto inspirado por “Gremlin Lore”, uma história sobre espíritos travessos, os gremlins (duendes) pretensamente responsáveis por desastres aéreos durante a guerra. O conto era de autoria de Roald Dahl, naquele tempo um aviador servindo na embaixada britânica em Washington. Disney adquiriu os direitos de filmagem em 1942, mas depois, levando em conta principalmente  adificuldade de visualizar os seres indefiníveis que são os gremlins e o cansaço do público por filmes de guerra, interrompeu o projeto em outubro de 1943.

Outros filmes foram abandonados no curso da filmagem, alguns quase prontos, por diversas razões e mesmo, em certos casos, sem qualquer explicação, como por exemplo, The Square World, sátira graficamente muito elaborada sobre a conformidade que os regimes fascistas exigem e Democracy, que deveria contar a história de uma família que se refugia nos Estados Unidos, depois de fugir da Alemanha.

Disney fez ainda muitos filmes curtos de educação sanitária (vg. The Winged Scourge; Water, Friend or Enemy; Defense Against Invasion, Cleanliness Brings Health), colocou-se à disposição de várias agências governamentais como o Departamento de Agricultura  (para o qual realizou Food Will Win the War / 1942) ou para a Conservation Division of the War Production Board (que utilizou os talentos de Minnie Mouse em Out of the Frying pan into the firing line / 1942) e continuou com seus desenhos curtos habituais, alguns deles de propaganda como por exemplo,  A Mascote do Exército / Army Mascot, / 1942, Donald é Sorteado / Donald Gets Drafted / 1942, O Soldado Invisível /The Vanishing Private / 1942, Aviador do Barulho / Sky Trooper / 1942,  A Sentinela / Private Pluto / 1943, Dois Espertalhões / The Old Army Game / 1943 Meu Pneumático / Donald’s Tire Trouble / 1943, O Automo-Bastão / Victory Vehicles / 1943, Posto de Observação / Home Defense / 1943, Um Dia no Exército / Fall In Fall Out / 1943, O Paraquedista / Commando Duck / 1944, Pateta, o Marujo / How to Be a Sailor / 1944.

Também podem ser considerados de propaganda as contribuições de Disney para a Política da Boa Vizinhança com a América Latina  Alô, Amigos / Saludos Amigos / 1943 e Você Já Foi à Bahia? / The Three Caballeros / 1945 e as sequências de animação que providenciou para a série  de documentários Porque Combatemos / Why We Fight, supervisionados por Frank Capra.

Diferentemente de Frank Capra, que recebeu uma medalha por serviço prestado, Walt Disney  não recebeu nenhum reconhecimento oficial pela sua contribuição para o esforço de guerra. Teve apenas a satisfação de ver seu estúdio sobreviver e desfrutar de uma boa situação financeira. O déficit de um milhão de dólares que existia antes de Pearl Harbor foi reduzido  para 300 mil dólares (porém o estúdio ainda devia 4 milhões  de dólares ao Bank of America), enquanto que todas as outras companhias de cinema tiveram enormes benefícios com a guerra. Roy Disney, gerente financeiro da companhia, declarou em 1945: “Nós éramos como um urso que sai da hibernação, magros e desencarnados, sem uma grama de gordura sobre os ossos”.

Popeye foi, juntamente com o Pato Donald, o personagem dos cartoons que mais apareceu em desenhos animados de propaganda de guerra. O marinheiro enfezado apareceu em : O Batuta da Armada / The Mighty NaVy / 1942, You’re a Snap, Mr. Jap / 1942, Blunder Below / 1942, O Bombardeiro Humano / Fleet’s of Stren’th / 1942, Ao Fundo os Japoneses / Scrap the Japs / 1942, Seein’ Red, White  ‘n’ Blue / 1943 e Spinach fer Britain / 1943. Estes desenhos foram produzidos pela Famous Studios (sucessora da Fleischer Studios), a divisão de animação da Paramount de 1942 a 1967.

Outro personagem queridíssimo dos fãs do desenho animado, o Pernalonga (Bugs Bunny), também deu a sua contribuição para o esforço de guerra. Any Bonds Today? / 1942, desenho de dois minutos de duração patrocinado pelo governo americano para incitar os espectadores a comprar bônus de guerra, começa com o Pernalonga  vestido de Tio Sam dançando e cantando uma música inspirada em uma canção de Irving Berlin. Depois, pintado de preto, ele faz uma imitação de Al Jolson em O Cantor de Jazz /The Jazz Singer / 1927, e é  acompanhado por Hortelino Trocaletra (Elmer Fudd) e Gaguinho  (Porky Pig) na sequência final. O coelho gozador participou ainda de Falling Hare / 1942, Bugs Bunny Nips the Japs / 1944  e Herr Meets Hare / 1945, provavelmente o último filme de propaganda americano da Segunda Guerra Mundial. Bugs se encontra na Floresta Negra com Hermann Goering,  é capturado por ele, e levado como um troféu para Hitler. Quando Hitler e Goering abrem o saco, no qual Goering  colocara Bugs, o coelho surge disfarçado de Stalin e semeia o pânico entre os dirigentes nazistas (uma tentativa para estreitar os laços entre os americanos e os russos, que combateram lado-a-lado o mesmo inimigo).

Concorrendo com o Pernalonga como o personagem da  série Looney Tunes da Warner que mais trabalhou em desenhos de propaganda americanos na Segunda Guerra Mundial, estava o Patolino (Daffy Duck), astro de três cartoons, produzidos por Leon Schlesinger: Daffy – The Commando / 1943, Scrap Happy Duffy /193 e Plane Daffy / 1944. O melhor é o primeiro, no qual Von Vulture, um abutre nazista, recebe uma mensagem dos “Macacos da Cólera”(Hitler, Mussolini e Hiroito): “se um novo comando aliado ultrapassar as linhas de frente, sua carreira está acabada”. Von Vulture e seu minúsculo assistente, Schultz, são atacados pelo Patolino, que caiu de pára-quedas no campo inimigo. Segue-se uma perseguição através das trincheiras, mas o herói escapa de avião. Tentando evitar a artilharia, o avião é abatido. Patolino encontra refúgio num buraco escuro, que é na realidade um canhão. Ele é propulsionado para o céu, com uma etiqueta “Eu sou uma bomba humana” nas costas e uma bandeira americana nas duas mãos. O célebre pato aterrissa no meio de um discurso de Hitler e bate com uma marreta na cabeça do Fuherer, que para de falar.

Nas séries Looney Tunes e Merry Melodies podemos citar ainda Confusions of a Nutty Spy / 1943, Swooner Crooner / 1944, Rookie Revue / 1941, The Ducktators / 1942, Coal Black and the Sebben Dwarfs / 1943 e Russian Rhapsody / 1944.

O governo americano editava uma revista cinematográfica bimensal chamada Army-Navy Screen Magazine com a finalidade de informar as forças armadas do que acontecia no país e no exterior. Foi no âmbito desta revista que foi criada, em junho de 1943, uma série de 28 desenhos animados, intitulada Private Snafu, patrocinada pelo Exército americano e destinada somente aos soldados.

Os filmes em preto e branco de duração de aproximadamente três minutos, eram produzidos pela Warner, realizados alternadamente pelos diretores de animação do estúdio Chuck Jones, Fritz Freleng, Bob Clampett e Frank Tashlin e usavam a voz de Mel Blanc para Snafu. Mel recordou: “Eu pensava que a voz do Gaguinho seria perfeita para Snafu porque era um personagem triste … Foi por esta razão que eu dei um jeito para que a voz de Snafu fosse a mesma que eu fazia para o Gaguinho”.

Snafu era apresentado como o pior soldado do exército e os desenhos mostravam de maneira cômica tudo o que não se devia fazer para continuar vivo. SNAFU era um termo militar muito comum, a abreviação de uma expressão que significa “Situation Normal: All Fouled (Fucked) Up”. Os filmes de Snafu foram concebidos principalmente para que os soldados que estavam na guerra reconhecessem os engenhos explosivos. O Exército acreditava que, se os soldados os vissem aqueles engenhos nos desenhos animados, eles se lembrariam deles.

Após ter feito inúmeros desenhos na Warner, Tex Avery foi para a MGM, onde teve liberdade criativa total para realizar Blitz Wolf / 1942. O filme é um pastiche dos Três Porquinhos de Walt Disney. Os créditos  anunciam: “O lobo deste desenho animado não é fictício. Toda semelhança entre este lobo e o outro (Hitler) … é proposital …”. Os dois primeiros porquinhos constroem suas casas de palha e madeira  porém a morada do terceiro porquinho, o Sargento Pork, é uma verdadeira base militar. Toda a velhacaria de Hitler é exposta. A certa altura o lobo bate na porta do primeiro porquinho e diz: “Abra a porta senão eu vou assoprar e a sua casa vai voar!”. Um dos porquinhos diz: “Mas Adolf … e o nosso pacto? Você detesta  a guerra! Vou deu sua palavra”. Resposta do lobo: “Você está brincando, eu espero!” Todo o filme é uma alusão à operação Barbarossa deslanchada em segredo por Hitler contra os soviéticos em junho de 1941 apesar deles terem celebrado um pacto de não-agressão em 1939. O lobo chega com uma assopradora mecânica e destrói as casas dos dois primeiros porquinhos. Estes vão se refugiar na fortaleza do Sargento Pork, a guerra começa, e o lobo vai parar no inferno, cercado por um bando de diabos vermelhos. Os letreiros finais anunciam O Fim de Adolf e incitam os espectadores a comprarem bônus de guerra.

Algumas aventuras do Super-Homem / Superman, a série de desenho animado criada por Dave Fleischer, fizeram referência à guerra, principalmente Sabotagem e Cia. / Destruction Inc. / 1942, A Mão Infalível / The Eleventh Hour/ 1942,  Japoteurs / 1942 e Secret Agent / 1943. Em The Japoteurs, um japonês sinistro vestido à paisana, sentado no seu escritório, lê a manchete do Daily News (Planeta Diário):  “O maior bombardeiro do mundo finalmente construído”. Ele se levanta e se inclina diante de um cartaz representando a Estátua da Liberdade, que se transforma em um Sol Nascente. No campo de aviação, são feitos os preparativos de última hora para o primeiro vôo. Lois Lane embarca clandestina na enorme aeronave, a fim de obter um furo. O que ela não sabe é que o japonês  sinistro e seus cúmplices também estão à bordo. Os espiões assumem o controle do aparelho e jogam uma bomba sobre Metrópolis; porém Lois consegue pedir ajuda pelo rádio antes de ser dominada. Surge o Super-Homem e salva Lois de ser jogada como uma bomba. O japonês perde o controle do avião, que ameaça se espatifar sobre a grande cidade. O Super-Homem coloca Lois em segurança e vai ao encontro do bombardeiro, parando-o em pleno ar, e trazendo-o mansamente até o solo. Na cena final, vemos Clark Kent e Lois Lane num avião de brinquedo num parque de diversões. Clark diz para Lois: “Neste avião você está  a salvo”.

LOUISE BROOKS

novembro 30, 2011

Entre 1925 e 1938, Louise Brooks apareceu em 24 filmes porém é mais lembrada pelo seu papel como Lulu em A Caixa de Pandora de G.W. Pabst e pelo seu famoso corte de cabelo curto, copiado por todas as mulheres do mundo.

Ela não era uma das mais importantes atrizes do cinema mudo mas se tornou objeto de idolatria para milhares de fãs, que baseiam esta admiração em biografias e retrospectivas. Hoje Louise é cultuada por seu espírito independente, sua beleza e aptidão artística como intérprete, dançarina e escritora.

Mary Louise Brooks nasceu no dia 14 de novembro de 1906 em Cherryvale, Kansas, filha de um advogado, Leonard  Porter Brooks e de Myra Rude.

Os pais deixavam seus quatro filhos fazerem o que quisessem enquanto ele se dedicava aos negócios e a mãe cultivava o seu interesse pela música e pela literatura. Myra e sua irmã Eva eram ambas pianistas de talento e, além das canções populares do dia, tocavam, sozinhas ou a quatro mãos, obras pianísticas de grande dificuldade. Louise deveu muito da sua sensibilidade estética à Myra e à Eva. Nas raras ocasiões em que Myra voltava sua atenção para seus filhos, ela geralmente se concentrava na alegre e saltitante Louise. “Tanto eu como mamãe tínhamos esperança de que eu me tornaria uma bailarina séria”, Louise recordaria.

A estréia de Louise como bailarina deu-se quando ela interpretou, aos quatro anos de idade, numa produção em benefício de uma igreja, a noiva de “O Casamento do Pequeno Polegar”. Aos oito anos, ela estava na Opera House e, aos dez anos, já atuava em clubes, feiras, teatros e salões de dança em várias aldeias no sudeste do Kansas.

A esta altura, Myra decidiu que Louise precisava de uma nova aparência no palco. Ela levou a filha para um barbeiro e mandou que ele cortasse suas longas tranças pretas, deixando seu cabelo caindo como uma franja sobre a testa. As pessoas chamavam este corte de “Buster Brown cut” (Buster Brown era um personagem dos quadrinhos, conhecido no Brasil como Chiquinho, cujas aventuras eram publicadas na revista O Tico-Tico).

Quando a família se mudou para Wichita, Louise continuou se apresentando nos teatros locais, no Shrine Club, em festas privadas, e estudou dança com Alice Campbell, que acabou expulsando-a da escola por indisciplina. Até que, em 1921, chegou à cidade a companhia de dança moderna de Ted Shawn, da qual faziam parte Martha Graham e Charles Weidman.  Myra e Louise foram aos bastidores após o espetáculo e Shawn, fascinado pela jovem, convidou-a para cursar a sua nova Denishawn Dance School em Nova York no próximo verão.

Os alunos da Denishawn, conforme diretriz imposta pela sua diretora, Ruth St. Denis, esposa de Shawn, “deviam viver em sossego, ler bons livros, ouvir boa música, procurar uma atmosfera de cultura”. Louise, então com quinze anos, cumpriu as três últimas exigências, porém se irritava com a primeira. De repente, na desenfreada e permissiva Era do Jazz, a jovem era confrontada com um código moral desconhecido para ela, mesmo na infância. Certo dia, Louise foi despedida inesperadamente e em público. A senhora St. Denis fez dela “um exemplo” diante do resto da trupe aterrorizada. O motivo de sua demissão não teve nada a ver com sua capacidade como bailarina que, segundo a opinião de Ted Shawn, era bem satisfatória. Louise estava sendo dispensada por causa de sua rebeldia.

Porém Louise não ficou desempregada por muito tempo. Sua amiga Barbara Bennett, irmã de Constance e Joan Bennett, introduziu-a como corista, aos 18 anos, no espetáculo George White’s Scandals de 1924, onde ela chamou a atenção pela boa presença no palco; mas, fora do tablado, ela levava uma vida promíscua, fazendo “programas” com ricaços nos hotéis luxuosos da cidade.

Após uma rápida estadia em Londres, onde foi a primeira jovem a dançar o Charleston no Café de Paris, Louise retornou aos Estados Unidos para ingressar no famoso Ziegfeld Follies. Entretanto, Louise estava insatisfeita. Ela revelou pelo menos uma razão para a sua melancolia: “Para mim, que havia dançado com Ruth St. Denis, Ted Shawn e Martha Graham, minhas pequenas danças no Follies eram enfadonhas”. O seu único momento de prazer acontecia no final do espetáculo com toda a companhia em cena. Para simbolizar a rápida ascensão de Louise na sua organização, Ziegfeld colocou-a na posição mais alta de uma pirâmide de coristas no grande finale.

Ao contrário de suas colegas, Louise não estava procurando fazer uma carreira no cinema, pois achava que os “flickers” eram intrinsicamente inferiores ao teatro; mas, por insistência de Walter Wanger, concordou em fazer um teste nos estúdios Astoria em Nova York. O resultado foi muito bom e, em outubro de 1925, ela assinou contrato com a Paramount.

Antes de seu encontro com o diretor alemão G.W. Pabst, Louise trabalhou em 14 filmes americanos:  O Mendigo Elegante / The Street of Forgotten Men / 1925 (Dir: Herbert Brenon); A Venus Americana / The American Venus / 1926 (Frank Tuttle); Desfrutando a Alta Sociedade / A Social Celebrity / 1926 (Dir: Malcolm St. Clair); Risos e Tristezas / It’s the Old Army Game / 1926 (Dir: Edward Sutherland, primeiro marido de Louise); O Fanfarrão / The Show Off / 1926 (Dir: Malcolm St. Clair); Entre a Loura e a Morena / Just Another Blonde / 1926 (Dir: Alfred Santell); Amá-las e Deixá-las / Love ‘Em and Leave ‘Em / 1926 (Dir: Frank Tuttle); De Casaca e Luva Branca / Evening Clothes / 1927 (Luther Reed); Meias Indiscretas / Rolled Stockings / 1927 (Dir: Richard Rosson); Dois Águias no Ar / Now We’re in the Air / 1927 (Dir: Frank Strayer); Cidade Buliçosa / The City Gone Wild / 1927 (Dir: James Cruze); Uma Noiva em Cada Porto / A Girl in Every Port / 1928 (Dir: Howard Hawks); Os Mendigos da Vida / Beggars of Life / 1928 (Dir: William Wellman) e O Drama de uma Noite / The Canary Murder Case / 1919 (Dir: Malcolm St. Clair).

Merecem destaque: A Venus Americana, por ter mostrado os atributos físicos de Louise com toda a magnificência do Ziegfeld e por ter ocorrido um pequeno escândalo simultaneamente às filmagens, em virtude da divulgação das poses de Louise nua, tiradas pelo fotógrafo teatral John Mirjian; De Casaca e Luva Branca, por Louise (chamada no filme de Fox Trot) ter abandonado temporariamente seu tradicional cabelo curto em favor de um cabelo frizado; Uma Noiva em Cada Porto, por sua importância na carreira de Howard Hawks então um diretor em ascensão – Hawks disse que Louise estava adiante de seu tempo, que era uma rebelde e ele gostava de pessoas rebeldes; Os Mendigos da Vida, por ter proporcionado a Louise um personagem andrógino (ela é uma garota que se disfarça de rapaz para fugir da lei na companhia de vagabundos), sob as ordens de um diretor já de renome, agraciado com o Oscar; e O Drama de uma Noite, pela cena inesquecível de Louise na sequência de abertura do filme como a estrela de “The Canary Revue”, vestida de plumas e se balançando sobre a platéia – ela é uma cavadoura de ouro impiedosa, vítima de um crime, que Philo Vance (William Powell) vai desvendar.

O chamado do chefão da Paramount, B. P. Schulberg, chegou durante a produção de O Drama da Noite, pouco antes da data de opção do contrato, em 12 de setembro de 1928. Todos no estúdio estavam satisfeitos com Louise e ela achou que a reunião seria apenas uma formalidade. A atriz havia cumprido suas obrigações e estava prestes a ter direito a um aumento de salário. Schulberg era um mestre em manipular atores, especialmente aqueles aterrorizados com o cinema sonoro. Ele começou assim: “Não sabemos se a sua voz vai se adaptar aos talkies. Porém, em vez de despedí-la, estamos dispostos a mantê-la em nossos quadros com o seu salário atual. Você pode ficar, ganhando 750 dólares por semana, ou ir embora”. Para grande surpresa de Schulberg, Louise cravou-lhe um olhar destruidor, deu as costas e saiu.

Louise contaria depois que seu amante (mesmo antes de seu divórcio de Eddie Sutherland com quem se casara em 1926) e agente, George Preston Marshall, lhe telefonara de Washington na véspera do seu encontro com Schulberg, avisando-a de que um sujeito chamado Pabst em Berlim queria contratá-la para um filme e que estaria disposto a lhe pagar 1.000 dólares por semana. Pabst tinha visto Louise como artista de circo em Uma Noiva em Cada Porto e fez o pedido de empréstimo da atriz a Schulberg. O diretor Monta Bell, estava então na MGM, mas tinha amigos na Paramount, e deu a deixa para seu amigo Marshall. Este então disse para Louise: “Você deixa Schulberg falar, e quando ele terminar, você diz: ‘Obrigado, Mr. Schulberg, mas eu vou para a Alemanha’. “E isso”, contou Louise, “foi o que eu fiz, para espanto de Mr. Schulberg”.

Marshall e Louise partiram em 6 de outubro de 1928 no S.S. Majestic e, no meio do oceano, chegou um telegrama de Florenz Ziegfeld, oferecendo a Louise um papel para o qual ela servira de modelo: a personagem Dixie Dugan, que fora criada por J. P. McEvoy, numa série de histórias intitulada “Show Girl” (e depois nos quadrinhos), e agora Florenz pretendia levar para os palcos da Broadway. Porém Marshall interceptou a mensagem e tomou a liberdade de telegrafar a seguinte resposta: “Você não pode me oferecer dinheiro bastante para eu fazer o papel”. “Ziegfeld nunca me perdoou”, Louise lamentaria mais tarde.

Os dois últimos filmes silenciosos de Pabst, A Caixa de Pandora / Die Büsche der Pandora / 1929 e Diário de uma Pecadora / Tagebuch einer Verlorenen / 1929 ambos diziam respeito à vida de prostitutas (interpretadas em cada caso por Louise Brooks) e ao meio no qual, suas situações degradantes se relacionavam com a decadência geral da sociedade.

O primeiro filme, inspirado livremente em duas peças de Frank Wedekind, que mostram um universo corrompido, dominado pela sensualidade e “todo organizado  em torno da presença de Louise Brooks  numa atmosfera, raramente igualada, de admiráveis iluminações expressionistas” (Jacques Siclier), não foi bem apreciado na época do seu lançamento e sofreu cortes; porém, a partir de 1950, encantou gerações de cinéfilos e hoje é considerado como um dos clássicos do Cinema Alemão de Weimar.

Sobre a Lulu, uma inocente sedutora, que é explorada por um velho rufião misterioso (que pode ser seu pai), casa-se com um homem de meia-idade e o mata com sua própria arma, apaixona-se pelo seu filho, é amada por uma lésbica, cai na prostituição, e é eventualmente morta por Jack, o Estripador, Lotte Eisner disse que “não foram preciso as frases de Wedekind para acentuar o poder erótico dessa singular criatura terrestre dotada de beleza animal, mas privada de todo senso ético, que faz o mal inconscientemente”.

O segundo filme, hoje também considerado um clássico, baseado num romance de Margarete Böhme, “é, antes de tudo, um drama áspero com um tom anarquisante, no qual Pabst acerta suas contas com uma burguesia que ele julga execrável e hipócrita”(Jean Tulard). Louise faz o papel de  Thymiane, uma jovem  que é seduzida, abandonada, e vai para um reformatório, do qual escapa para um bordel. Lotte Eisner teve razão ao afirmar que “bastava deixar que Louise evoluísse na tela, sem que fosse necessário dirigí-la, pois sua simples presença realizava a essência de uma obra de arte”.

Entre a filmagem de A Caixa de Pandora e Diário de uma Pecadora, a Paramount tentou desesperadamente fazer contato com Louise. Enquanto ela estava na Alemanha, a conversão para o som prosseguia rapidamente e os estúdios resolveram introduzir segmentos sonoros em alguns de seus filmes mudos. O Drama de uma Noite foi um deles e a Paramount queria que Louise retornasse a Hollywood imediatamente para fazer os sound retakes. Louise não atendeu aos telefonemas de Schulberg. A Paramount achou que ela estava se fazendo de difícil e propôs lhe pagar quantias cada vez mais elevadas. Louise recusou todas. ”Volte ou você nunca mais trabalhará em Hollywood”, foi o último ultimato. “Quem quer trabalhar em Hollywood?”, retrucou Louise.

Sua obstinação não somente fez a Paramount perder tempo e dinheiro (pois teve que chamar Margaret Livingston para substituí-la) como também sofrer a humilhação por parte dos críticos, que acharam a dublagem péssima. Louise se vingou de Schulberg e ele, cumprindo suas ameaças, retaliou, espalhando a história de que a voz de Louise não gravava bem – uma mentira que persistiu  pelo resto de sua vida e de sua carreira.

