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A FAMÍLIA WESTMORE – MAQUIADORES E CABELEREIROS DE HOLLYWOOD

A dinastia dos Westmore abrange mais de cem anos e quatro gerações. Em certa ocasião, havia um Westmore chefiando o departamento de maquiagem em quase todo grande estúdio de Hollywood. Juntos, eles definiram o papel dos artistas maquiadores e cabelereiros e estabeleceram os padrões para  a indústria da qual eles foram pioneiros.

Neste artigo não vou apresentar a filmografia completa dos maquiadores para não cansar os leitores; indicarei apenas algumas de suas proezas artísticas.

George Westmore

George Henry Westmore (1879-1931), o patriarca da família, foi um cabelereiro inglês que emigrou para os Estados Unidos com sua família. Especializado em fazer perucas e depois em maquiagem, ele montou seu primeiro departamento de maquiagem em 1917 na Selig Polyscope Company e ao mesmo tempo fabricava perucas, tendo inventado a peruca do laço. Trabalhou também para a Triangle Film Corporation e foi responsável pela criação dos famosos cachos de Mary Pickford, que se tornou um estilo imitado por Shirley Temple entre outras atrizes. Os famosos cachos de Mary eram reais, mas ela comprou 18 cachos falsos de George por 50 dólares cada um, para adicioná-los aos seus quando necessitasse de mais volume na sua cabeleira.

Com o advento do cinema falado, George viu a carreira de seus filhos eclipsando a sua. Ele entrou em depressão, sentindo que seu próprio trabalho foi esquecido e se suicidou tomando veneno. George teve seis filhos que se seguiram a carreira de maquiadores em Hollywood durante os Anos Dourados de Hollywood: Monte, os gêmeos Perc e Ern e Wally Westmore nasceram na Inglaterra; Bud e Frank Westmore, na Califórnia.

Desde o final da década de 1910, quando George montou seu primeiro departamento de maquiagem até o último filme de Frank (O Último dos Valentões / Farewell my Lovely) em 1975, os Westmores trabalharam como cabelereiros e maquiadores em Hollywood, frequentemente como encarregados de grandes departamentos de maquiagem e supervisionado todos os filmes de seus estúdios.

Como já foi dito, George criou os cachos da “Namoradinha da América” para a Triangle.

Mary Pickford e seus cachos

Monte serviu na Famous Players Lasky como maquiador de Rudolph Valentino (criando seu visual latino), realizou um trabalho notável em O Rei dos Reis / The King of Kings / 1927, criou uma cicatriz sinistra para Paul Muni em Scarface, a Vergonha de uma Nação / Scarface / 1932 e mais tarde foi capaz de realçar a matiz de verde dos olhos castanhos de Vivien Leigh com o uso de sombra e roupas para combinar com a descrição de Margaret Mitchell em … E O Vento Levou / Gone with the Wind / 1939.

Paul Muni e sua cicatriz em Scarface

Perc trabalhou com Adolph Menjou e Paul Muni; criou a face grotesca maravilhosa de Charles Laughton em O Corcunda de Notre Dame / The Hunchback of Notre Dame / 1939; arranjou um aprimoramento para o decote de Carole Lombard (aplicando-lhe uma linha de ruge); fez um corte de cabelo masculino inovador na altura da orelha para Coleen Moore; aplicou baton laranja na ruiva Ann Sheridan. Depois que transformou Bette Davis na Rainha Elizabeth (raspando suas sobrancelhas e sua testa e aparando seus cílios), ele ficou intimamente ligado a seus filmes posteriores. Perc providenciou  um rosto  indígena e austero para Paul Muni como o líder revolucionário mexicano em Juarez / Juarez / 1939 e providenciou uma maquiagem para Ronald Reagan Em Cada Coração Um Pecado / King´s Row / 1942: deixou-o essencialmente sem maquiagem a fim de torná-lo crível.

Charles Laughton em O Corcunda de Notre Dame

Bette Davis como a Rainha Elizabeth (ao lado  de Errol Flynn) em Meu Reino por um Amor

Ern é geralmente considerado o maior inovador dos Westmores, parcialmente devido à sua capacidade de improvisar vários efeitos especiais (v. g. ele usou um bife de flanco cru amarrado em volta da perna de John Barrymore, coberto com maquiagem, de modo que, quando um ferro de marcar quente lhe fosse aplicado, parecesse estar fazendo um barulho de carne em brasa – e isso em 1926). Ele também foi responsável por inovações como dar a Bette Davis lábios retos em vez de lábios em forma de picada de abelha (bee-stings lips) como os de Theda Bara e Mae Murray. Quando ele fez isso com Katharine Hepburn, a mulher Americana passou a ter um novo rosto. Ele ficou famoso por sua maquiagem de envelhecimento, notavelmente de Sam Jaffe e Margo em Horizonte Perdido / Lost Horizon /1937. Ele envelheceu também Irene Dunne em Cimarron / Cimarron / 1931.

Irene Dunne em Cimarron

Wally usou espuma de borracha e um arreio para envelhecer Barbara Stanwyck   em Até Que a Morte Nos Separe / The Great Man´s Lady / 1941, fez um molde dos olhos de um ator chinês e aplicou o molde em Akim Tamiroff no filme O General Morreu ao Amanhecer / The General Died at Dawn / 1936 e uma falsa mão para Harold Lloyd em O Professor Faraó / Professor Beware / 1938; ele foi também o criador do visual satânico  / neandertal do Mr. Hyde de Fredric March (em O Médico e o Monstro / Dr. Jeklyll and Mr. Hyde / 1931) por meio do uso de molde facial, uma peruca ventilada e dentes caninos de porcelana.

Fredric March como Mr. Hyde em O Médico e o Monstro (1931)

Bud usou a mesma espuma de borracha que Wally havia usado em Barbara Stanwick para fazer a cauda de sereia de Ann Blyth em Ele e a Sereia / Mr. Peabody and the Mermaid / 1948, porém ficou mais famoso pelos seus monstros da Universal nos anos cinquenta, trabalhando em estreita colaboração como o diretor de arte Alexander Golitzen. Seu monstro mais célebre foi aquele usado em O Monstro da Lagoa Negra / The Creature from the Black Lagoon / 1954, baseado na forma de um iguana e feito com borracha líquida aplicada no corpo do stuntman Ricou Browning. No entanto, é preciso esclarecer que Bud recebeu colaboração preciosa de Millicent Patrick (desenhista do humanóide pré-histórico), Jack Kevin (criador da roupa do monstro) e Chris Mueller, Jr. (escultor da cabeça do monstro) mas, como ele era o chefe do departamento de maquiagem somente seu nome constou nos créditos. A criação mais bizarra de Bud foram os seres extras-terrestres com cérebros expostos  Guerra entre Planetas / This Island Earth / 1954.

Ann Blyth sendo transformada em Sereia

Bud e a cabeça do monstro da lagoa negra

A criatura de Guerra entre Planetas

O primeiro trabalho de Frank em um filme foi escurecer as partes íntimas de um chimpanzé em Além do Horizonte Azul / Beyond the Blue Horizon / 1942, mas ele teve uma carreira cinematográfica longa, inclusive funcionando quase como um diretor de segunda unidade em Os Dez Mandamentos / The Ten Commandments / 1956 e ganhou um prêmio Emmy pelo seu trabalho no seriado de televisão Kung Fu / Kung Fu / 1972-1975 protagonizado por David Carradine. Ele transformou Shirley MacLaine em uma geisha em Minha Doce Geisha / My Geisha / 1962.

Frank e sua maquiagem de Shirley MacLaine para Minha Doce Geisha

Monte Westmore teve três filhos, Monty, Michael e Marvin e Marvin teve um filho, Kevin. Monty foi responsável pela maquiagem de Joan Crawford em O Que Terá Acontecido a Baby Jane? / What Ever Happened to Baby Jane? / 1962 e e indicado para o Oscar de Melhor Maquiagem por seu trabalho em A Volta do Capitão Gancho / Hook /1991 de Steven Spielberg. Michael deu sua contribuição para vários episódios da série e TV Jornada nas Estrelas / Star Strek, ganhou 9 prêmios Emmy e repartiu o Oscar de Melhor Maquiagem com Zoltan Elek por seu trabalho em Marcas do Destino / Mask / 1985 de Peter Bogdanovich. Marvin exerceu um de seus trabalhos mais expressivos em Blade Runner, Caçador de Andróides / 1982. Kevin, filho de Marvin, o Westmore da quarta geração, mostrou sua competência, por exemplo, na série de TV Arquivo X / The X-Files (1993-2002), que lhe deu dois prêmios Emmy e no filme O Demolidor / Demolition Man / 1993 estrelado por Sylvester Stallone, Wesley Snipes e Sandra Bullock e dirigido por Marco Brambilla.

 

HANS FISHERKOESEN, O “DISNEY” DE HITLER

Apaixonados pelos desenhos animados de Walt Disney, Adolf Hitler e seu ministro da propaganda Joseph Goebbels decidiram formar uma poderosa indústria de animação, criando um estúdio parecido com o do americano. Entre os convocados para este empreendimento estava Hans Fischerkoesen, um dos animadores mais destacados da Alemanha ente 1933 e 1945, cujo trabalho incluía um trio de filmes notáveis: Verwitterte Melodie, Der Schneemann e Das dumme Gänslei

Hans Fisherkoesen

Hans Fisher (1896 – 1973) nasceu em Bad Koesen, cidade perto de Naumburg na Saxônia. Como o sobrenome Fisher fosse muito comum no meio cinematográfico, ele acrescentou o nome da cidade de nascimento ao seu próprio, passando a se chamar Hans Fischerkoesen, para se distinguir de outros.  Quando criança, Hans e sua irmã Leni satisfaziam seu gôsto por fantasia, criando um teatrinho de marionetes e outros entretenimentos domésticos. Ambos estudaram na Lepzig Art Academy e, posteriormente, ela trabalhou com Hans e muitos filmes.

Ele foi dispensado do serviço militar durante a Primeira Guerra Mundial por sofrer de asma, porém serviu em hospitais do exército perto das linhas de frente, onde sentiu a insanidade da guerra nas trincheiras. Quando a guerra acabou, FIscherkoesen voltou para a casa de sua família e, depois de muito esforço e determinação, conseguiu realizar o primeiro desenho animado da Alemanha, Das Loch in Western  (O Buraco no Ocidente) / 1919, expondo as pessoas que tiravam proveito da população com a pobreza e destruição depois da guerra.

Fisherkoesen fez um filme de publicidade de muito sucesso, Bummel-Petrus (Pedro Passeador ) / 1921 para a fábrica de sapatos de Nordheimer, que levou a um contrato de dois anos com Julius Pinschew, pioneiro da utilização de comerciais de animação nos cinemas em 1911. Depois, montou seu Fisherkoesen Studio em Leipzig e se especializou em filmes de publicidade, algo para o qual parecia perfeitamente adequado, pois possuía inegável senso de humor, bom senso de ritmo, e um estilo de desenho animado flexível – bem como uma concentração obsessiva necessária para fazer filmes animados perfeitos em todo o sentido.

Em 1931, um jornal de Leipzig celebrizou Fischerkoesen como “o queridinho do público com um artigo de página inteira intitulado “Tomem cuidado, Mickey Mouse, Gato Felix, e companhia!”, que continha imagens deliciosas de uma vaca com uma lira embutida nos seus chifres, um touro de smoking, e uma dança cangurú em um estilo art-deco encantador, figuras populares de seus anúncios. Em 1937, quando ele arrebatou ambos o primeiro e o segundo prêmios em uma competição internacional de filmes de publicidade patrocinada pela Dinamarca (da qual participaram inclusive George Pal e Alexander Alexeieff), Fisherkoesen havia feito cerca de mil filmes de publicidade. Infelizmente, todos salvo uns poucos se perderam ou permanecem não identificados em coleções que não consideram importantes os filmes comerciais.

Durante muitos anos, Fisherkoesen manteve sua produção confinada ao tipo de filmes de publicidade que fazia tão bem; mas, em 1941, o Ministro de Propaganda do Reich, Joseph Goebbels, exigiu que ele transferisse seu estúdio e pessoal para Postdam, perto dos estúdios Neubabelsberg da UFA e ficasse disponível para consultas ou efeitos especiais sobre filmes de longa-metragem ou documentários. Entre as coisas específicas que Goebbels determinou para a nova indústria de desenho animado foi o desenvolvimento de efeitos “tri-dimensionais” que pudessem competir com o processo Stereo-Óptico de Max Fleischer ou com a câmera multiplano de Walt Disney.

A Melodia Desgastada

O primeiro desenho animado (curto) que Fisherkoesen fez para o seu novo chefe foi Scherzo – Die Verwitterte Melodie (Scherzo – A Melodia Desgastada) / 1942, sobre uma abelha que descobre uma vitrola em pleno campo e consegue tocar os discos antigos (com música no estilo swing) usando o seu ferrão. Para se apreciar a ousadia de Fisherkoesen, devemos lembrar que os nazistas haviam proibido o jazz e o swing, considerando-os como uma trama para minar a cultura germânica tradicional. Além disso, toda a comunidade de animais descrita no filme é pacífica, amigável, divertida, imaginativa e altruísta, exatamente o oposto da exigência nazista para um dedicado cidadão Ariano.

