AS VERSÕES DE O GUARANI NO CINEMA BRASILEIRO

José Martiniano de Alencar (1829-1877), figura maior da prosa brasileira de ficção, é até hoje o romancista mais lido do país, sendo O Guarani um dos seus maiores sucessos. Inspirado principalmente no indianismo do Visconde François René de Chateaubriand (exposto na trilogia Atala, René e Les Natchez), a história de O Guarani era empolgante. Magalhães Junior no seu livro inestimável José de Alencar e sua Época (ed. Civilização Brasileira, 1977) nos oferece um resumo primoroso da trama.

José de Alencar

O fidalgo português Dom Antônio de Mariz com a esposa, o filho Diogo, a filha Cecília, ou Ceci, e ainda uma filha natural, Isabel, mestiça de índia, vivia no início do século XVII numa imensa casa de fazenda quase um castelo fortificado, às margens do Paquequer, zona perigosa, onde os índios aimorés frequentemente apareciam. Além da família, aí estavam também, para garantí-la e exercer tarefas diversa, inclusive a da caça, um grupo de quarenta homens, que o autor identifica como aventureiros. Apenas oito destes eram nomeados:- Aires Gomes, Bento Simões, Martim Vaz, Rui Soeiro, Vasco Afonso, Mestre Nunes, João Feio – todos de nomes muito portugueses, salvo um único, Loredano, que era italiano. Além deles havia também Álvaro de Sá, um cavaleiro lusitano de nobres sentimentos, a quem Dom Antônio de Mariz, destinaria mão de Cecília, se esta decidisse a mudar de estado, e o índio Peri, filho de Ararê, que se proclamava “primeiro de sua tribo, forte entre os fortes, guerreiro goitacá, nunca vencido”.

O romancista não explica como Perí se ligou à família Mariz e foi por ela, não apenas aceito, mas verdadeiramente absorvido. Tudo quanto se sabe sobre seus antecedentes é dito por Dom Antônio de Mariz, numa conversa com Alvaro de Sá: que Peri tem uma cega dedicação por Cecília e um caráter admirável. Mais, ainda: “Desde o primeiro dia que aqui entrou, salvando minha filha, a sua vida tem sido um só ato de abnegação e de heroismo”. Não se sabe como Peri a salvara, nem de que, nem como se civilizara ao ponto de conviver em tão boa harmonia com os Marizes e sua gente.

O italiano Loredano, é a alma danada do grupo. E José de Alencar faz dele um personagem padrão de seus romances: o homem de vida dupla e de dois nomes. Singularmente, o lubrico aventureiro Loredano é, na realidade, um religioso, o frade carmelita Frei Angelo di Luca, que se afastara de sua ordem consumido pela cobiça, sonhando em ficar riquíssimo, graças ao roteiro das famosas minas de prata de Robério Dias, que caíra em seu poder quando confessava um moribundo. É numa tentativa para alcançar as minas de prata que ele se incorpora ao grupo de aventureiros às ordens de Dom Antônio de Mariz. Mas, para prosseguir daí em diante, só sublevando uma parte dos homens, que seduz com a promessa de imensas riquezas e com a entrega de Isabel, para que nela satisfaçam a fome de sexo longamente reprimida. Cecília, essa, ele guardaria para si mesmo, pois como Álvaro e como Peri, o grande vilão também gravitava em torno dela.

O romancista, entretanto, distinguia: “Loredano desejava; Álvaro amava; Peri adorava. Loredano queria profanar a virgindade de Ceci. Álvaro aspirava a ser seu marido. E Peri queria ser apenas um escravo submisso. Dos três, o mais humilde seria o premiado, como no versículo bíblico. Abrasado de concupiscência e de ambição, Frei Ângelo di Luca só pensa em apoderar-se de Ceci e das fabulosas minas de prata. As coisas se complicam mais quando, já em plena conspiração, Dom Diogo de Mariz, ao sair para uma caçada, mata uma índia aimoré. O revide de sua tribo seria inevitável. E tão numerosos eram os guerreiros aimorés que Dom Antonio de Mariz logo o despacha, com uma pequena escolta, rumo ao Rio de janeiro, a fim de obter socorros.

Na casa dividida, a facção fiel ao velho fidalgo português enfrenta a ínsidia dos conspiradores. E é então que Loredano, confiante na sua impunidade, entra na alcova de Cecília. Mas quando o frade carmelita lhe vai tocar no corpo adormecido, tem a mão pregada à parede por uma seta de Peri. O índio é como a própria sombra de Cecília. Está sempre velando por ela. E é ele quem dá cabo de dois dos mais perigosos conspiradores, Bento Simões, que é estrangulado, e Rui Soeiro, que é degolado. Com o ataque dos índios, todos os homens se unem, para enfrentar o perigo comum. Peri deixa deliberadamente o reduto fortificado, indo atacar os aimorés e matando muitos deles. Não tem a intenção de vencê-los. Sabe que isto é impossível. Acaba aprisionado e amarrado, para ser depois sacrificado.

