ALFRED HITCHCOCK – JANELA INDISCRETA

ALFRED HITCHCOCK – JANELA INDISCRETA

RESUMO DO ARGUMENTO

Um repórter fotográfico, L. B. Jeffries (James Stewart), confinado em uma cadeira de rodas por causa de uma perna quebrada, observa ociosamente o comportamento de seus vizinhos através do pátio interno de seu apartamento em Greenwich Village. Suas observações levam-no a suspeitar de que um dos vizinhos, Lars Thorwald (Raymond Burr), assassinou a esposa, mas não consegue convencer sua noiva, Lisa Fremont (Grace Kelly,) e seu amigo detetive, Thomas J. Doyle (Wendell Corey), de que está certo. Eventualmente, quando Lisa encontra uma prova incriminadora, confirmando suas suspeitas, o assassino descobre que está sendo vigiado e tenta matar o fotógrafo. Este é salvo no momento exato, porém sua outra perna é quebrada no curso da operação de resgate.

Alfred Hitchcock e James Stewart

TEMA.

O tema mais geral, é óbvio, é o do voyeurismo, a curiosidade incontrolável de espiar os outros. O Hitchcock faz do espectador um cúmplice do voyeurismo do protagonista, criando uma metáfora da própria essência do cinema. Existe uma analogia entre o voyeurismo do Jeff (James Stewart) e o do espectador de cinema. Nós espectadores espreitamos a vida dos personagens que vemos na tela, penetrando na sua intimidade que, para nós, se torna um espetáculo; porém há uma nuance: o que vemos na tela é puramente imaginário e feito para ser visto, ao contrário do que ocorre com Jeff. Ele vê o que, para ele, é real e não consentido. Outra comparação que se pode fazer é que o Jeff espia os vizinhos para fugir dos seus próprios problemas – a perna quebrada, a imobilidade forçada, o tédio – assim como o espectador médio entra no cinema e espia a vida dos personagens que vê na tela, para escapar dos seus. É o escapismo típico do cinema. E nós nos identificamos a tal ponto com o Jeff, que esperamos fervorosamente que a sua dedução esteja certa e que o suspeito tenha mesmo cortado a esposa em pedacinhos. Vejam só que coisa macabra:  a gente torce para que um crime horrendo tenha sido cometido. O fascínio consiste justamente em provar a veracidade da hipótese levantada por Jeff.

Outra coisa parece evidente, e este seria um subtema: aquilo que o Jeff vê pela janela dos fundos, pela rear window, é um microcosmo, um pequeno universo com várias facetas do comportamento humano. É uma alegoria da solidão e do egoismo nos grandes centros urbanos, do isolamento entre as pessoas. Todo esse pequeno mundo cohabita se ignorando. Não há nenhuma comunicação, nenhuma fraternidade, nenhum calor humano entre eles. É o triunfo da solidão e do egoismo. Quando aquela mulher grita pela morte do seu cachorrinho, os vizinhos chegam na janela, mas só mostram curiosidade, nada mais. Não há qualquer gesto de solidariedade. Hitchcock olha para esse mundo com certa compaixão e não como um misantropo, como alguém que tem aversão à sociedade. E não sei se vocês notaram. Todas aquelas mini-histórias ou vinhetas têm um denominador comum: elas envolvem algum aspecto do relacionamento homem-mulher, do amor ou do casamento. A mulher solitária, os jovens récem-casados, o músico solteirão, a bailarina assediada pelos homens, o casal sem filhos que transfere o amor para o cãozinho e o casal que se odeia, ou seja, o suspeito e sua mulher.

James Stewart

Uma observação: tudo aquilo pelo qual o Jeff passou não teria sido uma espécie de experiência terapêutica, que é um tema recorrente de Hitchcock? Isto é, depois de tudo o que ele passou é que ele se tornou apto para aceitar o noivado e se libertou da compulsão de espiar os outros? Acho que, depois que ele viu o espírito de iniciativa e a coragem de Lisa, indo lá no apartamento do assassino, sentiu que tinha uma afinidade com ela. Jeff é um homem de ação e aventura e descobriu uma Lisa diferente daquela Lisa manequim ou dondoca. E aí ele passou a aceitar a possibilidade de casamento. Há um plano que mostra bem o seu contentamento e admiração pela namorada, quando ela está no apartamento do assassino. E, ainda quanto à libertação terapêutica do voyeurismo, vejam que na última cena Jeff está sentado de costas para a janela.

Mais uma interpretação possível: o Hitchcock teria desejado dar uma de moralista, fazendo o Jeff ser punido por ter cedido à tentação de espiar os outros. Ele recebeu o que merecia, quebrando a outra perna. No final, quando o criminoso vai ao quarto de Jeff, ele pergunta: “O que é que você quer de mim? E Jeff não responde. Porque, de fato, as sua ações não tinham justificativa, eram motivadas por pura curiosidade.