Nos outros dois cartoons curtos de Fisherkoesen durante a Segunda Guerra Mundial, Der Schneemann / 1944 (Boneco de Gelo) e Das dumne Gänslein (O Gansinho Parvo) / 1945, ele também criou uma narrativa complexa e ambígua que confunde e contradiz a política nazista. FIsherkoesen demonstrou que, mesmo na hora mais escura, mais ameaçadora de depravação humana, os homens de princípios podem resistir, subvertendo com sutileza as regras e preconceitos do tirano.

Boneco de Gelo

O Gansinho Parvo

No final da guerra, as tropas invasoras russas prenderam Fisherkoesen como um possível colaborador nazista. Embora pudesse provar que não era realmente um simpatizante nazista, mas sim um membro de um grupo de artistas da resistência, ele foi mantido no campo de concentração de Sachsenhauser por três anos, antes de ser libertado. Durante este tempo, trabalhou na cozinha e pintou murais irônicos e alegóricos usando criaturas vegetais, os quais se encontram agora preservados como um monumento histórico nacional.

Quando foi finalmente sôlto, havia provado que não era um nazista, mas também que não era comunista; assim, não foi autorizado a trabalhar privativamente nos seus próprios filmes, mas somente como funcionário do estúdio DEFA, controlado pelo Estado. Em 1948, Fisherkoesen e sua família fugiram da Alemanha Oriental, carregando apenas uma câmera; ele então reinstalou seu estúdio perto de Bonn, na Alemanha Ocidental.

Conforme informações de William Moritz, professor do California Institute of Arts (que foram fundamentais para a elaboração deste artigo), Fisherkoesen continuou fazendo filmes de propaganda até 1969, conquistando prêmios importantes nos festivais de filmes comerciais em Roma, Milão (três vezes), Veneza, Monte Carlo e Cannes.

COURT COURANT

Nascido em Berlim, Alemanha, ele foi um prolífico diretor de fotografia do cinema de Weimar e do cinema impressionista francês, assim como de filmes britânicos dos anos trinta, trabalhando com grandes diretores.

Curt Courant

Treinado como fotógrafo, Courant iniciou sua carreira cinematográfica em 1917 na função de assistente de câmera para a companhia produtora de Joe May. Em 1921, atuou como diretor pela única vez em sua trajetória artística na realização do filme Kameraden, estrelado por Elsa Wagner e Max Gustorff. Desde o início dos anos vinte, trabalhou como free lancer para várias companhias em filmes como Das Mädchen Aus Der Ackerstrasse, um estudo social dirigido por Reinhold Schünzel.  A perspicácia para o detalhe social tornou-se a sua especialidade em filmes como Familientag Im Hause Prelstein / 1927. Courant tornou-se também bastante apto para fotografar estrelas como Asta Nielsen no papel título de Hamlet / 1920.

Em 1924, Courant viajou para Roma a fim de fotografar o épico histórico espetacular Quo Vadis? / Quo Vadis? O filme, dirigido por Gabriellino D´Annunzio e Georg Jacoby, impressionou não somente pelo seu elenco de astros, tendo à frente Emil Jannings como Nero, mas também pela experimentação precoce com o formato de tela-larga.

Cena de Quo Vadis?

Em 1927, Courant assinou contrato com a Ufa e subsequentemente fotografou espetáculos exóticos de grande orçamento como Segredos do Oriente / Geheimnisse Des Orients / 1928 e O Diabo Branco / Der Weisse Teufel / 1929 e melodramas, incluindo Die Frau, Nach Der Man Sich Sehnt / 1929 com Marlene Dietrich. Junto com Otto Kanturek, Courant também contribuiu para o filme de ficção científica de Fritz Lang, A Mulher na Lua / Frau Im Mond / 1929.Tendo trabalho em vários países da Europa em coproduções desde o final dos anos vinte, Courant, que era judeu, deixou a Alemanha permanentemente em 1933.

Courant e Fritz Lang na filmagem de A Mulher na Lua

Na Inglaterra, ele trabalhou para vários diretores entre eles Cyril Gardner em Casamento Liberal / Perfect Understanding, / 1932 com Laurence Olivier e Gloria Swanson; Alfred Hitchcock em O Homem Que Sabia Demais / The Man Who Knew Too Much / 1934; Berthold Viertel em O Desconhecido / The Passing of the Third Floor Back / 1935, uma intrigante mistura de realismo documentário e alegoria espiritual; John Brahm na refilmagem  em 1936 de Lírio Partido / Broken Blossoms de David Wark Griffith e  Maurice Elvey em The Spy of Napoleon / 1936, único filme britânico de Richard Barthelmess.

 

Gloria Swanson e Laurence Olivier em  Casamento Liberal 

Cena de O Homem Que Sabia Demais

Na França, Courant fotografou, entre outros, alguns dos filmes franceses mais significativos da década e colaborou com diretores como Jean Renoir (A Besta Humana / La Bête Humaine / 1938); Pierre Chenal (Pecadoras de Tunis / La Maison du Maltais / 1938); Marcel Carné (Trágico Amanhecer / Le Jour se Lève / 1939; Max Ophuls (De Mayerling a Sarajevo / De Mayerling a Sarajevo / 1940).

Courant ao lado de Jean Renoir filmando cena de A Besta Humana

Marcel Dalio e Vivianne romance em Pecadoras de Tunis

Após a queda da França, Courant fugiu para os Estados Unidos e durante a Segunda Guerra Mundial trabalhou para Frank Capra na Special Services Division, mas não conseguiu ser membro da American Society of Cinematographers (ASC), o que dificultou sua contratação para trabalhar em estúdios de Hollywood. Embora lhe tenha sido negado um reconhecimento oficial, ele contribuiu ocasionalmente para alguns filmes inclusive Monsieur Verdoux / Monsieur Verdoux / 1947 de Charles Chaplin. Na falta de trabalho contínuo, Courant foi ensinar cinema na UCLA, onde supervisionou em 1954, A Time Out of War, filme de 22 minutos dirigido por Denis Saunders para a sua tese de mestrado, que acabou ganhando o Oscar de Melhor Curta- Metragem de dois rolos.

CLARA BOW

Ela foi a famosa “It girl”, sensação da tela silenciosa, o primeiro símbolo sexual de Hollywood, a maior atração de bilheteria na sua época e uma personificação dos loucos anos vinte.

Clara Bow

Clara (1905-1965), nasceu no Brooklyn, Nova York, filha de Robert Bow e Sarah Gordon. Seu pai era hipersexuado, abusivo e um perdedor típico. A mãe, uma mulher bonita, mas assexuada, cujos progenitores eram um alcoólatra e uma louca. Eles moravam num apartamento minúsculo e pobre sem ventilação, janelas ou luz do sol. Clara foi a terceira filha do casal: a primeira, Alene, nasceu prematuramente e morreu três dias depois. Pouco após, Sarah estava grávida novamente e sua segunda filha, Emily, também veio ao mundo cedo e só viveu duas horas. Tal como a irmã, foi enterrada em uma vala comum porque os pais não tinham dinheiro para pagar um túmulo. Sarah quase morreu neste segundo parto e o médico lhe advertiu que uma futura gravidez poderia ser fatal para a mãe e para a criança. Ainda assim, deu à luz pela terceira vez. Era uma forma perversa de suicídio, mas adequada para seu propósito: forçada a ter filhos por um homem que ela não amava, Sarah decidiu morrer de parto. Robert não se opôs.  Estava cansado das queixas de sua esposa sobre a falta de dinheiro e sua incapacidade para ganhá-lo. Ela também zombava de seus sonhos de sucesso com um garçom cantor, lembrando-lhe que ele era apenas um modesto ajudante de garçom em um restaurante nojento. Em vez de encarar a verdade, Robert a deixou.

Abandonada e grávida, Sarah não teve outra opção senão retornar para o apartamento de seu irmão acima de uma Igreja Batista no número 697 da Rua Bergen. Como ela havia se casado apenas para fugir de sua família, o regresso ao lar foi duplamente humilhante e as condições de habitabilidade piores do que nunca. Durante uma onda de calor, Sarah entrou em trabalho de parto.  Considerando a morte como uma libertação e acreditando que este nascimento traria isto, ela não chamou um médico. Sua mãe louca serviu como parteira, quando Sarah deu à luz sua terceira filha. Para seu alívio, o bebê parecia estar morto. Mas quando a mãe de Sarah sacudiu o recém-nascido sem vida, ele emitiu um grito fraco. Informado disso, Robert voltou para a esposa. Ele e Sarah estavam tão certos da morte iminente do bebê, que nunca providenciaram nenhuma certidão de nascimento. Assim nasceu Clara, já não desejada e mal-amada. Durante sua infância, quando Sarah atormentava Robert sobre seu fracasso, ele aliviava sua frustração batendo tão fortemente no rosto da filha, que ela caía no chão.

Clara tornou-se uma menina solitária e supersensível e sua gagueira era motivo de diversão constante para as outras meninas do bairro. Seu único amigo era um garoto chamado Johnny que morava no mesmo prédio. Ele se tornou seu irmão imaginário, que ela protegia quando os outros meninos o importunavam. Um dia, ouviu subitamente gritos pavorosos vindos do apartamento de Johnny. Clara desceu correndo e o encontrou em chamas gritando seu nome em agonia. Ela o enrolou em um tapete. Ele morreu em seus braços. A morte terrível de Johnny deixou Clara sozinha mais uma vez. Na sua vida solitária, só havia um lugar aonde Clara podia ir e esquecer a miséria do seu lar e as mágoas de sua existência. Era no cinema.

Clara não estava somente fascinada pelo novo meio de expressão, mas achava que ele lhe traria fama, adulação e, mais importante do que tudo, amor. Aos dezesseis anos de idade, decidiu que iria ser artista de cinema. Nesta ocasião, sua mãe caiu de uma janela do segundo andar da casa onde moravam e sofreu uma lesão na cabeça, que lhe deixou sequelas como confusão, alucinações, paranóia e comportamento agressivo. Ao saber que sua filha vinha tentando uma carreira no cinema, Sarah lhe disse que preferia ver a filha morta e que poderia matá-la.

A grande chance de Clara surgiu quando, no outono de 1921, ela venceu o concurso nacional da revista Brewster chamado “Fame and Fortune” com sua presença encantadora e fotogênica. No escritório da Brewster, conheceu o diretor Christy Cabane, que a escalou para o papel de um rapazinho no filme Para Fazer Ciúmes / Beyond the Rainbow, estrelado pela corista do Ziegfeld Follies Billie Dove, uma das beldades da época. Até então a violenta oposição de Sarah à carreira de Clara no cinema limitava-se a ameaças verbais, mas quando Clara terminou seu trabalho em Para Fazer Ciúmes, Sarah passou das palavras aos atos. Despertando uma noite de um sono profundo, Clara assustou-se ao ver sua mãe pairando sobre ela com uma faca na mão e dizendo que ia matá-la. Sara levantou a faca para atingir o pescoço de Clara e então desmaiou. Por conta deste episódio, Robert internou sua esposa em um sanatório.

Para Fazer Ciúmes estreou em 19 de fevereiro de 1922 sem uma única tomada de Clara, porque Cabanne achou que a presença de muitos personagens complicava o enredo e perturbava o ritmo do filme e resolveu cortar vários atores. Porém Clara teve nova oportunidade ao ser contratada para um papel em Rumo ao Mar / Down to the Sea in Ships e depois, sem ser creditada (aparecendo como uma garota dançando em cima de uma mesa), em Inimigos das Mulheres / Enemies of Women, ambos lançados em 1923 e dirigidos respectivamente por Elmer Clifton e Alan Crosland.

Ainda em 1923, Clara trabalhou em O Corajoso / Grit (Dir: Frank Tuttle), que lhe proporcionou seu melhor papel até então. O filme era fraco, mas ela impressionou Tuttle por sua capacidade de expressar emoção com a maior facilidade. Na filmagem desta história escrita por F. Scott Fitzgerald, Clara conheceu seu primeiro namorado, o operador de câmera Arthur Jacobson e Jack Bachman, funcionário da Preferred Pictures, produtora independente, fundada por B. P. Schulberg e sediada em Hollywood.

Clara em Os Bois Pretos

Depois de fazer um papel secundário em Mocidade Cega / The Daring Years (Dir: Kenneth Webb), Clara foi para Hollywood onde, ainda em 1923, fez Amores de Primavera / Maytime (Dir: Louis Gasnier) para a  Preferred e depois, quase sempre, foi emprestada para produções modestas  de outros estúdios: 1924 – Os Bois Pretos ou O Que As Mulheres Querem / Black Oxen (Dir: Frank Lloyd); Paraiso Envenenado / Poisoned Paradise (Dir: Louis Gasnier); Filhas do Prazer / Daughters of Pleasure (Dir: William Beaudine); Os Filhos de Helena / Helen´s Babies (Dir: William A. Seiter);  Vinho Capitoso / Wine  (Dir: Louis Gasnier); Corações Esgotados / Empty Hearts (Dir: Alfred Santell); Esta Mulher / This Woman (Dir: Phil Rosen ); Relâmpago Negro / Black Lightning (Dir: James Hogan). 1925 – Sexo Aventureiro / The Adventurous Sex (Dir: Charles Giblyn); Pena de Morte / Capital Punishment (Dir: James Hogan); Os Lábios de Minha Mulher / My Lady´s Lips (Dir: James Hogan); Uma Aventura Gloriosa / Eve´s Lover (Dir: Roy Del Ruth); Sob Amparo da Lei / The Lawful Cheater (Dir: Frank O´Connor); Calvário de Amor / The Scarlet West (Dir: John G. Adolfi).