Louise fez outro filme na Europa, Miss Europa / Prix de Beauté / 1930, inicialmente previsto para ser mudo, dirigido por René Clair. Finalmente, o argumento, escrito por Clair e Pabst, foi entregue às mãos do diretor italiano Augusto Genina, e sonorizado apressadamente. A história é banal: uma datilógrafa ganha um concurso de beleza apesar da desconfiança de seu noivo. Ela deverá escolher entre a glória e o amor. O filme não era um A Caixa de Pandora ou Diário de uma Pecadora, mas foi salvo por Louise Brooks (mesmo mal dublada “a única mulher que possui o talento de transformar em obra-prima qualquer filme”, como exclamou entusiasmado o crítico surrealista Ado Kyrou) e um final extraordinário, quando  a jovem é morta pelo noivo durante a exibição de um filme no qual ela era a vedete.

Quando Louise voltou para Hollywood, encontrou as portas fechadas. Aos 24 anos de idade, ela estava sem dinheiro e teve que reprimir seu orgulho. As marquises dos cinemas anunciavam “Garbo fala”, mas nenhuma trombeta saudava o primeiro filme sonoro de Louise Brooks, uma comédia de dois rolos intitulada Windy Riley Goes Hollywood, produzida em 1931 pela Mermaid Comedies Company (ex-Educational) e dirigida por William B. Goodrich, um dos pseudônimos humilhantes de Roscoe “Fatty” Arbuckle, ainda em desgraça após seus três julgamentos pelo suposto homicídio de Virginia Rappe.

William Wellman ofereceu a Louise o principal papel feminino em Inimigo Público / Public Enemy / 1931 ao lado de James Cagney, porém ela não estava interessada. Wellman ficou incrédulo. Eles se reencontraram um ano depois no bar do Tony’s Restaurant em Nova York e ele perguntou: “Por quê você sempre odeia fazer filmes, Louise?”. Ela ficou confusa por um momento  mas finalmente respondeu que não era fazer filmes que ela odiava – era Hollywood. Como comentou Barry Paris na sua biografia da atriz (University of Minnesota, 1989), de onde extraímos a maioria das informações para este artigo, a recusa de Inimigo Público marcou o verdadeiro final da carreira de Louise Brooks.

Entretanto, ela ainda conseguiu fazer mais 6 filmes: Poder do Anúncio / It Pays to Advertise / 1931 (Dir: Frank Tuttle) e God’s Gift to Women / 1931 (Dir: Michael Curtiz), em ambos num plano secundário; um western ridículo, O Rancho das Feitiçarias / Empty Saddles / 1936 com Buck Jones; O Amor é um Jogo / King of Gamblers / 1937 (Dir: Robert Florey), do qual a única cena com Louise foi cortada; Prelúdio de Amor / When You’re in Love / 1937 (Dir: Robert Riskin) com Louise apenas em um número de balé; e Bandidos Encobertos / Overland Stage Raiders /  1938 (Dir: George Sherman), um dos filmes mais fracos da série Os Três Mosqueteiros / The Three Musqueteers com John Wayne, Max Tehrune e Ray Corrigan.

No intervalo entre essas filmagens, Louise conheceu um playboy de Chicago, campeão de polo e excelente dançarino, chamado Deering Davis, com o qual se casou e formou a dupla de dança Brooks e Davis. Porém o matrimônio durou apenas seis meses e logo Louise arranjou um novo parceiro, Dario Lee (Dario Borzani). Dario e Louise dançaram juntos de junho de 1934 a agosto de 1935, quando o par se dispersou. Louise então abriu uma escola de dança com o dançarino Barry Shear e um terceiro sócio, Fletcher Crandall, que era um escroque e precipitou o fim da escola.

Desgostosa, deprimida e desprovida de recursos, Louise achou que já era tempo de dizer adeus a Holywood de uma vez por todas. Em 30 de julho de 1940, ela tomou o trem para a sua cidade natal no Kansas.

Louise fundou uma nova escola de dança em Wichita com Hal McCoy e escreveu um folheto,  “The Fundamentals of Good Ballroom Dancing”. Em 1943, ela voltou para Nova York, onde exerceu diversas atividades – desde participações em programas de rádio a emprego de balconista na Saks da 5a Avenida. Cinco anos depois, Louise começou a escrever a sua autobiografia, “Naked on My Goat”, mas destruiu-a, antes que fosse publicada.

Em 1955, Henri Langlois, diretor da Cinemateca Francesa, organizou uma retrospectiva sbre ela em Paris. Quando alguém se aventurou a dizer que um tributo a Garbo ou Marlene Dietrich teria sido mais apropriado, Langlois se exaltou: “Não existe Garbo! Não existe Dietrich! Só existe Louise Brooks!”. Após este renascimento inesperado, Louise se mudou para Rochester, Nova York, onde estudou os filmes mudos nos arquivos da Eastman House e iniciou uma carreira como escritora. Seus artigos apareceram em muitas revistas de cinema e uma coletânea deles foi publicada no livro “Lulu in Hollywood” (1982).

Neste artigo, deixamos de abordar outros fatos marcantes de sua existência – ter sido molestada aos 9 anos de idade por um pintor de paredes de 45 anos, com o nome impróprio de Mr. Flowers (o verdadeiro “Rosebud” de sua vida cf. Paris); seu relacionamento com os amantes mais famosos, Walter Wanger, Charles Chaplin (“um amante sofisticado”, segundo ela),  G. W. Pabst, o jovem William S. Paley, futuro fundador da CBS, e com George Preston Marshall (dono de uma enorme cadeia de lavanderias, que foi também seu agente); sua amizade com Peggy Fears e Pepi Lederer (sobrinha de Marion Davies) e a revelação de que passou uma noite com Greta Garbo; o documentário Lulu in Berlin / 1984 realizado por Richard Leacock, pioneiro do cinema verdade americano; as entrevistas com Kenneth Tynan, John Kobal e Kevin Brownlow, as homenagens de Godard através de sua musa Anna Karina e de Guido Crepax com a sua Valentina dos quadrinhos, etc. -, que você poderá conhecer em detalhes no livro de Barry Paris.

Louise Brooks, que os íntimos chamavam de “Brooksie”, faleceu aos 78 anos de idade, de um ataque do coração, na noite de 8 de agosto de 1985.

Henri Langlois falou assim uma vez sobre Louise Brooks: “Sua arte é tão pura que se torna invisível”.

CINEMA NO RÁDIO

novembro 21, 2011

A princípio, o rádio – tal como no futuro a televisão – foi considerado um inimigo pelos executivos de Hollywood. Durante certo tempo, os estúdios proibiram seus astros contratados de trabalharem no novo meio de comunicação, com receio de que suas aparições diminuíssem o seu valor nas bilheterias dos cinemas. Até 1940, alguns exibidores ainda se queixavam de que os estúdios, permitindo os astros a aparecerem no rádio, estavam oferecendo de graça, o que os proprietários das salas tentavam vender.

Porém, tal como ocorreu com relação à televisão, Hollywood eventualmente fez as pazes com o rádio. O cinema e o rádio não somente estabeleceram uma coexistência pacífica como se ajudaram mutuamente, na medida em que os programas radiofônicos passaram a promover os novos lançamentos de filmes e as carreiras dos atores. O cinema finalmente serviu como uma fonte de alimento substancial para o rádio quando as adaptações de filmes de sucesso tornaram-se uma atração no ar.

A primeira pessoa a romper a barreira do controle dos estúdios  foi a colunista Louella Parsons. Em 1934, ela lançou Hollywood Hotel, um programa de variedades, tendo como anfitrião Dick Powell, no qual a própria Louella conduzia as entrevistas e divulgava as últimas notícias sobre as celebridades. Louella era tão temida e poderosa na época, com uma coluna lida diariamente por milhões de pessoas nos jornais de William Randolph Hearst, que ninguém se atrevia a esnobá-la. Ela usava sua influência e poder para fazer com que a elite do mundo do cinema participasse de seu programa – de graça – em troca de generosas inserções de anúncios do seu último filme. Em muitos casos, os astros apareciam em versões radiofônicas de vinte minutos de seus filmes, que eram selecionados por Louella. Em 1938, o Radio Guild tomou uma posição firme contra a radiodifusão gratuita, pondo um fim à era de Parsons.

O próximo programa que ofereceu adaptações radiofônicas de filmes, foi o Lux Radio Theater. Ele tinha os artistas mais famosos, os maiores orçamentos e, durante o seu auge, tinha o diretor de Hollywood mais proeminente como seu mestre-de-cerimônias. O som do programa era austero, quase solene. Quando Cecil B. DeMille abria a transmissão dizendo o seu “Saudações de Hollywood, senhoras e senhores”, ele soava quase como “Aqui é Deus, falando do paraíso”. Muita gente pensava que DeMille era o diretor do programa, porém ele apenas o apresentava e conversava com os astros no final da transmissão, despedindo-se com um floreio memorável: “Aqui é Cecil B. DeMille, dizendo boa noite de Holly – wood!”.

O Lux Theater, patrocinado pela Lever (que fabricava o sabonete e o detergente Lux), começou modestamente em Nova York em 1934 e ofereceu nas suas duas primeiras temporadas adaptações radiofônicas de peças da Broadway. Em 1 de junho de 1936, o programa foi transferido para Hollywood, passando a transmitir radiodramas de filmes, algumas vezes com o mesmo elenco mas, frequentemente, colocando astros diferentes nos papéis principais.

O primeiro dos 387 filmes que tiveram DeMille como apresentador, foi Marrocos / Morocco / 1930,  reintitulado no rádio de The Legionnaire and the Lady, com as vozes de Marlene Dietrich e Clark Gable e podemos cita exemplos de substituições mais curiosas: A Carta / The Letter / 1940 com Merle Oberon e Walter Huston;  Anna Christie / Anna Christie / 1930 com Joan Crawford e Spencer Tracy; Lanceiros da Índia / The Lives of a Bengal Lancer / 1935 com Errol Flynn e Brian Aherne; Adeus Mr. Chips / Goodbye Mr. Chips / 1939 com Laurence Olivier e Edna Best; Pigmalião / Pygmalion / 1938 com Jean Arthur e Brian Aherne; Jezebel / Jezebel / 1938 com Loretta Young e Brian Aherne; Núpcias de Escândalo / The Philadelphia Story / 1940 com Robert Taylor, Loretta Young e Robert Young; Estranha Passageira / Now Voyageur / 1942 com Ida Lupino e Paul Henreid; Relíquia Macabra / The Maltese Falcon / 1941 com Edward G. Robinson e Gail Patrick, Laird Gregar; Sétimo Céu / Seventh Heaven /1937 com Miriam Hopkins e John Boles; Nosso Barco, Nossa Alma / In Which we Serve / 1942 com Ronald Colman e Edna Best, O Cowboy e a Granfina / The Cowboy and the Lady /  1938  com Gene Autry  e Merle Oberon, etc.

O programa era transmitido ao vivo do Music Box Theater, situado no Hollywood Boulevard com Vine Street. O teatro tinha mais de mil lugares, que ficavam completamente lotados a cada semana. O público desempenhava um papel reduzido, mas vital, aplaudindo efusivamente quando ouvia o tema musical ou rindo discretamente durante uma comédia.

Aconteciam alguns contratempos, porém o show sempre continuava. A adaptação de Jornadas Heróicas / The Plainsman / quase não foi ao ar, porque os astros Gary Cooper e Jean Arthur apanharam uma gripe no véspera da gravação. Apesar  de se sentir fraca e febril, Jean conseguiu interpretar seu papel enquanto Fredric March, que fora convocado para substituir Cooper, passou a noite toda treinando para falar num dialeto do Oeste, algo que nunca fizera anteriormente. Outra quase catástrofe ocorreu quando os fãs frenéticos de Robert Taylor e Jean Harlow arrombaram uma porta de saída de incêndio, invadiram o auditório, provocando um tumulto com o público que havia comprado entradas. Mesmo assim, o programa prosseguiu, porque a desordem surgiu num trecho da transmissão que requeria uma cena de multidão.

Certa vez, o Lux colocou no ar um “filme” que não havia sido feito. Barbara Stanwyck descobriu uma peça de teatro, “Dark Victory” (cujo elenco fora encabeçado por  Tallulah Bankhead na Broadway) e percebeu que se tratava de um grande espetáculo. “Eu tinha que fazê-la, tinha que dizer aquelas falas”, ela iria declarar mais tarde, “Tornou-se uma obsessão”. Segundo a atriz, foi ela quem insistiu para que o Lux adquirisse os direitos da peça, que pertenciam então a David O. Selznick. No dia da transmissão, o diretor Edmund Goulding ouviu-o no rádio de seu carro e persuadiu Jack Warner a comprar os direitos de Selznick, a fim de que ele pudesse dirigir o filme. Barbara leu o anúncio sobre a nova produção nos jornais e pensou que fosse ser escolhida para o papel principal no filme. Mas depois soube que haviam dado o papel para Bette Davis.

A primeira transmissão  em Hollywood custou 17 mil dólares, aproximadamente 300 dólares por minuto. Quase a metade das despesas foi para as mãos dos dois astros principais: 5 mil para Marlene Dietrich e 3.500 para Clark Gable. Mas o show ficou entre os dez melhores do rádio, permanecendo nesta posição na maior parte de sua existência. DeMille adorava o programa: “Eu não trocaria por um milhão de dólares a experiência que tive no rádio”, ele declarou em 1938. Entretanto , o “mandato de DeMille chegou ao fim abruptamente em janeiro de 1945 por força de uma disputa política com a American Federation of Radio Artists, o sindicato dos atores. A questão em debate era a Proposition 12, uma proposta de votação, de uma lei conhecida popularmente como “lei do direito ao trabalho”. Esta lei permitiria a qualquer pessoa trabalhar no rádio sem ser membro de um sindicato. A AFRA decidiu criar um fundo de campanha para combatê-la, arrecadando a taxa de um dólar de cada membro do sindicato, para este propósito. DeMille recusou-se a pagá-la e não permitiu que isso ocorresse. Ele declarou que simpatizava com os ideais do sindicato mas na verdade não confiava na AFRA. A AFRA extendeu o prazo para que ele mudasse de idéia porém DeMille não cedeu. Assim, ele abriu mão de seu emprego muito bem remunerado no Lux por causa de um dólar.

Então DeMille foi substituído sucessivamente  por William Keighley (1945 a 1952) e Irving Cummings (1952 a 1955). Após a saída de DeMille foram ao ar, entre outros, adaptações de dois westerns famosos: Flechas de Fogo / Broken Arrow / 1950 com Burt Lancaster no lugar de James Stewart e Os Brutos Também Amam / Shane / 1953 com o mesmo Alan Ladd, que interpretara o personagem na tela.

The Mercury Theater foi a culminação de uma parceria entre Orson Welles, o “garoto maravilha” do palco e do rádio e John Houseman, ex-comerciante que demonstrou uma paixão pelo teatro quando o mercado de grãos entrou em colapso. Welles tornar-se-ia mundialmente famoso como cineasta e Houseman ficaria na obscuridade até ganhar fama como ator aos 70 anos de idade. A  sociedade durou apenas três anos, 1935-1938, durante os quais Orson Welles e John Houseman criaram o teatro mais surpreendente e comentado que Nova York havia visto em décadas.

Em junho de 1938 Welles foi abordado pela CBS, que lhe ofereceu um horário para a transmissão de um Mercury Theater on the Air. A notícia causou muita apreensão por parte de Houseman, cuja única experiência com o rádio havia sido como ouvinte. Ele estava acostumado com semanas de ensaio e ficou espantado quando lhe disseram que ia entrar no ar em duas semanas, em 11 de julho. Houseman protestou, alegando que não sabia nada sobre o rádio. Welles disse que seria melhor que começasse a aprender e lhe deu a incumbência de preparar um roteiro com ele.

Eles escolheram “A Ilha do Tesouro” como espetáculo de estréia Tudo o que Houseman teria que fazer, Welles lhe assegurou, era sentar-se com o romance de Robert Louis Stevenson nas mãos e adaptá-lo – praticamente um trabalho de corte. Ele, Welles, seria o diretor, o narrador e, é claro, o astro. Welles narraria a história como se fosse um Jim Hawkins adulto e também interpretaria Long John Silver. O programa seria transmitido somente para os ouvintes sem uma platéia no estúdio e aplausos perturbadores. Foi a primeira vez que o rádio oferecia um horário para uma companhia teatral inteira.

Houseman estava uma semana atrasado na sua tarefa, quando Welles lhe comunicou que estreariam com o clássico de horror de Bram Stoker, “Dracula” em vez de A Ilha do Tesouro. Welles interpretou Dracula com um dialeto marcante e assumiu também o papel do Dr. Seward. Martin Gabel interpretou Van Helsing; George Colouris era Jonathan Harker; e Agnes Moorehead, Mina Harker. Bernard Herrmann cuidou da direção musical, usando como tema de abertura  o Concerto para Piano Número 1 em Si bemol menor de Tchaikovsky.

A imprensa acolheu muito bem o programa e Welles prosseguiu com a transmissão adiada de A Ilha do Tesouro. Houseman continuou como adaptador e Welles tentando novas técnicas. Para O Conde de Monte Cristo, os dois atores que interpretavam as cenas na masmorra a fizeram no assoalho de um banheiro, onde Welles havia colocado dois microfones potentes diante da base do assento  do vaso sanitário, num esforço para obter repercussões subterrâneas realistas. Outro microfone estava dentro do vaso com a tampa aberta. O fluxo da água, recordou Houseman, “causou uma impressão fiel de ondas se quebrando contra as paredes do Chateau d’If.”

Os shows eram criados, semana após semana sob muita pressão. Houseman continuou como adaptador solitário. Ele tinha que resumir para 60 minutos, em três dias, todos os longos romances que Welles decidisse colocar no ar. A certa altura, Howard Koch pediu a Houseman que o empregasse como roteirista e Houseman, com prazer, passou para ele o trabalho incessante de adaptador. Koch nem desconfiou de que estava entrando para a história do rádio.  Um mês depois, ele produziria o script da transmissão radiofônica mais famosa de todos os tempos, que eu ouví entusiasmado há uns anos atrás.

Segundo informação de John Dunning (On the Air –The Encyclopedia of Old-Time Radio, Oxford University / 1998), para a temporada do Dia das Bruxas, Welles queria um programa de assombração e decidiu retirar a poeira da fantasia escrita em 1898 por H. G. Wells, “A Guerra dos Mundos”. As vozes discordantes tinham receio de que a história estivesse irremediavelmente datada e se tornasse entediante no ar. Porém Koch tinha seu prazo para realizar o serviço e a data seria dentro de seis dias. Welles traçou algumas diretrizes gerais: ele queria que a história fosse contada  através de uma série de boletins de notícias entremeados com a narrativa na primeira pessoa. Quando Koch leu o original, teve um sentimento de desespero. H.G. Wells havia situado seu romance na Inglaterra e seu estilo literário estava ultrapassado. Koch compreendeu que só poderia aproveitar do autor a idéia da invasão marciana,  a sua descrição da aparência dos marcianos e de suas máquinas. Em suma: ele estava sendo chamado para escrever quase que um original inteiramente novo em seis dias.

Depois de muito esforço, o script ficou pronto e Welles – que até então não tomara conhecimento de nada, deixando os ensaios por conta  de seu produtor associado Paul Stewart – assumiu a direção dos ensaios finais, fez algumas modificações no script e, às 8 horas da noite do dia  30 de outubro de 1938,  o programa foi colocado no ar.

O locutor Dan Seymour anunciou claramente que o The Mercury Theater on the Air estava apresentando a produção de Orson Welles, baseada em “A Guerra dos Mundos” de H. G. Wells. Welles leu um breve prólogo, situando a história num futuro próximo. Então, entrou no ar um boletim metereológico e depois ouviu-se uma banda (os músicos de Bernard Herrmann fazendo-se passar por Ramon Raquello e sua orquestra), tocando uma versão popular de La Cumparsita. A música foi interrompida por um boletim de noticias anunciando “explosões de gás incandescente a intervalos regulares no planeta Marte”. La Cumparsita terminou e começou a tocar Star Dust, ouvindo-se aplausos. Outro boletim de noticias: o repórter Carl Phillips estava sendo enviado para o observatório de Princeton, a fim de entrevistar o eminente astrônomo, Professor Richard Pierson. Como Pierson, Welles teceu várias considerações sobre astronomia; então foi anunciado, que ele e Phillips iriam correndo para Grovers Mill, em New Jersey, onde um choque “de uma intensidade quase de um furacão” havia sido registrado. Mais noticias foram lidas. Um enorme cilindro havia caído no campo do Fazendeiro Wilmuth, que gostou de falar sobre isso. Ouviu-se também a especulação de Phillips sobre a natureza extraterrestre da caixa de metal. De repente, um estrépito metálico, obviamente a porta do veiculo espacial  atingindo a Terra, foi seguido pelo que muitos ouvintes se lembrariam como as falas mais aterrorizantes que eles jamais escutaram no rádio. Alguém estava rastejando para fora do buraco da caixa … alguém ou algo. Dois discos luminosos eram visíveis … podiam ser olhos, podia ser um rosto. Agora, algo movimentando-se na sombra como uma cobra cinzenta … tentáculos … mais um e mais outro … e o corpo da coisa, grande como um urso. E a face: os olhos negros, brilhando como os de uma serpente, com uma boca em forma de V gotejando saliva. O monstro montou sua máquina de combate e desfechou um raio de calor. Soldados ficaram em chamas e estas se espalharam por toda parte. Subitamente, Phillips saiu do ar. Um tempo morto aumentou  a tensão. Mais boletins. Os trabalhadores da emergência da Cruz Vermelha foram despachados para o local. Houve congestionamento de pessoas correndo aterrorizadas pela ponte.

Finalmente, veio o anúncio que definiu o programa: “Senhoras e senhores, por incrível que pareça, tanto as observações da ciência como a evidência diante dos nossos próprios olhos levam à suposição inescapável de que aqueles seres estranhos que aterrissaram nas terras da fazenda de New Jersey hoje a noite são a vanguarda de um exército invasor vindo do planeta Marte”. Mais boletins de notícias. Cilindros marcianos estavam caindo sobre todo o país. Em Nova York, o inimigo podia ser visto, surgindo no alto dos rochedos Palisades. Em Manhattan, a fumaça estendeu-se pela Quinta Avenida, veio se aproximando e, de novo, fêz-se um silêncio terrível. A última voz patética foi a de um rádio amador: “2X2L chamando QG, Nova York, … Não há ninguém no ar? … Não há ninguém no ar?…Não há ninguém …?”

Mais ou menos neste instante, o supervisor do programa, Davidson Taylor, saiu do estúdio, para atender um telefonema. Quando retornou, seu rosto estava pálido. O pânico havia começado em New Jersey e se espalhado para o Norte e o Oeste. Um hospital de Newark atendeu vinte pessoas em estado de choque. Uma mulher em Pittsburg foi salva por seu marido quando tentava tomar veneno. Uma falta de energia numa pequena cidade do Meio-Oeste  no pico do programa deixou as pessoas gritando nas ruas. Em Boston, famílias se reuniram nos telhados,  e imaginaram que podiam ver um rubor vermelho no céu enquanto Nova York se incendiava.

No Estúdio Um na CBS, Taylor havia recebido informações de que tumultos e acidentes estavam aumentando a cada instante por toda a nação. Alarmado, ele ordenou que o show fosse interrompido imediatamente e que fosse anunciado que tudo não passava de ficção. Porém Welles havia chegado ao intervalo após 40 minutos de transmissão. Dan Seymour foi ao microfone e disse: “Você estão ouvindo a apresentação da CBS de Orson Welles e do The Mercury Theater on the Air numa dramatização original de “A Guerra dos Mundos” de H. G. Wells”. Este anúncio foi seguido por mais 20 minutos da dramatização com Welles, como o Professor Richard Pierson, descrevendo as consequências da guerra. No clímax, os marcianos são eliminados por uma simples bactéria da Terra. Tudo estava bem de novo com o mundo.

