Erich Von Stroheim trouxe para o Cinema Mudo maturidade, sofisticação e um estilo original e agressivo, no qual se juntam, contraditoriamente, realismo e romantismo, crítica social e esteticismo, satanismo e espiritualidade, beleza e abjeção.
Seus filmes são um requisitório contra a sociedade, quase sempre a austro-húngara nos últimos estágios de decadência, com a qual parece manter uma relação de amor e ódio e que descreve com uma minúcia balzaquiana, procurando mostrar a verdadeira vida com toda a sua sordidez, violência e sensualidade.
Foi ainda precursor da técnica moderna – por ter dado menos importância à montagem, preocupando-se mais com a acumulação de detalhes significativos dentro de cada cena – e sua influência se fez notar na obra de eminentes diretores como Josef Von Sternberg, Ernst Lubitsch, G.W.Pabst, Max Ophuls, Orson Welles, Billy Wilder, John Huston, William Wyler, Luchino Visconti, etc.
Entretanto, esse grande artista não soube condensar o que tinha para dizer, indispondo-se com os produtores, os quais, espantados com seu perfeccionismo e concepções inusitadas, transformaram-no no gênio maldito do Cinema.
Erich Oswald Stroheim nasceu em Viena, a 22 de setembro de 1885, não como descendente de uma baronesa alemã e de um conde austríaco, como se pensava, mas filho de um fabricante e vendedor de chapéus, Benno Stroheim e de Johana Bondy, ambos membros da comunidade israelita. Porém Stroheim adotou o catolicismo (pelo menos nos seus elementos ritualísticos), com a paixão fervorosa de um autêntico convertido.
Em 1909, aos vinte quatro anos de idade, Stroheim emigrou para a América e, nos primeiros tempos em Hollywood, trabalhou como figurante, assistente de direção, consultor militar e cenógrafo, principalmente sob as ordens de David Wark Griffith e John Emerson.
Quando os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial, Stroheim interpretou papéis de oficiais alemães desalmados, sendo identificado pela frase de propaganda: “o homem que você gosta de odiar”.
A cena de estupro em Coração da Humanidade / The Heart of Humanity / 1918 ficou famosa: Stroheim consegue finalmente encurralar Dorothy Phillips, provocante no seu uniforme da Cruz Vermelha. No mesmo quarto em que ela se encontra, está um bebê órfão, de quem Dorothy está cuidando. Enquanto do lado de fora do prédio sobe a fumaça da cidade em chamas, Stroheim começa a rasgar o uniforme da enfermeira com os dentes. Os gritos de Dorothy se misturam com os da criança, até que Stroheim perde a paciência. Ele apanha o bebê no berço e joga-o pela janela do segundo andar. “Eu me senti péssimol por causa desta cena”, relembrou Stroheim numa entrevista em 1942. “Aquela criança berrava muito e após o quarto take ficou histérica. Eu era o vilão no filme, mas o verdadeiro vilão foi a mãe do bebê, que deixou seu filho sofrer tudo aquilo por uma nota de cinco dólares”.
Após o armistício, Stroheim estreou na direção com o filme Maridos Cegos ou Castigo do Sedutor/ Blind Husbands / 1919, produzido pela Universal. A ação tem lugar em Cortina d’Ampezzo, nos Alpes. Carente da afeição de seu marido, o famoso cirurgião americano Dr. Armstrong, (Sam de Grasse), Margaret (Francelia Billington) se deixa seduzir pelo oficial da cavalaria austríaco, Erich von Steuben (Erich Von Stroheim). Este entra no quarto de Margaret à noite, mas encontra o guia Silent Sepp (Gibson Gowland), amigo do Dr. Armstrong, que mudara de quarto, para proteger Margaret das investidas do militar. No dia seguinte, o doutor e Von Steuben escalam um pico, conhecido por sua inacessibilidade. No topo da montanha, ao ajudar Von Steuben, segurando-o pelo casaco, Armstrong descobre uma carta de Margaret no bolso dele; porém o vento a arranca de suas mãos, antes que ele pudesse ler o cvonteúdo. O ciúme o exaspera. Ele pensa em matar Von Steuben, mas apenas o agride, corta a corda que prendia um ao outro, e desce a montanha. Armstrong reencontra a carta e lê: “Amo meu marido e meu marido me ama”. Neste momento, chegam ao local Margaret e Silent Sepp e, quando todos voltam a atenção para Von Steuben, ele acabara de despencar no precipício.