Nenhum desses filmes possuía algum mérito, mas Clara sobressaiu por sua atuação em Os Bois Pretos, no qual ofuscou a atriz principal Corinne Griffith e foi considerada uma das mais promissoras jovens atrizes, tendo sido selecionada como Wampas Baby Star em 1924. Pouco depois, quando estava filmando Uma Aventura Gloriosa na Warner, chamou a atenção de Ernest Lubitsch, que a colocou no elenco de uma produção de primeira classe, Beija-me Outra Vez. / Kiss Me Again / 1925, como Grizette, a secretária parisiense sensual que enfeitiça seu patrão casado, Gaston Fleury (Monte Blue). O filme foi um sucesso e uma delícia e o melhor papel de Clara até então; porém, no mesmo ano, Schulberg relegou-a mais uma vez aos filmes de baixo orçamento – Amor Parisiense / Parisian Love (Dir: Louis Gasnier); Como Nasce o Amor / The Primrose Path (Dir: Harry Hoyt); O Guardião das Abelhas / Keeper of the Bees (Dir: James Meehan / FBO); Livre para o Amor / Free to Love (Dir: Frank O´Connor).

Clara em Beija-me Outra Vez

Finalmente, convencido de que uma adaptação cinematográfica de The Plastic Age impulsionaria Clara para o estrelato, Schulberg comprou os direitos do romance, gastou mais dinheiro na produção e contratou um diretor melhor, Wesley Ruggles. Promovida como “the hottest jazz baby in films”, Clara causou enorme sensação e Luar, Música e Amor ou Dias de Colegial, como a adaptação de The Plastic Age foi intitulada no Brasil, tornou-se o maior êxito da Preferred até então. Durante a filmagem, Clara tornou-se amante de um dos seus companheiros de elenco: Luis Antonio Damaso de Alonso, que ficou conhecido no mundo cinema como Gilbert Roland.

Clara e Gilbert Roland em Luar, Música e Amor

Mesmo após este sucesso, Schulberg continuou emprestando os serviços de Clara novamente para quem pagasse mais e, embora não houvesse falta de ofertas, também não havia nenhuma que valesse a pena artisticamente falando (1925 – Bandoleiro por Esporte / The Best Bad Man (Dir: J. G. Blystone); O Mar Encantado / The Ancient Mariner (Dir: Chester Bennet). 1926 – Caprichos de Moça / My Lady of Whims (Dir: Dallas M. Fitzgerald); A Sombra da Lei / The Shadow of the Law (Dir: Wallace Worsley); Teimoso / Two Can Play (Dir: Nat Ross). Para sorte de Clara, quando Adolph Zukor propôs a Schulberg que ele trouxesse toda a sua companhia para a Paramount, então o maior estúdio de Hollywood, ela ganhou o segundo papel principal em Loucuras de Mãe / Dancing Mothers / 1926 (DIr: Herbert Brenon) e, com sua vitalidade irresistível, “roubou” o filme de sua heroína nominal, interpretada por Alice Joyce.

A estréia de Clara na Paramount foi tão estrondosa que o estúdio lhe proporcionou uma breve aparição – como Clara Bow, estrela de cinema –  em Desafio à Mocidade /  Fascinating Youth (espetáculo especial no Ritz Carlton Hotel em Nova York para a primeira classe de formandos na Paramount School for Stars, dirigido por Sam Wood) e logo a trouxe de volta para Hollywood a fim de fazer Ou Dinheiro ou Amor / The Runaway (Dir: William C. de  Mille), seguindo-se Provocação de Amor / Mantrap (Dir: Victor Fleming) e Casar e Descasar / Kid Boots (Dir: Frank Tuttle). Estes dois últimos filmes foram um sucesso de audiência e, fora de cena, Clara terminou seu romance com Gilbert Roland, aproximando-se amorosamente do diretor Victor Fleming.

Clara entre Buddy Rogers e Richard Arlen em Asas

Embora figurasse como atriz principal de Asas / Wings / 1927, Clara teve um papel supérfluo neste único filme mudo a ganhar o Oscar. Este drama de aviação passado na Primeira Guerra Mundial, dirigido por William Wellmann, conta a história de dois pilotos, Jack Powell e David Armstrong (Charles “Buddy” Rogers, Richard Arlen), que se odeiam, mas acabam ficando grandes amigos durante os treinamentos. Jack ama a sofisticada Sylvia Lewis (Jobyna Ralston), que por sua vez é apaixonada por David. No final, sem saber, Rogers abate o amigo que escapara através das linhas inimigas usando um avião alemão. Clara faz apenas um pequeno papel como Mary Preston, interessada em Jack. A produção de Asas foi seguida pelo filme mais importante de sua carreira.

Clara em O “Não Sei Quê” das Mulheres

Em 1926, B. P. Schulberg leu o último livro de Elinor Glynn intitulado It, estudo picante sobre atração sexual, e teve uma idéia. No ano anterior ele havia promovido Clara como “A Fogueira do Brooklyn”, porém o slogan não pegou. Então Schulberg tentou uma campanha diferente com a finalidade de transformá-la numa superestrela, produzindo um filme chamado It, para fazer com que Clara ficasse conhecida como a “It Girl”. Percebendo que as flappers (termo típico dos anos 20 para se referir ao novo estilo de vida das mulheres jovens que usavam saia e cabelos curtos, ouviam e dançavam provocativamente o jazz e o charleston e desacatavam a tradicional conduta feminina) como Clara estavam entrando rapidamente em moda no lugar de mulheres refinadas como as personagens vividas por Gloria Swanson na tela, Elinor não perdeu tempo, anunciando: “De todas as jovens senhoritas que conhecí em Hollywood, Clara Bow tem ‘It’”. Seu endosso custou 50 mil dólares à Paramount.

O sucesso de Clara em It, aqui exibido como O “Não Sei Quê” das Mulheres (DIr: Clarence Badger), fez dela o principal símbolo sexual do cinema na década de vinte. Como bem observou David Stenn na sua magnífica biografia de Clara Bow, Runnin’Wild (ed. Cooper Square Press, 2000), da qual extraí a maior parte das informações para este artigo) enquanto Mary Pickford, a “Namoradinha da América” (frase também cunhada por B. P. Schulberg) interpretava heroínas pré-sexuais, as personagens de Clara eram não somente conscientes de sua sexualidade, mas com o controle total disso.

Clara e Gary Cooper em Filhos do Divórcio

Imediatamente após O Não Sei Quê das Mulheres, Clara teve a chance de tentar fazer um papel dramático em Filhos do Divórcio / Children of Divorce / 1927 (Dir: Frank Lloyd), cujo principal papel masculino foi entregue a Gary Cooper a pedido dela, pois ela estava tendo um caso amoroso com ele na época; porém os seus três outros filmes de 1927 exploraram sua personagem cinematográfica típica: Rosa Turbulenta / Rough House Rosie (Dir: Frank Strayer), como uma operária em uma fábrica de doces que  quer entrar para alta sociedade; Hula / Hula (Victor Fleming), como filha do dono de uma plantação no Havaí que se apaixona por um engenheiro inglês casado; e Segura o que é Teu ou Apanha o Teu Homem / Get Your Man (Dir: Dorothy Arzner), como uma moça americana que se apaixona por um duque inglês que está prestes a se submeter a um casamento arranjado. A diretora deste último filme, ficou impressionada como Clara, sem ter tido um treinamento formal, projetava com um instinto infalível e naturalidade seus pensamentos e emoções.

Clara em Hula

Clara em  Cabelos de Fogo

Um mês antes da produção de Segura o que é Teu, a Paramount pagou a Schulberg cem mil dólares de bônus e uma promoção para renunciar a todos os direitos do contrato de Clara. Schulberg havia servido como produtor associado de todos os filmes dela na Paramount e agora, nomeado gerente geral de todo o estúdio, não precisava mais explorar a pobre Clara, pagando-a mal e fazendo a moça trabalhar tanto, a ponto de ter um colapso físico. Ironicamente, Cabelos de Fogo / Red Hair / 1928 (Dir: Clarence Badger), o derradeiro filme de Clara supervisionado pessoalmente por Schulberg, foi também o mais luxuoso e, embora fosse artisticamente fraco, teve boa acolhida por parte do público, impressionado com as cenas de Clara de maiô apertado com cinto branco filmadas em um technicolor de duas cores. Os próximos filmes de Clara em 1928 – Fidalgas da Plebe / Ladies of the Mob (Dir: William Wellman), Marinheiros em Terra / The Fleet´s in (Dir: Malcolm St. Clair) e As Férias de Clara / Three Weekends (Dir: Clarence Badger) – também foram medíocres, mas sua celebridade continuava inabalável.

Clara em Garotas na Farra

A estréia de Clara no cinema falado deu-se em 1929 com Garotas na Farra / Wild Party, sob direção de Dorothy Arzner e fazendo dupla com Fredric March. Como o charme de Clara residia no seu eu físico, que estava definitivamente intacto, foi fácil supor que ela poderia lidar com a transição para o som particularmente desde que suas personagens sensuais ainda eram viáveis no começo dos anos trinta. Os críticos disseram que sua voz era melhor do que a narrativa e combinava com a personalidade dela. A estrela mais popular da América fizera seu primeiro filme falado e todos queriam vê-lo. Depois de participar de uma tournée para promover o filme, Clara retornou a Hollywood, onde seu último amante, o ex-lutador de boxe irlandês que se tornou stuntman, Jimmy Dundee, estava esperando por ela.

O segundo filme falado de Clara, Curvas Perigosas / Dangerous Curves / 1929, foi melhor do que o primeiro graças à intervenção de Ernst Lubitsch, que era então supervisor de produção da Paramount. Ele ordenou que o roteiro fosse reescrito, mudou o elenco e indicou como diretor Lothar Mendes, alguém que, segundo ele, percebia o potencial inexplorado da atriz. A esta altura, Clara estava namorando o pianista Harry Richman, que se aproveitou dela para se lançar no cinema.

Clara detestou tanto o seu novo filme Uma Pequena das Minhas / The Saturday Night Kid / 1929 quanto seu diretor, Edward Sutherland, mas no seguinte, Paramount em Grande Gala / Paramount on Parade / 1929 (do qual participaram os astros e principais diretores do estúdio) ela surpreendeu cantando “True to The Navy”, o número mais aplaudido pelo público entre os outros vinte números, exceto o de Maurice Chevalier.

Clara ficou conhecida por sua vida vibrante fora da tela e foi eventualmente atingida pelo escândalo. Seus muitos casos de amor, suas loucas aventuras às vezes descuidadamente bêbada, eram conhecidas por todos no meio cinematográfico. Ela passou a personificar o que o New York Times chamaria mais tarde (no seu obituário) “the giddier aspects of na unreal era, the Roaring Twenties” (os aspectos mais vertiginosos de uma era irreal, os Loucos Anos Vinte”). Em 1931, sua secretária, amiga, confidente e algumas vezes manicura, Daisy De Voe, tentou fazer chantagem com ela. Clara processou-a e em retaliação De Voe usou o julgamento para divulgar detalhes da vida privada de Clara. De Voe foi condenada e cumpriu pena de dezoito meses.

Clara Bow e seu marido Rex Bell

Depois de Paramount em Grande Gala, Clara fez em 1930, A Noiva da Esquadra / True to the Navy, Amor entre Milionários / Love Among the Millionaires, Minha Noite de Núpcias / Her Wedding Night  e, em 1931, Indicadora de Cinema / No Limit e Emoções de Esposa / Kick In. Em 1931, Clara se casou com Rex Bell, seu companheiro no elenco de A Noiva da Esquadra. Ele depois se tornaria um dos cowboys da tela (previsto para ser o sucessor de Tom Mix) e, mais tarde, vice-governador de Nevada. O casal teve dois filhos e ele morreu em 1962, vítima de um ataque do coração.

Clara em A Noiva da Esquadra

Jeanine Basinger, no seu livro Silent Stars (ed. Wesleyan University Press, 1999), me ajudou a terminar este artigo. Disse Janine em síntese que esses filmes dos anos trinta não romperam com o que a fizeram famosa. Ela estava encantadora em todos eles e as críticas lhe eram favoráveis. Sua voz soava bem e ela até demonstrou que conseguia cantar muito bem em voz de contralto. A carreira de Clara não estava pegando fogo, mas longe de estar morta. Ela sobreviveu à transição para o som e seus filmes, que custaram pouco para serem feitos, ainda estavam dando lucro.

Clara em Sangue Vermelho

Porém algo mais estava acontecendo com a “It Girl”. Clara era a filha de uma mãe mentalmente instável e começou a sofrer colapsos nervosos. As pressões do trabalho constante e o escrutínio da fama cobraram seu preço e ela achou que não poderia continuar – sua carreira terminou com dois filmes muito divertidos, Sangue Vermelho / Call Her Savage (Dir: John Francis Dillon) / 1932 e Lábios de Fogo / Hoopla/ 1933 (Dir: Frank Lloyd). Após pedir que seu contrato com a Paramount fosse terminado, ela se internou em um sanatório para repouso e recuperação. Não foi o som que destruiu Clara Bow, mas a hereditariedade e os horrores da Juventude.

SÃO BERNARDO DE GRACILIANO RAMOS NO CINEMA

Era assim que Graciliano Ramos encarava o ofício de escritor: “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso: a palavra foi feita para dizer.”

Este entendimento exprime perfeitamente o estilo do romancista, um estilo de concisão, de unidade entre as palavras e os seus sentimentos, de rígido ascetismo tanto na narração como nos seus diálogos, todos rápidos, exatos, precisos. Diálogos e narração que fazem dele um mestre no seu ofício de romancista, um mestre da arte de escrever.