Entretanto, mal acabara de tocar o tema musical de Tchaikovsky e a polícia irrompeu pelas portas do estúdio, confiscando scripts e segregando os atores. Estes foram mantidos durante algum tempo num escritório dos fundos e depois entregues aos repórteres. As perguntas eram duras e apavorantes. Sobre quantas mortes eles tinham ouvido falar? … insinuando, como Houseman contou, que eles teriam sabido de milhares de mortes.  Estavam cientes das mortes no trânsito e dos suicídios? As valas devem estar cheias de cadáveres, Houseman pensou. Logo após, os atores foram libertados. Houseman achou “surpreendente ver a vida continuando como sempre nas ruas noturnas”. De fato, não houve mortes. Houve algumas batidas e arranhões, um osso quebrado ou dois, e uma enxurrada de ações judiciais contra a CBS. Quanto a Orson Welles ele se tornou um astro da noite para o dia no mundo do espetáculo.

A Campbell Soups ofereceu-se para patrocinar o programa e, em dezembro, já com o nome de Campbell’s Playhouse, ele foi promovido para o status de primeira classe. A Campbell encorajou Welles a integrar regularmente no programa adaptações de filmes e lhe concedeu verba para contratar astros do cinema. Todavia, isto nem sempre funcionou. Como informou Leonard Maltin  (The Great American Broadcast – A Celebration of Radio’s Golden Age, Dutton / 1970), tendo em vista a transmissão de Beau Geste em 1939, a Campbell recrutou não somente Laurence Olivier mas também Noah Beery Sr. para recriar o papel do abominável Sargento LeJeune, que ele havia interpretado na versão muda do filme em 1926. Infelizmente, nem ele nem Olivier se saíram bem. Aconteceu Naquela Noite com Miriam Hopkins e William Powel, e Welles no papel do pai da herdeira fugitiva, era extraordinariamente maçante apesar dos astros (Curiosamente, o único momento do filme que dependia do som foi desperdiçado nesta produção: o carro freiando, quando a heroína suspende sua saia para atrair o motorista). Na versão radiofônica de Welles, o carro simplesmente para sem nenhum efeito de som exagerado). Mais um exemplo dado por Maltin: Welles, insensatamente, se escalou para o papel de Longfellow Deeds, o personagem de Gary Cooper em  O Galante Mr. Deeds . Apesar de todo o seu brilho, ele não conseguiu convencer como um amável caipira. Entretanto, esta produção incluía uma inside joke. O médico vienense chamado para declarar a insanidade de Deeds  é o grande especialista, Dr. Herman Mankiewicz. Na vida real, Mankiewicz estaria logo colaborando com Welles no roteiro de Cidadão Kane. Mas, na verdade, Welles estava mais preocupado do que nunca com o teatro e projetos de filmes durante este período, o que era visível.  O Campbell Playhouse iria abaixar a sua última cortina em março de 1940.

Com o patrocínio da Maxwell House, a Metro-Goldwyn-Mayer produziu o programa Good News of 1938, tornando cada astro do seu elenco (“exceto Garbo”) disponível no ar pela NBC. Era um programa com  música (a cargo de Meredith Wilson e sua orquestra e alguns convidados), comédia, e alguns instantâneos dos bastidores de Hollywood.  A cada semana havia a pré-estréia de um novo lançamento da MGM, dramatizado em versão condensada com os artistas originais nos papéis radiofônicos. Após oito semanas no ar, Fanny Bryce (como Baby Snooks) e Frank Morgan passaram a integrar o elenco, tornando-se a atração mais popular e divertida do espetáculo. Entretanto,  ao contrário do Lux, um programa exclusivamente dramático de uma hora de duração, Good News era um show de variedades, que tornou a conexão com um estúdio de cinema menos atraente do que deveria ter sido.

The Screen Guild Theater foi um programa de rádio (tendo como anfitrião George Murphy em parte da fase patrocinada pela Gulf Oil), no qual todos os astros se apresentaram voluntariamente. Ele foi criado quando a indústria do cinema estava empenhada na construção do Motion Picture Country House, um retiro para os artistas idosos e indigentes. As primeiras transmissões colocaram diante do microfone nada menos do que quatro astros ou estrelas de primeira grandeza por semana. As remunerações que normalmente teriam ido para o bolso dos artistas eram entregues ao Motion Picture Relief Fund, quase 880 mil dólares no verão de 1942 (porém os estúdios não eram inteiramente altruístas; no final de cada programa, anunciavam o novo filme do artista que participava da transmissão).

O programa (que mudou de patrocinador e de nome várias vezes: Gulf Screen Guild Show, Gulf Screen Guild Theater, The Lady Esther Screen Guild Theater, The Camel Screen Guild Players) começou como um show de variedades mas, após um ano no ar, passou a apresentar dramatizações de filmes de longa-metragem numa duração mais curta, tarefa que não era nada fácil. Norman Corwin, o primeiro adaptador contratado pelo produtor-diretor Harry Ackerman, escreveu um roteiro brilhante para A Loja da Esquina, no qual o personagem de Frank Morgan era o narrador e o espetáculo funcionou tão bem quanto na tela. (Porém nem toda adaptação radiofônica era bem sucedida. Um programa rival do Screen Guild, chamado Academy Award – que oferecia versões de filmes em cujo elenco se incluía pelo menos um artista que fora indicado para o Oscar – estreou em 1946 e saiu do ar 39 semanas depois. A adaptação de Correspondente Estrangeiro foi um exemplo perfeito de como um grande filme podia ser exaurido de todo o seu valor dramático).

Em matéria de novidade, entretanto, nenhum programa ultrapassou Suspense, uma antologia de histórias criminais (conhecida como um “o mais extraordinário teatro de emoções do rádio”) adorada pelos astros e estrelas de Hollywood. “Se eu fizer mais algum trabalho no rádio, quero fazê-lo em Suspense, porque ali terei a oportunidade de representar”, declarou Cary Grant em 1943, quando o show estava entrando na sua “era de ouro”. A razão deste entusiasmo era o produtor-diretor William Spier, que guiava cada aspecto do espetáculo, modelando história, vozes, sonoplastia e música em obras-primas radiofônicas. “Ele sabe tudo sobre música”, disse o  compositor Lucien Moraweck sobre Spier. “Algumas vezes ele conhece até mais do que o músico”.

Os atores sentiam que, contribuindo para um programa de qualidade superior como Suspense, aumentariam mais sua reputação do que ouvindo algumas insignificantes condensações dos filmes. Spier ficou conhecido como “o Hitchcock das rotas aéreas”. Ele exigia pouco ensaio dos astros, apenas algumas horas antes de o programa entrar no ar. Spier queria vê-los tensos diante do microfone e eles o recompensavam com desempenhos que eram quase uniformemente ótimos, igualando o nível alcançado pelos seus coadjuvantes mal pagos, os profissionais do rádio.

O programa se comparava com  histórias de detetives nem era um show de horror. Suspense estava mais relacionado com um indivíduo envolvido numa situação que se intensificava e logo se tornava insuportável. Geralmente, a solução era contida “até o último momento possível”.

A trama mais famosa de Suspense foi Sorry, Wrong Number, escrita por Lucille Fletcher e interpretada por Agnes Moorehead. Agnes desempenhou o papel da inválida Mrs. Elbert Stevenson  – que escuta por acaso uma linha cruzada  e ouve a voz de dois homens planejando o assassinato de uma mulher acamada – numa histeria crescente (como só ela podia fazer), que chegou a desmaiar durante a transmissão. Orson Welles proclamou Suspense o maior show radiofônico de todos os tempos e ele mesmo protagonizou vários excelentes espetáculos no mesmo programa. Eu tive a oportunidade de ouvir (com muito prazer) tanto Sorry Wrong Number como The Hitchhiker, uma poderosa história de um viajante através dos Estados Unidos, atormentado pela visão de um carona indefinido, que aparece dia após dia na margem da estrada. A popularidade daquele primeiro episódio levou a uma adaptação cinematográfica com Barbara Stanwyck em 1948 e depois ela recriou o papel no Lux Radio Theatre. O segundo episódio foi adaptado para a televisão em 1960 por Rod Serling no seu programa inesquecível, Além da Imaginação / Twilight Zone.

Algumas vezes Spier revertia o óbvio, convidando atores para interpretar personagens “contra seu tipo” como, por exemplo, Peter Lorre no papel de um cavalheiro ou Harry Carey como um assassino; Spier trouxe artistas que raramente tinham se associado a um drama forte como Lucille Ball, Judy Garland, Danny Kaye, Betty Grable, Mickey Rooney ou Donald O’Connor, os quais foram envolvidos no mundo sinistro de Suspense.

Nos meados dos anos 40, a competição por conteúdo relacionado ao cinema para ser usado no ar era intensa, para não dizer feroz mas Fletcher Markle descobriu, quando ele produziu e dirigiu Studio One, que ainda havia possibilidade de realizar um programa de sucesso.

Markle, um canadense de 26 anos, anunciou que o Studio One não ia empregar grandes astros (ele usaria o programa como uma companhia de repertório formada por experientes atores radiofônicos de Nova York como Everett Sloane, Mercedes McCambridge, etc.) e se concentraria em romances e peças de teatro, que haviam sido pouco exploradas no ar. Fiel a essa diretriz, ele estreou com a adaptação de “Under the Volcano” de Malcolm Lowry e continuou apresentando histórias que raramente ou nunca haviam sido ouvidas.

Porém quando as pesquisas de audiência caíram num nível muito baixo, Markle teve necessidade de contratar nomes mais famosos e de recorrer aos filmes, sobressaindo, entre outras, quando a Ford Motor Company assumiu o patrocínio do show (que passou a se chamar The Ford Theater), as versões radiofônicas de Madame Bovary / Madame Bovary / 1949 com Marlene Dietrich, Van Heflin e Claude Rains, e a de Satã Janta Conosco / The Man Who Came to Dinner / 1941 com Jack Benny. No cinema, Fletcher Markle realizou um filme muito bom e curioso, O Homem das Sombras / Man With a Cloak / 1951, com Barbara Stanwyck, Joseph Cotten, Leslie Caron e Louis Calhern, em cuja intriga de mistério, passada em Nova York no século dezenove, surge a figura  – mantida incógnita até o final – de Edgar Allan Poe.

Um dos últimos shows relacionados com Hollywood foi The Screen Directors Playhouse, lançado em 1948. Inspirando-se em seus colegas atores, os membros do Directors Guild resolveram levar ao ar um programa semanal em benefício do proprio fundo de pensão. A versão radiofônica de estréia, Stagecoach, apresentada pelo Presidente do Screen Directors Guild, George Marshall, reunia os astros do filme de nove anos atrás, John Wayne e Claire Trevor, com seu diretor, John Ford. Depois disso, cada show era apresentado pelo diretor do filme original, que voltava no final para btincar com os astros, quase sempre os mesmos atores principais dos filmes. A relação de diretores convidados, impressionava: John Ford (Sangue de Heróis / Fort Apache / 1948), Alfred Hitchcock (Um Barco e Nove Destinos / Lifeboat / 1994 e Quando Fala o Coração / Spellbound / 1945), Billy Wilder (A Mundana / A Foreign Affair / 1948), John Cromwell (O Prisioneiro de Zenda / The Prisoner of Zenda / 1937), William Wyler (Jezebel / Jezebel / 1938) e Henry Hathaway (Sublime Devoção / Call Northisde 777 / 1948), para citar apenas alguns.

Ao mesmo tempo em que a televisão estava nascendo no horizonte, mais uma instituição de Hollywood fez uma incursão no rádio quando a MGM resolveu tirar proveito de alguma de suas séries. Assim, Ann Sothern foi convocada para repetir o seu papel de Maisie, Mickey Rooney o de Andy Hardy e Lew Ayres o do Dr. Kildare no programa intitulado The MGM Theater of the Air, apresentado por Howard Dietz, vice-presidente do estúdio. Por ironia, no que dizia respeito a trabalho no cinema, a MGM deixou o contrato de Ann Sothern expirar, demonstrou desinteresse evidente por Mickey Rooney e não quís mais dar emprego para Lew Ayres na tela.

Finalmente, no Brasil, existiu, no final dos anos 40, um programa de rádio, Cinema em Casa, criação de Otávio Gabus Mendes na Rádio Difusora, feito, após sua morte, na Tupi, por Walter George Durst. Conforme nos informou Antonio Adami no seu trabalho “Walter George Durst na Rádio Tupi e o Cinema em Casa”, a adaptação dos filmes era fiel ao original: diálogos mantidos quase intactos; trilhas sonoras – geralmente gravadas durante a exibição dos filmes em sessões comuns dos cinemas – aproveitadas da melhor forma possível; a linguagem cinematográfica transposta com habilidade para o rádio.

Alguns dos filmes adaptados dentro do Cinema em Casa foram: Casablanca / Casablanca / 1942, O Diabo Disse Não / Heaven Can Wait / 1943 , Carícia Fatal / Of Mice and Men / 1939, Crepúsculo dos Deuses / Sunset Boulevard / 1950, Os Melhores Anos de Nossas Vidas / The Best Years of Our Lives / 1946, O Morro dos Ventos Uivantes / Wuthering Heights / 1939, O Tesouro de Sierra Madre / The Treasure of the Sierra Madre / 1948, O Idiota / L’ Idiot / 1945, Os Amantes de Verona / Les Amants de Verone / 1948, Sinfonia Pastoral / La Simphonie Pastorale /  Na Solidão da Noite / Dead of Night / 1945, etc.

O elenco básico do programa incluía: Walter Forster, Cassiano Gabus Mendes, Heitor de Andrade, Lima Duarte, Lia de Aguiar, Guiomar Gonçalves, Flora Geni, Laura Cardoso, Wilma Bentivegna, Néa Simões, Walter Avancini, Celia Rodrigues, Fernando Baleroni, Milton Ribeiro, Xisto Guzzi, João Monteiro, Manoel Inocêncio, Araken Saldanha, Amaral Novais, Luiz Orioni e Julio Nagib, nomes que, como disse Adami, se inscreveram mais tarde nos primeiros capítulos da história da televisão brasileira.

MICHEL SIMON

novembro 14, 2011

Em mais de cinquenta anos de vida no mundo do espetáculo, Michel Simon conseguiu construir uma carreira rica e abundante tanto no cinema como no teatro.

Filho de Joseph Simon e de Véronique Burnat, François-Michel nasceu em Genebra, Suiça, no dia 9 de abril de 1895.  Seu pai era salsicheiro e numismata de coração, especializado em moedas antigas, gregas ou romanas.

Em 1912, Simon afastou-se dos estudos e de sua família e foi para Paris, onde exerceu várias profissões (palhaço acrobata contracenando com um par de dançarinos ou com um prestidigitador, professor de boxe, fotógrafo) mas o encontro com Georges Pitoeff decidiu seu futuro como ator.

Fazendo pequenos papéis na trupe de Pitoeff em peças de  Shakespeare, Theckov e Bernard Shaw, Simon chamou a atenção dos críticos, que reconheceram seu enorme talento, principalmente quando ele interpretou o diretor de teatro em “Seis personagens à procura de um autor de Pirandello.

No começo de 1922 a trupe de Pitoeff transferiu-se para a Comédie des Champs Élysées porém, um ano depois, Simon deixou-a, para atuar em vaudevilles de Tristan Bernard, de Yves Mirande e de Marcel Achard,  e também em comédias musicais escritas por Albert Willlemetz.

Em seguida, ele foi contratado por Louis Jouvet, que havia substituído Pitoeff na Comédie des Champs Élysées, e foi com Jouvet, numa peça de Marcel Achard, Jean de la Lune, que Simon se impôs de uma vez por todas de maneira brilhante. Seu talento inimitável transformou o papel secundário de Cloclo na principal atração do espetáculo.

A trajetória teatral de Michel Simon prosseguiria de sucesso em sucesso mas foi o cinema que lhe trouxe uma imensa popularidade. Ele estreou na tela em 1925, primeiramente ao lado de Ivan Mosjoukine em Feu Mathias Pascal de Marcel L’Herbier, baseado em Pirandello e, quase ao mesmo tempo, em um filme realizado na Suiça, La Puissance du Travail ou La Vocation D’André Carrell realizado por Jean Choux.

Após ter participado de mais alguns filmes (vg. La Passion de Jeanne d’Arc / 1928 de Carl Dreyer), sua carreira cinematográfica se iniciou verdadeiramente com a versão para a tela de Jean de Lune / 1931, na qual ele contracenou com Madeleine Renaud e René Lefevre. Segundo seu depoimento, Simon teria participado ativamente da direção do filme, que foi porém assinada por Jean Choux.

Jean Renoir dirigiu-o nas suas obras de encomenda, Tire au Flanc / 1928 e On Purge Bébé / 1931 e uma relação se estabeleceu entre o cineasta e o intérprete, os quais resolveram associar-se a projetos mais pessoais, mais ambiciosos como A Cadela / La Chienne / 1931, sucedendo-se uma outra realização muito importante, Boudu Sauvé des Eaux / 1932.

Excetuando um casamento de alguns meses com Yvonne Prieur (que lhe deu um filho, François), Simon era um misantropo, que vivia à margem da sociedade no meio de seus animais (quatro macacos, uma cadela, cinco gatos, e um papagaio) e da natureza na sua vila de Noisy-le-Grand. Ele detestava seu físico grosseiro e, como não podia fazer o galã, era frequentemente escalado para interpretar personagens mais velhos. Simon demonstrava sempre uma versatilidade virtuosística retratando figuras brincalhonas ou grotescas em acréscimo aos seus muitos papéis trágicos.

Durante a Ocupação, Simon foi denunciado à Gestapo como judeu e acusado de comunista. Quando veio a Libertação, ele foi apontado como colaboracionista e convocado, como tantos outros, diante de um Comitê de Purificação. Simon escapou ileso de todas as acusações. Após sua morte, um jornal político, l’Evénement du Jeudi, revelou que ele teria sido agente da N.K.V.D. mas não surgiu uma prova sólida a respeito

A proeminência de Simon  nos filmes franceses foi ameaçada no final dos anos 50 em virtude de uma alergia, provocada por uma tintura que usou numa maquilagem, a qual atacou seu sistema nervoso, paralisando parte de seu corpo e de sua face. Porém ele se recuperou e teve um retorno triunfante como astro com uma magnífica performance em Le Viel Homme et l’Enfant / 1967 (Dir: Claude Berri) como um camponês anti-semita, cuja natureza humanista é revelada através do relacionamento com um menino judeu durante a guerra.

Ao longo de sua extensa carreira, Michel Simon fez 100 longas-metragens, entre os quais estão algumas obras-primas do cinema francês. Destas 100 produções, ví apenas 25 e, para este artigo, relacionei as minhas 15 interpretações favoritas do ator: A Cadela / La Chienne / 1931, Boudu Salvo das Águas / Boudu Sauvé des Eaux / 1932, Atalante / L’Atalante / 1934, Família Exótica / Drôle de Drame / 1937, O Mistério do Colégio / Les Disparus de Saint-Agil /1938, Caís das Sombras / Quai des Brumes / 1938, Paixão Criminosa / Le Dernier Tournant / 1939, La Fin du Jour / 1939, Fric Frac / 1939, O Demônio de Paris / Vautrin / 1943, Pânico / Panique / 1946, Trágica Inocência / Non Coupable / 1947, Entre a Mulher e o Diabo / La Beauté du Diable / 1949, La Poison / 1951, La Vie d’un Honnête Homme / 1952.

A CADELA (Dir: Jean Renoir): Maurice Legrand (Michel Simon) é um homem  respeitável  que, sem poder se livrar de Adèle (Magdeleine  Bérubet), sua esposa rabugenta, e da função monótona de caixa de um estabelecimento comercial, dedica-se à pintura nos fins de semana. Uma noite, Legrand conhece a prostituta Lulu (Janie Marèze), que é explorada pelo rufião Dédé (Georges Flamant). Para sustentá-la em um pequeno apartamento, Legrand dá um desfalque na firma. Dédé convence Lulu a vender os quadros de Legrand, assinando-os como se fossem de uma artista americana. Legrand surpreende Lulu mas é Dédé que será acusado da morte e executado.

Legrand pequeno burguês tímido é capaz das mesmas vilanias que o rufião Dédé. Ele não sente o menor remorso por ter cometido o crime e até assiste, com uma alegria selvagem, a execução de seu rival. Simon traduz perfeitamente os tormentos de seu personagem, expressando uma violência muda. Obedecendo a Renoir, que lhe pediu para não elevar a voz nas situações extremas, ele pronuncia no mesmo tom as réplicas mais terríveis: ”Você não é uma mulher. Você é uma cadela”. Fora da tela, Simon estava apaixonado pela atriz porém foi Flamant quem a conquistou. Terminada a filmagem, Flamant ofereceu a Janie uma viagem e eles partiram num carro esporte, que haviam comprado para a ocasião. O acidente, que aconteceu na estrada de Sainte-Maxime, matou a atriz mas poupou o condutor. “Michel Simon sofreu o golpe tão dolorosamente – contou Renoir –   que ele desmaiou no enterro”. Segundo consta, Charles Chaplin possuía uma cópia de A Cadela, que projetava para seus amigos dizendo-lhes: “Vou lhes mostrar o maior ator do mundo”.

BOUDU SALVO DAS ÁGUAS (Dir: Jean Renoir): Boudu (Michel Simon), simpático mendigo parisiense, tenta se suicidar mas é salvo por Lestingois (Charles Granval), que tem como amante a própria empregada, Anne-Marie (Séverine Lerczinska). Sentindo-se responsável por Boudu, Lestingois leva-o para sua casa. Em pouco tempo, Boudu corteja Anne-Marie e conquista Mme. Lestingois (Marcelle Hainia) até que os dois casais, Boudu – Mme. Lestingois e Lestingois – Anne Marie descobrem reciprocamente o duplo adultério. Para salvaguardar as aparências burguesas, Lestingois resolve casar Boudu com Anne-Marie. Porém Boudu prefere a liberdade.

Boudu nunca diz obrigado, comporta-se mal à mesa, resmunga quando não consegue o que quer, saqueia a cozinha, cospe nos livros (logo no livro mais querido de Lestingois, A Fisiologia do Casamento, de Balzac), bolina Anne – Marie, acalma “os nervos” de Mme. Lestingois. Fauno anarquista e amoral, ele só segue o seu instinto e se choca com a sociedade burguesa, cujas regras é incapaz de respeitar. Boudu é o selvagem que reage contra a hipocrisia social, as regras e os costumes. Era preciso um ator como Michel Simon para fazer sentir a desordem que Boudu introduz no lar de Lestingois. “Simon é extraordinário”, disse Renoir durante as filmagens, “e não se pode imaginar um selvagem mais natural”.

ATALANTE (Dir: Jean Vigo): Jean (Jean Dasté), proprietário da barca Atalante, casa-se com Juliette (Dita Parlo) e a leva para bordo, onde a moça aprende a viver na companhia do marido, do Père Jules (Michel Simon), velho lobo do mar pitoresco e resmungão, e de um jovem grumete. A única distração para Juliette é o Père Jules, com seu gato nos ombros e seu acordeão, e ela aguarda com impaciência a chegada a Paris. Quando a Atalante atraca no porto, Jean leva Juliette a um baile. Um camelô (Gilles Margaritis) flerta com Juliette e Jean, enciumado, põe fim à escala. O camelô vem procurar Juliette na barca mas ela Ju parte, e Père Jules a traz de volta.