Neste filme de principiante, ainda imperfeito e um pouco esquemático, percebe-se o gosto do cineasta pelo melodrama e pela psicologia, um enfoque adulto das relações sociais e sexuais, e o esboço do tipo do conquistador cínico e lascivo, que será aperfeiçoado nas suas obras seguintes.
A linguagem cinematográfica, todavia, não chega ao nível das idéias do diretor. O domínio da câmera, da montagem e do ritmo é pouco imaginativo. Por exemplo, na montagem paralela no final do filme, quando a esposa e o guia ficam cada vez mais apreensivos na cabana, enquanto os dois homens brigam na montanha, não há suspense. O talento de Stroheim concentra-se na brilhante composição dos personagens, observação de detalhes e criação de ambiente, aspectos para os quais terá sempre um cuidado especial.
Em 1919, Stroheim fez The Devil’s Pass Key, exibido no Brasil com os títulos de Machiavelismo e A Chave do Demônio que, tal como seu filme anterior, é um enfoque adulto e malicioso da relação social, sentimental e sexual de um matrimônio, tendo como heroína novamente uma esposa insatisfeita, Grace Goodwright (Una Trevelyn) lisonjeada pelas atenções de um oficial do Exército, Capitão Rex Strong (Clyde Fillmore).
Segundo consta, não existe cópia disponível em nenhuma cinemateca do mundo, impossibilitando a reavaliação da obra. Em julho de 1940, uma inspeção no depósito de cópias da Universal demonstrou que, uma parte do quinto rolo estava se decompondo; pouco tempo depois, em 8 de maio de 1941, o estúdio destruiu todo o negativo.
Uma das poucas referências que temos a respeito dessa realização, diz respeito a uma série de experimentações em estilização fotográfica e a manipulação da cor para efeitos dramáticos.
A terceira realização na Universal, Esposas Ingênuas / Foolish Wives, de 1922, destacou mais a singular personalidade do diretor. Em Monte Carlo, um aventureiro, assumindo o nome de Conde Wladislaus Sergius Karamzin (Erich von Stroheim), vive uma existência de luxo na companhia de duas “primas”, Olga (Maude George) e Vera (Mae Bush) Petschnikoff, que se fazem passar por princesas, mas são de fato ex-condenadas, recentemente saídas da prisão. Com a ajuda de suas cúmplices, Karamzin passa adiante dinheiro falsificado e, para aumentar seus rendimentos, seduz mulheres ricas e faz chantagem com elas. Ele escolhe Helen (Miss Dupont), a esposa do embaixador americano, Andrew J. Hughes (Rudolph Christians, substituído após sua morte repentina por Robert Edeson), como sua próxima vítima. Maruschka (Dale Fuller), a criada que serve aos impostores, amante de Karamzin, pressiona-o para que se case com ela e, consternada com os fingidos problemas do “Conde”, entrega-lhe todas as suas economias. Mais tarde, enciumada, Maruschka põe fogo no aposento onde, simulando a necessidade de saldar dívidas de jogo, Karamzin induzira a mulher do diplomata a encontrar-se com ele. Quando chegam os bombeiros, Karamzin é o primeiro a saltar do prédio em chamas. A criada suicida-se, atirando-se ao mar. Olga e Vera são presas e desmascaradas. Depois de ser esmurrado pelo marido furioso, Karamzin procura refúgio na casa do velho falsário Caesare Ventucci (Cesare Gravina), seu cúmplice, onde violenta a filha deste, Marietta (Malvine Polo), uma adolescente semi-idiota. O pai de Marietta o surpreende, mata-o, e joga o cadáver num bueiro.