Graciliano Ramos

 

Romances de Graciliano Ramos inspiraram três filmes importantes da história do cinema brasileiro, dois dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, Vidas Sêcas / 1964 e Memórias do Cárcere / 1984 e o outro, São Bernardo / 1971, dirigido por Leon Hirszman. Este último filme é a obra-prima da filmografia de Hirszman que inclui ainda outros longas-metragens de valor como A Falecida / 1965, com argumento baseado na peça homônima de Nelson Rodrigues e Eles Não Usam Black-tie / 1981, com argumento baseado na peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri.

 

Othon Bastos e Isabel RIbeiro

A história de S. Bernardo se passa na década de trinta.  O narrador, Paulo Honório (Othon Bastos), escreve suas memórias, revisitando friamente dramas de sua vida e conflitos interiores que até então permaneciam inexplicáveis. Sertanejo de origem humilde, determinado a ascender socialmente, faz fortuna como caixeiro-viajante e agiota. Numa manobra financeira, assume a decadente propriedade São Bernardo, fazenda tradicional do município de Viçosa, Alagoas, transformando o inepto e endividado ex-dono das terras em seu empregado. Recupera a fazenda, expande a sua cultura, introduz máquinas para tratamento do algodão, entra na sociedade local. Desejando um herdeiro para um dia assumir o fruto da acumulação do capital, firma um contrato de casamento com a professora da cidade, Madalena (Isabel Ribeiro). O casamento se consuma, mas gradativamente as diferenças entre eles se acentuam. Paulo Honório é brutal no trato com os empregados, cujo trabalho explora impiedosamente; Madalena tem consciência social e se solidariza com os oprimidos. Seu humanismo e sensibilidade se chocam com a rudeza do marido. O fazendeiro torna-se paranóico e passa a imaginar que a mulher o trai. Persegue-a em busca de provas da traição. Madalena não suporta a pressão e se suicida. Paulo Honório penosamente tenta assumir a consciência de seus atos. “Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. E a desconfiança que me aponta inimigo em toda a parte! A desconfiança é também consequência da profissão. Foi este modo de vida que me inutilizou.”

Othon Bastos e Nildo Parente

São Bernardo é ao mesmo tempo uma análise psicológica (do drama existencial do protagonista) e uma análise social (crítica ao capitalismo latifundiário) realizado com um rigor e contenção idênticos ao dos romances de Graciliano. Para obter esta identificação estética entre o livro e o filme, Hirszman usou cenas longas com planos fixos (v. g. o monólogo de Madalena na igreja; Paulo Honório sentado na mesa após a morte da esposa resumindo sua vida marcada pela volúpia da posse e pelo arbítrio); voz over constante do narrador; quase total ausência de close-ups e planos-contraplanos; profundidade de campo; diálogos rápidos e precisos ditos magnificamente pelos atores, entre os quais se destacam naturalmente Othon Bastos e Isabel Ribeiro, muito bem acompanhados por um elenco de coadjuvantes de comprovada experiência no cinema  no teatro ou na televisão como Nildo Parente, Vanda Lacerda, Mário Lago, Joffre Soares, Josef Guerreiro, Ângelo Labanca, José Policena, Rodolfo Arena.

Othon Bastos

A fotografia de Lauro Escorel (para a qual contribuiu também o admirável senso de composição do diretor) é primorosa (notando-se a reprodução na tela do tom ocre do sertão em  interiores) assim como a cenografia e figurinos de Luis Carlos Ripper, a montagem de Eduardo Escorel e a acertadíssima música em tom de aboio e lamento de Caetano Veloso.

Esta fiel adaptação da obra de Graciliano Ramos foi feita sob estritas limitações financeiras e técnicas contornadas habilmente por Hirszman e teve problemas com a censura,  que só liberou o filme depois que a Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB), lhe outorgou o prêmio Margarida de Prata, conferido anualmente ao filme que melhor represente temáticas centradas sobre os valores humanos, éticos e espirituais.

OS MISERÁVEIS DE VICTOR HUGO NO CINEMA

Victor Hugo ocupa um lugar excepcional na história da literatura francêsa e universal; ele domina o século XIX pela duração de sua vida e de sua carreira, pela fecundidade de seu gênio e diversidade de sua obra: poesia, teatro, romance etc. Persuadido de que o escritor tem uma missão, participou ativamente dos grandes debates políticos e ajudou a disseminar idéias sociais e grandes sentimentos humanos. Por um momento, sua glória pareceu questionada: apontaram seus excessos, sua retórica, seu orgulho, sem perceberem que eles eram simplesmente o reverso de um prodigioso poder criativo. Mas hoje, ninguém mais contesta o gênio de Hugo.

Victor Hugo

Publicado em 1862, Os Miseráveis é um romance denso e diversificado, dominado por uma tese humanista e uma inspiração épica. O gesto magnífico do bispo Myriel inocentando Jean Valjean, transforma sua natureza de malvado em justo. A partir de então ele se torna um santo, socorre Fantine, protege Cosette, salva Mario, até poupa Javert e defende os miseráveis, vítimas de uma ordem social injusta. Suas bondades e sacrifícios farão do ex- forçado, no final de sua vida, uma figura semelhante ao Cristo.

O livro é uma das obras mais lidas no mundo e mereceu inúmeras versões cinematográficas. Os filmes que pude ver estão marcados em negrito. No final escolho o meu predileto.

FILMOGRAFIA

Excluídas adaptações remotas do original literário ou produzidas diretamente para a televisão.

1-Le Chemineau / 1905 (Dir: Albert Capellani). Curtíssima metragem (5 minutos) mostrando somente o episódio do roubo dos talheres do bispo. Produzido pela Pathé Frères.

2-The Price of a Soul / The Ordeal / A New Life / 1909 (Dir: Edwin S. Porter). Produzido pela Edison Manufacturing Company.

3-Les Miserables / 1909. Dir: J. Stuart Blackton com Maurice Costello (Jean Valjean). Curta-metragem distribuído pela Vitagraph.

4-Les Misérables / 1912. Dir: Albert Capellani. com Henri Kraus (Jean Valjean). Primeiro longa-metragem sobre o assunto exibido em 4 partes como um seriado. Produzido pela Pathé Frères.

5-The Bishop´s Candlesticks / 1913 (Dir: Herbert Brenon). Curta-metragem mostrando apenas o episódio do roubo dos talheres do bispo. Produzido pela IMP (Independent Moving Pictures).

6-Os Miseráveis / Les Miserables / 1918 (Dir: Frank Lloyd) com William Farnum (Jean Valjean). Primeira versão americana do romance, produzida pela Fox Film Corporation e filmada em Fort Lee, New Jersey.

7- Les Miserables / 1922 (Dir: H. B. Parkinson) com Lynn Harding (Jean Valjean). Produzido pela Master Films – Reino Unido.

8- Aa mujô re mizerabûru dainihen / 1923 (Dir: Kiyohiko Ushihara) com Masao Inoue Produzido pela Shochiku – Japão.

9- Os Miseráveis / Les MIsérables / 1925 (Dir: Henry Fescourt) com Gabriel Gabrio (Jean Valjean). Seriado em 4 capítulos produzido pela Societé des Cinéromans.

10-The Bishop´s Candlesticks / 1929 (Dir: George Abbott), com Walter Huston (Jean Valjean). Curta-metragem sonoro mostrando somente o episódio do roubo dos talheres do bispo. Produzido pela Paramount e filmado no Kaufman Astoria Studios em Nova York.

11-Aa Mujô zenpen / Aa Mujô kohen / 1929 (Dir: Seika Shiba) com Shinpachirô Asaka. Produzido pela Nikkatsu – Japão.

12-Janbarujan: Kohen / 1931(DIr: Tomu Uchida). Mostrando apenas a segunda parte do romance com Nobuo Asaoka. A ação foi transferida para a era Meiji. Produzido pela Nikkatsu-Japão.

13-Os Miseráveis / Les Misérables / 1934 (Dir: Raymond Bernard) com Harry Baur (Jean Valjean). Produzido pela Pathé-Nathan.

14-Os Miseráveis / Les Miserables / 1935 (Dir: Richard Boleslawski) com Fredric March (Jean Valjean). Produzido pela Twentieth Century Pictures.

15-Gavrosh / 1937 (Dir: Tatyana Loukatchevitch). Enfatiza o personagem Gavroche, interpretado por Nikolay Smorchkov. Produzido pela Mosfilm – União Soviética.

16-Kyojin-den / 1938 (Dir: Mansako Itami). Inspirado no personagem Jean Valjean com Denjirô Ôkôchi. A ação foi transportada para a rebelião de Satsuma de 1877 da era Meiji. Produzido pela Toho -Japão.

17-Los Miserabiles / 1943 (Dir: Fernando A. Rivero) com Domingo Soler (Juan Valjean). Produzido pela Azteca Films-México.

18-El Boassa /1944 (Dir: Kamal Selim). Adaptação do romance de Victor Hugo com ação tansportada para século XX no Egito.

19-I Miserabili / 1948 (Dir: Riccardo Freda) com Gino Cervi (Jean Valjean). Em duas partes: Caccia al’ uomo e Tempesta su Parigi. Produzido pela Lux Film-Itália.

20-Re Mizeraburu / 1950. Compõe-se de duas partes: Kami to Akuma (Dir: Daisuke Itô) e Kami to jiyu no hata (Dir: Masahiro Makino) com Sessue Hayakawa. Ação transportada para o Japão da era Meiji. Produzido pela Tokyo Eiga – Japão.

21-Ezhai Padum Pad / 1950 (Dir: K. Ramnoth). Adaptação do romance de Victor Hugo com Jean Valjean agora chamado Kandhan, interpretado por Chittor V. Nagaiah. Produzido na Índia.

22- O Implacável / Les Miserables / 1952 (Dir: Lewis Milestone) com Michael Rennie (Jean Valjean). Produzido pela Twentieth Century Fox.

23- Kundan / 1955 (Dir: Sohrab Modi). Adaptação do romance de Victor Hugo com ação transportada para o Século XX na Índia. Produzido pela Minerva Movietone.

24-Os Miseráveis / Les Misérables / 1958 (Dir: Jean-Paul le Chanois) com Jean Gabin (Jean Valjean). Co-produção França – Alemanha Oriental – Itália.

25- Jean Valjean / 1961(Dir: Seung-ha Jo). Produzido pela Kwang-seong Films – Coréia do Sul.

26-Sefiller / 1967 (Dir: Zafer Davutoglu). Adaptação do romance de Victor Hugo com ação transportada para o século XX na Turquia. Produzido pela Kemal Film – Turquia.

27-Al Boassa / 1978 (Dir: Atef Salem). Adaptação do romance de Victor Hugo com ação transportada para o século XX no Egito.

28- Os Miseráveis / Les Misérables (Dir: Robert Hossein) com Lino Ventura (Jean Valjean). Co-produção França- Alemanha Oriental.

30-Os Miseráveis / Les Miserabiles / 1998 (Dir: Bille August) com Liam Neeson (Jean Valjean). Co-produção Reino Unido- Alemanha- Estados Unidos.

31-Os Miseráveis / Les Miserables / 2012 (Dir: Tom Hooper) com Hugh Jackman (Jean Valjean). Musical. Co-produção Reino Unido – Estados Unidos.

MINHA VERSÃO PREDILETA É A DE RAYMOND BERNARD DE 1934

Soberba adaptação do romance de Victor Hugo, dividida em três partes, cada qual correspondendo praticamente a um filme. Apesar da compressão da intriga, o grande afresco romântico e social de Hugo foi levado à tela com muita fidelidade. O elenco de primeira grandeza deixou-se literalmente transportar pelo sopro épico. A interpretação de Harry Baur, que está sublime em todas as encarnações do personagem (Jean Valjean, Monsieur Madeleine, Fauchelevent, père Champmathieu), jamais foi superada por outro ator. Também admiráveis são os trabalhos de Charles Vanel como o inflexível Javert; Florelle, assumindo os traços de Fantine; Orane Demazis (depois de cogitada Arletty) como Eponine, Josseline Gael como Cosette adulta (depois de cogitada Danielle Darrieux), Jean Servais como Marius; Henri Krauss (o Jean Valjean do filme de Albert Capellani de 1912) como o bispo Myriel; e três luminares do teatro francês: Max Dearly (M. Gillenormand, avô de Marius), Charles Dullin  e Marguerite Moreno, estes dois últimos como Thénardier e senhora, representando com seus sorrisos ávidos e suas fisionomias de raposa, a escória da sociedade.

Jean Valjean

Jean Valjean e o Bispo

Fantine

O casal Thénardier

Jean Valjean e Cosette menina

As barricadas

Outra cena das barricadas

Gavroche

Jean Valjean e Javert

Marius, Jean Valjean e Cosette adulta

Tecnicamente esta versão é impecável do início ao fim com a utilização de travellings rápidos, planos inclinados, profundidade de campo, câmera na mão;  elipses visuais (v. g. o suicídio de Javert) e a alternância de planos próximos com planos aéreos de conjunto (v. g. para mostrar a tensão crescente na preparação do confronto final nas barricadas); altos valores de produção com a reconstituição das ruas de Paris no estúdio de la Victorine em Nice, centenas de figurantes, figurinos de época impecáveis); música intensa de Arthur Honnegger nos momentos fortes, como a Marselhesa cantada pelos estudantes recusando-se a se render. Emocionalmente então, nem se fala. Quem não se comove diante das cenas da pequenina Cosette sendo maltratada pelo pérfido casal; do sofrimento da desdentada Fantine; da morte do menino Gavroche após catar munição dos mortos na insurreição; da bondade infinita do Jean Valjean redimido pelo perdão de um pároco; daquela imagem final do ex-condenado diante dos castiçais de prata de Monseigneur Myriel!