Com a inserção de uns detalhes curiosos sobre os personagens e de lampejos surrealistas, Vigo transformou uma intriga banal e melodramática em um poema de amor. A encarnação do Père Jules por Michel Simon representa a grande atração do filme. Coberto de tatuagens, fumando com seu umbigo, vestido de mulher para fazer a dança do ventre, capaz de fazer nascer a música com um gesto (seu dedo substitui a agulha do fonógrafo), dono de um museu secreto de objetos estranhos, o ator demonstrou o seu imenso talento.

FAMÍLIA EXÓTICA (Dir: Marcel Carné): O pastor Archibald Soper (Louis Jouvet) denuncia como perniciosos os romances policiais de Felix Chapel (Michel Simon). Depois, vai jantar na casa de seu primo, o botânico Irwin Molyneux, que não é outro senão o misterioso Chapel. A esposa de Irwin, Margaret (Françoise Rosay) havia despedido sua empregada e se esconde na cozinha para preparar a refeição. Intrigado com a ausência de Margaret e com as respostas embaraçosas de Irwin, o pastor pensa que o primo matou a mulher e aciona a Scotland Yard.

Extraída de um romance humorístico inglês, a intriga põe em cena personagens extravagantes: um apreciador de mimosas que escreve em segredo romances policiais (Michel Simon), um assassino (Jean-Louis Barrault) que ama os carneiros e mata os açougueiros porque eles matam os carneiros, um leiteiro (Jean – Pierre Aumont) de imaginação fértil que inventa histórias horríveis, um pastor libidinoso (Louis Jouvet) que perde uma foto erótica com a dedicatória de sua amante, etc. Michel Simon eleva a arte da composição ridícula ao seu nível mais alto. Por um incômodo na garganta ou uma gagueira súbita, Simon valoriza a menor sílaba de seu texto de uma maneira provavelmente insuperável,  prestando um valioso serviço a um espetáculo burlesco delirante, para o qual contribuem também o elenco de intérpretes de prestígio.

O MISTÉRIO DO COLÉGIO (Dir: Christian-Jaque): No colégio Saint-Agil, três alunos, Beaume (Serge Grave), Sorgue (Jean Claudio) e Macroy (Marcel Mouloudji), constituíram uma sociedade secreta com a finalidade de partir para os Estados Unidos e fazer fortuna. Uma noite, Sorgue vê um homem sair de uma parede e depois sumir precipitadamente. No dia seguinte,  Sorgue desaparece. O professor Lemel (Michel Simon) acusa seu colega estrangeiro Walter (Erich von Stroheim) de ser o responsável pelo desaparecimento. Depois, Macroy e Beaume também somem. O mistério tem a ver com uma quadrilha de falsários, chefiada por M. Boisse (Aimé Clariond), o diretor do estabelecimento.

Nos corredores sombrios, nas salas de aula noturnas e ameaçadoras, nos dormitórios gelados de Saint-Agil, confrontam-se dois mundos: o mundo  da infância, encantador e misterioso, e o mundo dos adultos, habitado por seres  nocivos. São professores que se caluniam entre si, manifestam sua xenofobia e, enfim, o chefe do bando de malfeitores é o próprio diretor da instituição. O filme propicia um duelo de interpretação entre dois monstros sagrados do cinema: Erich von Stroheim e Michel Simon. Stroheim está magnífico como o professor de inglês que serve de bode expiatório de seus colegas para os quais representa o “boche” e Michel Simon como o professor de desenho alcoólatra.

CAIS DAS SOMBRAS (Dir: Marcel Carné): Jean (Jean Gabin), um desertor, chega ao Havre e procura um abrigo. Trazido por um mendigo, Quart-Vittel (Aimos), ele é hospedado na taverna do velho Panama (Edouard Delmont), onde conhece um pintor alucinado, Michel Krauss (Robert Le Vigan) e uma bela jovem triste, Nelly (Michèle Morgan). Esta é assediada por seu tutor, Zabel (Michel Simon), um traficante, que vem sendo espreitado por um bando de malandros, cujo chefe é Lucien (Pierre Brasseur). Uma manhã, quando Lucien importunava Nelly, Jean o esbofeteia. Michel se suicida, deixando para Jean suas roupas e seu passaporte e o desertor decide embarcar para a Venezuela. Jean encontra Zabel, querendo abusar de Nelly,  e o mata. Ao se dirigir para o porto, é abatido a tiros por Lucien enquanto o navio parte.

A beleza do filme reside primeiramente na sua atmosfera, as docas inundadas de brumas e as ruas de calçadas reluzentes, onde os personagens passeiam ao ritmo de uma música extraída de uma velha canção dos marinheiros. Obra-prima plástica, uma das mais representativas do realismo poético, o filme apoia-se também nos atores, perfeitamente encaixados em um pessimismo lírico, que muitos viram como um eco de certo fatalismo que sucedeu ao fracasso da Frente Popular. Simon nos oferece mais uma interpretação magistral como o repugnante receptador e assassino, apaixonado por música religiosa (na cena em que ele é morto por Jean o fundo musical é cantado pelos Petits Chanteurs à la Croix-de-bois!).

PAIXÃO CRIMINOSA (Dir: Pierre Chenal): Frank (Fernand Gravey) torna-se empregado de Nick Marino (Michel Simon), proprietário de um posto de gasolina nas montanhas da Provença. Nick é casado com Cora (Corinne Luchaire), mulher  bem mais jovem do que ele. Cora seduz Frank e os dois decidem se desembaraçar de Nino, fazendo crer que ele foi vítima de um acidente. Depois de conseguirem seu objetivo, o casal de amantes leva uma vida difícil entre as suspeitas da justiça e as ameaças de chantagem feitas por um primo da vítima. Um dia eles sofrem um acidente de carro. Cora morre. Todas as suspeitas recaem sobre Frank, que é acusado e condenado à morte.

Chenal impregnou seu filme de um clima sensual e lúgubre em que a paixão adúltera se mistura com a fatalidade para traduzir o mistério desse casal de amantes, inocentado pelo assassinato que cometeu e separado por uma morte acidental, que levará o homem  a ser condenado por um crime que não ocorreu. Simon encarna o marido de Corinne Luchaire, que nos deixou o seguinte testemunho: “Como marido, ele tinha naturalmente o direito, bem entendido sob  os refletores, a algumas familiaridades. Numa cena, ele devia me abraçar pela cintura. Era natural. Mas Michel Simon achou que este gesto era muito banal e não hesitou em me agarrar com uma certa violência e um aspecto verdadeiramente lúbrico”. Diga-se de passagem: Corinne não foi a única atriz que reclamou dos “avanços luxuriosos “ de Simon durante uma filmagem.

LA FIN DU JOUR (Dir: Julien Duvivier): Em um retiro de artistas, três velhos atores se confrontam: Raphael Saint-Clair (Louis Jouvet), antigo galã de sucesso, que perdeu sua fortuna no jogo; Gilles Marny (Victor Francen), ator estimado pelo seu talento mas que jamais conheceu o êxito (sua mulher foi seduzida por Saint-Clair e morreu em um acidente de caça, suspeitando-se de um suicídio); e Cabrissade (Michel Simon), um fracassado, que só conseguiu ser o eventual substituto de outros atores. Para manter sua reputação de Don Juan, Saint-Clair seduz Jeannette (Madeleine Ozeray), jovem empregada da casa, e quase a conduz ao suicídio, mas ela é salva por Marny. Cabrissade, incapaz de dizer um verso em uma representação em benefício do retiro, sofre um ataque cardíaco. Saint-Clair enlouquece.

Artistas idosos sem as luzes da ribalta, as lembranças que os deprimem, a amargura que atiça as rivalidades de outrora, os rancores e as mesquinharias senis exacerbando-se no ambiente fechado de um pensionato. Com esse assunto, Duvivier construiu um drama cruel e mórbido sobre o egocentrismo feroz dos velhos atores e a dificuldade de envelhecer, que traz a marca do seu pessimismo em relação ao gênero humano. Nesse meio avulta a figura imponente e egoísta de Saint-Clair, magnificamente vivido por Louis Jouvet, mas Michel Simon foi responsável pelo momento mais alucinante do filme, quando se esquece do texto na única oportunidade que teve de se realizar como ator e murmura: “Eu sou velho … Não sei mais … Perdão … Eu sou velho …”.

FRIC-FRAC (Dir: Maurice Lehmann e Claude Autant-Lara): O joalheiro Mercandieu (Marcel Vallée) tem três empregados: sua filha Renée (Helène Robert), seu guarda-livros, M. Blain (Réné Genin), e o jovem Marcel (Fernandel), por quem Renée se apaixonou. Um domingo, Marcel encontra no velódromo a prostituta  Loulou (Arletty) e seu amigo Jo (Michel Simon), um vadio. Marcel se encanta por Loulou e ela e Jo resolvem roubar a joalheria. Eles embebedam Marcel e o amarram num divã. Renée surpreende os dois ladrões e Marcel, libertando-se, vai socorrê-la. Mercandieu não fica sabendo de nada e Marcel  compreendendo que Loulou não pertence ao seu mundo, fica ao lado de Renée, pois é ela quem ele ama de verdade.

Um dos biógrafos de Michel Simon, Jacques Lorcey (Michel Simon, Un Sacré Monstre, Séguier , 2003) registrou: “Michel Simon é a verdadeira sensação de Fric-Frac … Estamos na presença de uma das mais prodigiosas encarnações de Simon, este artista sobrehumano, ao qual cometemos o erro de dar o título de comediante, porque ele foi antes de tudo um criador genial, constantemente inspirado. Como sempre, Simon não interpreta, ele vive. Sua identificação com Jo é total e ele dá a impressão de uma improvisação constante”. Fernandel  contou a dificuldade que ele tinha de se concentrar diante dele: “Simon hipnotizava seus parceiros tal como fazia com o público”.

O DEMÔNIO DE PARIS (Dir: Pierre Billon): Vautrin (Michel Simon), conhecido como “Trompe la Mort”, foge da prisão de Rochefort com um outro prisioneiro, Théodore Calvi (Marcel Mouloudji). Vautrin assume a identidade do “abade Herrera, agente secreto do Rei de Espanha” e encontra o jovem Lucien de Rubempré (Georges Marchal), que arruinou e desonrou sua família em Angoulême. Ele impede Lucien de se suicidar e o introduz na alta sociedade parisiense. Enquanto Vautrin  põe mãos a obra pelo casamento de Lucien com Clotilde de Grandlieu (Gisèle Casadessus), o jovem se enamora de uma moça chamada Esther Gobseck (Madeleine Sologne). Descobrindo esta ligação, Vautrin torna-se conselheiro de Esther e se entende com ela, para arruinar o velho banqueiro Nucingen (Louis Seigner), que a deseja.

Inspirado no romance “Splendeur et misère des courtisanes”, o filme recria a atmosfera balzaquiana com todo o cuidado mas o espetáculo vale, sobretudo, pela interpretação de Michel Simon. Maquiavélico e insensível, Simon passou para  Vautrin a grandeza tenebrosa que Balzac lhe deu.

PÂNICO (Dir: Julien Duvivier): Um crime é cometido e o fotógrafo amador e misantropo Monsieur Hire (Michel Simon), que leva uma vida dupla mantendo um consultório de astrologia sob o nome de doutor Varga, é logo tido como suspeito pela polícia e por seus vizinhos. O verdadeiro assassino é Alfred (Paul Bernard), amante de Alice (Viviane Romance), que faz caírem as suspeitas sobre Hire, que está secretamente apaixonado por ela. O infeliz, encurralado pela multidão, refugia-se no telhado de uma casa, escorrega e morre. Ao lado do cadáver é encontrada sua máquina fotográfica com uma foto que denuncia o verdadeiro culpado.

É a história trágica de um homem solitário que não molesta ninguém mas guarda distância de seus semelhantes e por isso sofre o drama da incompreensão e da baixeza humana, tema que se encaixa perfeitamente no universo pessimista de Duvivier. A composição de Michel Simon é emocionante, principalmente quando exprime os tormentos “inconfessáveis” e a paixão erótica do seu personagem.

TRÁGICA INOCÊNCIA (Dir: Henri Decoin): O dr. Ancelin (Michel Simon), médico de província considerado medíocre, atropela, bêbado, um motociclista, e consegue disfarçar o seu homicídio involuntário. Assim, ele se reabilita a seus próprios olhos e segue seu caminho no crime, assassinando o amante de sua companheira, Madeleine (Jany Holt), e depois o colega que mais o desprezava; finalmente, empurra a própria Madeleine para a morte. Angustiado, Ancelin se denuncia à polícia mas o inspetor Chambon (Jean Debucourt) não acredita nele. Por despeito, Ancelin se suicida, deixando uma carta de confissão. Porém um gato empurra a carta  para a lareira e ela não será lida por ninguém.

Dessa história astuciosa , Henri Decoin, soube tirar um excelente partido e criar um suspense psicológico – a lenta alteração da razão de Ancelin – para o qual contribuiu poderosamente a fotografia noturna, obtida com o auxilio da perícia técnica do cinegrafista. O papel do assassino, que se angustia por não ter  sido levado a sério e reconhecido como um gênio do mal, caiu como uma luva para Michel Simon. Ele usou todos os recursos de grande ator para dar originalidade e intensidade dramática a esse curioso policial à francesa.

ENTRE A MULHER E O DIABO (Dir: René Clair): O velho professor Fausto (Michel Simon) recebe a visita de Mefistófeles (Gérard Philipe). Fausto se recusa a lhe vender sua alma em troca da juventude, o que, no entanto, Mefistófeles lhe concede, sem fazer nenhuma exigência. Fausto recupera  sua aparência de vinte anos de idade e encontra a cigana Margarida (Nicole Besnard), que se apaixona por ele. Porém ele se dá conta de que a juventude não vale nada sem dinheiro e assina o pacto com o diabo. Mefistófeles, que tomou as feições do velho Fausto, ensina-lhe a fabricar ouro e o introduz na corte do príncipe regente. Fausto recebe todas as honrarias e se torna amante da princesa. Quando Mefistófeles cobra a sua parte no acordo, Fausto não quer mais cumprí-lo.

O espetáculo propicia um confronto entre dois atores absolutamente fora de série: Gérard Philipe como um Fausto diabolicamente rejuvenescido e Michel Simon como um diabo truculento. As cenas nas quais Fausto ainda não está habituado como o seu corpo de jovem e conserva a maneira de andar e os tiques de um ancião ou aquelas cenas nas quais, até então desligado dos bens deste mundo, ele é subitamente possuido por um anjo do mal barbudo, debochado e concupiscente, elas bastam para demonstrar o talento extraordinário dos dois intérpretes.

LA POISON (Dir: Sacha Guitry): Paul Braconnier (Michel Simon) se apresenta como cliente a um grande advogado, Maître Aubanel (Jean Debucourt), dizendo que acabara de matar sua mulher, uma megera que bebe, o insulta constantemente, e quase nunca toma banho. Através das perguntas que lhe faz o causídico, para preparar sua defesa, Braconnier percebe qual é o método menos perigoso de cometer o crime. De volta ao lar, ele mata sua mulher, seguindo os conselhos involuntários do advogado. Defendido por Aubanel (na verdade por si próprio), Braconnier é triunfalmente absolvido.

Obra-prima do humor negro, amoral e anárquica, marcando o início de uma nova fase na carreira de Sacha Guitry. Ele sai de cena como ator e se afirma como autor, manifestando mais uma vez a sua verve inesgotável. A partir da cena irresistivelmente cômica da consulta ao advogado, o diretor faz uma  descrição satírica dos costumes provincianos, não poupando instituições como o casamento e a justiça – evidentemente – e a religião, haja vista a visita dos cidadãos ao cura, pedindo-lhe que providencie um falso milagre, para estimular o comércio. A interpretação fascinante de Michel Simon concorre em grande parte para o êxito do espetáculo.

LA VIE D‘UN HONNÊTE HOMME (Dir: Sacha Guitry): Albert Ménard-Lacoste (Michel Simon), industrial  respeitável, tem um irmão gêmeo, Alain, indivíduo boêmio e alegre, que reaparece após anos de ausência. Durante um encontro entre os dois, Alain morre de uma crise cardíaca. Albert assume a identidade do irmão, a fim de dar credulidade à sua própria morte, depois de ter legado sua fortuna para Alain. Ele espera, conservando as vantagens de sua posição burguesa, realizar enfim as fantasias e as aventuras que um homem respeitável é obrigado a recusar.

Sacha Guitry renova o tema clássico dos irmãos gêmeos que são confundidos um com o outro,  abordando-o de uma maneira cáustica e amarga. O enredo mostra dois seres solitários: Alain, em um estado de miserabilidade, mas contente com a vida divertida que levou, não se lastimando de nada; Albert, descontente com sua existência tediosa e hipócrita de homem honesto e invejoso do outro. Entrando na pele de Alain, Albert pensa em recomeçar sua vida, mas acaba “fugindo na noite”, desencantado com a natureza humana. Michel Simon compõe seu personagem duplo de maneira admirável: ele tem duas fisionomias, dois olhares, duas vozes e, poderíamos até dizer, duas almas. É verdadeiramente duas pessoas.

Sacha Guitry, ao qual Simon estava ligado por uma amizade profunda e uma admiração recíproca, prestou-lhe homenagem nos célebres créditos de La Poison: “Você é excepcional. Eu diria mesmo único … porque entre o momento em que você deixa de ser você mesmo e aquele em que interpreta o seu papel, é impossível ver a soldagem … Você possui esta virtude preciosa que não se adquire e que não é transmissível: o senso do teatro, quer dizer a faculdade de transmitir aos outros os sentimentos que você não sente”.

Michel Simon faleceu em 30 de maio de 1975 no Hospital Saint-Camille de Bry-sur-Marne , vítima de uma embolia, aos 80 anos. Em 9 de janeiro de 1977, seus herdeiros puseram à venda em Genebra sua coleção fabulosa de relógios antigos  e, alguns meses mais tarde, seu imenso “museu erótico”, contendo  mais de 20 mil fotografias e muitos objetos e filmes obscenos.

WESTERN: FANTASIA OU HISTÓRIA?

novembro 3, 2011

O western é um folclore americano: uma mitologia que depende mais da fantasia do que da história.

Muitos livros (vg. The Western Hero in History and Legend, 1965 de Kent Ladd Steckmesser; The Gunfighter: Man or Myth?, 1969 de Joseph G. Rosa; The American West on Film: Myth and Reality, 1974 de Richard A. Maynard: There Must Be a Lone Ranger – The American West in Film and Reality, 1974 de Jenni Calder, God Bless You, Buffalo Bill – A Layman’s Guide to History and the Western Film, 1983 de Wayne Michael Sarf) compararam os fatos e a ficção na História do Oeste. Graças a eles pude escrever este artigo.

Poucos dos muitos defensores da paz no Velho Oeste foram honrados com a imortalidade cinematográfica e somente eles tiveram seus nomes conhecidos pelo público em geral. Dois deles se destacam: Wild Bill Hickok e Wyatt Earp.

James Butler Hickok, mais conhecido como Wild Bill, tornou-se uma celebridade nacional após uma entrevista que deu em 1865 para o Coronel George Ward Nichols, que havia sido ajudante de campo do General Sherman na sua marcha através da Georgia, publicada no número de fevereiro de 1867 da Harper’s New Monthly Magazine sob o título de “Wild Bill”. O artigo era no mínimo pitoresco, particularmente quando citava o que era supostamente a descrição do próprio Hickok, de um combate que aconteceu no início da Guerra Civil com alguns secessionistas arruaceiros em Rock Creek Station, Nebraska. O relato vívido deste combate, complementado pelos comentários de Nichols sobre outra façanha do herói na sua luta contra os M’Kandlases, emocionou inumeros leitores, que acreditaram em cada palavra, muito embora o texto divergisse bastante dos verdadeiros fatos, menos divulgados, revelados depois por outros escritores.

Em 12 de julho de 1861, Dave McCanles (e não M’Kandlas) foi realmente morto, provavelmente por Hickok, porém existe a possibilidade de que um de seus amigos tivesse sido o responsável. Quem quer que estivesse escondido atrás de uma cortina, matou Dave com um tiro de seu rifle no momento em que ele se encontrava diante da estação de diligências de Rock Creek, onde Hickok trabalhava. Dois companheiros de McCanles foram feridos com uma pistola por Hickok e perseguidos por vários de seus colegas, que o assassinaram sem piedade. Apenas o filho de doze anos de McCanles, Monroe, escapou da carnificina. Como parece improvável, embora não impossível, que um homem com a intenção de começar um combate  levasse seu filho para ver a luta e como todas as três vítimas parece que estavam desarmadas, Hickok e seus colegas foram denunciados por assassinato; entretanto, sua alegação de auto defesa no interrogatório preliminar foi aceita, e o caso não teve andamento. A causa da disputa teria sido sobre algum dinheiro que a companhia de diligências devia a McCanles.

Tendo em vista as verdadeiras e sórdidas circunstâncias por trás do tiroteio da Rock Creek, os parentes de McCanles protestaram contra o uso do nome da família no filme de William S. Hart, Beijos que Torturam / Wild Bill Hickok / 1923,  no qual se mostrava uma ação semelhante ao ocorrido. Hart amavelmente mudou o nome – mas manteve o combate.

Se não fosse a entrevista concedida a Nichols, é bem possível que Hickok permanecesse uma figura relativamente obscura na história do Western, pois sua carreira pré-Harper, não foi mais excitante do que a de qualquer pessoa ousada habitante das planícies.

Nascido em Illinois em 1837, Hickok primeiro conseguiu emprego no Nebraska como peace officer (policial) em 1858. No ano seguinte, tornou-se condutor de carroças de carga, e em 1861 liquidou David McCanles, no que seria basicamente mais uma violenta e desinteressante (salvo por seu seus aspectos enigmáticos)  briga de fronteira. Hickok serviu à União como batedor civil, trabalhou algum tempo novamente como condutor de carroças, e depois voltou a ser batedor, aliás, muito eficiente. Em 1865, quando exercia a profissão de jogador, em um duelo arranjado de antemão na praça pública de Springfield, Missouri, Hickok matou um homem chamado Dave Tutt, com o qual havia discutido por causa de um jogo de cartas e uma mulher. Este duelo aterrorizou muitos cidadãos e Hickok foi julgado por homicídio; ele foi absolvido, embora o juiz tivesse cuidadosamente instruído os jurados a condená-lo, caso ficasse provado que o duelo havia sido de alguma forma premeditado pelo acusado”.

Após a conversa com Nichols que ocorreu em Springfield, Hickok continuou sua carreira de jogador, atuou como delegado, caçando desertores do exército e ladrões de cavalos e desempenhou novamente a função de batedor do Exército. Entre seus feitos nesta última colocação sobressaiu uma luta com guerreiros comanches, um dos quais arremessou uma lança que penetrou fundo na sua coxa.

Em agosto 1869, depois que sua fama foi espalhada pela Harper, ele foi eleito xerife de Ellis  County, Kansas, com seu centro de operações em Hays City, onde exterminou dois homens, que tentaram matá-lo ou ferí-lo primeiro. Candidatando-se à reeleição em novembro, Hickok foi derrotado pelo seu próprio auxiliar, Peter Lanihan, e deixou a cidade pouco tempo depois que seu período de função expirou. Hickok retornou a Hays, onde participou de um tiroteio defensivo com alguns cavalarianos desordeiros da famosa Sétima Cavalaria, matando um e ferindo seriamente o outro; a lenda diz que o irmão do General George Custer, Tom, estava envolvido neste incidente mas não é verdade.

Em 1871, Hickok foi nomeado delegado de Abilene.  Contrariamente aos mitos difundidos pelos seus biógrafos mais deslumbrados, Wild Bill não “domou” Abilene, principalmente porque ela já havia sido domada por Thomas James “Bear River Tom” Smith que, empossado como delegado em 4 de julho de 1870,  fez cumprir imediatamente a postura municipal proibindo o porte de armas na cidade. Quando encontrava resistência por parte dos vaqueiros buliçosos do Texas, que vinham fazer algazarra na cidade, Smith usava seus punhos, desconcertando os texanos, os quais geralmente usavam suas armas para decidir as disputas e eram incapazes de pensar num meio de defesa contra esta nova ameaça.