Stroheim serve-se desse melodrama folhetinesco, para pintar um quadro de costumes cheio de maldade e mentira, um universo de horror e de falsidades – as falsas aparências e os falsos sentimentos. Ele nos faz acreditar nessas aventuras rocambolescas pelo preciso estudo dos personagens, pela veracidade dos cenários e pela riqueza de pormenores irônicos, sórdidos e sensuais.
Ninguém esquece Karamzin beijando a criada e enxugando os lábios com desgosto; fingindo o pranto com a água usada para fazer as unhas; dando as costas para a esposa do embaixador que se despe, mas espiando as escondidas por um pequeno espelho; o encontro de Mrs. Hughes com o militar mutilado, que ela julga rude, por não ter apanhado objetos que ela deixara cair no chão; o bode malcheiroso e o monge que surge abruptamente, impedindo os desígnios lúbricos de Karamzin; a libertação dos pássaros antes do ato incendiário e a silhueta da suicida, tendo ao fundo o mar; a retirada das cabeleiras postiças das duas “princesas”; a iluminação contrastada nas cenas de sedução, como o passeio no bote e a visita de Karamzin ao quarto da jovem abobalhada.
Nesses instantes, Stroheim antecipa todas as suas obsessões – sadismo, erotismo, corrupção, enfermidade, paixão e morte – que serão continuadamente elaboradas nos seus filmes, cada vez com maior truculência. A partir do tema básico e trivial da desilusão de uma esposa tola que finalmente encontra no marido a nobreza que procurava num impostor, Stroheim faz um julgamento moral e mordaz de uma sociedade de cuja degeneração não duvida, mas que, ao mesmo tempo, o fascina.
A produção foi um pesadelo sem precedentes em Hollywood e gerou a reputação de Stroheim como um “maníaco perfeccionista”. Ele mandou reconstruir com o máximo de exatidão as fachadas principais do Cassino de Monte Carlo, do Hotel de France e do Café de Paris na área externa do estúdio da Universal. Porém os lados opostos desses edifícios – supostamente contemplando o Mediterrâneo – tiveram que ser construídos em Pont Lobos, perto de Del Monte, na península de Monterey, a muitos quilômetros de distância da Universal City. Na locação de Pont Lobos, uma tempestade destruiu a maior parte do que havia sido construído, obrigando os carpinteiros a começar tudo de novo. Stroheim queria mostrar cenários, decoração, vestuário, objetos e o comportamento dos personagens da forma mais correta possível, queria que tudo parecesse autêntico.
Esta paixão pelo detalhe naturalmente elevou as despesas a tal ponto, que Irving Thalberg, o novo chefe de produção da Universal, depois de muitas discussões com o diretor, foi obrigado a intervir, mandando recolher as câmeras, para que a filmagem fosse encerrada.
Após onze meses de trabalho, Stroheim entregou ao estúdio um filme de seis horas e meia, impossível de ser distribuído. Era preciso fazer com que a obra tivesse uma duração “razoável”. O filme sofreu vários cortes (feitos por Arthur Ripley) e foi exibido, na estréia em 1922, com três horas e meia de duração. Porém os críticos, as revistas de fãs e os trade papers acharam que o espetáculo ainda estava muito longo.
Quando o filme entrou em circulação normal, novos cortes e novas montagens foram feitos sucessivamente, e o filme ficou com cerca de uma hora e quarenta e cinco minutos. Em 1972, sob os auspícios do American Film Institute, Arthur Lennig fez uma restauração, para duas horas e vinte e um minutos, que podemos ver hoje no DVD lançado pela Image Entertainment em 2000.
Apesar dessa mutilação, Esposas Ingênuas causou um impacto sensacional na época do seu lançamento com seu melodrama de adultério, falsificação de moedas, corrupção na aristocracia, simulação, morbidez, violência e cinismo.
Ele continua sendo um filme típico do gênio de Stroheim, “uma espécie de visão baudelairiana de um mundo onde estão lado a lado falsos aristocratas, burgueses verdadeiros e pessoas do povo, vítimas dos mesmos demônios” (Jacques Siclier).