Hitchcock e o roteirista John Michael Hayes

ROTEIRO.

O roteiro foi escrito por John Michael Hayes, inspirado no livro de Cornell Woolrich. conhecido autor de romances policiais, que usava às vezes o pseudônimo de William Irish. Irish foi o escritor que forneceu mais histórias para os filmes noirs entre eles, A Dama Fantasma / Phantom Lady /1944, Anjo Diabólico / Black Angel / 1946, Morte ao  Amanhecer / Deadline at Dawn / 1946, Chantagem / Fall Guy /1947, Um Rosto no Espelho / Fear in the Night /1947, A Noite Tem Mil Olhos/ Night Has A Thousand Eyes / 1948 etc. Michael Hayes era redator de rádio e sua contribuição foi mais com relação aos diálogos. Ele foi responsável pelos diálogos espirituosos que valorizaram muito o filme. São diálogos mordazes, às vezes carregados de um humor macabro, principalmente os que são ditos pela massagista (Thelma Ritter). Na história original o herói era um inválido, que acabava levando um tiro do assassino e a bala pegava, imaginem só, em um busto de Beeethoven. O Hitchcok, em vez de aproveitar esta cena absurda, inventou o lance genial dos flashes da máquina fotográfica etc.O roteiro é bastante original na apresentação da intriga, pois o herói, ao contrário do que costuma acontecer nas histórias policiais, está imobilizado e faz suas investigações usando o telefone, a luneta, o binóculo, a teleobjetiva, enfim, os seus próprios instrumentos de trabalho. E aí vocês vêem como os acessórios podem assumir uma importância particular em um filme.

CONSTRUÇÃO DRAMÁTICA

A construção dramática é a do drama clássico com unidade de tempo, lugar e ação. Com um detalhe interessante: é como se nós estivessemos duplamente no cinema. Nós vemos o Jeff e seus problemas que, por sua vez, nos faz ver as pequenas misérias de seus vizinhos. Estes vizinhos são personagens de “filmes dentro do filme”. Eles são distribuídos em sequências, que são enquadradas pelo Jeff com o binóculo ou a teleobjetiva, como se estivesse reinventando os planos, uma metalinguagem.

CENÁRIO.

O cenário ao fundo,James Stewart, Grace Kelly, Hitchcock.

O cenário é confinado. Tudo se passa em um mesmo lugar: o pátio interno de um edifício. O Hitchcock retoma o desafio técnico que enfrentara em Um Barco e Nove Destinos / Lifeboat / 1944, filme no qual a ação se passava toda em um bote salva vidas e Festim Diabólico / Rope / 1948, que se passava todo em um apartamento.   Ele planejou tudo minuciosamente, fazendo questão de supervisionar a construção dos cenários. Além do seu costumeiro desenho de produção. Ele desenhava cena por cena do filme dando instruções minuciosas sobre cada plano, cada movimento de câmera, cada corte, em uma espécie de montagem a priori. Depois que tudo era posto no papel, dava seu trabalho por encerrado. A filmagem era mera formalidade, mera execução. O crítico André Bazin ficou espantado quando foi assistir à filmagem de Ladrão de Casaca / To Catch a Thief / 1955 e viu o Hitchcock entediado, sentado  em uma cadeira, quase dormindo. E James Stewart contou,  durante uma entrevista coletiva à imprensa da qual participei  (em outubro de 1980, quando ele veio ao nosso país para promover o relançamento de quatro filmes de Hitchcock), que nunca viu o Hitchcock olhando pelo visor da câmera. É claro que há exagero nestes depoimentos, pois em uma filmagem às vezes ocorrem imprevistos; mas, de uma maneira geral era aquilo mesmo que acontecia. Segundo Stewart, Hitchcock era um dos poucos diretores que terminava o filme com 80 ou 100 metros de película filmada. A maioria deles terminava com 8 mil metros.

Grace Kelly e James Stewart com Hitchcock

 

DIREÇÃO.

O filme é um perpétuo exercício de estilo, que contém e resume a maior parte das proezas da obra anterior de Hitchcock. É uma espécie de súmula, uma obra-prima de suspense e humor. Nós estamos ao mesmo tempo, dentro do filme, subjugados pela trama policial e pelas leis do suspense, e fora dele, como observadores, ora risonhos, ora comovidos com a tragi-comédia humana que são aquelas vinhetas, aqueles aspectos do comportamento humano. E, apesar de todo virtuosismo técnico, trata-se de um estilo sóbrio, cristalino, econômico. A simplicidade e a clareza cujo segredo só os grandes cineastas conhecem.