Dizem que quando as primeiras provas do livro saíram das prensas, os revisores e os impressores choravam. Eu mal contive as lágrimas ao rever há pouco, em magnífica versão restaurada em dvd, esta obra-prima do cinema mundial de incontestável excelência e beleza.

PETER LORRE

Associado para sempre à História do Cinema Germânico com sua performance como Hans Beckert, assassino em série de crianças em M – O Vampiro de Dusseldorf / M -, Eine Stadt such einen Mörder / 1931 de Friz Lang, Peter Lorre também apareceu em numerosos clássicos britânicos e hollywoodianos dos anos trinta aos sessenta, e retornou à Alemanha após a Segunda Guerra para realizar seu único filme como diretor.

Peter Lorre

Ladislav “László” Lowenstein (1904-1964) nasceu em Rózsahegy (Austria-Hungria) hoje Ruzômberok, Eslováquia. Interrompendo seu emprego em um estabelecimento bancário para uma carreira no palco, Lorre trabalhou em teatros de Breslau (hoje Wroclaw, Polonia), Zurich e Viena desde 1924. Foi muito aplaudido por sua atuação na produção de Berthold Brecht da peça “Pioniere in Ingolstadt” (Pioneiros de Ingolstadt) de Marieluise Fleisser no Berlin Theater am Schiffbauerdamm e obteve sucesso ainda maior na produção de “Mann ist Mann” (Um Homem é um Homem) de Brecht em 1931.

Seu primeiro grande papel na tela como assassino de crianças em M – O Vampiro de Dusseldorf causou sensação. Lorre usou sua figura pequena e atarracada, olhos esbugalhados e fisionomia facial de bebê, para comunicar com uma autenticidade assustadora, brutalidade, histeria, e puro terror.

Lorre em M-O Vampiro de Dusseldorf

Recebendo ofertas de Hollywood, Lorre temia a estereotipagem e, a fim de evitá-la, passou a assumir papéis de coadjuvante em comédias como Loucuras de Monte Carlo / Bomben Auf Monte Carlo e Die Koffer Des Herrn O.F., ambos de 1931. Quando os nazistas tomaram o poder, ele foi para a Austria, França e Inglaterra, onde integrou o elenco de O Homem Que Sabia Demais / The Man Who Knew Too Much / 1934 de Alfred Hitchcock, e depois rumou para Hollywood.

Lorre fez sua estréia na América em Doutor Gogol – O Médico Louco / Mad Love / 1935 de Karl Freund e interpretou o papel de Raskolnikov em Crime e Castigo / Crime and Punishment, adaptação do romance de Dostoiévski, dirigida por Joseph von Sternberg. No mesmo ano, retornou brevemente a Londres para aparecer em Agente Secreto / The Secret Agent / 1936 de Hitchcock. Pouco depois tornou -se cidadão americano.

Depois de participar do thriller de espionagem Supremo Sacrifício / Crack-Up / 1935 e do drama criminal Nancy Steele Desapareceu / Nancy Steele is Missing / 1937, Lorre estrelou uma série B da Twentieth Century-Fox como Mr. Moto, detetive japonês, míope e mirrado, mas muito eficiente ao usar uma arma e no jiu-jitsu, personagem criado por John Marquand. Foram oito filmes: 1937 – O Misterioso Mr. Moto / Think Fast, Mr. Moto; Obrigado, Mr. Moto / Thank You, Mr. Moto. 1938 – O Palpite de Mr. Moto / Mr. Moto´s Gamble; Mr. Moto se Aventura / Mr. Moto Takes a Chance; A Fuga de Mr. Moto / The Mysterious Mr. Moto. 1939 – Mr. Moto Chega a Tempo / Mr. Moto´s Last Warning; Mr. Moto na Ilha do Terror / Mr. Moto in Danger Island; Mr. Moto em Férias / Mr. Moto Takes a Vacation.

Evelyn Keyes e Lorre em Máscara de Fogo

Humphrey Bogart, Lorre, Mary Astor e Sidney Greenstreet em Relíquia Macabra

Bogart e Lorre em Casablanca

Lorre em Os Dedos da Morte

Num intervalo da série, Lorre fez Mendigo Milionário / I´ll Give a Million / 1938 e depois:  Almas Rebeldes / Strange Cargo / 1940; Sedutora Aventureira / I Was an Adventuress /1940 (formando com Erich von Stroheim um par de vigaristas que usa uma falsa condessa (Vera Zorina) para seus golpes); A Ilha das Maldições / Isle of the Doomed Men / 1940; O Homem dos Olhos Esbugalhados / Stranger on the Third Floor/ 1940 (considerado importante porque ajudou a desenvolver os temas e o estilo noir); O Palácio dos Espíritas / You´ll Find Out / 1940 (contracenando com Boris Karloff e Bela Lugosi); Máscara de Fogo / Face Behind the Mask / 1941 (no qual o ator teve um de seus melhores papéis como o imigrante húngaro cujo rosto ficou todo queimado em virtude de um incêndio e esconde sua deformidade com uma máscara de borracha, torna-se o líder de uma quadrilha de assaltantes e se apaixona por uma cega); Intrigas Desvendadas / Mr. District Attorney / 1941; Aventura no Oriente / They Met in Bombaim / 1941; Relíquia Macabra / The Maltese Falcon / 1941 (como o efeminado Joel Cairo nesta produção que marcou definitivamente a emergência do filme noir); Balas Contra a Gestapo / All Through the Night  / 1942; Nascida para o Mal / In This Our Life / 1942;  Espião Invisível / Invisible Agent / 1942;  Um Cientista Distraído / The Boogie Man Will Get You   / 1942; Casablanca / Casablanca / 1942 (como Signor Ugarte, italiano comerciante do mercado negro que entrega os dois vistos de saída roubados para Rick, o dono da boate interpretado por Humphrey Bogart neste filme perfeito de Michael Curtiz); Expresso Bagdad-Istambul / Background to Danger / 1943; De Amor Também se Morre / The Constant Nymph / 1943; A Cruz de Lorena / The Cross of Lorraine / 1943; Passagem para Marselha / Passage to Marseille / 1944; A Máscara de Dimitrios / The Mask of Dimitrios / 1944 ( (como o escritor de livros de mistério que decide saber mais sobre a morte de um criminoso notório neste empolgante filme de Jean Negulesco); Conspiradores/ The Conspirators / 1944; Um Sonho em Hollywood / Hollywood Canteen / 1944; Hotel Berlin/ Hotel Berlin / 1945; Três Desconhecidos / Three  Strangers / 1946 ( como um dos três estranhos – os outros são Geraldine Fitzgerald e Sidney Greenstreet – que fazem um pacto diante da estátua de uma deusa chinesa do destino,  jurando repartir igualmente o prêmio da loteria porventura recebido, neste outro filme primoroso de Negulesco); Anjo Diabólico / Black Angel / 1946; Justiça Tardia / The Verdict / 1946 (como o artista com gostos macabros que ajuda seu amigo, ex-superintendente da Scotland Yard (Sydney Grenstreet), a se vingar de uma injustiça que sofreu, neste drama criminal absorvente dirigido por Don Siegel); A Senda do Temor / The Chase /1946; Os Dedos da Morte / The Beast With Five Fingers / 1946; Minha Morena Linda / My Favorite Brunnette/ 1947; Casbah, o Reduto da Perdição / Casbah / 1948;  Zona Proibida / Rope of Sand / 1949; Areia Movediça /  Quicksand / 1950.

Evelyn Keyes e Lorre em Máscara de Fogo

Retornando à Europa, Lorre trabalhou em uma produção britânica, Dupla Confissão / Double Confession / 1950 e, na Alemanha, escreveu o roteiro, dirigiu e interpretou o papel principal em Der Verlorene. Esta tentativa sombria para abordar o recente passado nazista, proporcionou-lhe um prêmio da Cinematografia Germânica, mas fracassou nos cinemas.

Lorre (à direita) dançando e cantando em Meias de Seda

Frequentemente perturbado por doenças relacionadas com o uso de morfina, fez aparições regulares na televisão americana e aceitou alguns papéis em filmes como O Diabo Riu por Último / Beat the Devil/ 1953; 20.000 Mil léguas Submarinas/ 20.000 Thousand Leagues Under the Sea / 1954; Meet Me in Las Vegas / 1956; Congotanga –-Refúgio de Proscritos / 1956; A Volta ao Mundo em 80 Dias / Across the World in 80 Days / 1956 (como um mordomo japonês a bordo do navio a vapor S. S. Carnatic); O Palhaço Que não Ri / The Buster Keaton Story / 1957; Meias de Seda / Silk Stockings / 1957 (dançando e cantando (dublado) nesta refilmagem musical de Ninotchka, estrelada por Fred Astaire e Cyd Charisse; The Story of Mankind / 1957 (como Nero );O Bamba do Regimento / The Sad Sack / 1957; Hell Ship Mutiny / 1957; O Grande Circo / The Big Circus / 1959; Scent of Mystery / 1960; Viagem ao Fundo do Mar / Voyage to the Bottom of the Sea / 1961; Cinco Semanas em um Balão / Five Weeks in a Balloon /1962; Quanto Mais Músculos Melhor/ Muscle Beach Party / 1964;  O Otário / The Patsy / 1964.

Na fase final de sua carreira nos anos sessenta, Lorre conquistou uma nova geração de fãs com suas intervenções marcantes em Muralhas de Pavor / Tales of Terror (episódio O Gato Preto / The Black Cat) / 1962 e O Corvo / The Raven / 1962 do esplêndido ciclo Edgar Allan Poe de Roger Corman e em Farsa Trágica / The Comedy of Terror / 1963 de Jacques Tourneur.

Vincent Price e Peter Lorre em Muralhas de Pavor

O Gato Preto combina o conto de Poe do mesmo nome com seu outro O Barril de Amontillado / The Cask of the Amontillado. É um tour de force cômico para Vincent Price como o delicado Fortunato e Peter Lorre como o alcoólatra Montressor. Ambos brindam o público com uma interpretação hilariante que atinge o auge na competição entre eles provando vinho, uma jóia do humor. Sem falar na visão surreal, na qual de uma sequência de sonho na qual Fortunato e sua esposa jogam bola com a cabeça de Motressor. Em o Corvo, Corman parodia o gênero de horror e especificamente a própria série Poe, reunindo e opondo Vincent Price, Lorre e Boris Karloff em um conflito burlesco. Um exemplo é a cena em que o Doutor Erasmus Craven brinca com seus poderes mágicos, desenhando um corvo no ar com seu dedo. Quando a ave desaparece inesperadamente, Craven chora como uma criança que quebrou seu brinquedo favorito. Farsa Trágica, reúne novamente Price, Lorre e Karloff em uma comédia de horror, desta vez acompanhados por Basil Rathbone e Joe E. Brown, comediante muito popular nos anos 30 e 40, conhecido pelo enorme sorriso de sua “boca larga”.

A ARTE DE ALFRED HITCHCOCK

Vou apenas tentar dar idéia de sua obra e de seu estilo e descobrir qual é o verdadeiro Hitchcock. Porque, aparentemente, existem dois Hitchcocks: o Hitchcock popular, “mestre do suspense”, que foi a imagem que ele criou e alimentou e o Hitchcock dos intelectuais, “descoberto” pelos críticos franceses da geração Nouvelle Vague, que começaram a perceber aspectos éticos ou metafísicos e sua obra, classificando-o com um verdadeiro “autor”, como gostavam de dizer.

Alfred Hitchcock

Hitchcock começou no cinema como redator e ilustrador de letreiros ou subtítulos em cartões, que apareciam entremeados entre as cenas dos filmes silenciosos. Ele desenhava muito bem e, quando soube que uma companhia americana, a Famous-Players Lasky, ia produzir filmes na Inglaterra em Islington, mostrou seus desenhos e foi contratado e, sempre que necessário, desenhava roupas e cenários. Chegou até a ser designado para terminar (sem ser creditado) o filme Always Tell Your Wife / 1923, quando o diretor ficou doente. Logo depois, Hitchcock se associou com a atriz Clare Greet e, aos vinte e três anos, produziu e dirigiu seu primeiro filme, Number Thirteen; porém, por falta de dinheiro, este não foi jamais terminado.

Justamente quando estava aprendendo seu ofício, a Famous Players decidiu ir encerrando aos poucos as portas do estúdio londrino e passou a alugá-lo para produtores independentes, entre eles, Michael Balcon, o homem que daria a Hitchcock a oportunidade de dirigir seu primeiro filme. Balcon fundou a Gainsborough Pictures, onde Hitchcock passou a funcionar como assistente de direção de Graham Cutts e, quando a produção precisava de um auxílio adicional, ali estava ele, ajudando na direção de arte e outras funções. Foi nessa ocasião que Hitchcock conheceu sua futura esposa, Alma Reville, que iria ser (algumas vezes creditada, outras não) uma eficiente colaboradora nos seus filmes como montadora, roteirista e continuísta.

