Jacques Becker (1906-1960) nasceu em Paris. Em Marlotte, onde sua família passava as férias e frequentava a casa dos Cézanne, o jovem Jacques – tinha então 14 anos de idade – descobriu o cinema na pessoa de Jean Renoir. O filho do grande pintor conhecia os Cézanne e foi assim que Becker entrou em contato com ele. Quando as férias acabaram, o rapaz continuou seus estudos na École Bréguet e depois arrumou alguns empregos, inclusive na Compagnie Générale Transatlantique. Entre Havre e Nova York, Becker conheceu King Vidor, que lhe ofereceu emprego nos EUA como ator e assistente de direção. Becker estava prestes a permanecer na América, porém não conseguiu obter o visto de residência. Foi Jean Renoir que o levou para o cinema, como seu assistente, amigo e discípulo.
Em 1935, Becker se aventurou brevemente na produção independente dirigindo dois filmes curtos, Tête de Turc e Le Commissaire est bon enfant, le gendarme sans pitié, neste último dividindo a direção com Pierre Prevert. Em 1939 começou a dirigir L’Or du Cristobal / 1940, mas após três semanas de filmagem, deixou a produção a cargo de Jean Stelli.
Em 1942, após passar um ano em um campo de prisioneiros de guerra alemão, ele voltou para a França e fez seu primeiro longa-metragem, Dernier Atout, filme policial cuja ação se passa num país indeterminado da América do Sul. A partir do ano seguinte, começaram a chegar às telas suas realizações mais importantes.
Apaixonado pelos seres humanos – como seu mestre Jean Renoir -, ele os observava nos ambientes mais diversos e procurava traduzir o seu comportamento e o que eles traziam no fundo de si mesmos, captando sempre a realidade viva. Isso ocorreu nos seus melhores filmes, passados sucessivamente no meio rural (Mãos Vermelhas / Goupi Mains Rouges / 1943; da alta costura (Nas Rendas da Sedução (na TV) / Falbalas / 1945); no ambiente operário (Antonio e Antonieta / Antoine et Antoinette / 1947); da pequena burguesia (Eterna Ilusão / Rendez-vous de Juillet / 1949) e da alta burguesia (Vivamos Hoje! / Édouard et Caroline / 1951); dos apaches da Belle Époque (Amores de Apache / Casque D’or / 1952); dos gângsteres (Grisbi, Ouro Maldito / Touchez pas Au Grisbi / 1954); dos artistas da Montmartre do início do século XX (Os Amantes de Montparnasse / Montparnasse 19 / 1958); da prisão (A Um Passo da Liberdade / Le Trou / 1959). Seus outros trabalhos – Brincando de Ciúmes (na TV) / Rue de L’Estrapade / 1953; Ali Baba e os 40 Ladrões / Ali Baba et les Quarante Voleurs / 1954; As Aventuras de Arsène Lupin / Les Aventures d’ Arsène Lupin / 1957 – foram produtos meramente comerciais, mas, tal como todos os filmes do diretor, impressionaram pela clareza e autenticidade.
No meu livro Uma Tradição de Qualidade O Cinema Clássico Francês (1930-1959) (ed. PUC Rio-Contraponto, 2010) selecionei 150 filmes representativos do cinema clássico francês, entre eles estes oito filmes mais importantes de Jacques Becker, cujas sinopses e comentários reproduzo aqui, mencionando apenas os nomes dos artistas principais.
Mãos Vermelhas. Em uma aldeia do Charente, vive a família Goupi: Tisane, Mes Sous, Dicton, La Loi, L´Empereur. Dois Goupi ficam à margem: Tomkin (Robert Le Vigan), um neurótico obcecado com a Indochina e Mains Rouges (Fernand Ledoux), um caçador que mora em uma cabana na floresta. Os outros membros do clã são a jovem Goupi Muguet e Eugène, filho de Mes Sous, chamado de Goupi Monsieur; porque todos pensam que ele tem uma boa situação em Paris. Quando Eugène chega à aldeia, Tisane é encontrada morta e uma valiosa quantia desaparece.
Crônica social impregnada de poesia fantástica, focalizando um clã agrícola que resolve sozinho seus próprios problemas. Becker conseguiu dar vida a quase uma dezena de personagens complexos e todos desempenhando um papel importante na trama. Desde o início, a família Goupi é apresentada de maneira a fazer com que os espectadores compreendam bem as manias, as paixões e a estranha humanidade daqueles camponeses solidamente arraigados às suas tradições, ao gosto pelo dinheiro e pela propriedade. É também um filme de atores cuidadosamente escolhidos, entre os quais avulta Robert Le Vigan, um Tomkin completamente alucinado.
Nas Rendas da Sedução. Philippe Clarence (Raymond Rouleau), grande costureiro parisiense, apaixona-se por Micheline Lafaurie (Micheline Presle), noiva de Daniel Rousseau, seu amigo e fornecedor de tecidos. Philippe decide fazer o vestido de noiva e seduz Micheline, conquistada ao mesmo tempo pelo homem e pelo criador. Mas rapidamente a jovem se revolta diante de seu egoísmo e frivolidade e se afasta dele. Phillipe não consegue esquecê-la. No dia da apresentação de sua coleção, ele se tranca no escritório e, em um acesso de loucura, se precipita pela janela, abraçado ao manequim com o vestido da noiva.