Por ordem de Irving Thalberg, Stroheim foi substituído por Rupert Julian na direção de Redemoinho da Vida / Merry-Go-Round / 1922 no meio da filmagem. Alguns dos motivos de sua dispensa, constantes da carta de demissão, foram: insubordinação, deslealdade à companhia que o contratara, idéias extravagantes, atrasos desnecessários, flagrante desprezo pelos princípios da censura; porém o diretor deixou marcas do seu estilo na cenografia e na construção de algumas cenas e introduziu no enredo o ambiente vienense e temas que seriam desenvolvidos em A Viúva Alegre / The Merry Widow / 1925, A Marcha Nupcial / The Wedding March / 1928 e Minha Rainha / Queen Kelly / 1929.
Apenas para se ter uma idéia do argumento, escrito por Stroheim, o impetuoso Conde Franz Maximilian von Hohenegg (Norman Kerry), noivo da Condessa Gisella von Steinbrueck (Dorothy Wallace), enamora-se de Agnes Urban (Mary Philbin), jovem empregada num parque de diversões, que é também cobiçada pelo patrão, Schani Huber (George Siegmann) e por um colega de trabalho corcunda, Bartholomew Gruber (George Hackathorne). Após alguns incidentes – que lembram os de A Marcha Nupcial, tais como o matrimônio sem amor entre Franz e Gisella e a tentativa de estupro que Agnes sofre por parte do brutal concessionário do parque – e de uma guerra durante a qual, pensando que Franz morreu, Agnes promete casar-se com o colega corcunda, tudo acaba bem. Giselle morre e Bartholomew abre mão de Agnes em favor do conde.
Em Ouro e Maldição / Greed / 1924, adaptação bastante fiel do romance zolaesco de Frank Norris, produzida pela Goldwyn Company, Stroheim afasta-se dos ambientes grã-finos europeus e escrutina com impiedade o meio de imigrantes da classe média baixa dos Estados Unidos, focalizando particularmente o drama da degradação de três seres humanos, impulsionados pela frustração, pela miséria e pela voracidade.
McTeague (Gibson Gowland) trabalha de início numa mina de ouro na Califórnia e depois como assistente de um dentista ambulante. Após aprender o ofício, abre um consultório em San Francisco, sem a necessária licença. Ali, faz amizade com Marcus (Jean Hersholt) e se apaixona pela prima e “queridinha” deste, Trina (ZaSu Pitts). Ele confessa sua paixão a Marcus e este, cavalheirescamente, desiste de cortejar Trina. Esta ganha cinco mil dólares na loteria e se casa com McTeague. Frustrada pela incomprensão espiritual e física do marido, Trina transfere sua potencialidade sentimental e sexual para o dinheiro, tornando-se uma avarenta. Arrependido de ter renunciado a Trina e com inveja de McTeague, Marcus exige uma parte do dinheiro. Os dois se desentendem e Marcus denuncia McTeague às autoridades por exercício ilegal da profissão. Desprovido do meio de subsistência, McTeague entrega-se à bebida e Trina, evitando tocar no seu tesouro, vai trabalhar em serviços de limpeza. Finalmente, McTeague mata Trina e foge com o dinheiro. Marcus persegue-o até o Vale da Morte e, no confronto, MacTeague tira a vida do ex-amigo, sem perceber que este o havia algemado. Forçado a arrastar o corpo inerte de Marcus e extenuado pelo sol inclemente do deserto, McTeague aguarda o fim trágico ao lado da mula morta, do cantil vazio e das moedas de ouro espalhadas na areia.