Em 1925, Balcon ofereceu a Hitchcock a oportunidade de partir para a Alemanha, ainda na qualidade de assistente de direção de Graham Cutts, para a filmagem de The Blackguard, coprodução com Erich Pommer rodada no estúdio da UFA em Neubabelsberg. Este sistema de coprodução anglo-germânica parecia muito vantajoso e Balcon decidiu então se associar com a companhia alemã Emelka e realizar mais dois filmes, desta vez em Munich, entregando a direção a para Hitchcock: The Pleasure Garden / 1925 e The Mountain Eagle / 1926.

A estadia em Berlim foi muito importante para a sua formação. Era a época de ouro do cinema germânico, a época do Expressionismo, que influenciou grandes diretores em todo o mundo, inclusive o próprio Hitchcock, que assistira in loco ao trabalho de diretores com Murnau e Fritz Lang. Outra influência estética marcante na obra de Hitchcock foi a do cinema soviético com as teorias de montagem de Eisenstein e Pudovkin, também em evidência na mesma época.

Ao voltar para a Inglaterra, ele realizou aquele que, segundo ele, foi realmente seu primeiro filme, a primeira vez em que, de fato, exercitou seu estilo: The Lodger / 1927. A maior parte do que se tornaria o “Hitchcock touch” está contida nesta variação sobre o tema de Jack, o Estripador. Aí já apontavam os processos narrativos que viriam, como o tempo, a se consolidar como o seu método e são bem visíveis as influências germânicas e soviéticas. Foi em The Lodger que Hitchcock fez pela primeira vez a preparação cuidadosa do roteiro no papel, com todas as indicações e inclusive uma story board desenhando cada cena, inaugurando um método de trabalho que seguiria a vida toda e também a primeira de suas aparições diante das câmeras.

Hitchcock dirigindo Os 39 Degraus

Hitchcock dirigindo Joan Fontaine e Laurence Olivier em Rebecca

HItchcock revisando o roteiro com Ingrid Bergman na filmagem de Interlúdio

HItchcock orientando Farley Granger, John Dall e James Stewart em Festim Diabólico

HItchcock conversa com Firley Granger num intervalo da filmagem de Pacto Sinistro

Hitchcock com James Stewart e Grace Kelly num intervalo da filmagem de Janela Indiscreta

Hitchcock orienta Doris Day na filmagem de O Homem Que Sabia Demais

A fase inglêsa do diretor foi um período de aprendizagem e de criação de um estilo, com destaque para: Os 39 Nove Degraus / The Thirty-Nine Steps / 1935, A Mulher Oculta / The Lady Vanishes /1938 e Sabotagem ou O Marido era o Culpado / Sabotage / 1936. Na fase americana, nos primeiros dez anos, deu-se o aprimoramento do estilo, sobressaindo Rebecca, a Mulher Inesquecível / Rebecca / 1940, Correspondente Estrangeiro ou Este Homem é um Espião / Foreign Correspondent / 1940, O Sabotador / Saboteur / 1942, A Sombra de uma Dúvida / Shadow of a Doubt / 1943, Interlúdio / Notorious / 1946, Festim Diabólico / Rope / 1948 e, nos anos subsequentes, o auge da criatividade do diretor, avultando Pacto Sinistro / Stangers on a Train/ 1951, Janela Indiscreta / Rear Window / 1954, O Homem Que Sabia Demais / The Man Who Knew Too Much /  1956, Um Corpo Que Cai / Vertigo / 1958, Intriga Internacional; North by Northwest / 1959, Psicose / Psycho / 1960, Os Pássaros / The Birds / 1963. Na fase derradeira de sua trajetória artística, menos fértil artisticamente, distinguem-se Marnie, Confissões de uma Ladra / Marnie / 1964 e Frenesi / Frenzy / 1972.

É bom lembrar também algo da sua infância e juventude que pode ter influenciado na sua obra. Hitchcock teve uma educação muito rigorosa e estudou com os jesuítas, de modo que adquiriu um senso muito grande de organização e disciplina. Isto se reflete na sua maneira de elaborar o roteiro. Ele fazia a chamada decupagem de ferro. Desenhava cena por cena do filme, dando instruções minuciosas sobre cada plano, cada movimento de câmera, cada corte, numa espécie de montagem a priori. Depois de que tudo era posto no papel, dava seu trabalho por encerrado. A filmagem era mera formalidade, mera execução.

Por outro lado, Hitchcock estudou engenharia, tinha muito muito jeito para a mecânica e espírito prático. Talvez por isso seu grande estímulo tivesse sido sempre o desafio técnico. Nós podemos dizer que o conteúdo de seus filmes no fundo era a própria técnica, que ele dominava de maneira absoluta e colocava a serviço do entretenimento.

Ele mesmo costumava dizer: “Muitos diretores fazem filmes que são pedaços da vida; os meus são fatias de bolo”.

Por causa disso, antigamente, os críticos não levavam Hitchcock a sério, achando que ele era apenas um mestre da retórica, ou seja, que tinha um discurso primoroso, mas vazio de contéudo. Enfim, era um virtuose da mise-en-scène cinematográfica mas sem profundidade, um grande técnico, um craftsman, não um “autor”, como eles gostavam de dizer. Entretanto, lá pelos anos cinquenta, a crítica francesa criou a chamada Politique des Auteurs (Política dos Autores), que depois foi seguida por alguns críticos ingleses e americanos.

O que era essa política dos autores? Os jovens críticos da revista Cahiers du Cinéma, entre eles François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol etc. estavam insatisfeitos com a situação do cinema francês. Segundo eles, os melhores filmes franceses, o chamado Cinema de Qualité, eram dominados pelos roteiristas em detrimento dos diretores, vistos como uma espécie de assistentes executivos. O diretor era um mero encenador dessas produções, geralmente adaptações de romances célebres, filmadas academicamente. Então o que eles propunham era que os filmes fossem dominados não pelos roteiristas, mas pelos diretores. Eles diziam que a contribuição do roteirista – o tema, o assunto – era artisticamente neutra. O que faz um bom filme não é o assunto, por si só, mas o tratamento que lhe dá um diretor com personalidade. O que vale é a mise-en-scène, a direção propriamente dita, a estrutura visual e rítmica, a visão pessoal do diretor, o seu estilo. E então eles se voltaram para o cinema americano, encontrando essa virtude em diretores como Hitchcock que eram encarados como simples profissionais competentes, sem personalidade. E, com o correr dos tempos, alguns críticos até começaram a encontrar profundos significados morais ou metafísicos na sua obra, considerando-o um “autor”.

Aí surgem três hipóteses: ou os críticos estavam dando asas à sua imaginação, exercendo aquela teoria tão querida de Oscar Wilde do crítico como artista, ou seja, o crítico completando a obra do artista, vendo coisas que ele próprio não viu ou o Hitchcock foi profundo, sem o saber, tal como o Mr. Jourdain da peça de Molière ou, numa terceira conjetura, o Hitchcock sempre mentiu nas entrevistas – ele tinha pretensões intelectuais, mas escondia o jogo. Porque o que ele sempre dizia nas entrevistas era isto: “Olho todas as manhãs no espelho e nunca vi traços de metafísica no meu rosto. Faço filmes somente para assustar o público”.

Na minha opinião, Hitchcock é um formalista típico, que faz a arte pela arte, a arte como um fim em si mesma. É verdade que é visível na sua obra uma repetição constante de temas e formas e às vezes alguns desses temas são tratados com mais profundidade com, por exemplo, em Janela Indiscreta. Mas acho que, se aparece algo de mais profundo nos seus filmes, somos nós que vemos isso. Ele sempre esteve preocupado foi com a forma, como emocionar o espectador através de meios puramente cinematográficos. E é isso que me fascina no Hitchcock, a sua maneira de fazer cinema, um cinema puro, essencialmente visual e não, como ele dizia, “fotografias de pessoas falando”, um cinema de invenção pictórica.

Em suma, a arte pode ser vista através de várias perspectivas. Ela pode ser gratuita – a arte pela arte-, pode ter função social, pode ser denúncia, pode conter valores éticos, filosóficos, religiosos, psicológicos etc.  Então tudo depende de como você vê a arte. O Hitchcock é tão artista quanto o Bergman ou o Fellini. Só que ele faz arte pela arte e os outros dois fazem uma arte mais complexa, uma arte que, além de fazer o homem conhecer a beleza, lhe dá uma maior compreensão sobre si mesmo e sobre o mundo que o cerca, especula sobre problemas transcendentais e inclusive exige mais atenção e criatividade por parte do espectador.

APÊNDICE

Temas recorrentes na obra de Hitchcock:

– O tema do falso culpado, isto é, o inocente acusado de um crime que não cometeu, que aparece em The Lodger, Os 39 Degraus, O Sabotador, Pacto Sinistro, Ladrão de Casaca, O Homem Errado, Intriga Internacional, Frenesi.

– O tema da transferência de identidade, da captação mental de um ser fraco por um ser forte, que surge em A Sombra de uma Dúvida, Pacto Sinistro, Psicose.

–  O tema da transferência de culpa, ou seja, o tema segundo o qual um personagem,        agindo com intencional ou acidental cumplicidade com outro, assume seus crimes ou seus desejos criminosos como seus próprios, que se manifesta em Pacto Sinistro, A Tortura do Silêncio (o assassino confessa seu crime ao padre e o torna cúmplice de seu crime), O Homem Errado (a falsa acusação produz uma carga intolerável de culpa, não no homem acusado, mas na sua esposa).

– O tema da suspeita e da angústia, visível em Suspeita, Rebecca, O Homem Errado, Marnie.

– O tema terapêutico. O personagem fica curado de alguma fraqueza ou obsessão depois de passar por várias peripécias como em Um Corpo Que Cai, Janela Indiscreta, Quando Fala o Coração, Marnie.

– O tema da curiosidade obsessiva, expresso em Janela Indiscreta, Um Corpo que Cai, Psicose.

– O tema da precariedade e da vulnerabilidade da ordem humana, do surgimento de uma situação inesperada na vida cotidiana das pessoas, evidente em Os 39 Degraus, O Homem que sabia Demais, O Homem Errado, Janela Indiscreta, Os Pássaros.

Além dos temas, podemos perceber uma retomada de certas características de personagens. Por exemplo, a fascinação do advogado pela sua cliente em Agonia de Amor / The Paradine Case antecipa a do ex-policial pela impostora em Um Corpo Que Cai; o relacionamento de Bruno Anthony com sua mãe louca em Pacto Sinistro antecipa o Norman Bates em Psicose etc.

Hitchcock e Cary Grant na filmagem de Intriga Internacional

Hitchcock dirigindo Kim Novak e James Stewart em Um Corpo Que Cai

Hitchcock dirigindo Janet Leigh em Os Pássaros

Hitchcock na filmagem de Os Pàssaros

Características de sua dramaturgia:

– Mistura de Suspense – Humor. Angústia e mistério coloridos com humor.

– Manipulação do espectador. Identificação com o personagem. Hitchcock faz com que o espectador se envolva emocionalmente com o personagem e sinta que está compartilhando diretamente de suas experiências.

– O prazer de meter medo. O gosto pelo macabro.

– Atenção aos detalhes e didatismo nas informações para a rápida aferição das regras do jogo pelo espectador.

– Sacrifício da lógica e da verossimilhança. Situações absurdas.

– Evitação deliberada do clichê. Ele procura sempre evitar o clichê. Se um homem vai ser atraído para uma tentativa de assassinato, a tradição pede uma rua escura, passos na noite etc. Mas em Intriga Internacional, por exemplo, Hitchcock escolheu o lugar mais amplo e mais claro do país à sua disposição e filmou uma sequência antológica.

– Personagens artificiais, esquemáticos, de pouca densidade humana. Peças de xadrez.

– Atores como objeto, mero elemento estético. Como James Stewart me falou, quando tive o privilégio de lhe fazer algumas perguntas durante uma entrevista coletiva, “Com Hitchcock havia apenas um jeito de fazer uma cena – o dele”.  E com aqueles que teimavam em utilizar um “método de interpretação”, ele avisava: “Faça o que quiser. Há sempre a sala de montagem”. Era a câmera, e depois a edição, que atuavam, e não os atores.

– Suas encenações comportam quase sempre proezas de estilo, chegando à acrobacia técnica, como ele fez em Festim Diabólico, filmado em continuidade real de tempo sem o uso dos cortes.

Hitchcock dirigindo Sean Connery em Marnie

HItchcock dirigindo Frenesi

Resumo de sua filmografia:

Foram 23 filmes ingleses e 30 americanos, excluídos os esquetes para o primeiro filme musical inglês, Ellstree Calling e para um curta-metragem, An Elastic Affair, ambos produzidos em 1930; os dois filmes de média-metragem feitos em 1943 para o Ministério de Informação Britânico, Bon Voyage e Aventure Malgache; um documentário sobre os campos de concentração intitulado Memory of the Camps, realizado em 1945, mas que só foi ao ar pela TV em 1985; e mais  20 telefimes que ele dirigiu para séries antológicas entre 1955-1962.

CONRAD VEIDT E ANTON WOHLBRÜCK

Nascido em Berlim, Alemanha, Hans Walter Conrad Veidt (1893-1943) foi um dos astros do cinema de Weimar mais icônico e internacionalmente reconhecido. Como exilado, continuou sua carreira exitosamente na Inglaterra e depois em Hollywood.