É impressionante como Hitchock fica à vontade em um espaço reduzido, usando principalmente o ponto de vista subjetivo, as panorâmicas e o contraste constante entre os planos mais próximos e os mais afastados, Enfim, ele joga com a identificação e com a distância. E vocês notaram que quando o assassino percebe que a Lisa se comunica  com alguém do prédio vizinho, ele encara ostensivamente a câmera e dá um choque na platéia.  Tal como deu no Jeff. Ambos, a platéia e o Jeff, até então vinham observando tudo anonimamente  mas, a partir daí, o Jeff  se separa, se liberta do público, deixa de ser um voyeur como ele – a metaliguagem cede lugar à ação.

Grace Kelly e James Stewart

Além deste, há um outro momento em que o filme muda o seu ponto de vista subjetivo. É no final da cena em que a mulher começa a gritar, histérica, ao saber da morte do seu cachorrinho e os vizinhos chegam nas janelas, exceto o assassino, que fica fumando no escuro. A câmera aí, sai do apartamento do Jeff e a cena se torna totalmente objetiva. Esta cena ilustra uma regra do trabalho do Hitchcock que consiste em não mostrar uma vista geral do cenário até um auge dramático. É só naquele instante que ele mostra pela primeira vez todo o pátio. Certa vez ele contou  que estava fazendo um filme para a TV e havia uma cena na qual um homem entrava em uma delegacia para se entregar. Disse o Hitchock: “eu dei um close dele entrando, da porta se fechando atrás dele e dele caminhando até a mesa. Tudo em close. E então alguém me perguntou: “O senhor não vai mostrar todo o cenário para que as pessoas saibam que estamos em uma delegacia?”. E ele respondeu: “Porque que eu vou me preocupar com isso? O sargento que está sentado na mesa tem três listras no seu braço direito, que está perto da câmera, e isso é o bastante para dar a idéia de uma delegacia. Por que vou desperdiçar um plano geral que poderá ser útil em um mmento dramático? Este conceito de desperdício, de poupar a imagem para uso futuro é interessante.

Grace Kelly mostrando a aliança

 

Outra coisa que o Hitchcock faz admiravelmente é expor a ação e os personagens com muita economia de meios. Vejam a cena da abertura do filme. Ele se abre como o rosto do Jeff. A câmera se move para a parede, onde se vê fotos de carros de corrida virados na pista. Por meio deste simples movimento de câmera nós ficamos sabendo quem é o personagem, o que ele faz, e até como teria sido o seu acidente. É um exemplo de como se usa meios puramente cinematográficos para se contar uma história. É muito mais interessante do que se o Hitchcock tivesse posto alguém perguntando ao jeff como foi que ele quebrou a perna. Isso é o que um diretor comum faria, ele recorreria ao diálogo.

Grace Kelly

E por falar em diálogo, nós vimos que os diálogos são muito espirituosos, mas eu gosto muito é de uma cena muda. Aquela quando a Lisa entra no apartamento do criminoso e acha a aliança da vítima. Ela coloca a aliança no dedo e balança a mão para que Jeff a veja. O gesto tem dupla significação: é a vitória dela, achando a prova do crime e, ao mesmo tempo, uma insinuação para que Jeff se case com ela. É um toque irônico. A ironia está sempre presente nos filmes de Hitchcock.

Na filmagem, Grace Kelly (em pé), Wendell Corey James Stewart (sentados), Robert Burks (ao fundo no centro ), Hitchcock (na extrema direita)

FOTOGRAFIA E ILUMINAÇÃO.

Quanto à iluminação e à cor a gente tem um belo exemplo de sua utilização expressiva quando o assassino fica no escuro e o vermelho da brasa do seu cigarro aceso se reflete nos seus óculos. E depois, a cena climax, quando Jeff se defende usando os flashes da sua máquina fotográfica. A câmera aí se torna por um instante subjetiva e nós é que ficamos cegos com os clarões de luz. É uma sequência admirável e muito bem montada por George Tomasini, o mesmo que ajudou o Hitchcock em Psicose / Psycho / 1960. O Tomasini e o fotógrafo Robert Burks eram colaboradores assíduos do diretor assim como o Bernard Hermann que, entretanto, não participou de Janela Indiscreta.

James Stewart e Grace Kelly

SOM.

Enquanto a imagem se aproxima dos vizinhos através da luneta, do binóculo ou da telobjetiva, o som continua em plano geral. Isto é, o som não é audível como, por exemplo, na experiência mal sucedida da mulher solitária. O espectador é obrigado a construir um som subjetivo para essa sequência. O público assume a função de autor dos diálogos. Uma cena de bom emprego do som é quando o criminoso vai para o apartamento do Jeff. Ouve-se o barulho dos seus passos e outros ruídos, aumentando a tensão.

James Stewart e Grace Kelly

MONTAGEM.