O contrato de Stroheim com a Goldwyn não lhe dava carta branca. Era mais restritivo do que o que assinara com a Universal, porque foram estabelecidos tetos orçamentários e limitações rígidas com relação ao tempo de duração do filme e da filmagem. Stroheim não cumpriu nenhuma das clásusulas previstas e, em 18 de março de 1923, a Goldwyn Company começou a tomar as providências legais, para removê-lo da produção. Entretanto, em 10 de abril, o estúdio se fundiu com a Marcus Loew’s Metro Pictures Corporation e Irving Thalberg tornou-se o chefe da produção. Ficar novamente sob a vigilância de Thalberg foi um choque para Stroheim, mas pelo menos Ouro e Maldição já estava pronto e montado numa cópia de trabalho. O próprio diretor reduzira a metragem originária de 45 rolos (nove horas e meia) para 24 rolos. Feito isso, Stroheim enviou sua cópia para o amigo Rex Ingram, e este entregou-a para seu montador, Grant Whytock, que havia trabalhado com Stroheim em The Devil’s Pass Key. Whytock estudou o filme cuidadosamente e propôs cortá-lo em duas seções: um filme de oito rolos terminando com o casamento de Trina e McTeague e um filme de sete rolos prosseguindo com a história até o final no Vale da Morte. Ele eliminou duas subtramas completas, uma concernindo um negociante de ferro-velho e sua mulher meio louca e outra relacionada com o pai alcoólatra de McTeague. Dos 24 rolos da versão de Stroheim sobraram apenas 18 rolos.
Quando o estúdio finalmente despediu Stroheim, Thalberg entregou o filme a um redator de títulos, Joseph Farnham e este, eliminando longos trechos de ação e preenchendo as lacunas com subtítulos de continuidade, chegou a uma cópia de dez rolos (aproximadamente duas horas). Esta versão foi vista durante muitos anos nas cinematecas até que, em 1999, a Turner Classic Movies (TCM), usando as fotografias fixas tiradas durante a produção do filme, para documentar cada cena, reconstruiu uma versão de quatro horas, que esclareceu vividamente as verdadeiras dimensões do filme e recriou o seu esquema de cor original com o uso do Handschiegl Process de colorização seletiva de objetos dentro do quadro. Stroheim tinha uma predileção especial pela cor, tendo usado a colorização à mão em Esposa Ingênuas e o Technicolor em duas cores em cenas de A Víuva Alegre e A Marcha Nupcial.
Sem deixar de seguir o modelo naturalista de Norris, Stroheim insuflou ao tema a sua poesia visionária, que transparece em momentos soberbos, nos quais se nota o emprego do refrão, da elipse e do símbolo: McTeague acariciando o passarinho no começo e no fim do filme; o primeiro beijo de McTeague em Trina, anestesiada na cadeira do dentista; Trina e McTeague sentados no cano de esgoto, ele tocando “Hearts and Flowers” na harmônica, a chuva, o beijo e o trem que avança velozmente; um gato e dois passarinhos como representação dos três personagens centrais; o enorme dente de ouro que serve de indicação do consultório; o cortejo fúnebre num contraponto alusivo à festa nupcial; Trina alimentando com carne estragada o marido que se tornara mendigo e se deitando na cama com as moedas de ouro espalhadas pelo corpo; o assassinato invisível de Trina na sala ironicamente ornamentada de enfeites de Natal; o horripilante desfecho no Vale da Morte, suscitando a impressão de desespero e futilidade.
Formando com Esposas Ingênuas e A Marcha Nupcial o trio indiscutível de obras-primas do cineasta, Ouro e Maldição chegou a ser apontado entre os dez melhores filmes de todos os tempos e até hoje, apesar dos cortes, continua impressionante.
Apesar de sua qualidade artística, o filme não obteve êxito comercial e Stroheim foi obrigado a fazer A Viúva Alegre / The Merry Widow / 1925 (aceitando contra a sua intenção, a presença de dois astros, John Gilbert e Mae Murray), para a Metro-Goldwyn- Mayer. Ele, porém, transformou a leve e charmosa opereta de Franz Lehar numa comédia-dramática sarcástica, aproveitando a história de amor, para satirizar mais uma vez uma aristocracia em decomposição, e inventando o personagem do Barão Sadoja, que enriqueceu a galeria de vilões grotescos e depravados de sua filmografia.