Conrad Veidt

Ele cursou o ensino secundário, mas não se formou. Em 1913, frequentou aulas na Escola de Arte Dramática de Max Reinhardt´s no Deutsches Theater em Berlim, aparecendo em pequenos papéis. Durante a Primeira Guerra Mundial foi convocado e atuou em teatros na frente de batalha assim como nos palcos de Reinhardt. Sua estréia no cinema deu-se em Der Weg Des Todes / 1917 e logo chegou ao estrelato nos filmes de educação sexual de Richard Oswald, filmes de horror e melodramas, interpretando párias sociais e heróis deprimidos.

Veidt ganhou elogios especiais como um violinista homossexual que, após ter sido chantageado, comete suicídio em Diferente dos Outros / Anders Als Die Andern / 1919. Subsequentemente dirigiu a si próprio e também produziu dois filmes: Wahnsinn / 1919 e Die Nacht Auf Goldenhall / 1920. Neste mesmo ano foi lançado seu filme mais famoso, o clássico expressionista de Robert Wiene, O Gabinete do Dr. Caligari / Das Cabinet Des Dr. Caligari, no qual interpretou o sonâmbulo homicida Cesare.

Conrad Veidt em O Gabinete do Dr. Caligari

Veidt em o Gabinete das Figuras de Cera

Outros personagens demoníacos ou possuídos surgiram em Figuras de Cera / Das Wachsfigurenkabinett / 1923 de Paul Leni com Veidt como Ivan o Terrível ou na refilmagem de Henrik Galeen de O Estudante de Praga / Der Student von Prag / 1926, no qual cabia a ele o papel-título. Na produção luxuosa produzida por Joe May, Dono e Senhor / Das Indische Grabmal / 1921, ele era um exótico e sexualmente magnético marajá e um pouco mais tarde apareceu como o pai amoroso de Elizabeth Bergner em Der Geiger von Florenz / 1926, dirigido por Paul Czinner.

Veidt e Lawson But em Amor de Boêmio

Veidt e Mary Philbin em O Homem Que Rí

Veidt e Mary Philbin em Cena Final

Entre 1926 e 1929, Veidt fez quatro filmes em Hollywood, incluindo Amor de Boêmio / The Beloved Rogue / 1927 com John Barrymore como François Villon e ele como Louis XI e, mais notavelmente, o romance gótico de horror de Paul Leni, O Homem Que Rí / The Man Who Laughs / 1928, personificando o grotescamente desfigurado Gwymplaine. Outra boa performance foi em Cena Final / The Last Performance / 1929 (Dir: Paul Fejos) como o mágico de meia-idade Erik Goff, apaixonado pela sua linda e jovem assistente (Mary Philbin), esta por sua ver enamorada de um jovem vagabundo e ladrão.

Após o advento do som, Veidt interpretou personagens heróicos como no filme de guerra de Curtis Bernhardt O Último Pelotão / Die Letzte Kompagnie /1930, mas também impressionou o público como o intrigante e cínico Príncipe Metternich na comédia musical O Congresso Dança / Der Kongress Tantz / 1931, aparecendo nas versões alemã e inglesa. Na versão inglesa do filme de aventura de ficção científica de Karl Hartl, F.P.1 / 1933, Veidt assumiu o papel principal interpretado por Hans Albers na versão alemã.

Veidt  e Vivien Leigh emJornada Sinistra

Veidt e Valerie Hobson  e Valerie Hobson em O Espião Submarino

Veidt  e Valerie Hobson em Nas Sombras da Noite

Veidt e June Duprezem O Ladrão de Bagdad

Depois de ter aparecido anteriormente como Zurta, um dos passageiros de um trem envolvidos em uma intriga de mistério – envolvendo o roubo de um quadro de Van Dyck de uma galeria de Paris – na produção britânica Expresso para Roma / Rome Express / 1932, Veidt mudou-se da Alemanha para Londres em 1933 com sua esposa judia. Na Grã- Bretanha ele se tornou um astro em filmes como O Judeu Suss / Jew Süss / 1934, adaptação de Lothar Mendes do romance histórico de Lion Feuchtwanger. Outros papéis notáveis no Reino Unido foram o estranho enigmático em O Desconhecido / The Passing of the Third Floor Back / 1935 de Berthold Viertel; barão Karl von Marwitz em Jornada Sinistra / Dark Journey / 1937; o duelista Gil de Berault em O Poder de Richelieu / Under the Red Robe / 1938; o comandante de submarino em O Espião Submarino / The Spy in Black / 1939 e o capitão de um navio dinamarquês em Nas Sombras da Noite / Contraband / 1940, dois excelentes filmes de espionagem da dupla Michael Powell – Emeric Pressburger; o sinistro Grão-Vizir Jaffar no inesquecível clássico de aventura e fantasia oriental, O Ladrão de Bagdad / The Thief of Bagdad / 1940,  protagonizado por Sabu e dirigido exemplarmente pelo trio Ludwig Berger, Michael Powell e Tim Whelan. Nos anos trinta, ele atuou ainda em dois filmes franceses, Tempête Sur L´Asie / 1938 e O Último Jogo / Le Joueur d´echecs / 1939.

Veidt e Claude Rains em Casablanca

Veidt e Norma Shearer em Fuga

Veidt, Joan Crawford e Melvyn Douglas em Um Rosto de Mulher

Veidt e Humphrey Bogart em Balas Contra a Gestapo

Veidt tornou-se cidadão britânico em 1938, mas se transferiu para Hollywood dois anos depois, onde fez campanha contra o fascismo particularmente e na tela. Ele frequentemente interpretava nazistas, sendo o mais famoso o Major Strasser em Casablanca / Casablanca / 1942. Nos anos quarenta ele participou ainda dos seguintes filmes: 1940 – Fuga / Escape. 1941 – Um Rosto de Mulher / A Woman´s Face; Herdeiro em Apuros / Whistling in the Dark; Os Homens de Minha vida / The Men in Her Life; Balas Contra a Gestapo / All Through the Night. 1942 – Sombra do Passado / Nazi Agent. 1943 – Insuspeitos / Above Suspicion.

Adolf Wilhelm Anton Wohlbrück também conhecido como Anton Walbrook (1896-1967) nasceu em Viena (Austria-Hungria) e se especializou em comédias leves e sofisticadas na Alemanha e na Austria nos anos trinta, antes de continuar sua carreira exitosa no cinema britânico.

Anton Wohlbrück

Ele nasceu em uma família artística com longa tradição – seu pai era um palhaço de circo e seu tataravô já havia trabalhado como ator. Após cursar uma escola monástica perto de Viena, concluiu o ensino médio em uma escola secundária de Berlim (onde obteve seu Abitur espécie de habitação para o ensino superior) e continuou a frequentar aulas de arte dramática na Academia de Teatro de Max Reinhardt. Como tenente na Primeira Guerra Mundial, foi feito prisioneiro pelos franceses e formou um grupo dramático para os soldados detidos. Posteriormente, retomou sua carreira de ator, atuando nos palcos de Munich, Dresden, Düsseldorf e Berlim.

Wohlbrück já havia aparecido na tela em Marionetten / 1915 e, nos anos vinte, foi visto em alguns episódios da série de detetive Stuart Webb; porém sua carreira cinematográfica só decolou para valer nos anos trinta, quando fez seu primeiro papel romântico no melodrama de circo de E. A. Dupont, Salto Mortale / 1931 e como um jovem príncipe arrojado na farsa militar de Fred Sauer, Die Stolz Der 3. Kompagnie / 1932.

Renate Muller e Adolph Wohlbrück em VIktor und Viktoria

Paul Wessely e Adolph Wohlbrück em Mascarada

Contratado pela UFA, interpretou o compositor Johann Strauss ao lado de Renate Muller e Willy Fritsch em A Guerra das Valsas / Walzergrieg / 1933 de Ludwig Berger e coadjuvou Renate Muller e Herman Thimig na excelente comédia musical de Reinhold Schünzel, Viktor und Viktoria / 1933 na qual era “o solteiro mais cobiçado de Londres” ao lado de Renate Muller e Herman Thimig. Curiosamente o filme só foi exibido no Sul do Brasil; no resto do país passou a versão francesa Georges et Georgette, com idêntico título em português, estrelada por Meg Lemonier e Julien Carette nos papéis vividos por Renate e Herman. Wohlbrück foi novamente um nobre britânico na comédia Um Casamento Inglês / Die Emglische Heirat / 1934, também dirigida por Schünzel e, na deliciosa opereta Mascarada / Maskerade / 1934, de Willi Forst, na qual personificou o pintor Ferdinand Heideneck, frequentador elegante da alta sociedade vienense dos anos 1900.

Adolph  em Miguel Strogoff

Moira Shearer e Anton em Os Sapatinhos Vermelhos

Anton em A Dama de Espadas

Em 1935 ele seguiu os passos de Conrad Veidt participando de uma refilmagem de Der Student Von Prag, dirigida por Artur Robinson, que recebeu desta vez o título em português de Carpis, o Satânico. Em 1936, Wohlbrück apareceu em um papel mais musculoso e heróico no espetáculo de aventura franco-germânica de Richard Eichberg, Miguel Strogoff / Der Kurier Des Zaren e interpretou novamente um playboy charmoso para Willi Forst em Allotria / Allotria. No mesmo ano, Wohlbrück emigrou para a Inglaterra via França e Hollywood onde apareceu em The Soldier and the Lady / 1937, refilmagem de Der Kurier Des Zaren. Na Inglaterra, ele mudou seu nome para Anton Walbrook e alcançou muito sucessso no seu primeiro papel britânico como o Príncipe Alberto em Rainha Vitória / Victoria The Great de Herbert Wilcox. Depois, interpretou tanto vilões (como em À Meia-Luz / Gaslight / 1940) e heróis (como no melodrama de tempo de guerra Luar Perigoso / Dangerous Moonlight / 1942, porém retratou mais tipicamente personagens emocionalmente complexos e moralmente ambíguos. Alguns de seus papéis mais significativos estavam nos filmes de Michael Powell e Emeric Pressburger, especialmente o oficial prussiano Theo Kretschman Schuldorff em Coronel Blimp – Vida e Morte / The Life and Death of Colonel Blimp / 1943, o empresário de balé Boris Lermontov em Os Sapatinhos Vermelhos / The Red Shoes / 1948. Outra intervenção importante do ator ocorreu no drama fantástico A Dama de Espadas / The Queen of Spades / 1949, baseado no conto de Pushkin.

Anton em Conflitos de Amor

Anton, Martine Carol e Max Ophuls na filmagem de Lola Montès

Walbrook tornou-se cidadão britânico em 1947. Ele continuou uma carreira internacional, ganhando aclamação especial pelo seu papel como o mestre de cerimônias gentilmente irônico na adaptação de Max Ophüls da obra de Arthur Schnitzler, Conflitos de Amor / La Ronde / 1950 e como Ludwig I, Rei da Baviera em Lola Montès / Lola Montès / 1955, também comandado por Ophuls. Nos anos cinquenta, ele também se distinguiu no drama criminal, O Caso Maurizius / L´Affaire Maurizius / 1954, produção franco-italiana dirigida por Julien Duvivier e fez apresentações como convidado nos palcos da Alemanha Ocidental, incluindo seu trabalho com Gustaf Gründgens no teatro em Dusseldorf. Ocasionalmente, apareceu na televisão da Alemanha Ocidental, mais notavelmente em Laura / 1962, telefilme baseado no thriller de mistério de Vera Caspary, no qual interpretou o amargo crítico de arte Waldo Lydecker, magistralmente vivido por Clifton Webb na versão cinematográfica americana de Otto Preminger de 1944.

J. A. RANK E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A INDÚSTRIA DE CINEMA BRITÂNICA

Joseph Arthur Rank (1888 – 1972) nasceu em Kingston upon Hull na Inglaterra, filho mais novo de um moleiro rico e bem-sucedido. Educado em colégio particular, começou trabalhando com o pai, depois montou seu próprio moinho de farinha e, quando este empreendimento fracassou, voltou a trabalhar na firma paterna. No início dos anos trinta, diretor do negócio da família, ele era um empresário afluente de meia-idade. Entusiasmado pelo Metodismo, começou a pensar em comprar projetores de cinema para usar os filmes como veículo para a educação religiosa nas escolas e igrejas metodistas.

J. A. Rank

Depois de colaborar com a Religious Film Society, corpo de voluntários formado para a propaganda religiosa, Rank contratou o produtor John Corfield para fazer dois curtas-metragens, St. Francis of Assisi (estrelado pelos então “desconhecidos” Greer Garson e Donald Wolfit) e Let There Be Love. Por intermédio de Corfield, conheceu sua nova parceira nos negócios, Lady Yule, viúva de um barão da juta angloindiano, mulher com as mesmas convicções religiosas que a sua. Ela e Rank juntaram forças e fortunas, para formar a British National em outubro de 1934. A primeira produção da British National, The Turn of the Tide / 1935, dirigida por Norman Walker, montada por Ian Dalrymple e David Lean (não creditado) e incluindo no seu elenco Geraldine Fitzgerald, ganhou o terceiro prêmio no Festival de Veneza; porém, mal promovida pela Gaumont – British, a principal distribuidora da Inglaterra, fracassou na bilheteria.

Depois desta frustração, Rank resolveu fundar sua própria distribuidora e ter seus próprios cinemas. Novamente por meio de Corfield, foi apresentado ao distribuidor C. M. Woolf, que havia sido diretor administrativo adjunto da Gaumont-British, mas havia brigado com outros membros da diretoria e criara sua própria empresa, a General Film Distributors (GFD). Em 1936, J. A. Rank e o magnata da fabricação de papel, Lord Portal, convenceram-no a transformar a GFD em uma filial de sua General Cinema Finance Corporation (GCF), que acabara de adquirir os direitos de distribuição no Reino Unido de todos os filmes da Universal.