Smith foi morto fora de Abilene por um proprietário rural, Andrew McConnell, acusado de assassinato, que ele tentou prender;  um cúmplice então decapitou o delegado com um machado. Apesar de suas realizações, “Bear River Tom” nunca se tornou um herói folclórico ou um favorito dos contadores de histórias do Oeste, possivelmente porque pouco se conhece sobre sua infância ou  porque ele nunca matou quando era delegado.

A única “aventura” de Hickok em Abilene, durante os seus oito meses de serviço como delegado, resultou na morte de dois homens. Ouvindo tiros numa noite, ele correu para o lugar de onde vinham os disparos e se confrontou com Phil Coe, um jogador do Texas e alguns amigos desordeiros. Coe, que não gostava de Hickok, estaria ou não (dependendo da versão na qual quisermos acreditar) carregando uma pistola, com a qual teria atirado num cão e depois apontado para o delegado. Seja lá como for, Hickok atingiu Coe duas vezes na barriga enquanto que duas balas do jogador atravessaram o seu paletó. Mike Williams, colega e amigo de Hickok, tentando ajudá-lo, entrou na linha de fogo, e Hickok acabou alvejando-o também. O jornal local apoiava o trabalho de Hickok porém o conselho municipal dispensou-o assim que a temporada de comercialização febril do gado terminou.

Hickok consequentemente ingressou no show business como mestre de cerimônias de um espetáculo em Niagara Falls sobre a fronteira e a caça ao búfalo. O empreendimento foi um desastre financeiro e Hickok então voltou a ganhar a vida como jogador até que Buffalo Bill Cody lhe ofereceu um papel num drama teatral sobre o Oeste, The Scouts of the Plain. Ele não se deu bem nesta nova atividade e acabou sendo despedido por Cody por abuso de bebida e mau comportamento. Hickok costumava atirar imprudentemente muito perto dos atores que faziam o papel de índios, deixando-os com queimaduras de pólvora.

Em seguida a este interlúdio na ribalta, Hickok passou a maior parte do seu tempo em Cheyenne, Wyoming, jogando e planejando uma expedição para encontrar ouro nas Black Hills de South Dakota. Ele foi eventualmente acusado de vadiagem mas  saiu da cidade no dia marcado para seu julgamento e depois voltou sem ser molestado. Em 5 de março de 1876, Hickok casou-se com a viúva do dono de um circo, Agnes Lake Thatcher. De Cheyenne, ele partiu para Deadwood, South Dakota esperando ganhar dinheiro suficiente para seu sustento e de sua esposa, preocupado com sua deficiência de visão, e pensando se ainda conseguiria se proteger numa luta com arma de fogo.

No dia 2 de agosto, quando Hickok estava numa mesa de carteado num saloon, ele foi morto pelas costas por um sujeito estrábico e desajeitado, Jack McCall. Este alegou que Hickok havia matado seu irmão mas como se descobriu que esta pessoa jamais existira, o assassinato tem sido atribuído a um desejo patético de matar um pistoleiro famoso. As cartas que estavam na mão de Hickok no seu derradeiro jogo de pôquer – par de ases e de oitos – ficou conhecida com a Dead Man’s Hand (A Mão do Morto).

Como disse Wayne Michael Surf, O “Príncipe dos Pistoleiros” era um indivíduo bravo e certamente intrigante mas, como um “herói”, no melhor sentido da palavra, ele não era melhor do que muitos outros que  perambularam pelo Oeste durante o mesmo período. Entretanto, por sua aparência (cabelos compridos entrelaçados, roupas de camurça pitorescas e a maneira insólita de usar seus revólveres com a coronha virada para a frente), personalidade marcante e aptidão extraordinária para o uso de armas, Hickok realmente se destacava dos demais. De acordo com relatórios contemporâneos parece que ele impressionava os observadores (alguns indubitavelmente influenciados na sua opinião pelo que haviam ouvido ou lido) mais por causa de suas qualidades pessoais – por ser simplesmente Wild Bill Hickok – do que por qualquer uma de suas façanhas.

Jornadas Heróicas / The Plainsman / 1936 foi um dos filmes mais famosos e populares sobre Hickok apesar de toda a sua distorção histórica e da dessemelhança física entre os atores e os personagens verdadeiros. O enredo coloca Wild Bill (Gary Cooper), Calamity Jane (Jean Arthur) e um récem-casado Buffalo Bill Cody (James Ellison) lutando contra contrabandistas de armas e índios, sendo que o romance tumultuado entre Hickok e Calamity é contrastado com a situação doméstica estável de Cody. O romance de Hickok com Calamity foi baseado numa prova bastante frágil: “Sabe-se que certa vez ele comprou um vestido para ela”, explicou DeMille anos depois. “Isto é perfeitamente conhecido. Não se sabe é como e porque ele comprou o vestido.” O romance entre Wild Bill de Gary Cooper e a famosa mulher-macho da fronteira (Martha Jane Cannary) foi o único elemento desse western épico que DeMille admitiu (na sua Autobiografia póstuma) ter sido antihistórico. “Confesso que tomei algumas liberdades na escolha do elenco: fotografias que ví da verdadeira Calamity Jane eram bem distantes do encanto picante de Jean Arthur. Todavia, se eu posso dizer assim, foi uma boa distribuição de papéis”. Apesar da lenda, é improvável que Hickok tenha se envolvido romanticamente com Calamity.

A figura de Wild Bill Hickok, como personagem principal ou secundário, herói ou vilão, foi explorada pelo cinema em vários outros filmes (vg. O Cavalo de Ferro / The Iron Horse / 1924 (John Padjan), A Última Aventura / The Last Frontier / 1926 (J. Farrell MacDonald), O Fantasma Vingador ou A Última Fronteira / The Last Frontier / 1932 / seriado (Yakima Canutt), Frontier Scout / 1938 (George Houston), A Invasão dos Peles-Vermelhas / The Great Adventures of Wild Bill Hickock /1938 / seriado (Gordon (Bill) Elliott), Sede de Ouro / Young Bill Hickok / 1940 (Roy Rogers), O Caveira / Deadwood Dick / 1940 / seriado (Lane Chandler), Traição de Irmãos / The Badlands of Dakota / 1941 (Richard Dix), Tropel de Bárbaros / Wild Bill Hickok Rides / 1942 (Bruce Cabot), Vingador Impiedoso / Dallas / 1950 (Reed Hadley),  Bando de Renegados / The Lawless Breed / 1952 (Robert Anderson), As Aventuras de Buffalo Bill / Pony Express / 1953 (Forrest Tucker), Ardida como Pimenta / Calamity Jane / 1953 (Howard Keel), O Alçapão Sangrento / Jack McCall Desperado /1953 (Douglas Kennedy), Son of the Renegade / 1953 (Ewing Miles Brown), I Killed Wild Bill Hickok / 1956 (Tom Brown), Bandoleiros do Oeste / The Raiders / 1964 (Robert Culp), Os Reis do Faroeste / The Outlaw is Coming / 1964 (Paul Shannon), Deadwood’76 / 1965 (Robert Dix), Respondendo à Bala / The Plainsman / 1966 (Don Murray), O Pequeno Grande Homem / Little Big Man / 1970 (Jeff Corey), O Grande Búfalo Branco / The White Buffalo / 1977 (Charles Bronson), The Legend of the Lone Ranger / 1981 (Richard Farnsworth), Uma Lenda do Oeste / Wild Bill / 1995 (Jeff Bridges), predominando sempre a imaginação sobre a verdade.



Wyatt Earp, Frontier Marshall, a biografia de Wyatt Earp escrita por Stuart N. Lake e publicada em 1931, após ter sido serializada nas páginas do Saturday Evening Post,  fixou a lenda colossal de Earp. Este relato excitante, cheio de ação na luta de um homem contra a ilegalidade no Velho Oeste contribuiu para distorcer e confundir a história do Oeste mais do que qualquer outro livro. Devido à sua aceitação como uma obra de referência modelar, suas falsidades incríveis foram incorporadas como verdade histórica por vários autores respeitáveis.

A crônica dramática de Lake foi muito vantajosa financeiramente e ele procurou protegê-la de possíveis revisionistas. Quando, em 1946, Frank Waters publicou no seu livro, The Colorado, alguns fatos revelados pela viúva de Virgil Earp, Allie, e corroborados pela pesquisa, Lake ameaçou acioná-lo na Justiça, se não fosse feita alguma retratação. Waters se recusou, amparado nos dados que colhera; um dos advogados de Lake subsequentemente dirigiu-se aos arquivos da Arizona Pioneer’s Historical Society e desistiu de propor a ação após consultar o manuscrito de Waters contendo as reminiscências de Allie Earp, que afinal seriam publicadas em 1960 como The Earp Brothers of Tombstone.

Das mentiras de Lake, um das mais exorbitantes e largamente aceita foi o relato de como o ex-condutor de carroça e caçador de búfalos Wyatt Berry Sharp Earp tornou-se delegado da turbulenta Wichita, Kansas em 1874, “limpando” a cidade rapidamente. Wyatt nunca foi delegado em Wichita. Ele foi, em 1875, um simples policial, que não realizou nada de importante durante o seu tempo de serviço. Multado em 30 dólares e custas por ter agredido um candidato a delegado opositor, Wyatt teve que entregar seu distintivo, e parece que surgiram dúvidas sobre se ele havia ficado com o dinheiro arrecadado em multas em favor da comunidade. Logo, os “dois Earps”, Wyatt e um de seus irmãos, foram expulsos da cidade por vagabundagem.

Em 1955, Jacques Tourneur dirigiu para a Allied Artists um western “épico” muito bom estrelado por Joel McCrea no papel de Wyatt Earp. Baseado vagamente na biografia de Stuart Lake, mas  também inverídico, o espetáculo contava a história do imortal Wyatt pacificando uma cidade sem lei. O filme, em glorioso Technicolor e fotografia em CinemaScope de tirar o fôlego,  foi intitulado Choque de Ódios / Wichita.

Depois do breve período como policial em Wichita e em seguida como assistente de delegado em Dodge City, Warp, acompanhou seus irmãos Virgil, Morgan e James e respectivas esposas a Tombstone no Território do Arizona, onde os Earp destruíram seus inimigos, os Clanton no O.K. Corral, o acerto de contas mais lendário do Oeste fictício.

A versão de Stuart Lake da história, reproduzida em variados graus por Hollywood, apresenta Earp encontrando uma Tombstone convulsionada pela desordem. Opondo-se ao xerife corrupto John Behan e ajudado pelo enigmático e tuberculoso dentista, jogador e pistoleiro “Doc” Hollliday, os irmãos Earp finalmente liquidaram o clã dos Clanton no OK Corral sob o aplauso dos homens de bem da cidade.

Vou reproduzir as informações que colhí no livro de Sarf.  Disse ele que, em 1 de dezembro de 1879, Wyatt, três dos seus irmãos, e respectivas esposas, chegaram em Tombstone, onde Wyatt arranjou um emprego como guarda de diligência na linha da Wells Fargo, tornando-se depois xerife. Ele logo pediu demissão e foi substituído por John H. Behan. Wyatt então obteve uma participação na propriedade do Oriental Saloon and Gambling House, onde instalou o irmão Morgan como crupiê; neste ínterim, seu irmão Virgil concorreu para o cargo de delegado e perdeu a eleição. Nessa ocasião, os Earps estavam num aperto financeiro e os ganhos obtidos no jogo tinham que ser complementados pelo trabalho de costura de suas esposas. A mulher de Wyatt, Mattie, fez a sua parte mas Wyatt mostrou sua gratidão traindo-a abertamente com a atriz Sadie, que “roubara” do seu antigo amante – o xerife John Behan.

Em 15 de março de 1891, uma diligência foi emboscada perto de Tombstone e o cocheiro e um passageiro foram mortos. Uma posse da qual faziam parte os Earp e alguns de seus amigo, liderada por Behan, prendeu um cúmplice dos assaltantes que logo escapou, aproveitando-se de uma distração de seus captores. Os Earps, culpando Behan pelo acontecido e sugerindo publicamente que ele estava de conluio com os ladrões, ficaram furiosos quando souberam dos rumores implicando seu amigo, Doc Holliday (que fora visto galopando na vizinhança momentos após o duplo assassinato). A conexão de Holliday com o assalto nunca foi provada mas houve indícios de que não só o próprio Holliday disparou os tiros fatais como também de que Wyatt era o chefe de um bando de assaltantes de diligência, que recebia regularmente informações sobre as remessas de numerário por parte de um agente da Wells Fargo (a viúva de Virgil Earp confirmou isto embora ela suspeitasse de que o introvertido James Earp  era quem planejava os roubos). O assassinato do cocheiro foi aparentemente uma tentativa frustrada de Doc contra a vida de um detetive enviado para investigar os roubos audaciosos, o qual havia trocado de lugar com o cocheiro pouco antes da emboscada.

Os outros três bandidos procurados pela emboscada da diligência parece que ficaram aborrecidos com Doc por este ter estragado o assalto atirando em duas pessoas em vez de apontar para os cavalos que iam na dianteira, ação que poderia ter interceptado a diligência efetivamente; se fossem capturados pelos homens de Behan eles poderiam concebivelmente contar o que sabiam assim como os irmãos Clanton e McLaury – os primeiros,  insignificantes ladrões de gado ligados ao bando de Earp; os últimos, rancheiros de pequena escala e amigos tanto dos Clanton como dos três bandidos foragidos. Devido à suspeita sobre o “Bando de Earp”, Wyatt decidiu matar dois coelhos com uma só cajadada: ele ofereceria seis mil dólares de recompensa para os Clantons e os McLaurys se eles atraíssem os três foragidos para uma emboscada de modo que os Earps pudessem liquidá-los, eliminando assim três testemunhas potenciais, subornando outras, e transformando Wyatt Earp e companhia em guardiães da lei. Porém quando Wyatt contou para Ike Clanton o seu esquema, Ike rejeitou sua oferta.

A este revés  seguiu-se um período de sorte para o grupo de Earp. Virgil Earp  foi nomeado delegado temporariamente e se tornou permanente quando a pessoa incumbida desta função, que havia se ausentado brevemente de Tombstone, resolveu nunca mais voltar. Os três ladrões da diligência foram mortos em tiroteios ocorridos em outro lugar. Doc Holliday, que fora preso por tentativa de roubo e assassinato, graças ao depoimento de sua companheira, Kate Elder, foi libertado, quando Wyatt, insistindo que o xerife Behan a embriagara e a fizera assinar um documento, cujo teor ela ignorava, forneceu a Doc um álibi. A esta altura, boatos sobre a oferta de Wyatt se espalharam pela cidade. Ike Clanton se defendeu, dizendo que Earp estava contando mentiras a seu respeito e que   havia recusado a proposta. Ike reuniu em torno dele vários partidários, incluindo Billy Clanton, Frank and Tom McLaury, e Billy Claiborne.

A fim de proporcionar alguma espécie de justificação para o que viria a acontecer, Wyatt começou a falar em voz alta sobre lei e ordem e o relacionamento de Behan com certos ladrões de gado e outros malfeitores; emprestando um ar de legalidade ao acerto de contas vindouro, Virgil Earp nomeou  Wyatt, Morgan e Doc Holliday como seus assistentes. Várias tentativas foram feitas para incitar os membros da família Clanton a um combate.

No dia 26 de outubro de 1881, à tarde, o xerife Behan, tendo ouvido conversas sobre um combate iminente, dirigiu-se à frente do Hafford’s Saloon, onde os Earps estavam reunidos, e disse a Virgil que ele deveria tentar desarmar os Clantons. Virgil respondeu que, em vez disso, ele iria lhes dar uma chance de  decidir pelas armas. Behan andou mais um pouco e viu os Clantons e os McLaurys num beco atrás do O.K. Corral, onde eles aparentemente estavam se preparando para deixar Tombstone. Behan pediu que eles se desarmassem; Ike e Tom Laury disseram que não carregavam armas enquanto Billy Clanton e Frank McLaury se recusaram a depô-las.

Descendo a rua, os Earps  passaram por Behan e ignoraram seus protestos quando ele lhes implorou que parassem e então se separaram para enfrentar seus oponentes no duelo mais famoso da história da América ou da lenda. O confronto durou talvez trinta segundos, ao fim do qual Tom, Frank e Billy estavam mortos. Ike Clanton fugiu e Virgil e Morgan ficaram feridos. Um pedaço  de pele das costas de Doc Holliday foi arrancada por uma bala.

Virgil foi imediatamente destituído do cargo de delegado e muitos cidadãos obedientes à lei não gostaram do ocorrido. Um interrogatório preliminar teve lugar e apesar de um grande número de depoimentos – pessoas afirmando que dois homens do grupo Clayton-McLaury estavam desarmados, que os homens que foram mortos estavam com as mãos levantadas e assim por diante – os Earps escaparam do castigo, talvez porque o Juiz de Paz era muito amigo deles e os declarou “totalmente justificados em cometer aqueles homicídios”.

Em 28 de dezembro, Virgil Earp ficou aleijado para o resto da vida após ter sido alvejado por desconhecidos quando saía do Oriental Saloon e , em 18 de março de 1881, Morgan Earp foi morto por uma bala disparada através da janela de uma sala de sinuca quando ele marcava com giz no quadro negro a vitória num jogo. Despachando o aleijado Virgil e o resto da família para a California, Wyatt começou a matar vários homens que ele considerava responsáveis pelos tiros que alvejaram seus irmãos e depois sumiu no horizonte para escapar às acusações de assassinato e de abandono de sua mulher na California. Mattie Earp, cujo esposo havia, por razões dele próprio, mantido seu casamento em segredo, finalmente compreendeu que Wyatt não iria se unir a ela e voltou para o Arizona. Ali, desamparada, recorreu à prostituição para sobreviver até que decidiu que este tipo de sobrevivência não valia a pena e tomou uma dose fatal de láudano (medicamento à base de ópio). Wyatt prosseguiu sua carreira de jogador, dono de saloon, e trapaceiro. Em 1911, com a idade de 63 anos, ele foi acusado de cumplicidade num jogo fraudulento em Los Angeles, onde veio a falecer, em 13 de janeiro de 1929, aos 81 anos.

O personagem de Wyatt (com o seu próprio nome) apareceu no cinema como protagonista ou coadjuvante em muitos filmes além de Beijos que Torturam e Choque de Ódios: A Lei da Fronteira/ Frontier Marshall / 1939 (Randolph Scott), Horas de Perigo / Tombstone, The Town Too Tough to Die / 1942 (Richard Dix),  Paixão dos Fortes / My Darling Clementine / 1946 (Henry Fonda), Winchester 73 / Winchester 73 /  1950 (Will Geer), Duelo de Morte / Law and Order / 1953 (Ronald Reagan), De Homem Para Homem / Gun Belt / 1953 (James Millican), Ases do Gatilho / Masterson of Kansas / 1954 (Bruce Cowling), Sem Lei e Sem Alma / Gunfight at O.K. Corral / 1957 (Burt Lancaster), A Morte a Cada Passo / Badman’s Country / 1958 (Buster Crabbe), Valentão é Apelido / Alias Jesse James / 1959 (Hugh O’Brian), Crepúsculo de uma Raça / Cheyenne Autumn / 1964 (James Stewart), Os Reis do Faroeste / The Outlaw is Coming / 1964 (Bill Canfield), A Hora da Pistola / Hour of the Gun / 1967 (James Garner), Tombstone, A Justiça Está Chegando / Tombstone / 1993 (Kurt Russell), Wyatt Earp / Wyatt Earp / 1994 (Kevin Costner), sem que a verdade completa sobre sua vida fosse abordada.

Em Hollywood, Wyatt Earp fez amizade com W. S. Hart, Tom Mix e John Ford. Ford afirmou que, em Paixão dos Fortes, ele filmou o duelo em O.K. Corral tal como havia ocorrido porém o que foi mostrado na versão fordiana não corresponde à realidade dos fatos: dois membros da família Earp, James e Virgil,  são mortos antes do duelo, no qual perecem também Doc Holliday e o velho Clanton.
Mas, diante de um western extraordinário como Paixão dos Fortes, quem se importa com a verdade?

ERNST LUBITSCH-III

outubro 1, 2011

Para a estréia de Lubitsch nos talkies foi sugerida uma versão da peça Abie’s Irish Rose de Anne Nichols. Mas ele preferiu fazer um musical em forma de opereta, Alvorada de Amor / The Love Parade / 1929, que se constituiu num dos mais expressivos entre os primeiros filmes sonoros, juntamente  com Aplausos / Applause / 1929 de Rouben Mamoulian e Aleluia / Hallelujah / 1929 de King Vidor.

Em Alvorada de Amor a música, composta por Victor Schertzinger (com letras de Clifford Grey), insere-se espontaneamente na ação. Antecipando o “musical integrado”, que atingiria sua forma definitiva na Metro sob a batuta de Arthur Freed, as canções não são meros interlúdios musicais, elas se integram à narrativa e contribuem para movimentar a história. Ao mesmo tempo, os cenários grandiosos de Hans Dreier e o guarda-roupa requintado de Travis Banton dão suntuosidade ao espetáculo.

A trama, adaptada por Ernest Vajda (iniciando a colaboração de cinco filmes com Lubitsch) e Guy Bolton da peça Le Prince Consorte de Léon Xanrof e Jules Chancel, transcorre no reino de Sylvania. Alí, para desânimo dos ministros, a Rainha Louise (Jeanette MacDonald) continua solteira. O Conde Alfred Renard (Maurice Chevalier), retorna de Paris em desgraça, devido aos numerosos  escândalos causados por suas aventuras amorosas. Alfred comparece diante da rainha e ela, depois de ouví-lo contar suas proezas, pensa em puní-lo mas acaba sucumbindo aos seus encantos. Para satisfação de todo o gabinete ministerial, os dois se casam. Entretanto, depois de certo tempo, Alfred, cansado de receber ordens e de não fazer nada no seu papel de “príncipe consorte”, ameaça deixar o país, e pedir o divórcio. Ela então lhe implora que fique. O conde só muda de intenção, quando Louise promete torná-lo um verdadeiro rei, além de marido.

O toque de Lubitsch manifesta-se desde o início, quando o criado põe a mesa para o jantar cantando “A Little Brandy Ooh La La” e termina a canção, puxando a toalha, sem derrubar o que estava em cima da mesma. Pouco depois, ouvimos uma discussão em francês à porta fechada. Alfred abre a porta, olha para a câmera, e diz para a platéia: “Ela é terrivelmente ciumenta”. A mulher em questão achou uma liga de meia que não lhe pertencia e investiu contra o amante. Neste momento, chega o marido. Surpreendida, ela aoanha um revólver, e se suicida. O marido, desesperado, pega a arma, e atira em Alfred. Mas os dois percebem que as balas eram de festim. Eles olham para a mulher, e ela abre os olhos.

No decorrer da narrativa os lubitschianismos se sucedem  – outro toque notável é o jantar nos aposentos da rainha, quando os gestos de Alfred e Louise são acompanhados e comentados de lugares diferentes pelas damas de companhia, pelos ministros e pelo casal de criados -, entremeados pelas lindas canções, que mantêm a melhor tradição vienense e são executadas com graça e jovialidade, não só pela dupla Maurice Chevalier – Jeanette MacDonald como também pelo casal de criados interpretados por Lupino Lane e Lillian Roth. Lupino é Jacques, o criado de Alfred e Lillian é Lulu, a criada de Louise. Eles repetem  “downstairs” a espirituosa guerra de sexos que ocorre “upstairs” e, no seu número de dança, “Let’s Be Common”, dão um show com os seus passos acrobáticos. Entre as outras músicas, todas excelentes, chamam mais atenção: “My Love Parade”, “ “Anything to Please the Queen”, “The Queen is Always Right” e “March of the Grenadiers”.