Era esse, precisamente, o seu plano. Oferecia-se, estoicamente, para ser executado. Sabe que os aimorés, sendo canibais, se banqueteavam com os despojos de suas vítimas. E levava uma porção de curare, mais que suficiente para envenenar suas carnes e assim matar os inimigos que o devorassem. Toma o veneno, mas uma índia aimoré, que por ele se apaixona, o liberta e o convida a partir com ela. Peri resolve voltar, porém, para perto de Cecília, que lhe acenara, chamando-o. Para não morrer sob a ação do veneno, ele, já sentindo sintomas de envenenamento corre para a floresta, à procura de um antídoto que o romancista não revela qual seja. Nesse meio tempo, os aventureiros, arrependidos da própria traição, mas considerando que o grande culpado era aquele   que os instigara à rebeldia, condenam Loredano à morte e o devasso frade italiano acaba numa sinistra fogueira, como as da Inquisição.

Redobra o assédio dos aimorés, armados de setas incendiárias. E o socorro não chega. Só restam duas alternativas: ou a capitulação, que os exporia a todos a torturas e atos de canibalismo, ou a morte heróica e voluntária. Dom Antônio de Mariz opta por esta. Fará a casa ir pelos ares, ao ser incendiado o seu paiol de pólvora., quando tiverem sido esgotados todos os recursos de uma resistência desesperada. É então que Peri se apresenta mais uma vez para salvar Cecília, mesmo contra a vontade dela e em condições perigosíssimas. Antes, o fidalgo o batiza com o seu próprio nome. E o novo Antônio parte, com a virgem loura, passando sobre um abismo, num prodígio de habilidade, agarrado às folhas de uma palmeira, de onde alcança a copa de uma árvore no lado oposto, tudo isso sem largar a moça.

 

Em pouco tempo acham-se à distância, numa canoa, enquanto os aimorés avançam, soltando gritos de guerra. Há então uma grande explosão e um mar de chamas envolve a casa. Mas ainda não está conjurado o derradeiro perigo. Sobrevém uma terrível tempestade. E, com o enorme aguaceiro, ameaçadora enchente do rio Paraíba, que sai do seu leito, avassalando tudo. E o romance acaba com Peri e Ceci agarrados ao tronco de uma palmeira, que faz as vezes de jangada providencial. Palmeira que ele mesmo arrancara na hora do perigo, com ingente esforço, na última de suas façanhas de Hércules Caboclo. O final do romance é idílico e o leitor sabe que o amor de Peri e Ceci, antes impossível, é a agora a coisa mais natural do mundo.

Como acentuou José Guilherme Merquior em De Anchieta a Euclides – Breve História da Literatura Brasileira (Ed. É Realizações Editora, 2014) a idealização do herói nativo, liricamente debuxada por Gonçalves Dias, tomava plenamente corpo na prosa.  Segundo R. Magalhães Junior o próprio Alencar reconheceu que Peri é uma simples idealização de natureza poética, não pretendendo, pois, retratar o verdadeiro caráter do índio brasileiro, em geral, ou mesmo um só índio em particular.

A ópera de Carlos Gomes Il Guarany – tendo como tema O Guarani – estreou no Scala de Milão em 19 de março de 1870. A primeira apresentação no Brasil no Rio de Janeiro foi em 2 de dezembro de 1870, no Teatro D. Pedro II. A ópera é lembrada pela sua abertura, conhecida por ser o tema do programa de rádio A Voz do Brasil e também pela marcha de Lamartine Babo, História do Brasil, extraordinário sucesso do Carnaval de 1934 que, em certo trecho nos faz ouvir: “Depois/Ceci amou Peri/ Peri beijou Ceci /Ao som/ Ao Som do Guarani”.

Magalhães Junior nos informa que o espetáculo operístico foi dado em recital de gala pela data aniversária do imperador, que lá estava, no camarote de honra. Alencar e a esposa estavam também presentes num camarote. Triunfo completo. Aclamações a Carlos Gomes. Aclamações a Alencar, acompanhado à casa entre vivas. Mas, no fundo, estava ele um tanto amuado com as deturpações de sua obra, tendo confidenciado a Afonso d’E. Taunay: “O Carlos Gomes fez do meu Guarani uma embrulhada sem nome, cheia de disparates, obrigando a pobrezinha da Ceci a cantar duetos com o cacique dos Aimorés, que lhe oferece o trono de sua tribo, e fazendo Peri jatar-se de ser o leão das nossas matas”

Mas completara, com indulgência: “Desculpo-lhe, porém, tudo, porque daqui há tempos, talvez por causa das suas espontâneas e inspiradas harmonias, não poucos hão de ler este livro, senão relê-lo – o maior favor não pode merecer um autor”. Nisso, enganava-se. A vida do livro suplantaria a da ópera hoje quase esquecida do público.