Homem cauteloso, acima tudo um vendedor, Woolf tendia sempre a afastar Rank da realização de filmes de prestígio e alto orçamento, concentrando-se em comédias, musicais e thrillers de espionagem, que era o cinema britânico padrão nos anos trinta. Somente após a morte prematura de Woolf em dezembro de 1942, Rank pôde adotar uma política de produção mais cara.

Em 1936, contando com a colaboração com o maioral da construção civil, Sir Charles Boot, e sua antiga parceira na British National, Lady Yule, Rank comprou Heatherden Hall, propriedade campestre em Buckinghamshire e nela construiu o estúdio de Pinewood, bem moderno, nos moldes dos americanos. Em 1937, Rank absorveu o estúdio Denham, fundado por Alexande Korda e completou a verticalização (produção-distribuição-exibição) comprando a cadeia Odeon, que fôra construída por Oscar Deutsch, próspero comerciante húngaro de ferro velho, explicando-se assim parcialmente o acrônimo Odeon: Oscar Deutsch Entertains Our Nation.

Presidente da General Cinema Finance Corporation, presidente da General Film Distributors, presidente dos estúdios Pinewood e Denham, dono da cadeia de cinemas Odeon, a ascenção de Rank para o topo da Indústria de Cinema Britânica foi rápida, embora errática e sua prêeminência foi finalmente confirmada quando, em 1941, adquiriu a grande cadeia de cinemas Gaumont-British, sua filial Gainsborough Pictures com seus estúdios Islington e Lime Grove e outras companhias subsidiárias, inclusive a Baird Television. Como se não bastasse, Rank comprou os Amalgamated Studios em Elstree somente para impedir que caísse nas mãos de um concorrente e o alugou para o governo para fins de armazenamento.

Em 1940, Rank havia formado a GHW (Gregory-Hake-Walker, sobrenomes de três amigos de Rank), unidade de produção de filmes religiosos para serem apresentados em paróquias Metodistas e acampamentos do Exército ou da Marinha. De tempos em tempos a GHW tentou atingir um público geral de cinema. O projeto mais ambicioso de Rank foi a cinebiografia The Great Mr. Handel / 1942, dirigido por Norman Walker e filmado em Technicolor com Wilfred Lawson no papel do compositor angustiado de “O Messias”.

Cenas de The Great Mr. Handel

Ainda em 1942, a Organização Rank formou um consórcio, Independent Producers (sob a direção de George Archainbaud) com o objetivo de oferecer às companhias independentes boas condições de trabalho. As unidades de produção que operavam sob a proteção da Independent Producers eram: a Archers, fundada por David Lean, Cineguild (Ronald Neame, Anthony Havellock- Allan), Individual Pictures (Frank Launder e Sidney Gilliat), Wessex Films (Ian Dalrymple) e Aquila (David Ramsley e Frederick Wilson). Em meados dos anos 40, a Two Cities (fundada por Filippo Del Giudice e Mario Zampi) tornou-se parte da Organização Rank. Em 1944, aconteceria o mesmo com o Ealing Studios.

No final de 1942, a missão de Rank se expandiu. Agora seu objetivo era promover o filme britânico através do mundo. Depois de tentar em vão comprar metade das ações da United Artists e criar uma distribuidora anglo-americana, ele resolveu montar  (com a ajuda de Arthur Kelly e Teddy Carr, ex-executivos da UA) sua própria distribuidora, Eagle-Lion Distributors Ltd., registrada em Londres em 1 de fevereiro de 1944. A lista de países que a Eagle Lion alvejava era longa e impressionante, mantendo escritórios em todas as partes do mundo e, à medida em que a nova distribuidora ia ocupando mais espaço, o contador de Rank, John Davis, viajava através do globo comprando cinemas.

Porém, para assegurar um mercado mundial para os filmes britânicos, eles tinham que ser bem-feitos e os seus astros e estrelas tinham que receber uma publicidade adequada antes do seu lançamento. Embora estivesse envolvido na indústria por quase uma década, Rank admitia sua ignorância em matéria de cinema e fez disso uma virtude. Aconselhado por Filippo Del Giudice – grande “administrador de talentos”, como ele próprio se designava -, depositou sua confiança nos produtores, dando-lhes ampla liberdade, resultando grandes obras da cinematografia britânica. Foi a secretária de C. M. Woolf que inventou a marca comercial do homem com o gongo adotada pela Organização Rank. Entre os atletas que interpretaram o homem do gongo na sequência de abertura dos filmes da Rank, estavam o pugilista Billy Wells e o lutador de luta-livre Ken Richmond.

Fora cinedocumentários e filmes de longas-metragens, havia áreas que os britânicos haviam concedido quase que por atacado aos americanos, não tendo recursos para desenvolver estes campos por conta própria. Em tudo, desde fabricação de equipamentos a cinejornais, de desenhos animados a filmes “B”, os britânicos não tinham nada comparado com Disney ou A Marcha do Tempo / The March of Time Quando Rank embarcou em uma cruzada para colocar o cinema britânico no mapa mundial, ele sentiu que era sua “missão” ampliar a base da indústria e assim, sob a supervisão do diretor de arte David Rawnsley, foi criado um esquema – intitulado Independent Frame – para agilizar as operações de produção e também diminuir os gastos, propiciando uma melhor utilização dos efeitos especiais – matte shots (combinação de um cenário pintado com cenas reais), miniaturas, telas divididas,  front projection (projeção frontal) e back projection (retroprojeção ou transparência). Uma inovação prática de Rawnsley foi o Cyclops Eyes, pequena tela de TV fixada a uma câmera, que permitia ao diretor e ao operador de câmera ver como determinada cena foi enquadrada.

David Hand

A tentativa de Rank de instalar um departamento de animação para rivalizar com Disney não conseguiu gerar um Mickey Mouse, um Pato Donald ou mesmo um Pluto; Corny the Crow, Ginger Nutt e Dusty the Mole, sem falar em Ferdy, the Fox, foram os melhores personagens de desenhos animados que seus cartunistas conseguiram criar e eles nunca foram abraçados pelo público da maneira com que seus colegas foram. Em 1944, Rank contratou David Hand – um dos grandes nomes da animação americana que fora empregado dos irmãos Fleischer e de Walt Disney – e lhe deu plena e completa autoridade. Hand trouxe como assistentes Roy Paterson, animador veterano dos desenhos de Tom e Jerry da MGM e Ralph Wright, roteirista da Disney, “criador” do Pluto. Eles formaram uma turma de aprendizes e, no final de 1948, seus cartoons começaram a aparecer nos cinemas de Londres. As duas séries principais de desenhos que o Gaumont-British Animated Department (como a equipe de Hand era chamada) conseguiu completar foram Musical Paintbox e Animaland. Porém quando exibidos nos cinemas, os filmes de Hander mereceram uma recepção morna, pois não tinham a inventividade e a energia louca dos da Warner Brothers, da Disney ou da MGM. Eles eram pálidas cópias de seus equivalentes de Hollywood.

De todas as aventuras de Rank na indústria de cinema, nenhuma lhe trouxe mais crédito do que sua tentativa de superar o cinejornal americano A Marcha do Tempo com o seu This Modern Age (TMA). Ele aparecia uma vez por mês e durava sempre 21 minutos. Os comentários eram geralmente lidos por Robert Harris (cuja voz não tinha a voz estrondosa do comentarista de A Marcha do Tempo) e a música providenciada por Muir Mathieson. Cada episódio da TMA finalizava com este apelo corajoso: “The Challenge Be Met in This Modern Age” (O Desafio Deve Ser Enfrentado nesta Era Moderna). Um dos episódios mais ambiciosos da série foi o de n°31, India and Pakistan, para o qual a esquipe viajou mais de doze mil quilômetros e filmou mais de quinze mil metros de filme.

Compreendendo que os astros são uma “necessidade econômica” e um “valor de produção” e que a falta de nomes reconhecíveis intantâneamente na marquise dos cinemas sempre foi apontada pelos produtores de espetáculos americanos como a razão do fracasso dos filmes britânicos para firmar uma posição nos Estados Unidos, Rank fundou a Company of Youth, comumente conhecida como Charm School, escola para jovens atores contratados pela Organização Rank que estavam sendo preparados para o estrelato. O produtor Sydney Box originalmente formou uma Company of You no Riverside Studios em dezembro de 1945, que depois a transferiu para a Gainsborough em 1946, quando foi recrutado pela Organização Rank. Entre os alunos estavam os depois famosos Christopher Lee e Diana Dors.

Diana Dors na Charm School

Uma área da produção de filmes que os britânicos abandonaram para os americanos depois da abolição dos “quota quickies” (produções de baixo orçamento que os distribuidores americanos eram obrigados a fazer para cumprir a exigência do Cinematographic Act de 1927) foi a do filme “B”. Em 1947, Rank reviveu este tipo de filme feito para preencher a “outra metade” de uma sessão, no minúsculo Highbury Studios no Norte de Londres.  Foi uma operação de vida curta, durando somente dois anos até 1949. Contudo, em sua breve vida, foi certamente bem-sucedida dentro de seus próprios termos, proporcionado vitrines iniciais para atrizes como Susan Shaw e diretores como Terence Fisher (que mais trade supervisionaria a maioria dos filmes da Hammer) e produzindo seus filmes no prazo e no orçamento previstos, graças aos esforços do supervisor do estúdio John Croydn, ex-produtor associado na Ealing.

Outro projeto de Rank foi seu envolvimento com os filmes e clubes de cinema para crianças. De um lado, ele queria divertir os jovens, atraí-los para o cinema em uma tenra idade, para que o hábito pegasse e eles continuassem vindo quando crescessem, ajudando assim a reforçar suas receitas de bilheteria. Por outro lado, Rank era genuinamente apaixonado pelo zelo evangélico, e estava ansioso por inculcar na juventude “os bons valores Cristãos”. Afinal, tinha sido sua busca por projetores de filmes para animar as aulas da escola nos domingos que o atraiu primeiramente para a indústria.

Os Odeon Children´s Cinema Clubs foram inaugurados oficialmente em abril de 1943, com mais de 150 cinemas todos realizando a mesma cerimônia, e com mais de 150 mil crianças fazendo a sua “adesão ao clube”. Na inauguração, o comediante Arthur Askey cantou uma ou duas canções e depois anunciou uma competição pela melhor redação sobre higiene pessoal. O prêmio para o vencedor seria o chapéu do caubói Gene Autry. Inicialmente o programa era composto por filmes de comédia, aventuras ou westerns, principalmente americanos. Posteriormente, Rank começou a produzir ele mesmo filmes para crianças. O trabalho dos Children´s Entertainment Films (CEF) era chefiado pela professora e historiadora Mary Field, conhecida diretora da série Secrets of Nature, iniciada em 1920. Por ironia, a CEF, criada para educar e divertir as crianças foi acusada de explorá-las. De acordo com as leis trabalhistas, era ilegal empregar uma criança menor de 12 anos de idade. Assim, Mary Field teve que procurar nas agências de emprego adolescentes de baixa estatura, que não parecessem a idade que tinham. Alguns jovens artistas em ascensão como Anthony Newley, que logo interpretaria o personagem de Arthur Dodger em Oliver Twist / Oliver Twist de David Lean e Jean Simmons, que mais tarde teria a sua chance em Grandes Esperanças / Great Expectations do mesmo diretor, foram descobertos nestes filmes para crianças.

No término da Segunda Guerra Mundial, a Organização Rank possuía estúdios, companhias de produção e distribuição (fazendo de tudo desde filmes de um milhão de dólares a cinejornais, de desenhos animados a curtas educacionais) e 650 cinemas. Ela financiou muitos filmes britânicos hoje reconhecidos como clássicos: as adaptações de Charles Dickens de David Lean, as comédias da Ealing, os melodramas da Gainsborough, Os Sapatinhos Vermelhos / The Red Shoes de Michael Powell e Emeric Pressbuger, Um Estranho na Escuridão / I See a Dark Stranger de Frank Launder e Sidney Gilliat.

No final dos anos quarenta a Organização Rank entrou em crise quando o tesouro britânico passou a cobrar um imposto de 75% sobre o lucro estimado dos filmes americanos no Reino Unido. Os americanos ficaram indignados com esta taxação e pararam de mandar seus filmes para a Grã-Bretanha. Rank precisava exibí-los a fim de obter dinheiro para produzir os filmes britânicos e teve que suportar um longo e doloroso processo e contenção de despesas. Ao se encerrar o ano de 1949, a Organização Rank estava em declínio, cambaleando sob o peso de perdas terríveis pois, infelizmente, muitos dos filmes que produziu não possuíam a qualidade necessária para garantir retornos financeiros razoáveis.

Em 1952, após o falecimento de seu irmão mais velho Jimmy, J. Arthur Rank voltou para o negócio de sua família. Ele se manteve como presidente da Organização Rank até 1962, porém deixou o Dia-a-Dia da empresa para seu ex-contador, John Davis. Este dirigiu a Organização com muito rigor e, no fim dos anos 50, reduziu o compromisso dela com os filmes e o diversificou em outras atividades como fabricação e venda de equipamentos para máquinas de xerox e atividades de lazer: pistas de boliche, salões de dança, estações de serviço nas auto-estradas, e até uma gravadora de curta duração

Em retrospectiva, parece meio cômico-meio trágico, que todos os esforços de Rank para colocar de pé a indústria de cinema britânica terminaram desta forma.