Depois de assistir Alvorada de Amor, Jean Cocteau exclamou: “É um milagre de Lubitsch, uma mistura de conto de Andersen com vivacidade de Strauss, não esquecendo aquele extraordinário casal de domésticos, que saíram diretamente de uma ópera bufa de Mozart”.

Antes de assumir novo compromisso, Lubitsch orientou Maurice Chevalier em três sequências  de Paramount em Grande Gala / Paramount on Parade / 1930, revista musical com elenco de astros e estrelas e outros dez diretores (Dorothy Arzner, Otto Brower, Edmund Goulding, Victor Heerman, Edwin H. Knopf, Lothar Mendes, Rowland V. Lee, Victor Schertzinger, Edward Sutherland e Frank Tuttle), supervisionados por Elsie Janis, seguindo a trilha de Follies / Fox Movietone Follies of 1929 / 1929, Follies de 1930 / Fox Movietone Follies of 1930 / 1930, Parada das Maravilhas / Show of Shows / 1929, Hollywood Revue / Hollywood Revue / 1929, etc.

No primeiro segmento, “Origin of the Apache” o chansonier francês contracenava com Evelyn Brent num esquete cômico; no segundo, “A Park in Paris”, vestido de gendarme, ele anotava o nome das garotas num parque, cantando “All I Want is Just a Girl”; no último, “Rainbow Revels”, que era a apoteose (fotografada em Technicolor de duas cores), cercado por um coro feminino, Chevalier interpreta “Sweeping the Clouds Away” pelos telhados de Paris até às nuvens. O filme teve versões em vários idiomas. No Brasil, foi exibida a versão espanhola, Galas de la Paramount, com cortes de alguns números, dirigida por Eduardo D. Venturini.

Em 5 de junho de 1930, Lubitsch e Leni se separaram. Cinco dias depois, ela pediu o divórcio. O motivo alegado  foi crueldade mental mas na verdade tratava-se de adultério. Leni e Hanns Kräly já vinham vivendo um romance às escondidas. Pouco depois, numa festa dada por Mary Pickford e Douglas Fairbanks no Embassy Club, ocorreu um incidente escandaloso. Lá estavam Kräly e Leni e Lubitsch acompanhado da atriz Ona Munson. A certa altura, enquanto ambos os pares estavam dançando, Lubitsch agarrou a mão de Kräly e lhe deu uma bofetada. Leni reagiu e esbofeteou Lubitsch, seguindo-se uma gritaria em alemão, presenciada por todos os convidados. Depois de concedido o divórcio, Kräly e Leni se casaram porém o casamento durou pouco.

Reunindo uma obscura peça alemã, Die Blaue Küste de Hans Müller com episódios de Monsieur Beaucaire de Booth Tarkington e Evelyn Greenleaf Sutherland, o roteirista Ernest Vajda escreveu Monte Carlo / Monte Carlo / 1930, outra opereta. Aperfeiçoando sua fórmula, Lubitsch demonstrou ainda melhor controle na integração das canções às imagens. “Cada canção esboça o personagem ou faz avançar a intriga: as canções não surgem apenas naturalmente da ação, ela são a ação”(Scott Eyman).

No argumento, a Condessa Helene Mara (Jeanette MacDonald), fugindo de seu futuro marido, o Príncipe Otto von Liebenheim (Claude Allister), chega a  Monte Carlo, precisando de dinheiro. Ao vê-la entrar no cassino, o Conde Rudolph Fallière (Maurice Chevalier) fica encantado com sua beleza. Rudolph se apaixona por Helene e telefona para ela todas as noites, transmitindo seu amor por meio de canções, respondidas também liricamente. Sem saber que Rudolph é um aristocrata, Helene contrata-o como seu cabelereiro. Até que, assistindo a uma representação de Monsieur Beaucaire,  a condessa verifica que Rudolph, tal como o principal personagem da peça, é nobre e rico, e os dois se unem para sempre.

Na cena em que Helene viaja pela Côte d’Azur, os ritmos da melodia “Beyond the Blue Horizon”, do coro dos campesinos que vêem a locomotiva passar, do som percussivo do apito do trem e do movimento circular das rodas em alta velocidade, atuam em perfeita harmonia numa admirável montagem audio-visual. Em todo o filme a conjugação sonoro-pictórica  processa-se de maneira extremamente sugestiva (como no dueto pelo telefone, “Give Me a Moment Please”) e sublinha com eficiência as ambivalências da intriga.

Porém o melhor momento do espetáculo é a sequência inicial. São alguns minutos de cinema puro, nos quais vemos os criados desenrolando um tapete na frente do palácio em direção à igreja, na qual se realizará uma cerimônia matrimonial cheia de pompa e circunstância. De repente, enquanto os convidados se encaminham para a igreja, cai um aguaceiro. Os convidados correm. Os criados saem do palácio com os guarda-chuvas. Um deles acompanha o noivo. Eis que surge uma camareira e sussurra algo para o noivo. Este volta apressadamente para o palácio, onde encontra o vestido da noiva em uma cadeira e em outra, o véu. Ele anda a esmo pelo quarto e então pronuncia o primeiro diálogo do filme: “Papa! Papa!”.

Ao lado de Jeanette MacDonald, em vez de Maurice Chevalier, está o ator britânico oriundo do music-hall, Jack Buchanan, que retornaria ao cinema americano destacadamente em A Roda da Fortuna / The Band Wagon / 1954 de Vincente Minnnelli; Buchanan, embora charmoso, não tinha a mesma sensualidade de Chevalier. Um aspecto positivo foi o encontro de Lubitsch  com o letrista Leo Robin (as músicas eram de Richard Whiting e W. Franke Harling), cujas palavras espirituosas iluminariam mais quatro filmes do diretor. Um dia Robin perguntou a Lubitsch porque ele o escolheu quando existiam inúmeros excelentes letristas em Hollywood. Lubitsch respondeu: “Eu trabalho com você porque você não transforma meus personagens em atores”.

Lubitsch havia sido originariamente contratado pela UFA para um filme baseado na novela Nux, der Prinzgemahl de Hans Müller e na opereta Ein Walzertraum de Leopold Jacobson e Felix Dörmann com música de Oscar Strauss. Quando partiu para a América, o projeto passou às mãos de Ludwig Berger. Com o advento do som, Lubitsch retomou a idéia, tirando maior proveito da partitura de Strauss e  usando poucos diálogos em O Tenente Sedutor / The Smiling Lieutenant / 1931. Tal como René Clair fizera em O Milhão/ Le Million / 1931, Lubitsch deixou que a música e a câmera trabalhassem para ele, dando um excelente exemplo da fusão da técnica do cinema mudo com os métodos do falado.

O roteiro, elaborado por Ernest Vajda e Samson Raphaelson (no seu primeiro dos nove filmes com o cineasta), lidava com personagens conhecidos na obra lubittscheana. Em Viena, Franzi (Claudette Colbert), uma linda violinista e Nikki (Maurice Chevalier), tenente da guarda real, amam-se ternamente até que ele é convocado para acompanhar a visita do Rei de Flausenthurm (George Barbier) e sua filha, a Princesa Anna (Miriam Hopkins). Esta se apaixona por Nikki e ameaça o pai (“Se você não  me deixar casar com ele, eu me casarei com um americano!”), para obter seu consentimento. O rei, certo de que a filha, desajeitada e sem atrativos, estava destinada ao celibato, marca o matrimônio. Nikki é forçado ao casamento por motivos diplomáticos e, logo depois, volta aos braços de Franzi. Sabendo das relações entre os dois, Anna chama Franzi ao palácio, onde as duas se repreendem mutuamente. Com pena de Anna, Franzi a ajuda a se tornar uma jovem encantadora (ensinando-lhe os truques da sedução num ótimo número musical, “Jazz Up Your Lingerie”) e, deixando um bilhete para Nikki, sai de Viena. Deslumbrado com a transformação de Anna, Nikki esquece Franzi e compreende que a vida na companhia de uma bela e rica princesa tem suas vantagens.

Segundo Samson Raphaelson, Lubitsch funcionava assim: “Quando um script ficava pronto, praticamente 75% do trabalho de Lubitsch estava concluído. A montagem era feita durante a sua confecção. A esta altura, ele já tinha em mente como deveriam ser as interpretações dos atores e o que cada um poderia produzir nos respectivos papéis. Raramente um ator deixava de ter seu melhor desempenho com Lubitsch e é por isso que eles gostavam de atuar sob suas ordens. Ele mostrava como deviam representar cada cena, interpretando seus papéis e, quando eles o viam, não podiam interpretar de outra maneira porque, tal como ele fizera, estava correto”.

A certa altura deste filme deliciosamente amoral, Chevalier e Colbert travam o seguinte diálogo: Colbert – “Nós podemos tomar chá amanhã à tarde”. Chevalier – “Por que não café da manhã, amanhã?” Colbert – “Não. Primeiro chá, depois jantar … então … talvez … café da manhã”.” A tela escurece e depois clareia para mostrar o ajudante de ordens de Chevalier fritando dois ovos e o casal se sentando à mesa para … o café da manhã.

Não Matarás / The Man I Killed, rebatizado um mês após a estréia como Broken Lullaby / 1932, foi o único filme sonoro dramático de Lubitsch. Inspirado na peça L’Homme qui j’ai tué de Maurice Rostand (filho do autor de Cyrano de Bergerac) com roteiro de Samson Raphaelson, o filme é uma amarga mensagem pacifista, versando sobre o tema da contrição. Finda a Primeira Guerra Mundial, Paul Renard (Phillips Holmes), jovem soldado francês, vai procurar a família de Walter Hölderlin, o soldado alemão que matara durante o conflito, para pedir perdão. Recebido pelos pais do morto, Dr. Hölderling (Lionel Barrymore depois de cogitado Emil Jannings) e Frau Hölderlin (Louise Carter) como se fosse um outro filho (eles lhe dão até o violino de Walter que, tal como Paul, era músico), e se apaixona por sua noiva, Elsa (Nancy Carroll), não consegue revelar a verdade.

Lubitsch tratou o relato com muita sinceridade, extraindo efeitos dramáticos inspirados nos enquadramentos (a impressionante cena do desfile comemorativo visto através da perna amputada de um soldado), na trilha sonora (sinos tocando durante o bombardeio; sons de canhão despertando bruscamente um soldado ferido no hospital) e nos movimentos de câmera (os oficiais ajoelhados na catedral de Notre Dame, ouvindo um sermão sobre a Paz, focalizados  num travelling por cima de suas esporas e sabres reluzentes).

Jean Narboni (Ernst Lubitsch, Petite bibliothéque des Cahiers du cinéma / Cinémathèque Française, 2000) escreveu: “ … Cena por cena, em cada plano de cada cena, por cada gesto, atitude, deslocamento, palavra ou olhar dos personagens, ele intensifica a tonalidade patética do filme, dotando-o de uma vibração cada vez mais intensa até a brancura sublime e estranha da cena final: o jovem francês reabre o piano diante dos pais estáticos, para executar  acompanhado pela  noiva, a melodia (obs. a “Reverie” de Schumann), que não havia sido tocada há anos.”

Por meio de imagens comoventes e patéticas como essa, Não Matarás alcançou o status de clássico do cinema pacifista, despontando como um dos mais acabados representantes do gênero no início do cinema sonoro ao lado de All Quiet on the Western Front / Sem Novidade no Front / 1930 de Lewis Milestone ou Guerra, Flagelo de Deus / Westfront 1918 / 1930 de G.W. Pabst.

Como Lubitsch estava muito ocupado com a finalização de Não Matarás, a Paramount decidiu que ele apenas “supervisionaria” a produção de Uma Hora Contigo / One Hour With You. George Cukor foi designado para dirigir o filme em 28 de setembro de 1931. Em 21 de outubro, Lubitsch completou a filmagem de Não Matarás, deu uma olhada no script proposto para Uma Hora Contigo e imediatamente o descartou. Preocupado, ele adiou a filmagem de Uma Hora Contigo para novembro e logo começou a reescrever o velho script de O Círculo de Casamento com Samson Raphaelson.

No novo script, ao atender um chamado de Mitzi Olivier (Genevieve Tobin), a melhor amiga de sua mulher, Colette (Jeanette MacDonald), o Dr. André Bertier (Maurice Chevalier) vê-se comprometido e citado numa ação de divórcio proposta pelo Professor Olivier (Roland Young), marido de Mitzi. Quando Colette vem a saber, deixa-se cortejar por Adolph (Charles Ruggles), um antigo admirador até que André a convence de sua inocência e o casal volta a viver feliz.

Cukor dirigiu durante dois dias mas Lubitsch e Raphaelson não gostaram dos  rushes e ele passou a cumprir as orientações de Lubitsch, que, a partir de 20 de novembro, assumiu totalmente a direção. Uma Hora Contigo ficou pronto em 7 de janeiro de 1932. Na pré-estréia, os créditos diziam: “Uma produção de Ernst Lubitsch” e “Dirigido por George Cukor”. Furioso, Lubitsch escreveu uma carta para o chefão do estúdio, B. P. Schulberg, pedindo-lhe que retirassse o seu nome dos créditos e Schulberg preferiu retirar o nome de Cukor.

Este recorreu à Justiça, tentando impedir a exibição do filme em uma outra pré-estréia mas afinal chegou a um acordo com a Paramount, que o libertou de seu contrato, para que ele pudesse trabalhar com seu amigo David O. Selznick na RKO.

O filme, realmente, saiu cem por cento lubitscheano, com toda aquela continuidade agradável, malícia subentendida e inventiva constante (as confidências de Chevalier à platéia), que caracterizavam seu “jeito” cinematográfico.

Considerado pelo próprio cineasta (“Em matéria de puro estilo penso que não fiz nada melhor ou igual”) e unanimemente reconhecido pela crítica como obra-prima, Ladrão de Alcova / Trouble in Paradise / 1932 é uma farsa mundana deleitavelmente cínica e de pouca vergonha.

Inspirando-se numa insignificante peça do húngaro Laszlo Aladar, o diretor e Raphaelson imaginaram um relato cheio de imprevistos, finura e mordacidade. Em Veneza, após terem se pilhado simultaneamente, dois ladrões cosmopolitas, Gaston Monescu (Herbert Marshall) e Lily (Miriam Hopkins), reiniciam um romance, e partem rumo a Paris.  Pretendendo  furtar as  jóias de uma rica viúva, Mariette Colet (Kay Francis), eles conseguem emprego em sua casa (ele, como secretário; ela, como datilógrafa). Com ciúmes das atenções dispensadas pelo parceiro a Mariette, Lily resolve agir sozinha. Porém Gaston, reconhecendo que foram feitos um para o outro, promove a reconciliação e o casal deixa Mariette, levando consigo as jóias.

Desde a famosa cena de abertura, quando se descobre que o tenor entoando uma ária sobre a gôndola é apenas um limpador dos sujos canais da Cidade dos Doges, até o clímax com a impunidade dos larápios, Lubitsch joga com os contrastes entre a aparência e a realidade  e, servido por seu inigualável senso rítmico e espírito alerta e impudente, deixa os espectadores rindo sem parar um só instante.

Durante todo o desenrolar da intriga, Edward Everett Horton, no papel de François, um milionário apaixonado por Mariette, tenta se lembrar onde viu o secretário da viúva, que passando por médico enquanto fingia examinar suas amígdalas, o havia roubado em Veneza. No final, depois de muita fleuma e impagáveis double-takes (aquele movimento com a cabeça  de quem percebe as coisas atrasado), François olha um cinzeiro em forma de gôndola e grita: “Amígdalas!”, encerrando o engraçadíssimo gag contínuo. Enfim, um primor de realização.

Ainda no mesmo ano, Lubitsch supervisionou a produção de Se Eu Tivesse Um Milhão / If I Had a Million / 1932, filme em esquetes com astros e estrelas da Paramount e oito diretores (Ernst Lubitsch, Norman Taurog, Stephen Roberts, Norman Z. McLeod, James Cruze, William A. Seiter, Bruce Humberstone, Edward Sutherland)  ligados por um fio de enredo:  um milionário excêntrico, antes de morrer, resolve repartir sua fortuna entre sete pessoas desconhecidas e os vários tópicos mostram o que a dádiva significou na vida de cada uma. Lubitsch dirigiu “The Clerk”, episodio humorístico quase silencioso, com Charles Laughton. O personagem de Laughton, um humilde empregado, ao receber o cheque, atravessa as salas de vários subalternos até à do patrão e se despede colocando ruidosamente a língua para fora. Na verdade,  o episódio todo era um Lubitsch touch.

No começo de 1933, Lubitsch apareceu brevemente, como ele mesmo, em Mr. Broadway, musical dirigido por Edgar G. Ulmer e Johnny Walker, estrelado por celebridades da Broadway e Hollywood – Ed Sullivan, Jack Dempsey, Josephine Dunn, Ruth Etting, Jack Benny, Bert Lahr, Primo Carnera, Jack Haley, Dita Parlo, William Desmond, Maxie Rosenboom, Lita Gray Chaplin, Eddie Duchin e sua orquestra, etc.

A fim de preservar do severo Código de Produção o ménage-à-trois de dois homens e uma mulher – antecipando de três décadas a ousadia de Uma Mulher para Dois / Jules et Jim / 1961 de François Truffaut – em Sócios do Amor / Design for Living / 1933, o adaptador-roteirista Ben Hecht usou toda a sua verve e inteligência para atenuar as inúmeras  infrações morais da peça de Noel Coward. No roteiro, a desenhista industrial Gilda Farrell (Miriam Hopkins) encontra-se num trem com dois promissores artistas, o escritor Tom Chambers (Fredric March) e o pintor George Curtis (Gary Cooper substituindo Douglas Fairbanks Jr.). Ambos se apaixonam pela moça mas como ela não se decide por nenhum deles, combinam viver juntos os três, platonicamente. Cansada das ciumeiras dos dois, Gilda parte para Nova York e se casa com o patrão, Max Plunkett (Edward Everett Horton). Entretanto, transcorrido um ano, Gilda reencontra seus amigos e resolve voltar a morar com eles.

Hecht parece ter tentado igualar o feito de Lubitsch e Julien Josephson em O Leque de Lady Margarida, pois utilizou somente a situação básica da peça de Coward, desprezando todo o texto escrito pelo dramaturgo inglês, repleto de generalizações filosóficas  acerca da vida e da arte e outras tiradas intelectuais. Com incomparável intuição fílmica, Lubitsch empregou de maneira brilhante sua figura de retórica  favorita, a elipse, concentrando-se mais na ação e expondo com argúcia os novos e audaciosos diálogos de Hecht.

Numa cena, depois que os três personagens passam a viver juntos, Miriam Hopkins beija Cooper e March na testa e diz: “”Nada de sexo. Façamos um acordo de cavalheiros”. March vai a Londres, Hopkins fica sozinha com Cooper. Ele diz que a ama, beija-a, ela se estira languidamente num sofá e fala : “É certo que fizemos um acordo de cavalheiros. Mas … eu não sou um cavalheiro. “ (Escurece).

Mais tarde, March volta, enquanto Cooper viaja. Sobre a cama está sua antiga máquina de escrever e ele e Hopkins trocam este diálogo: March: “Você não manteve a máquina lubrificada.” Hopkins: “Mantive sim, durante algum tempo”. March: “As teclas estão enferrujadas … A que fixa as maiúsculas está quebrada.” (Ele bate algumas teclas. A campainha de “retorno” toca.  Hopkins se levanta, chega bem perto de March). Hopkins: “Ainda funciona! Ainda funciona!” March: “É mesmo? “(Escurece).

Com A Viúva Alegre / The Merry Widow / 1934, Lubitsch retomou a opereta  numa produção luxuosa, fotografada por Oliver T. Marsh, o mesmo cinegrafista da versão silenciosa de Erich von Stroheim com Mae Murray e John Gilbert. No elenco, reunidos novamente, Maurice Chevalier e Jeanette MacDonald eram secundados pelos esplêndidos Edward Everett Horton, George Barbier, Una Merkel, Sterling Hollowa e Herman Bing.

Chevalier desejava Grace Moore como leading-lady mas o produtor Irving Thalberg vetou sua participação, alegando os prejuízos dos últimos filmes dela. Modificando o libreto de Victor Léon e Leo Stein, musicado por Franz Lehar, os roteiristas Ernest Vajda e Samson Raphaelson inventaram outro reino de fantasia, Marshovia, onde a bela viúva Sonia (Jeanette MacDonald) detém mais da metade das riquezas. Quando tira o luto e parte para Paris, o rei Achmed (George Barbier) fica alarmado, pois o futuro financeiro de Marshovia depende da sua permanência no país. Surpreendendo o galante Príncipe Danilo (Maurice Chevalier) nos aposentos da Rainha  (Una Merkel), Achmed poupa-lhe a vida com a condição dele ir à capital francesa conquistar o coração de Sonia, e trazê-la de volta.

Lubitsch teve alguns problemas com o diretor de arte Cedric Gibbons, a fim de que atendesse às suas extravagantes exigências com relação aos cenários porém tanto estes quanto à música de Lehar (com adaptação e arranjos de Herbert Stothart e letras de Lorenz Hart e Gus Kahn), produziram efeitos maravilhosos. Gibbons e seu principal assessor, Frederic Hope, ganharam o Oscar na categoria. Lubitsch com sua mente estritamente cinematográfica e explorando bastante as panorâmicas rápidas, armou uma obra leve, espirituosa, borbulhante. A   sequência da valsa, coreografada por Albertina Rasch, com os pares dos dançarinos comprimidos nos corredores da embaixada e sendo multiplicados pelos espelhos, fascina pelo conjunto harmonioso em preto e branco e contagia a platéia com sua vibração.

Em outro trecho marcante, Edward Everett Horton como o Embaixador Popoff, encarregado de vigiar os passos de Danilo, recebe uma carta do rei em código e ordena ao criado  Zizipoff (Herman Bing), que a traduza de acordo com o manual … escrito nos punhos de sua camisa. Bing, com exagerado e engraçadíssmo sotaque alemão, arrastando os vocábulos, diz que a primeira palavra em código, ˜Darling”, significa “De todos os idiotas do serviço diplomático, você é o pior”. No decorrer da leitura da missiva, quanto mais belas as palavras, maiores as espinafrações. Na medida em que Bing vai lendo, ele se empolga e esquece sua inferioridade hierárquica falando a Horton como se fosse o irritado signatário. Horton (com Lubitsch antes em Ladrão de Alcova e Sócios no Amor e posteriormente em Anjo e A Oitava Esposa do Barba-Azul), foi inegavelmente um dos grandes atores de composição do cinema americano, especialista no double –take e uma figura tipicamente lubitscheana. Na sua admiração pelo diretor, ele exclamaria numa entrevista: “Lubitsch era um gênio, sabe? Simplesmente um gênio”.

Outras cenas admiráveis: a do encontro de Popoff com Danilo – o esbarro, a briga, a troca de cartões para um duelo, os nomes e, logo, sorrisos e abraços; a cena do esquecimento do cinturão do rei e a troca pelo menor, de Danilo; a cena entre o Rei, a Rainha e Danilo fingindo que conversam e aumentando as gargalhadas para despistar a infidelidade real; Achmed dando e tomando a condecoração do peito de seu embaixador Popoff; e a cena da resolução de tirar o luto com a mudança das cores dos vestidos, sapatos e até do cachorrinho.

No final de 1934, Lubitsch  aceitou o cargo de Chefe de Produção da Paramount e começou a supervisionar o trabalho de outros colegas como Josef von Sternberg (Mulher Satânica / Devil is a Woman / 1935, Henry Hathaway (I Loved a Soldier, depois arquivado), e Frank Borzage (Desejo / Desire / 1936). Quanto a este último, apesar do nome de Borzage constar nos créditos como diretor, sabe-se que Lubitsch o orientou frequentemente nos sets, tal como acontecera com George Cukor em Uma Hora Contigo. A gestão de Lubitsch durou pouco mais de um ano, tendo sido repentinamente  substituído por William Le Baron.

