Ele foi um dos mestres do romance policial, talvez o que melhor conseguiu a síntese entre o policial clássico e o detetive hard boiled, insolente e esquentado. O modelo de investigador superdotado intelectualmente, de postura britânica mesmo quando não era inglês (v. g. Sherlock Holmes, Poirot), que circula em ambientes fechados, dominou a ficção detetivesca até os anos 30, quando Dashiell Hammett revolucionou a substância e a forma do romance policial inserindo-lhe ação, sexo, violência e escrevendo em uma prosa coloquial, rápida e objetiva, tipicamente americana. Interessando-se mais pela caracterização e atmosfera do que pela intriga, pôs de lado esquema artificial do quebra-cabeça e trouxe o crime para as ruas sórdidas da cidade grande, onde geralmente ocorre. Verbalmente mais ousado do que Hammett, Chandler produziu uma prosa sombriamente lírica que transformou suas histórias em “metáforas do pesadelo urbano”. Ele colocou esses “pesadelos urbanos” no sul da Califórnia, onde seu herói, Philip Marlowe, apresentado em The Big Sleep e reaparecendo em Farewell my Lovely e The Lady in the Lake, embrenha-se em uma selva de criaturas predatórias, obcecadas pela busca do dinheiro e do poder, que procuram obter através da violência e da corrupção.
Filho de um quaker americano e de uma irlandesa igualmente quaker, Raymond Thorton Chandler (1888-1959), após o divórcio de seus progenitores, partiu aos oito anos de idade com sua mãe para Londres. Sólidos estudos que ele completou na França e na Alemanha o conduziram para um emprego no Foreign Office. Foi a época em que frequentou a casa de Virginia Woolf e escreveu no The Spectator. A guerra irrompeu quando ele voltou para os Estados Unidos. Ele alistou no exército canadense e combateu na frente francesa. De retorno aos Estados Unidos, exerceu diversas profissões, casou-se com Pearl Bowen, dezessete anos mais velha do que ele, mas, em 1932, durante a Depressão, perdeu seu posto na indústria petrolífera. Desde então, pôs-se a escrever. Sua primeira novela, Blackmailers Don’t Shoot, com o detetive Mallory, apareceu na revista Black Mask em 1933. Chandler se tornou colaborador assíduo da Black Mask e da Detective Monthly. Em 1939, publica seu primeiro romance, The Big Sleep. O Mallory das novelas tornou-se Philip Marlowe, herói de um romance que causou sensação pelo seu tom e pela sua construção.
As obras-primas vão se sucedendo entre 1940 (Farewell my Lovely) e 1943 (The Lady in the Lake). Depois, Chandler parte para Hollywood. Ele escreve o roteiro original de A Dália Azul / The Blue Dahlia / 1946, adapta James M. Cain no roteiro de Pacto de Sangue / Double Indemnity / 1944 e Patricia Highsmith no roteiro de Pacto Sinistro / Strangers on a Train / 1951. As transposições cinematográficas de suas obras se multiplicam: Farewell my Lovely feita por Edward Dmytryk para Até à Vista Querida / Murder my Sweet / 1944; The Big Sleep feita por Howard Hawks para À Beira do Abismo / The Big Sleep /1946; The Lady in the Lake feita por Robert Montgomery para A Dama no Lago / The Lady in the Lake / 1947; The Brasher Doubloon feita por John Brahm para A Moeda Trágica / The High Window / 1947; The Long Goodbye / 1973 feita por Robert Altman para O Perigoso Adeus / The Long Goodbye / 1973.
Em Até à Vista Querida, o noir look aparece, pela primeira vez, completamente realizado. A intriga é um tanto complicada contém muitas pistas falsas e reviravoltas, para fazer com que o público fique tão desnorteado quanto o investigador, porém o maior fascínio do filme não está no enredo delirante, mas nos diálogos e na atmosfera. Captando maravilhosamente o espírito da ficção de Raymond Chandler e conservando uma porção satisfatória de sua prosa excepcional, o diretor Edward Dmytryk e seu roteirista John Paxton escolheram a melhor construção narrativa (narração na primeira pessoa, voz over, retrospecto) e forma visual (expressionista) para acentuar a intensa subjetividade do protagonista e cria o clima mais adequado à história, obtendo uma mistura perfeita da tradição hard-boiled como o estilo germânico. Chandler considerava Dick Powell o equivalente cinematográfico mais próximo de sua concepção de Philip Marlowe. O ator está surpreendentemente bem no papel, abandonando sua personalidade jovial e alegre dos musicais, para se transformar em um detetive tough guy clássico. Na pele de Marlowe, ele faz comentários sobre personagens, ambientes e acontecimentos, expressando sua visão dark por meio de piadas sarcásticas e descrições hiperbólicas de muito sabor. Quando Marlowe leva uma pancada na cabeça, a voz over do detetive recorda como “um poço negro se abriu diante dos meus pés. Caí nele. Não tinha fundo” e, ao mesmo tempo, uma mancha preta inunda toda a tela, escurecendo a cena. Em outro instante, ao recordar do torpor provocado pela droga, ele fala de uma fumaça e de uma teia tecida por mil aranhas”, que obscurecem sua visão enquanto o observamos através deum vidro embaciado. Um pouco adiante, estica as mãos em direção à câmera e vemos seus dedos deformados, parecendo “uma penca de bananas com jeito de dedos”. Nessas tomadas, o diretor emprega todo o vocabulário fílmico – montagem rápida, sobreimpressões, cortinas giratórias, lente grande angular, filtro fosco, primeiríssimo plano (v. g. a seringa do doutor), justaposição de personagens em escalas diferentes- para expressar o estado mental confuso e paranóico do protagonista. A atmosfera de pesadelo, as sombras ameaçadoras e os fortes contrastes de iluminação dão a Até a Vista Querida uma qualidade visual que se tornou característica nos filmes noirs do período áureo. E não falta a presença da fêmea fatal, Velma (interpretada por Caire Trevor).