Em Castellano, capital do reino fictício de Monteblanco, Príncipe Danilo (John Gilbert), o segundo na ordem sucessória do trono depois do primo, Príncipe Mirko (Roy D’Arcy), apaixona-se por Sally O’Hara (Mae Murray), dançarina americana apresentando-se na cidade. Quando Danilo declara a intenção de desposá-la, sua mãe convence-o da inconveniência do matrimônio, e o Rei manda dizer a Sally, que deve deixar o país. Abandonada, Sally casa-se com o Barão Sadoja (Tully Marshall), velho aleijado e fetichista, cujos milhões sustentam o reino. O barão morre na noite de núpcias e Sally vai gastar sua fortuna em Paris. Ali chegam também Danilo – inconformado com a perda da amada – e Mirko – com a incumbência de propor novas bodas à viúva, a fim de recuperar a fortuna de Sadoja para Monteblanco -, travando-se o conflito entre os dois.
Stroheim elaborou quadros provocantes e perversos – o jantar que Danilo oferece a Sally num cômodo, onde se vêem os dois sentados à mesa e, ao fundo, deitadas no leito, duas jovens prostitutas seminuas e de olhos vendados, tocando instrumentos musicais; a orgia dos oficiais com a presença de prostitutas e rapazes também meio desnudos e mascarados com os rostos pintados de branco e perucas louras; a fixação de Sadoja pelos pés e sapatos de mulher e sua morte na alcova; as motivações de cada admirador ao ver Sally dançando, através dos close-ups alternativos dos seus pés (o amor patológico de Sadoja), de seu busto (o amor carnal de Mirko) e do seu rosto (o amor puro de Danilo) – e, mesmo sem ver tudo o que foi imaginado pelo diretor por causa da censura, o público deixou-se arrebatar pelo espetáculo, consagrando-o nas bilheterias.
A Marcha Nupcial / The Wedding March / 1928, produzido por P.A. Powers para a Paramount, combina crueldade e pureza num esplendor barroco, para contar as vicissitudes de um verdadeiro amor, contrariado pelo interesse e pelas barreiras sociais. Na trama, os Wildeliebe-Rauffenburg (Maude George, George Fawcett), membros da família real da Áustria, exigem que o filho, Príncipe Nicki (Erich von Stroheim) faça um “bom” casamento e a escolhida é Cecelia (ZaSu Pitts), jovem feia e coxa, filha de um riquíssimo fabricante de emplastros. Entretanto, Nicki apaixona-se por Mitzi (Fay Wray), noiva de Schani (Matthew Betz), um açougueiro. O matrimônio é acertado entre o pai de Nicki e o de Cecelia durante uma orgia. Ao ler a notícia das bodas, Mitzi cai em prantos e, quando o açougueiro vem consolá-la, ela o repele, reafirmando o amor por Nicki. Schani tenta violentá-la, mas o pai dele chega a tempo de impedí-lo. Transtornado, Schani ameaça matar Nicki. Para evitar o crime, Mitzi promete casar-se com ele. Os noivos passam de carruagem diante dos dois e Schani levanta Mitzi, chorando, para que ela possa acompanhar o desfile. “Quem era aquela doce jovem em prantos?”, pergunta Cecelia. “Nunca a vi em minha vida”, responde Nicki.
A segunda parte do filme, intitulada The Honeymoon, começa com a viagem de lua-de-mel para a propriedade real no alto de uma montanha onde, após alguns incidentes, os quatro personagens centrais se encontram perto de um chalé de caça. Mitzi tenta desesperadamente avisar Nicki de que Schani pretende matá-lo e Cecelia coloca-se na frente da bala que Schani endereçara para seu marido. Schani é levado pelos caçadores e Cecelia fica mortalmente ferida. No funeral de Cecelia, a mãe de Nicki sussurra no ouvido do filho, que o casamento fôra um sucesso financeiro. Nicki é enviado para uma missão na fronteira da Sérvia, onde bandos de renegados aterrorizam a zona rural. Mitzi entra para um convento, o qual é atacado por um dos bandos de renegados liderados por um corcunda e seu lugar-tenente, Schani. Os dois disputam a posse de Mitzi, mas as tropas de Nicki chegam a tempo de salvá-la. Numa luta terrível, Nicki vence Schani, e depois se casa com Mitzi no altar do convento.