Em 27 de julho de 1935, Lubitsch (43 anos) casou-se com Vivian Gaye (27 anos), que lhe daria uma filha, Nicola Anne Patricia Lubitsch. Em 22 de abril de 1942, o casal se separou, ocorrendo depois o divórcio.

Retornando para atrás das câmeras (depois de ter sido cogitado para o papel de Napoleão em Lafitte, o Corsário / The Buccaneer / 1936 de Cecil B. DeMille), Lubitsch  desincumbiu-se de  Anjo / Angel / 1937, comédia romântica abordando o clássico triângulo amoroso, com roteiro de Samson Raphaelson e (brevemente) Frederick Lonsdale baseado numa peça de Melchior Lengyel.

No desenrolar da ação, Maria Barker (Marlene Dietrich), a mulher do diplomata inglês Sir Frederick Barker (Herbert Marshall), entediada, vai a Paris, secretamente, para se divertir. Lá, no apartamento de uma velha amiga, a Grã-Duquesa Anna Dmitrievna (Laura Hope Crews), conhece o americano Anthony Halton ( Melvyn  Douglas) e flerta com ele, ocultando sua identidade sob o nome de Angel. Quando sente que a aventura está se tornando muito comprometedora, ela volta para Londres. Passado algum tempo, Sir Frederick convida um amigo, que não é outro senão Halton, para jantar em sua casa, e ele se vê diante de Angel.

Fotografado elegantemente por Charles Lang, o filme contém bons desempenhos do trio principal e várias passagens pontuadas pela “reticência cinemática” de Lubitsch como na cena do jantar oferecido a Halton. À cozinha chegam os pratos retirados da mesa. Um vem vazio; outro, intato; o terceiro, exibe o bife recortado em quadradinhos. A refeição não foi mostrada mas aqueles indícios atestam o comportamento e estado de espirito dos três personagens.

No final, os Barkers se encontram no salão de Paris. Sir Frederick sabe que Maria tinha sido infiel mas ela nega, dizendo que Angel está num quarto próximo. Ele caminha em direção ao quarto. Maria diz: “Frederick, se você entrar naquele quarto, receio que nosso casamento terminou. Se você encontrar Angel lá, ficará feliz ao ver que eu não sou Angel e vai querer continuar nossa antiga vida. Porém isto não será satisfatório para mim”. Frederick pergunta: “E se eu não encontrar Angel?” Maria responde: “Se não abrir aquela porta, ficará sempre com uma ligeira dúvida e não será mais tão seguro de si mesmo. E isto será maravilhoso.” Frederick hesita mas acaba entrando no quarto. Ele está vazio. Halton chega para levar Angel com ele mas é interrompido por Frederick: “Eu a encontrei”, ele diz. “Nestes últimos momentos eu pensei mais sobre nossa vida de casados do que em todos estes anos em que estivemos juntos. E tudo o que sei é – o trem para Viena parte às dez … Bem, eu disse adeus a Angel e você deve fazer isto também, Maria”. Enquanto ele se encaminha para a porta, Maria junta-se a ele e os dois saem juntos.

O último filme de Lubitsch na Paramount foi A Oitava Esposa do Barba-Azul / Bluebeard’s Eighth Wife / 1938, comédia-farsa escrita por Billy Wilder e Charles Brackett com base na peça La Huitième Femme de Barbe Bleu de Alfred Savoir. Focaliza Nicole de Loiselle (Claudette Colbert), filha de um nobre francês arruinado, o Marquês de Loiselle (Edward Everett Horton), que se torna a oitava esposa do milionário americano Michael Brandon (Gary Cooper); mas, para lhe ensinar lições de refinamento, ela adia a consumação do matrimônio.

Além de David Niven e Herman Bing como coadjuvantes, numa das cenas passadas na Riviera (em fundos projetados) o cineasta e escritor francês Sacha Guitry aparece discreta e casualmente saindo do hotel. Lubitsch, como sempre imaginando novas jogadas estéticas, deste feita eliminou alguns intervalos de continuidade. “Tenho confiança na inteligência dos espectadores … Em A Oitava Esposa do Barba-Azul eles verão Gary Cooper entrar furioso no quarto de Claudette Colbert e bater na porta violentamente. Porém, em vez de acompanhá-lo para dentro do quarto com a câmera, fiz uma fusão da batida da porta para uma boate, onde os espectadores verão o casal dançando romanticamente. Deixarei que eles imaginem o que aconteceu atrás da porta fechada e mostrarei apenas o resultado. “

Brackett e Wilder contariam mais tarde como era o trabalho com o mestre: “Escrever para Ernst Lubitsch foi um aprendizado, um estímulo, um privilégio mas não era nada fácil. Embora nunca recebesse crédito, ele colaborava íntimamente nos roteiros. A gente tinha que compreender o tipo de filme estilizado que ele queria fazer e suprí-lo com material. E ele sempre estava ali, dizendo: “Isto é o melhor que podemos fazer?.”

Há muito tempo, Lubitsch desejava realizar um filme com Greta Garbo porém apenas em 1939 surgiu a oportunidade,  na sua volta à MGM. O estúdio anunciou “Garbo laughs”(Garbo rí) e o título escolhido foi Ninotchka / Ninotchka / 1939, comédia romântico-satírica roteirizada por Billy Wilder, Charles Brackett e Walter Reisch (autor de Sinfonia Inacabada / Leise Flehen Meine Lieder / 1933 e Mascarada / Maskerade / 1934, ambos de Willi Forst), inspirados em argumento de Melchior Lengyel.

O alvo da impiedosa troça é o bolchevismo, através do contraste entre os valores russos e franceses, manifestado em diálogos muito divertidos. A fim de obter fundos para a compra de máquinas agrícolas, o governo soviético envia três funcionários grotescos – Iranoff (Sig Ruman), Buljanoff (Felix Bressart) e Kopalski (Alexander Granach) – a Paris, com o objetivo de vender certas jóias, que pertenciam à Grã-Duquesa Swana (Ina Claire), ali exilada. Eles encontram Leon (Melvyn Douglas), amante de Swana que, para impedir a transação, encarrega-se de “amolecê-los”, introduzindo-os nas luxúrias parisienses (“Camaradas, por que mentirmos para nós mesmos? É uma maravilha!”). As autoridades russas então mandam a rígida e ascética comissária Ninotchka Yakushova (Greta Garbo) fiscalizar as atividades do trio; mas esta também sucumbe aos encantos da Cidade-Luz e, apaixonada por Leon, converte-se ao modo de vida ocidental.

No papel da austera burocrata, Garbo revelou seu senso de humor, apenas vislumbrado em um ou outro momento de filmes passados, e recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz.. perdendo para a Vivien Leigh de … E O Vento Levou / Gone With the Wind / 1939. Lubitsch considerava Ninotchka um de seus melhores filmes: “Como sátira possivelmente nunca fui mais perspicaz que em Ninotchka e sinto que tive sucesso na difícil tarefa de relacionar sátira política com um enredo romântico”.

O fotógrafo favorito de Garbo, William Daniels, cuidou da iluminação de Ninotchka e  do último filme de Lubitsch na MGM, A Loja da Esquina / The Shop Around the Corner / 1941. Nele, o cineasta reaproximou-se das “comédias das casas de confecção”, que caracterizaram o ínicio de sua carreira. “É um tema universal e uma historia simples. Conheci uma lojinha como esta. Os sentimentos entre o patrão e os que trabalham para ele são os mesmos em todas as partes do mundo, creio eu.”

Aproveitando muito pouco do original de Nikolaus Laszlo, o roteirista Samson Raphaelson evoca, num tom intimista e melancólico, a vida cotidiana de pessoas modestas com suas aflições e alegrias. Alfred Kralik (James Stewart), empregado de um loja de Budapeste, apaixona-se por uma jovem, Klara Novak (Margaret Sullavan depois de cogitada Dolly Haas) com quem mantém uma correspondência epistolar, sem nunca a ter visto. Entretanto, Klara é a nova empregada da mesma loja, que o antagoniza diariamente. Depois de alguns desacertos e uma séria complicação quando o romance entre um outro empregado, Ferencz Vadas (Joseph Schildkraut) e a mulher do patrão, Matuschek (Frank Morgan), é imputado a Kralik, os dois se reconhecem e descobrem que, apesar dos desentendimentos, existe profundo amor entre eles.

Lubitsch demonstrou todo seu afeto pelo filme ao declarar: “Em termos de comédia humana creio que jamais fui tão bom como em A Loja da Esquina. Nunca fiz um filme em que a atmosfera e os personagens fossem mais reais.”

Deixando a Marca do Leão, Lubitsch cuidou de dois filmes distribuídos pela United Artists. O primeiro, Que Sabe Você do Amor? / That Uncertain Feeling / 1941, era uma refilmagem de Beija-me Outra Vez com argumento modernizado e transplantado de Paris para Nova York, conforme o script de Walter Reisch e Donald Ogden Stewart. Disposta a curar seus soluços, Jill Baker (Merle Oberon) procura um psicanalista e este a convence de que o marido, o corretor de seguros Larry Baker (Melvyn Douglas) é a causa de tudo. Na sala de espera do consultório, Jill conhece um sujeito estranho, misantropo e insolente, o pianista Alexander Sebastian (Burgess Meredith), cujo assédio ao lar dos Baker provoca o divórcio do casal. Mais tarde, Jill percebe que Larry ainda a ama e volta para ele.

Apesar da fragilidade do argumento, vislumbra-se aqui e ali a força humorística do diretor em gags habilidosos, como o do piano visto sozinho dentro do quadro em plano fixo durante certo tempo enquanto fora de cena se desenrola algo (o beijo de Sebastian em Jill), que se adivinha pela reaparição triunfal do personagem ou em cenas bem planejadas como a do jantar oferecido por Larry a Mr. Kafka (Sig Ruman) e outros magnatas húngaros e suas esposas, com a finalidade de obter uma boa operação comercial. Convidado por Jill, Sebastian está presente. Sentam-se todos à mesa. Larry e seu advogado (Harry Davenport) estão ansiosos para falar de negócios. Querendo agradar aos convidados, Larry ensina a Jill um brinde em húngaro (que ele nem sabe o significado) e, ao escutá-lo dos lábios da anfitriã, Mr. Kafka fica encantado. De repente, Sebastian começa a falar o idioma deles com fluência e, maravilhados, os húngaros passam a conversar em sua própria língua, deixando Larry e o advogado fora da conversa. Finda a refeição, quando Larry tem uma chance de iniciar um papo com seus clientes em perspectiva, Jill os interrompe, para que todos ouçam uma audição de Sebastian. Ao se preparar, ele percebe que o piano está fechado a chave e Larry ri para o advogado, pois ele o trancara. Entretanto, Sebastian consegue abrí-lo e, depois de algumas exigências (a retirada de uma velha feiosa e de um vaso horrível da sua frente), anuncia o repertório. Preocupado, Larry pergunta ao advogado: “Quanto tempo levam estas sonatas?” O causídico responde: “O tempo de fumarmos três charutos”. Larry retruca desanimado: “”Que desastre, estamos perdidos.”

Melchior Lengyel, que havia suprido Lubitsch com uma sátira ao comunismo em Ninotchka, trouxe-lhe uma caricatura do nazismo em chave de propaganda, Ser ou Não Ser / To Be or Not To Be / 1942, semelhante à de Chaplin em O Grande Ditador / The Great Dictator / 1940. Em Varsóvia, Maria e Josef Tura (Carole Lombard e Jack Benny), um casal de artistas poloneses egocêntricos e temperamentais, estão sempre em rivalidade. Fascinada por um jovem aviador, Sobinski (Robert Stack), Maria pede-lhe que, no exato momento da récita do marido do famoso solilóquio de Hamlet, ele saia da platéia, e vá se encontrar com ela no camarim. Além da pequena infidelidade, o propósito de Maria é ferir a vaidade de Joseph como ator. De fato, ele fica indignado ao ver o aviador levantar da poltrona e se retirar no meio da sua representação. Posteriormente, os alemães ocupam a cidade e Sobinski fica sabendo da existência  de um espião a serviço dos nazistas disfarçado de líder da Resistência, Professor Siletsky (Stanley Ridges). Com a ajuda de Tura e sua trupe, ele arma uma cilada para o impostor, com os atores fazendo-se passar por soldados alemães. Depois de muitas peripécias e liquidado o traidor, todos escapam de avião para Londres, onde Tura sempre sonhara interpretar Hamlet. Quando, em um palco londrino, Tura pronuncia o célebre “Ser ou não Ser”, olha para a platéia, e percebe Sobinski assistindo calmamente ao espetáculo. Desta vez não é o aviador mas um jovem oficial da Marinha que se levanta e deixa o teatro.

Em outro trecho do filme, o Coronel Erhardt (Sig Ruman em impagável atuação, sendo inesquecível o seu apelido: “Concentration Camp Erhardt”) conta a Tura (fingindo ser Siletsky) uma piada que ouvira sobre Hitler: “Eles deram o nome de Napoleão a uma marca de champagne, o de Bismark à de um arenque, e Hitler vai acabar sendo um pedaço de queijo”. Tura repreende-o por rir do Führer. Apavorado com as consequências de suas leviandade, Erhardt implora-lhe que faça silêncio sobre o que ouvira e Tura, condescendente, promete ficar de bico calado. Mais para adiante, um comparsa de Tura, Ravitch (Lionel Atwill), pensando que o amigo está em apuros entra travestido de general nazista até onde se encontram Tura e Ehrardt e, para espanto deste, tira a falsa barba de Tura e finge levá-lo para um interrogatório. Envergonhado, e em pânico, Erhardt começa a chorar, quando Tura se volta para ele, lembrando-o do “pedaço de queijo”. A porta se fecha e se ouve um tiro. Fora demais para Erhardt.

O filme, com roteiro um pouco complexo de Edwin Justus Mayer, sofreu críticas por abordar assunto impróprio ao humor. Uma das acusações se baseou na frase dita por Erhardt a Tura (sem saber que ele era o próprio), referindo-se a um canastrão polonês que interpretou Hamlet nos palcos de Varsóvia: “O que ele fez com Shakespeare nós estamos fazendo agora com a Polonia.” Lubitsch defendeu-se, dizendo : “ … O filme nunca quís ridicularizar os poloneses, apenas satirizou atores e o espírito nazista, e o humor grosseiro  nazista. “


Ao final deste espetáculo ininterruptamente hilariante, fica clara a mensagem do cineasta: aqueles atores medíocres encontram na guerra a glória que lhes foi sempre negada no teatro. Eles nos comovem porque deixam de lado suas insignificantes queixas ou rusgas individuais em prol do bem coletivo. Com sua obscura mas autêntica bravura, atingiram uma grandeza que nunca puderam atingir  com as suas interpretações na ribalta.

Antes de começar uma nova produção, Lubitsch teve tempo de preparar um filme de propaganda para o Tenente-Coronel Frank Capra, intitulado Know Your Enemy: Germany. Rodado em outubro de 1942, foi sumariamente rejeitado pelo Exército sob a alegação de que era “enfadonho” e  inadequado  para a audiência militar e não chegou a ser distribuído (ele foi refeito depois por outros realizadores).

No começo de 1943, Lubitsch assinou contrato de produtor-diretor com a 20thCentury-Fox e realizou O Diabo Disse Não / Heaven Can Wait, crônica sentimental e nostálgica, pontilhada de um epicurismo amável e sátira aos costumes dos alegres anos do fim do século dezenove.

Na história (adaptada por Samson Raphaelson de uma peça de Laszlo Bus-Feketé), Henry Van Cleve (Don Ameche), cidadão de classe média e inveterado conquistador, ao término de sua existência, se apresenta ao Diabo (Laird Cregar), e conta como viveu. No final do relato, Sua Excelência, compreendendo que Henry foi um bom esposo para Martha (Gene Tierney), um chefe de família que pecou por amar as mulheres, envia-o para o céu.

Fotografado por Edward Cronjager num Technicolor de tonalidade pastel (primeiro encontro em longa metragem de Lubitsch com a cor, elogiado por D.W. Griffith) com cenários, figurinos e acessórios acurados e de bom gosto, eficiente elenco e narrado com a costumeira engenhosidade discursiva do cineasta, o filme recriava a época à perfeição, tinha desenvolvimento fluente, humanidade, encanto poético, e um fio de reflexão dissimulado por um constante piscar de olhos.

Afastada a hipótese de rodar All Out Arlene, sátira à WAC (Corpo Feminino dos Exército Americano), Lubitsch iniciou Czarina / A Royal Scandal / 1945, refilmagem de Paraiso Proibido, com Tallulah Bankhead, Charles Coburn, William Eythe e Anne Baxter porém sofreu um ataque cardíaco e indicou Otto Preminger para substituí-lo. Creditado apenas como produtor, Lubitsch escolheu os atores, supervisionou alguns ensaios, estabeleceu a atmosfera de cada cena e apareceu numa ponta. Greta Garbo estava disposta a voltar às telas como a Czarina mas o estúdio rejeitou a idéia pois Duas Vezes Meu / Two Faced Woman / 1941,  de George Cukor, derradeiro filme da Divina, não deu bons lucros.  E Tallulah, por sua vez, vinha do êxito de Um Barco e Nove Destinos / Lifeboat / 1944 de Alfred Hitchcock.

Recobrando a saúde, consta que Lubitsch teria participado como ator de Fantasia Musical / Where Do We Go From Here? / 1945 de Gregory Ratoff, com Fred MacMurray e June Haver, figurando como um dos marujos amotinados contra Cristovão Colombo a bordo da nau “Santa Maria.” Entretanto, embora existam fotos de Lubitsch vestido de marujo num set, ninguém conseguiu vê-lo no filme.

Em seguida, preparou-se para filmar O Solar de Dragonwyck / Dragonwyck / 1946, adaptação do best seller de Anya Seton, com Gene Tierney, Vincent Price e Walter Huston mas adoeceu novamente, dando chance a Joseph L. Mankiewicz de estrear como diretor.

Na primavera de 1946, após ter recebido um Oscar especial “Por suas destacadas contribuições à arte cinematográfica”, Lubitsch sentiu-se em condições de dirigir um novo filme e selecionou O Pecado de Cluny Brown / Cluny Brown / 1946, sátira às convenções sociais e ao modo de viver da classe alta e da burguesia da província inglesa, baseada no romance de Margery Sharp.

Na Inglaterra rural de 1939, uma jovem ingênua, Cluny Brown (Jennifer Jones), ao substituir o tio bombeiro hidráulico no conserto de uma pia entupida, vem a conhecer Adam Belinski (Charles Boyer), escritor tcheco refugiado. Mais tarde, trabalhando como criada num castelo, para surpresa sua, encontra Adam, hóspede dos patrões. Os dois ficam amigos e Cluny conta a Adam a boa impressão que lhe causara Wilson (Richard Haydn), o farmacêutico da aldeia. Mas o prazer da moça em reparar encanamentos avariados, faz fracassar um possível casamento com Wilson. Cluny acaba se unindo a Adam e, desprezando as obras políticas, ele decide escrever histórias policiais para garantir o sustento da mulher e dos futuros filhos.

Agrupando alguns coadjuvantes da “colônia britânico-irlandesa de Hollywood (Reginald Gardiner, Peter Lawford, Reginald Owen, C. Aubrey Smith, Sara Allgood, Ernest Cossart, Una O’Connor, Billy Bevan) em torno de Boyer, Jones e Haydn, em vários momentos do filme e na composição dos personagens, Lubitsch deixou transparecer seu espirito cômico inconfundível como na hierarquia da criadagem do castelo; na apresentação de Cluny à sua quase futura sogra; na maneira peculiar de Belinski citar Shakespeare; na personalidade do tacanho e pomposo farmacêutico; e na cena final sem diálogos. Nesta, Cluny e Adam, já casados, são subitamente cercados por traunseuntes na rua, depois que a moça desmaiou. Adam, sorrindo, indica a um guarda que não há nada sério, sua esposa está grávida. Sabendo da notícia, todos começam a rir e a música aumenta, num final feliz que levava os espectadores a também saírem do cinema rindo.

A Condessa se Rende / That Lady in Ermine / 1948, fantasia cômico-musical em Technicolor (de Leon Shamroy), com roteiro de Samson Raphaelson inspirado na opereta This is the Moment de Rudolf Schanzer e Ernest Welisch, numa renovada fabulação do velho gênero vienense, mistura o real e o onírico.

A Condessa de Bergamo, Angelina (Betty Grable depois de cogitada Irene Dunne) casa com Mario (Cesar Romero) mas quando os invasores húngaros se aproximam, ele foge com medo. Sob o comando do Coronel Ladislas Karolyi (Douglas Fairbanks Jr. depois de cogitado Charles Boyer), os inimigos se instalam no castelo. É então que o fantasma da Condessa Francesca (também Grable), antepassada de Angelina, retratada numa pintura intitulada “The Lady in Ermine”  (A Dama de Arminho), aparece para realizar de novo uma proeza, que já evitara a destruição do castelo.

As filmagens foram interrompidas pela morte do cineasta a 30 de novembro de 1947, em virtude de outro colapso, tendo Otto Preminger assumido a direção. Preminher refêz algumas cenas filmadas por Lubitsch (“porque eram muito sutís”, segundo o depoimento de Fairbanks Jr.), extirpou outras, inclusive o final bem como dois números musicais, um dos quais, “It’s Always a Beautiful Day”, tinha letras de Leo Robin e música do próprio Lubitsch.

Porém o filme conserva o sabor lubitscheano em várias cenas: o apavoramento de Mario deixando Angelina sozinha no quarto nupcial; os repetidos gritos do Coronel (que lembram os de Erhardt chamando seu  assistente Schultz em Ser ou não Ser) tornando uma figura famosa no castelo o seu imediato Horvath (Walter Abel); o salvamento do castelo por Francesca e a posição ridícula em que sempre está colocado seu marido Alberto (Reginald Gardiner); a dança dos antepassados de Angelina saindo à meia-noite dos quadros pendurados nas paredes da longa galeria de retratos; e a repetição do salvamento do castelo em sonho.

Em entrevista à revista Action, em novembro de 1967, Billy Wilder narrou ao repórter esta cena passada após o funeral de Lubitsch: “William Wyler e eu andamos silenciosamente até o nosso carro. Finalmente, eu disse, apenas para dizer alguma coisa, a fim de quebrar o silêncio: ‘Não teremos mais Lubitsch’. Ao que Wyler replicou: ‘Pior do que isto, não teremos mais filmes de Lubitsch’. Como estávamos certos. Durante vinte anos desde então, tentamos descobrir o segredo do Lubitsch touch. Nada feito. Quando tínhamos sorte, conseguíamos rodar alguns metros de filme em nossa obra que, momentaneamente, cintilavam como Lubitsch. Como Lubitsch, não o verdadeiro Lubitsch. Sua arte se perdeu. O mais elegante dos mágicos da tela levou o seu segredo com ele.

ERNST LUBITSCH – II

setembro 22, 2011

Em outubro de 1922, convidado por Mary Pickford, Ernst Lubitsch partiu para os Estados Unidos, certo de que iria dirigir uma versão de Fausto com Lars Hansen no papel-título. Mary chegou a fazer um teste (vestida por Mitchell Leisen) como Margarida mas sua mãe a proibiu de atuar num filme no qual uma jovem mata seu bebê.

Informado de que seria incumbido de outra produção, Dorothy Vernon of Haddon Hall (depois filmada por Marshall Neilan, tendo recebido o título em português de Entre Duas Rainhas), Lubitsch ficou furioso e fingiu não entender bem a história até concordar com Mary em filmar Rosita / Rosita / 1923, drama romântico de época, roteirizado por Edward Knoblock, a partir do argumento de Hanns Kräly e Norbert Falk, inspirado na peça francêsa Don César de Bazan. No enredo, Rosita (Mary Pickford), uma cantora das ruas de Sevilha, atraí a atenção do Rei da Espanha (Hoolbrock Blinn) porém se apaixona por Don Diego (George Walsh), um nobre arruinado.