Na entrevista que concedeu ao Truffaut, Hitchcock referiu-se à experiência de Kulechov que consistiu em colocar a imagem do ator Ivan Mosjoukine  sucessivamente ao lado de um prato de sopa, de uma mulher moribunda e o deuma criança sorrindo. O rosto do ator em uma atitude impassível, parecia exprimir em cada caso: fome, pena ou ternura. Pois bem, o Hitchock fez a mesma experiência com dois closes de James Stewart. Ele deu um close de Jeff e em seguida cortou para o cachorrinho que está descendo em uma cesta; quando cortou de novo para o  mesmo close, o Jeff parece que está dando um sorriso amável.  Depois ele usou novamente o close, desta vez cortando para uma garota semi nua, exercitando seus passos de dança; e quando volta a mostrar o close do James Stewart, o sorriso de Jeff parece lascivo. Mas era sempre o mesmo close, com a mesma expressão do ator.

PERSONAGENS.

Jeff é o centro do filme. Ele está sempre presente. Sempre como testemunha. Ele é “aquele que espia” e nós o espiamos, espiando. É um personagem curioso e cínico. E parece misógino. A Lisa está louca para casar com ele,. Mas ele, sendo um homem acostumado com a ação e a aventura, não quer perder a liberdade. A cena da primeira aparição de Lisa, sua sombra cobrindo o corpo do Jeff, é bastante simbólica do seu desejo de conquista. E a cena do beijo prolongado também é significativa da oposição Jeff-Lisa. Ela, envolvente e ele distraído, com a atenção voltada para outro lugar, preocupado como o que está acontecendo do outro lado do pátio.  Lisa é a manequim, elegante, uma dondoca; mas depois se revela como uma moça de ação e coragem, que poderá  ser uma boa companheira para Jeff. A Grace Kelly era mesmo a atriz ideal para o papel.

Thelma Ritter e James Stewart

A massagista é responsável pelos diálogos mais engraçados. Suas reflexões sobre o casamento, seu humor macabro, são hilariantes. Thelma Ritter sempre foi uma ótima atriz coadjvante. O detetive (Wendell Corey) é sarcástico, incrédulo. É uma figura antipática. O Hitchcock, desde que contou aquela história da sua infância, quando ficou preso em uma cela por ter feito uma travessura, ficou com a fama de ser contra a polícia, mas sempre que tocavam no assunto, ele dizia: “Não sou contra a polícia. Só tenho medo dela”.

Grace Kelly, Wendell Corey, James Stewart

Raymond Burr

Quanto ao casal Thorwald, a mulher, apesar de doente, é despótica, é uma megera, quase justificando o ato do marido. E o Raymond Burr é um excelente vilão. O Hitchcock tinha uma regra: quanto melhor o vilão, melhor o filme. A mulher solitária é uma personagem triste, levemente ridicularizada, No desespêro, ela acaba recorrendo ao aliciamento e a experiência  é catastrófica, porque o gigolô não tem a delicadeza que ela esperava. O casal sem filhos transfere o amor para o cachorrinho. Os jovens récem-casados estão sempre em lua de mel mas, quando amanhece, já começam a brigar. O compositor almeja o sucesso e bebe. A bailarina, é um tanto exibicionista e cortejada pelos admiradores. Talvez seja uma imagem de Lisa que era manequim e deveria também ser cortejada. A escultora, feia, bota no barro as formas horrorosas e futuristas, uma nota de humor tipicamente hitchcockiana.

Grace Kelly

CONCLUSÃO.

O Hitchcock tinha um espírito prático, uma queda para a engenharia e estudou mecânica e eletricidade. Talvez por isso o seu grande estímulo tenha sido sempre o desafio técnico. Nós podemos mesmo dizer que o conteúdo de seus filmes no fundo era a própria técnica, que ele dominava de maneira absoluta e punha a serviço da diversão, do entretenimento. Como disseram Claude Chabrol e Eric Rohmer no seu livro clássico sobre ele, “A forma dos filmes de Hitchock cria o conteúdo”. Hitch costumava dizer: “Muitos diretores fazem filmes que são pedaços da vida, os meus são pedaços de bolo”. Não estou interessado em conteúdo, ele dizia, “Sou como um pintor que não se importa com as maçãs que está pintando, se são doces ou amargas. O que interessa é seu estilo, sua maneira de pintá-las – daí é que vem a emoção”. Hitchcock é um formalista típico, que faz a arte pela arte, a arte como um fim em si mesma. Ele sempre esteve preocupado com a forma, como emocionar o espectador através de meios puramente cinematográficos.  E é isso que me fascina, a sua maneira de fazer cinema, um cinema puro, essencialmente visual e não como ele próprio dizia, “fotografias de pessoas falando”, um cinema de invenção pictórica.

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