FILMOGRAFIA ABREVIADA

O Guarani / 1908.

Cia. Prod: William e Cia. (Rio de Janeiro). Produção cantada por Antonio Cataldi e Santiago Pepe, baseada na ária “Canção do Aventureiro” da ópera homônima de Carlos Gomes.

O Guarani / 1911.

Cia. Prod: Empreza Lazzaro e Companhia (Rio de Janeiro). Produção baseada em uma ária da ópera homônima de Carlos Gomes. Dir: Salvatore Lazzaro. El: Griselda Lazzaro, Ângelo Brunetti, Laura Malta, Miguel Russomano, Sante Athos. Primeira versão cinematográfica em longa-metragem da obra de Carlos Gomes.

O Guarani / 1912.

Cia. Produtora: Opera Film (Barbacena-MG). Produção baseada na ópera homônima de Carlos Gomes. Dir: Paulo Benedetti. El: Antonio Russo, Alfredo “Boi d’Água” de Castro, Sebastião.

O Guarani / 1914.

Cia. Prod: Guarany Films (Pelotas, RS). Filme inacabado (que teria sido interrompido em função da falta de fornecimento de película virgem com o início da Primeira Guerra Mundial) baseado no romance homônimo de José de Alencar

O Guarani / 1916.

Cia. Prod: Campos & Capellaro (São Paulo, SP). Dist: Companhia Cinematográfica Brasileira. Dir: Vittorio Capellaro. Produção baseada no romance homônimo de José de Alencar. Foto: Antônio Campos. El: Vittorio Capellaro, Georgina Marchiani, Santino Giannastasio, Eduardo Cassoli, Maria Valentini.

O Guarani 1920

O Guarani / 1920.

Cia. Prod: Carioca Films (Rio de Janeiro-RJ). Produção baseada no romance homônimo de José de Alencar. Dir: João de Deus. Foto: Alberto Botelho. Uma grande orquestra, regida pelo maestro Martinez Grau, executou trechos da ópera O Guarani na estréia. Arranjador Musical: Luiz Moreira. El: Pedro Dias, Abigail Maia, Joselina Barco, João de Deus, Jota Figueiredo. 

 

O Guarani  1926

O Guarani / 1926.

Cia. Prod: Vittorio Capellaro (São Paulo, SP), Paramount Pictures). Prod / Dir / Rot: Vittorio Capellaro. Foto: Vittorio Capellaro, Paulo Benedetti. Produção baseada no romance homônimo de José de Alencar. El: Armanda Mauceri Mazza, Tácito de Souza, Luigi Pianconi.       Gilberto Bianchini, Gastão Menichelli.

O GUARANI, 1950.

Cia. Prod: Universalia Filmes (Roma). Produção baseada na vida de Carlos Gomes. Dir: Ricardo Freda. Foto: Ugo Lombardi. El: Antônio Vilar, Marieta Lotti, Luigi Pavese, Giana Maria Canale, Maria da Glória.

O GUARANI, 1979.

Cia. Prod: Virgínia Filmes – Fauzi A. Mansur Cinematográfica (São Paulo) e Embrafilme. Prod / Dir: Fauzi Mansur. Adaptação: Fauzi Mansur, Marcos Rey baseada no romance homônimo de José de Alenca. Texto: Ody Fraga. Foto: Cláudio Portioli. Mús: Augustinho Zaccaro e excertos de Carlos Gomes. Eastmancolor. El: David Cardoso, Dorothée-Marie Bouvier, Flavio Portho, Tony Correia, Luigi Pichi.

O GUARANI, 1996

Cia. Prod: NB Produções Cinematográficas. Prod Exec. / Norma Benguell, Jaime A. Schwartz. Dir: Norma Benguell. Rot: José Joffily Filho, baseado no romance homônimo de José de Alencar. Foto: Antônio Luiz Mendes Soares. Música: Wagner Tiso a partir do tema e músicas incidentais da ópera O Guarani de Carlos Gomes. Colorido. El: Glória Pires, Tatiana Issa, Márcio Garcia, José de Abreu, Herson Capri.

O Guarani 1996

 

ADENDO

OS GUARANIS, 1908

Cia. Prod: Photo-Cinematographa Brasileira (Rio de Janeiro). Produção baseada no romance de José de Alencar. Prod. Alberto Botelho. Dir: Benjamin de Oliveira.  Além do trecho cantado, havia ainda momentos de pantomima circense tal qual era representada no picadeiro, com a participação dos artistas do Circo Spinelli. El: Benjamin de Oliveira, Inez Grizeta.

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