Para desenhar os cenários, Lubitsch indicou o cineasta dinamarquês Svend Gade (diretor de Hamlet / Hamlet / 1921 com Asta Nielsen), tendo sido a direção de arte entregue a William Cameron Menzies e os figurinos a Mitchell Leisen. Mary desejava Maurice Chevalier em seu primeiro filme como adulta (ela estava com 29 anos) mas não conseguiu contratá-lo e George Walsh, irmão de Raoul Walsh, ocupou seu lugar. Entre os inúmeros figurantes estava um jovem chamado Charles Farrell, mais tarde o galã de Janet Gaynor em Sétimo Céu / Seventh Heaven / 1927 de Frank Borzage.

Como Lubitsch não admitia interferências, durante os três meses de rodagem discutiu muito com a estrela e, entre os atritos, o grande fotógrafo Charles Rosher – Oscar por Aurora / Sunrise / 1927 de F. W. Murnau -, que havia desenvolvido para Rosita uma iluminação de efeitos estereoscópicos, deixou o cargo.

O filme, indisponível por longos anos nos Estados Unidos, teve uma das piores reputações na História do Cinema Mudo, perpetuada pela sua própria estrela, que o classificou como um fracasso: “Foi o pior filme que eu já fiz; foi o pior filme que eu ví”. Mary o descrevia como “um diretor de portas”, acrescentando, “ele não me entendia”.

Entretanto, como revelou Scott Eyman (Ernst Lubitsch: Laughter in Paradise, Simon and Schuster,1993), assim que o filme ficou pronto, Pickford disse para seu advogado, Cap O’Brien, que ela ainda considerava Lubitsch o maior diretor do mundo e estaria disposta a patrocinar outras realizações dele, se tivesse condições financeiras. Seis dias depois, quando consentiu mudar o título do filme originário de The Street Singer para Rosita, reiterou para o causídico que estava satisfeita com Rosita e achava que o espetáculo faria sucesso. Somente anos depois, consumida pelo alcoolismo, perturbada pelo divórcio de Fairbanks e outros problemas, foi que ela começou a desenvolver uma idéia fixa negativa sobre o filme.

O fato é que, por ocasião do seu lançamento, Rosita foi aclamado como o maior filme feito até então. O The New York Times disse: “Nada de mais deliciosamente encantador … tem sido visto desde certo tempo”. Na Retrospectiva Lubitsch de Berlim em 1967, Rosita foi saudado como obra-prima. Em uma sessão pública no New York’s Film Forum, em agosto de 1997, a platéia ovacionou-o calorosamente.

Jeanine Basinger estava lá e o descreveu assim: “Rosita tem cenários dispendiosos, inclusive uma Sevilha em exteriores, lindos jardins, salas do castelo com tetos abobadados, móveis adornados, e espelhos e portas magníficos. O ritmo é soberbo e a direção de Lubitsch do típico “elenco de milhares” retrata um mundo de pessoas reais e ação pitoresca. Holbrook Blinn como o velho rei lascivo está absolutamente maravilhoso e os figurinos, penteados e jóias são todos muito bonitos. Pickford excelente como a cantora de rua que dança, flerta e entretém as massas”.

Janine destacou uma cena de comédia na qual Rosita, uma garota faminta, é levada pela primeira vez ao palácio. Na sala de espera, ela avista uma taça enorme cheia de doces. Enquanto Rosita passa repetidas vezes diante da taça e sai do quadro, a câmera fica paralisada na taça. Após alguns momentos de hesitação, a jovem apanha um bombom, põe na sua boca, e parte logo para fazer o mesmo com um outro. Esta cena é um exemplo perfeito de como Lubitsch e Pickford casaram seus estilos harmoniosamente. A colocação da câmera é puro Lubitsch; a ação cômica, muito bem cronometrada, é Pickford pura.

Após Rosita, circularam notícias de um novo filme com Mary Pickford mas ela iniciou Entre Duas Rainhas. Douglas Fairbanks ofereceu a Lubitsch a direção de um filme de piratas – depois transformado em O Pirata Negro / The Black Pirate /1926 e dirigido por Albert Parker. Finalmente, Lubitsch assinou contrato com a Warner Bros. onde – após um projeto não concretizado de filmar a peça Debureau de Sacha Guitry – inaugurou uma série bastante homogênea de comédias sofisticadas nas quais, exercitando seu estilo e refinando seu gosto, ridicularizou os preconceitos e as futilidades mundanas.

Sátira matrimonial ambientada na Viena às vésperas da Primeira Guerra Mundial, baseada  na peça Nur ein Traum de Lothar Goldschmidt, adaptada por Paul Bern (e Kräly não creditado), O Círculo de Casamento / The Marriage Circle / 1924 seguia o modelo shakespereano de “muito barulho por nada”. O Professor Josef Stock (Adolphe Menjou) vê a oportunidade, ansiosamente aguardada, de se divorciar da esposa, Mizzi (Marie Prevost), quando ela começa um flerte com o Dr. Franz Braun (Monte Blue, substituindo Warner Baxter após oito dias de filmagem), marido de sua melhor amiga, Charlotte (Florence Vidor) que, por sua vez, é cortejada pelo Dr. Gustave Müller (Creighton Hale), sócio de Braun. No desenlace, após muitos enganos e falsas suspeitas, tudo volta ao normal, como se nada tivesse acontecido.

Filme de Lubitsch favorito de Chaplin, Hitchcock e Kurosawa, O Círculo do Casamento, fotografado por Charles van Enger, serviu de modelo para vários cineastas pelas sutilezas eróticas e psicológicas e pelas elipses e detalhes significativos. Desenvolvendo o tipo que compusera em Casamento ou Luxo, Menjou impôs-se como um dos atores prediletos de Lubitsch e sua interpretação minimalista é um dos pontos altos do filme. Entretanto, Menjou preferia Chaplin como diretor: “Tudo o que eu tinha que fazer para deixar Lubitsch feliz era ficar diante da câmera imitando todos os gestos que ele fazia para mim”.

Uma das melhores cenas do filme antecipa a descoberta do rei que é enganado em  A Viúva Alegre / The Merry Widow / 1934: o detetive mostra a Joseph o relatório sobre os encontros de Mizzi e Franz, que Josef considera absurdos. Josef senta-se num sofá em cima de um chapéu, o qual retira sorridente, e o entrega ao detetive. Este diz que este chapéu não lhe pertence e mostra o seu. Neste momento (como o rei ao ver que o cinturão não era o seu em A Viúva Alegre), Josef cai na realidade. Brilhante também é a cena que nos mostra a relação amorosa entre Franz e Charlotte, sem que seja preciso vermos os dois personagens. A câmera enquadra a mesa na qual eles tomam o café da manhã. O braço dele bate com a colher no ovo; o dela, mexe o café. Os movimentos normais vão se atenuando, e de repente param, quando as mãos se encontram. E aí nos lembramos da frase de François Truffaut: “Dans la gruyère de Lubitsch chaque trou est genial!”(No queijo de Lubitsch cada buraco é genial!”).

Insólito no currículo lubitscheano (tal como seria Não Matarás / The Man I Killed ou Broken Lullaby/ 1932 no período sonoro) e sofrendo flagrante influência de Casamento ou Luxo, As Três Mulheres / Three Women / 1923, é um melodrama puro com incisivas observações, puramente visuais, sobre a psicologia feminina.

O roteiro original de Kräly / Lubitsh baseado num romance de Jolanthe Marès, gira em torno de uma viúva rica, Mabel Wilton (Pauline Frederick) e sua filha, Jeanne (May McAvoy), apaixonadas pelo mesmo homem, Edmund Lamont (Lew Cody), um aproveitador indigno das duas e da amante, Harriet (Marie Prevost). Pauline Frederick na figura da mulher de meia idade que procura conservar a juventude é um exemplo de contenção interpretativa, sabendo mostrar num pequeno gesto e olhar tudo o que se passa no seu íntimo: a série de planos em que ela estuda a iluminação de forma a escolher o melhor ambiente para esconder as rugas é um prodígio da psicologia, não só da atriz, como de Lubitsch. A fotografia competiu a Charles van Enger, que fora acionado em O Círculo do Casamento e seria da equipe de Lubitsch até o final de1925, participando de cinco filmes.

A Paramount reuniu Pola Negri e Lubitsch em Paraíso Proibido / Forbidden Paradise / 1924, deliciosa zombaria da fragilidade das mulheres (e particularmente das rainhas), vagamente inspirada  nas intrigas amorosas da Catarina da Rússia. Modernizando a peça de autoria dos húngaros Lajos Biró e Melchior Lengyel, os roteiristas Hanns Kräly e Agnes Christine Johnston contam como o jovem oficial Alexei Czerny (Rod La Rocque) salva a Czarina (Pola Negri) de um minúsculo país europeu dos conspiradores revolucionários e é recompensado com seu amor. Apaixonado, Alexei abandona a antiga namorada, Anna (Pauline Starke), dama de companhia da soberana mas logo vem a saber da infidelidade desta. Desesperado, junta-se aos revoltosos que o chanceler da Corte (Adolphe Menjou) apaziguara … com um talão de cheques. No desfecho, a Czarina liberta Alexei da prisão para os braços de Anna e busca consolo com o Embaixador francês (Fred Malatesta).

Inserindo divertidos anacronismos numa Rússia do século XVIII (reconstituída em opulentos interiores barrocos por Hans Dreier) e suas costumeiras alusões  espirituosas, estritamente pictóricas, Paraíso Perdido – como observou Manoel Cintra Ferreira num livrinho precioso editado pela Cinemateca Portuguesa – é um verdadeiro aperitivo para os suntuosos banquetes que seriam Alvorada do Amor / The Love Parade / 1929, A Viúva Alegre e O Tenente Sedutor / The Smiling Lieutenant. O mesmo reino de fantasia e as mesmas intrigas de alcova, nos bastidores da política. Todo o espetáculo é extremamente rico em pormenores tipicamente lubitscheanos, que proporcionam algumas das situações mais divertidas como, por exemplo, o caso das pontas dos caídas dos bigodes que a czarina quer bem erguidas (uma conotação erótica bem evidente) ou o caso do fabuloso gag das condecorações (que testemunham a passagem dos oficiais pela cama da czarina) ou, ainda,  a cena em que a czarina sobe num banquinho, a fim de poder beijar Alexei nos lábios, talvez inspirada na famosa frase de Sacha Guitry de que os saltos altos foram inventados por uma mulher cansada de ser beijada na testa.

No elenco, sobressai a atuação de Pola Negri: ”Jamais encontrei uma criatura de tanta vitalidade e magnetismo. Artista de uma sensibilidade muito viva e tipo humano único. Foi ela que trouxe para Hollywood o que eles chamam de temperamento continental que, a meu ver, não é senão um extraordinário dom de atrair a atenção na tela como na vida, o que Pola possuía em maior quantidade que ninguém”.

Retornando à Warner, Lubitsch filmou Beija-me Outra Vez / Kiss Me Again / 1925, comédia doméstica, versando sobre o eterno triângulo familiar, segundo os que a viram, intelectualmente atraente e com penetrante estudo do mecanismo do amor romântico. No script de Kräly, inspirado na peça Divorçons de Victorien Sardou e Émile de Najac, Loulou Fleury (Marie Prevost), mulher de Gaston (Monte Blue), demonstra interesse por um pianista, Maurice (John Roche). Embora não querendo realmente deixá-la nas mãos de Maurice, Gaston finge estar disposto a conceder-lhe o divórcio. Loulou cansa-se de Maurice e as inteligentes manobras de Gaston fazem com que ela deseje ardentemente a reconciliação. Expondo as situações através de seus célebres epigramas visuais, Lubitsch burlou com muita classe a censura e assim prosseguiu durante a sua trajetória cinematográfica. Como desabafou um dos homens do Hays Office, “a gente sabia o que ele estava dizendo, mas não podíamos provar o que estava insinuando”.

Clara Bow estava perdendo a sua qualidade de estrela numa série de quickies produzidos por B.P. Schulberg, quando Lubitsch a convidou para fazer um teste com vistas a uma pequena participação em Beija-me Outra Vez. Ela ganhou o papel de Grizette, a graciosa secretária com a qual Gaston flerta numa buate, a fim de suscitar um motivo para o seu divórcio. Infelizmente, nenhuma cópia do filme sobreviveu, fazendo com que a combinação deleitável de Lubitsch e Bow ficasse inédita para várias gerações.

Em O Leque de Lady Margarida / Lady Windermere’s Fan / 1925, Lubitsch realizou um tour-de-force, adaptando (com a ajuda de Julien Josephson) a peça de Oscar Wilde, sem utilizar um só epigrama espirituoso do texto original mas mantendo o espírito do dramaturgo inglês na denúncia das imposturas e afetação da alta sociedade londrina. A difamada Mrs. Erlynne (Irene Rich), julgada morta há muito tempo pela filha, Lady Windermere (May McAvoy), volta a Londres e pede ao genro, Lord Windermere (Bert Lytell) dinheiro para manter o segredo. Ela se introduz no ambiente em que vivem os Windermere, com o objetivo de recuperar a respeitabilidade por via de um casamento com o rico Lord Augustus (Edward Martindel) e, sacrificando sua reputação e seu futuro, acaba salvando a filha da desonra, fazendo-se passar por amante de seu admirador, Lord Darlington (Ronald Colman, substituindo Clive Brook).

Lubitsch deixa os espectadores adivinharem os sentimentos dos personagens através do que eles fazem para dissimulá-los e revela só com a câmera, sem desperdiçar uma tomada sequer, seus impulsos secretos. Raros subtítulos explicam a intriga.

Lubitsch se exprime visualmente pelos cenários grandiosos e vazios (de Harold Grieve), pelos movimentos de câmera (de Charles van Enger), e pela montagem.

Uma das cenas mais expressivas do toque lubitscheano é a do hipódromo, onde  a linda Mrs. Erlynne, focalizada pelos binóculos sob diferentes pontos de vista, parece estar encerrada numa rede de olhares, “massacrada” pela sociedade galante.

Em meados de 1926, divulgou-se que Mary Pickford e Douglas Fairbanks  estrelarian um filme dirigido conjuntamente por Max Reinhardt e Ernst Lubitsch mas isto não aconteceu. Ao invés, Lubitsch fez Em Paris é Assim / So This is Paris / 1926, outra comédia doméstica, adaptada por Kraly do original francês Réveillon de Henri Leilhac e Ludovic Halévy.

Suzanne Giraud (Patsy Ruth Miller) avista pela janela um homem vestido de sheik, aparentemente despido, e envia o marido, Dr. Paul Giraud (Monte Blue) para tomar satisfações. Paul constata que se trata de um casal de atores, Maurice (André Béranger) e Georgette (Lilyan Tashman), ensaiando uma cena de As Mil e uma Noites. Ele  descobre na mulher uma sua antiga amante e passa a cortejá-la. Paul afirma a Suzanne ter “imposto” a ordem, quebrando inclusive sua bengala nas costas do agressor, mas Maurice aparece depois para entregá-la em perfeito estado, revelando a mentira. Georgette, entretanto, disposta a reconquistar o antigo amante, consegue fazê-lo sair de casa a pretexto de uma consulta médica e Maurice, por sua vez, aproveita a “saída” para uma visita a Suzanne, surgindo uma série de outros equívocos.

Com este enredo, Lubitsch construiu uma soberba e minuciosa encenação de um vaudeville à francesa, impregnado de um sentimento de alegria e graça incomparáveis e utilizou mais uma vez o espaço cênico e a montagem para extrair efeitos cômicos irresistíveis. Casais trocados são a especialidade de Lubitsch mas poucas vezes (vg. em Sócios do Amor / Design for Living / 1933) eles foram assumidos e trocados com tal despudor.

Para o clímax, Lubitsch providenciou uma sequência de baile feita com múltiplas exposições, sendo muito comentados os arranjos caleidoscópicos cubistas (pré Busby Berkeley) na cena do concurso de charleston, verdadeira “rapsódia futurista”. Em Paris é Assim consolidou a fama de Lubitsch e muitos apontaram o filme como uma de suas comédias mais divertidas.

Em 1927, transferindo-se para a Metro, Lubitsch assumiu a direção (prevista para Erich von Stroheim) de O Príncipe Estudante / The Student Prince in Old Heidelberg, filme baseado na peça Alt Heidelberg,  de W. Meyer-Förster,  e na opereta de Dorothy Donnelly e Sigmund Romberg.

Adaptada por Kraly, a história já havia sido filmada pela Triangle por John Emerson, com a supervisão de D.W. Griffith, interpretação de Dorothy Gish e Wallace Reid, e consultoria de Erich von Stroheim na parte de cenografia e vestuário. Na versão Lubitsch, a decoração ficou sob a responsabilidade de Cedric Gibbons e Richard Day – que desenhara os cenários de alguns filmes de Stroheim como A Viúva Alegre / The Merry Widow / 1925 e A Marcha Nupcial / The Wedding March / 1926.

Trata-se de uma delicada história de amor, finalmente frustrada, que transforma as duas pessoas que a viveram, sobretudo o jovem sensível e retraído, que só teve em sua vida uma pequena oportunidade para sair dessa teia real, tecida pelas Instituições, pelo Estado e pela Tradição.

Karl Heinrich (Ramon Novarro) é o príncipe herdeiro de um reino da Europa central. A sua vida de criança é solitária e sujeita aos constrangimentos impostos pelo protocolo da corte. O seu único amigo é o velho preceptor, Dr. Juttner (Jean Hersholt). Quando atinge a idade própria, Karl parte com Juttnerpara a Universidade de Heidelberg, onde conhece finalmente a alegria de viver, a camaradagem estudantil e o amor, na pessoa de Kathi (Norma Shearer), a filha de um estalajadeiro. Mas quando o rei morre, Karl é chamado para assumir o trono e obrigado a se casar com uma princesa.

Para realizar este precursor silencioso (e melancólico) dos seus musicais do período sonoro, Lubitsch contratou os serviços de Ali Hubert (seu colaborador na maioria dos filmes mudos alemães) para desenhar os figurinos; os de Andrew Marton (que depois se tornaria um diretor de segunda unidade)  para ser o montador do filme e também os serviços do fotógrafo John Mescall (que já havia trabalhado com ele em Paris é Assim).

Destaco duas cenas entre tantas admiráveis deste filme. A primeira é a do encontro de Karl e Kathi num jardim coberto de flores sob as estrelas brilhantes. Quando eles  se deitam sobre a relva, o vento começa a soprar, primeiro lentamente e depois com força, num crescendo que acompanha a manifestação de amor entre eles, para  acalmar depois do beijo. É uma cena metaforicamente erótica que antecipa de certa forma aquela cena do defloramento de Rosie no filme de David Lean, A Filha de Ryan / Ryan’s Daughter, realizado muitos anos mais tarde.

A outra cena, ou melhor, as outras, são os planos que mostram o mesmo comentário dito por gerações diferentes: os meninos vendo o retrato do príncipe ainda criança na vitrine de uma loja e afirmando “como deve ser ótimo ser príncipe”; depois as meninas contemplando o retrato do príncipe já adulto na mesma vitrine e exclamando  “como deve ser ótimo ser príncipe (com ênfase na palavra ótimo); e, no desfile final do casamento, os velhos na janela murmurando “como deve ser ótimo ser rei”, todas estas frases contrapondo-se ironicamente ao que se passa no íntimo de Karl.

Depois de O Príncipe Estudante, Lubitsch deu a Josef von Sternberg a idéia de A Última Ordem / The Last Command / 1927, interpretado por Emil Jannings e, contratado novamente pela Paramount, abordou um assunto russo em Alta Traição / The Patriot / 1928, igualmente estrelado por Jannings. Melodrama histórico adaptado por Kräly (Oscar de Melhor Roteiro) de uma peça de Alfred Neumann, Der Patriot, levada aos palcos berlinenses com muito sucesso, o filme, completado pouco antes do advento do Cinema Falado, recebeu trilha musical sincronizada e efeitos sonoros nos momentos culminantes (no final, Jannings gritava: “Pahlen! Pahlen!”, chamando o amigo que o traíra por amor à pátria.

Na intriga, o Czar Paulo I (Emil Jannings), filho da Grande Catarina, vive cercado por conspiradores e só confia no Conde Pahlen (Lewis Stone). Pahlen quer proteger o amigo mas, por causa dos atos tresloucados do monarca, decide alijá-lo do trono, para o bem da nação, com a ajuda da sua amante, a Condessa Ostermann (Florence Vidor). Esta porém, trai Pahlen e conta ao Czar o plano. Conduzido à presença do soberano, Pahlen convence-o de sua lealdade e, mais tarde, o extermina.

Alta Traição é considerado um filme perdido; somente há pouco tempo foi descoberto o seu trailer, apresentado no Festival de Pordenone em 1996, que dá uma idéia da suntuosidade dos cenários de Hans Dreier e da qualidade da fotografia de Bert Glennon. Como não ví o filme, tenho que me amparar nas críticas da época, selecionando uma, eufórica, da revista Cinearte, da qual cito alguns trechos: “Indiscutivelmente, um dos melhores filmes, senão o melhor filme até agora feito … É um filme colosso! … O trabalho de Jannings, mais dramático, mais impressionante, mais cheio de peripécias, causa maior impressão. Mas o de Lewis Stone, calmo, imperturbável, másculo, impressionante na sua singeleza, é uma página admirável de arte e beleza … O filme, todo ele, é irrepreensível em técnica … Lubitsch é um diretor fantástico! Esta é a sua obra-prima!”. Acrescento apenas que, algumas tomadas da multidão, foram aproveitadas seis anos depois por von Sternberg em A Imperatriz Galante / The Scarlet Empress (cf. Fun in a Chinese Laundry de Josef von Sternberg, Mercury House, 1965, pg. 266).

Amor Eterno / Eternal Love / 1929, derradeiro filme mudo de Lubitsch, produzido pela Feature Productions (Joseph M. Schenck) e distribuído pela United Artists,  assinala a última colaboração do roteirista Hänns Kraly, o mais assíduo companheiro do diretor.

No roteiro de Kräly, tirado do drama romântico de Jakob Christoph Herr, Der König der Bernina, durante as guerras napoleônicas, Marcus Paltram (John Barrymore), um caçador rebelde das montanhas da Suiça, desafia os invasores de seu país. Embora apaixonado por Ciglia (Camilla Gorn), filha do pastor da aldeia (Hobart Bosworth), ele é adorado por Pia (Mona Rico), que odeia a rival e aguarda uma oportunidade de separá-la de Marcus. Aproveitando um baile de máscaras, no qual Marcus se embriaga, Pia, disfarçada, consegue fazê-lo sucumbir aos seus desejos. Para reparar o erro, Marcus casa com ela e Ciglia logo se une a Lorenz Gruber (Victor Varconi), um antigo e insistente admirador. Sabendo que sua esposa ainda ama Marcus, Gruber tenta suborná-lo, para que ele saia da  aldeia; Marcus recusa e, num incidente, é forçado a matar Gruber em legítima defesa. Acusado de assassinato, Marcus foge com Ciglia para as montanhas, perecendo ambos soterrados por uma avalanche.

Amor Eterno não é um dos trabalhos mais importantes de Lubitsch. “O filme foi feito para honrar um compromisso” – revelaria mais tarde o montador Andrew Marton – , “nem Lubitsch, nem John Barrymore, nem Camilla Horn entraram nele com entusiasmo”. Lubitsch procurou compensar a banalidade da história com um esplendor visual. A maior atração do filme são justamente as sugestivas cenas nas montanhas, fotografadas em exteriores no Canadá por Oliver T. Marsh, notando-se ainda a marca do diretor nos ambientes, nos movimentos de câmera e em algumas elipses e subentendidos como, por exemplo, na sequência da noite em que Pia arrasta Marcus para a cama ou na sequência do casamento duplo, pontuada com o bater dos sinos e os comentários dos sineiros. Tal como ocorreu em Alta Traição, houve adição de um score musical e efeitos sonoros.