Stroheim evoca a Viena de sua juventude, com seu estilo de vida resplandecente, a aristocracia, os novos ricos e o recém-formado proletariado, que despreza a elite de dragonas e capacetes de aço. Possuído por um rancor dostoievskiano e, concomitantemente, por uma ternura nostálgica, o diretor perscruta as instituições moralmente anêmicas do declínio do império dos Habsburgos e expõe os vícios e as baixezas dos indivíduos (e tamém os seus sentimentos mais puros) com notável intuição psicológica e artística.
Como nos outros filmes do cineasta, o lírico, o sórdido e o alegórico – o flerte silencioso e a jovem do povo colocando um buquê de violetas dentro das botas do garboso oficial montado a cavalo; o idílio de Nicki e Mitzi no parque, coroado por flores de macieira e pelo luar; o aristocrata e o novo-rico rastejando no assoalho do prostíbulo, cada qual querendo explorar o outro, vendendo os filhos num infame contrato de casamento; a tentativa de estupro no matadouro entre as carcaças sangrentas dos animais; Cecelia recebendo a notícia de suas bodas vestida de branco e soltando um par de pombas; o fantasma do “Homem de Ferro” e as mãos do organista acompanhando a faustosa e lúgubre cerimônia de casamento que se transformam nas de um esqueleto – são conjugados admiravelmente pelo poder de expressão de um extraordinário cineasta.
Stroheim completou a primeira parte, que foi exibida mais ou menos como planejou; porém não terminou a segunda parte, lançada depois, somente na Europa, junto com um resumo da primeira, numa remontagem feita por Josef von Sternberg. The Honeymoon nunca foi exibido nos Estados Unidos, mas apenas na Europa e na América do Sul, inclusive no Brasil, onde recebeu o título de Lua-de-Mel. A única cópia sobrevivente, adquirida pela Museum of Modern Art Film Library em 1952, foi entregue à Cinemateca Francesa e tragicamente destruída num incêndio em 1959. Em 1953, A Marcha Nupcial, foi restaurado por Stroheim na mesma Cinemateca com a trilha de som ótico original. Esta versão fêz parte da Retrospectiva Stroheim, ocorrida no Cinema Marrocos durante o I Festival Internacional de Cinema do Brasil, realizado na cidade de São Paulo em 1954, com a presença do grande cineasta.
Minha Rainha / Queen Kelly / 1928, produzido pela Gloria Productions e distribuído pela United Artists, tem como personagens principais a Rainha Regina (Seena Owen), soberana neurótica de um reino imaginário, o primo e noivo Príncipe Wolfram (Walter Byron) e Patrícia Kelly (Gloria Swanson), pensionista de um orfanato religioso, por quem ele se apaixona. Forjando um incêndio, Wolfram rapta a jovem e a esconde no palácio da noiva. A rainha surpreende os dois em pleno idílio, expulsa Patrícia a golpes de chicote, e manda prender o príncipe. Depois de uma tentativa frustrada de suicídio, jogando-se num rio, a heroína é levada de volta ao orfanato. Um telegrama convoca-a para ir à África, onde a tia moribunda lhe pede que se case com Jan Bloehm Vryheid (Tully Marshall), velho aleijado e libidinoso, e lhe deixa um bordel com herança. Após a morte de sua protetora, Patrícia recusa viver com o marido, porém assume a administração do prostíbulo, sendo chamada de “Rainha Kelly” por sua postura nobre. Entrementes, Wolfram recupera a liberdade, parte em busca de Patrícia e, quando esta fica viúva, os dois se casam. Regina é assassinada, Wolfram sobe ao trono, e Patrícia se torna realmente uma rainha.
Stroheim retoma o tema do príncipe devasso, regenerado pela inocência de uma linda plebéia, para retratar ainda outra vez a aristocracia degenerada e exibe sua característica predileção pelos detalhes insólitos e eróticos – os calções de Patrícia deslizando até os pés no momento em que o belo príncipe passa com a tropa; a demoníaca Regina perambulando quase nua pelo palácio suntuosamente decorado com o gato branco nas mãos e depois chicoteando freneticamente a órfã aterrorizada; Patrícia vestida de noiva e o velho de muleta casando-se na presença do padre africano, uma prostituta negra e outra branca, coroinhas negros e a tia agonizante; a cama e o banheiro de Regina com esculturas de cupidos; Patrícia pedindo perdão a Deus na capela, com o rosto em close-up enquadrado por círios ardentes -, notando-se também uma maior movimentação da câmera e notáveis contrastes em preto-e-branco.