Drama passado no meio da moda, tendo como personagem central um famoso costureiro que esvoaça de mulher em mulher, para nutrir sua inspiração. Quando uma delas lhe escapa, ele enlouquece abruptamente e acaba se matando de forma inesperada. Escolha de começar o filme pelo fim, anunciando-nos a morte de Philippe, mostra que Jacques Becker já se interessava mais pelos personagens e pela descrição dos ambientes do que pelos enredos. Neste filme, ele nos apresenta, por meio de um longo retrospecto, a caminhada autodestrutiva de um artista nervoso e retrata, com veracidade, a vida em um ateliê de costura parisiense no tempo da Ocupação. Raymond Rouleau apresenta uma atuação magistral, principalmente quando a loucura toma conta de Philipe e o devasta, destruindo-o.
Antonio e Antonieta. Antoine Moulin (Roger Pigaut) empregado de uma tipografia, e sua jovem esposa Antoinette (Claire Maffei), vendedora em uma loja de departamentos, se amam. Um dia a sorte lhes sorri. Antoine acha na bolsa da mulher um bilhete premiado. Mas quando ele se apresenta na casa lotérica, não encontra o devido comprovante do prêmio. A felicidade do casal transforma-se em desespero. Todo o bairro compartilha do seu sofrimento, até que chega a boa notícia: a caixa da estação do metrô encontrou o bilhete perdido.
Abordando um assunto simples, extraído da vida cotidiana, Jacques Becker fez um filme encantador. Ele reconstruiu com precisão o pequeno universo banal e simpático onde se desenrola a história, através de uma infinidade de detalhes exatos sobre o lugar onde o casal vive, suas relações com os vizinhos e as pessoas do bairro, o modo como se vestem, a linguagem que usam etc., lembrando o método neorealista. Essa fiel observação da realidade transcorre em um ritmo que, sustentado por uma montagem eficiente, não retarda nem por um instante, e a presença de atores pouco conhecidos dá veracidade às personagens.
Eterna Ilusão. Lucien Bonnard (Daniel Gélin) se reúne com um grupo de amigos frequentadores das boates de Saint-Germain-des-Prés, decidido a montar uma expedição etnográfica. Ele gosta de Christine Courcel (Nicole Courcel), aluna de um curso de arte dramática que está disposta a tudo para triunfar nos palcos. Um grande diretor, Guillaume Rousseau, vai montar a peça de seu irmão François. Sua amiga, Thérèse (Brigitte Auber), que também quer ser atriz, ama Roger Moulin (Maurice Ronet), ex-aluno do Idhec, que toca trompeta na orquestra de Claude Luter. Pierre Rabut é outro que sonha em ser ator. Todos se mobilizam em torno do projeto de Lucien.
Testemunho sobre o imediato pós-guerra parisiense, focalizando um grupo de jovens da pequena burguesia, que confrontam suas ilusões, suas ansiedades, suas iniciativas, na busca de um futuro profissional e sentimental. Becker traça o retrato dessa juventude com sede de viver e o desejo de se afirmar, com uma atenção minuciosa para o real. Está tudo ali: a moda existencialista, as ruas do Quartier Latin, as boates animadas pela música de jazz, o jipe dos rapazes, os vestidos leves das moças … No final, Lucien , que surpreendeu Christine no leito de Rousseau, embarca no avião sem um olhar para o passado, que surgiu entretanto no fim da pista de decolagem: logo Christine não será mais que um minúsculo ponto melancólico e desiludido, perdido no aeroporto.é
Vivamos Hoje! À tardinha no apartamento de Edouard (Daniel Gélin) e Caroline (Anne Vernon). Eles estão se preparando para ir para a casa do tio de Carolina, um socialaite riquíssimo que convidou muitos amigos para fazê-los conhecer o talento de pianista de Edouard. Ambos estão muito tensos e não demora muito para uma discussão começar. Será uma longa noite de disputas e reconciliações.
Comédia sofisticada com um argumento muito bem escrito por Annette Wademant e interpretada com sutileza, na qual aflora igualmente uma sátira à sociedade, no caso uma casta de aristocratas ridículos e hiperbólicos. Dispondo de poucos recursos, Becker soube compor sua encenação, ela também muito simples (a ação se passa somente em dois lugares e o filme se desenrola quase em tempo real), recriando toda paixão e candura de seus personagens.
Amores de Apache. Na Paris de 1898, Marie, apelidada de Casque d´Or (Simone Signoret), atrai o olhar de Georges Manda (Serge Reggiani), um marceneiro. Em uma taberna, o par dança uma valsa e um grande amor começa. Mas Marie tem um “protetor”, Roland, que faz parte dobando de Félix Leca (Claude Daupin). Este, que deseja Marie, provoca um duelo entre os dois homens. Roland é morto por G. Manda. Ao saber que seu amigo de infância, Raymond, foi denunciado por Leca pela morte de Roland, G.Manda se entrega à polícia. Depois foge e elimina o miserável Leca. Alguns meses mais tarde, sobe ao cadafalso.
Os dois amantes vivem em um mundo cruel, do qual Becker quis fazer uma descrição sóbria, desprovida da futilidade e do pitoresco dos romances populares. Sua história trágica, contada sem sentimentalismos, se insere uma reconstituição precisa e atraente dos subúrbios de Paris da Belle Époque e propicia uma análise irrepreensível dos tipos que intervêm na intriga. Becker ama seus personagens. Ele observa como eles vivem e sofrem, com respeito, com ternura, e nos faz compartilhar desses sentimentos. Amores de Apache é, antes de tudo, um filme humano, e os intérpretes exprimem muito bem essa humanidade.
Grisbi, Ouro Maldito. Max (Jean Gabin) e Ritton (René Dary), dois gângsteres amigos de longa data, roubam cinquenta milhões em barras de ouro. Ritton comete a imprudência de revelar o roubo para sua amante, Josy (Jeanne Moreau), que se apressa em informar Angelo (Lino Ventura), seu mais recente protetor, um traficante de drogas. Angelo rapta Riton. Max aceita trocar o ouro pelo seu amigo em uma estrada nacional do subúrbio parisiense. Mas Angelo planeja matar Max e seus amigos após a troca. Um acerto de contas se segue, no qual Riton fica gravemente ferido e Max é obrigado a abandonar o ouro no carro de Angelo em chamas.
Como acontece em todos os filmes de Jacques Becker, os personagens lhe interessam mais do que a intriga. Aqui temos dois gângsteres unidos pela amizade do “ofício”, dos riscos que correram juntos no passado. Essa amizade, para Max, vale mais do que o dinheiro. Ela vale o que ele nunca pôde encontrar antes: o repouso. Este é o tema oculto do filme: mais do que um drama da amizade, é um drama da lassitude. O cansaço de um quinquagenário, que já realizou tudo o que queria e agora só quer tranquilidade, o isolamento consigo mesmo. Mas, para salvar o amigo, ele volta a se engajar em “histórias sujas”. Este tema se soma ao tema da amizade e eles dão à obra uma ressonância profundamente amarga, desesperada.
Os Amantes de Montparnasse. Amedeo Modigliani (Gérard Philipe) tem um relacionamento coma escritora inglesa Beatrice Hastings (Lili Palmer) e depois conhece Jeanne Hebuterne (Anouk Aimée), uma estudante que abandona sua família burguesa para ir morar com ele. Léopold Sborowsky, amigo de Modi, tenta em vão vender os quadros do pintor. Após um período de felicidade ao lado de Jeanne, Modi, alcoólatra, tuberculoso e miserável, morre em um hospital. O mercador de quadros Morel (Lino Ventura) procura Jeanne imediatamente e compra todas as telas do pintor.
A cinebiografia de Modigliani ia ser filmada por Max Ophuls, porém a morte de Ophuls pôs fim ao projeto. Escolhido para substituí-lo, Jacques Becker não poderia trabalhar com um roteiro que não era dele, pois seu estilo cinematográfico não tinha nenhuma afinidade com o de Ophuls. Becker despojou sua encenação ao extremo, preocupando-se mais com o ângulo humano e suprimindo todo o pitoresco tradicional do gênero – o cineasta recusou-se inclusive a usar a cor, o que parece a priori um contrassenso em um filme sobre pintura, o que levou André Bazin a dizer que esse é o filme mais bressoniano do diretor.
A Um Passo da Liberdade.
Claude Gaspard (Marc Michel) é encarcerado na prisão de la Santé por causa de um falso testemunho de sua mulher. Ele é colocado em uma cela já ocupada por quatro detentos – Jo (Michel Constantin), Roland (Jean Kéraudy), Manu (Philippe Leroy) e Monseigneur (Raymond Meunier) -, que preparam uma fuga. Os quatro a princípio não vêem com bons olhos a chegada de um novo companheiro, mas as circunstâncias os obrigam a fazer de Claude um cúmplice. Com uma energia incrível, eles cavam um túnel, que deverá conduzí-los à liberdade. Na véspera do dia escolhido para pôr o projeto em execução, Claude trai seus amigos e revela o plano de evasão.
O filme mostra etapa por por etapa os preparativos minuciosos da fuga. Becker nos comunica seu amor pelo trabalho e pela engenhosidade humana: nas mãos de Roland um pedaço de ferro torna-se uma chave, duas pequenas garrafas tornam-se uma ampulheta. Essa espécie de detalhe solicita mais sua atenção do que a intriga. O diretor reproduz com justeza a atmosfera do universo carcerário, faz-nos compreender nuanças do relacionamento entre os detentos, faz-nos viver literalmente as suas inquietudes e as suas esperanças. A câmera gruda nos fatos, nos gestos e nas personagens, recriando a vida com naturalidade. Os atores não interpretam; eles são eles mesmos.