Insatisfeitos com os caprichos de Stroheim, o produtor Joseph P. Kennedy e a estrela Gloria Swanson, mandaram interromper a filmagem e depois ela decidiu lançar, somente no exterior, uma remontagem com desenlace diferente: Patrícia morria afogada e Wolfram suicidava-se ao lado do seu caixão. Em 1985, graças aos cuidados com que a atriz conservou o material original, Dennis Doros produziu para a Kino International – com a inserção de fotografias fixas – uma versão de 97 minutos (do que seria um espetáculo de cinco horas, se a obra não tivesse ficado inacabada), mas com o final escrito por Stroheim.
O colapso de Minha Rainha foi o último ato na destruição da carreira de Stroheim. Como e por quê o filme não foi completado? Numa entrevista para a BBC, Gloria Swanson disse que existiam várias histórias a respeito e que, naturalmente, a versão de Stroheim era diferente da sua.
Stroheim afirmou, numa carta escrita para Peter Noble, que Joseph P. Kennedy mandou interromper a produção, quando percebeu que o cinema falado significaria “o toque fúnebre dos filmes mudos”. Já o argumento de Swanson era o de que havia uma censura na época e o filme certamente iria para a cesta de lixo, dando como exemplo o fato de que Stroheim originariamente especificara a locação na África, o “Poto-Poto Saloon”, como um salão de baile, mas durante a filmagem este se tornou um bordel.
Entretanto, como explica Richard Koszarski em Von – The Life and Films of Erich von Stroheim (Limelight, 2001), livro de intensa pesquisa e deliciosa leitura, de onde colhí muitas informações e que recomendo a todos, Kennedy investira numa companhia interessada em explorar os talkies (RCA), antes mesmo que Minha Rainha entrasse em produção e pensou em transformá-lo pelo menos num filme parcialmente falado no verão de, quando Stroheim ainda estava dirigindo. De modo que a tentativa de botar a culpa na chegada do som, parece improcedente. Quanto à alegação de Swanson, esta também não procede, porque Koszarski verificou que o roteiro original, conservado na George Eastman House, não deixava dúvida quanto à exata natureza do lugar. Kosarski conclui que somente restava como explicação o efeito cumulativo do delírio diretorial de Stroheim com os seus excessos financeiros.
Na magnífica série de Kevin Brownlow sobre o Cinema Mudo, o fotógrafo Paul Ivano conta com muita graça como Stroheim mandou Tully Marshall babar de verdade na mão de Mrs. Swanson e esta, indignada, ligou para Kennedy, e ele imediatamente despediu o diretor.
O único filme falado de Stroheim, Walking Down Broadway / 1937, produzido pela Fox, não chegou a ser exibido, porque os executivos do estúdio, apoiados na má reação do público numa pré-estréia, acharam que “o homem estava obsoleto, uma figura dos tempos do cinema mudo”. Lembrando-se do recente fracasso de The Struggle de Griffith, Philip K. Scheuer lamentou no New York Times: “Primeiro Griffith, agora Stroheim. Ambos artistas, assassinados pelo Tempo”. Refilmado por Edwin Burke e Alfred Werker, entrou em circulação em 1933, com o título de Alô Beleza / Hello Sister!
Desde então, Stroheim nunca mais conseguiu trabalhar como diretor. A necessidade ecnômica levou-ou a colaborar como argumentista e ator em vários filmes de nível artístico variável na França e nos Estados Unidos, sendo os dois melhores: A Grande Ilusão / La Grande Illusion / 1937 de Jean Renoir e Crepúsculo dos Deuses / Sunset Boulevard / 1950 de Billy Wilder.
Em 12 de maio de 1957, faleceu no castelo de Maurepas na França, aquele que, como disse André Bazin, fazia filmes ” verdadeiros como pedras e livres como os sonhos”.