Profissional notável pela sua dicção incisiva e interpretações precisas, Pierre Fresnay foi um dos grandes atores do cinema francês ao lado de Harry Baur, Raimu, Louis Jouvet, Michel Simon e Jean Gabin.
Pierre Jules Louis Laudenbach, nascido em Paris, no dia 4 de abril de 1897, de origem alsaciana por parte do pai, Jean Henri Laudenbach, e lorena por parte da mãe, Claire Dietz, foi educado em um meio universitário (seu pai era professor de filosofia), mas descobriu desde a infância, que queria ser ator. As famílias Laudenbach e Dietz, ambas protestantes, poderiam ser suspeitas de serem refratárias a certos meios, como o do teatro, reputados frívolos, porém a vocação do jovem Pierre não provocou nenhuma hostilidade, nenhuma reticência. Pelo contrário, ele foi estimulado por seu tio Jules Dietz (conhecido pelo nome artístico de Claude Garry), ex-membro (sociétaire) da Comédie Française, que apresentou Pierre, então com quatorze anos de idade, a Réjane. Em 17 de fevereiro de 1912, a conhecida atriz colocou o rapaz em uma peça encenada no seu teatro, para dizer apenas duas frases. Em novembro de 1914, Pierre Laudenbach foi admitido no Conservatório, na classe de Georges Berr, e escolheu o pseudônimo de Pierre Fresnay.
Durante a Primeira Guerra Mundial, muitos intérpretes masculinos foram convocados, abrindo-se espaço para novos talentos. Em consequência, Fresnay, aluno do Conservatório, e ainda menor de idade para ser mobilizado, foi selecionado para atuar na Comédie Française. Ele estreou no papel de Clitandre em “Les Femmes Savantes” de Molière e, após dez meses de trabalho duro, que lhe permitiram se familiarizar com o repertório da grande companhia teatral, foi enfim chamado para servir à pátria. Antes de partir, assinou um contrato para integrar o elenco permanente da companhia (pensionnaire), quando voltasse ao seu país.
Ao retornar, em 1919, nomeado membro da Comédie Française em 1924, ele se rebelou contra a negligência de alguns de seus colegas e contra os privilégios exorbitantes concedidos a outros; após um ato governamental, que ele considerou um abuso de poder, Fresnay pediu demissão. Quando estreou em um teatro do Boulevard (na peça de Sacha Guitry, “Un Miracle”) seus antigos patrões lhe moveram um processo, porque ainda o consideravam um membro da Comédie Française e, como tal, proibido de se apresentar em outro teatro. Fresnay foi condenado a pagar uma indenização por danos à instituição e, depois deste incidente, começou sua carreira no cinema sonoro com Marcel Pagnol.
Anos atrás, ele participara de alguns filmes mudos em pequenos papéis (Quand même / 1915, France d’abord / 1915, L’Essor / 1920, La Ballonée / 1922, Les Mystères de Paris / 1922, Le Diamant noir / 1922, Le Petit Jacques / 1923, Les Premières Armes de Rocambole / 1924, A Virgem Louca / La Vierge Folle / 1928) e de apenas um filme falado em curta-metragem, Ça aussi c‘est Paris / 1930), de pouca repercussão. Pierre Fresnay era tão pouco conhecido no meio do cinema, que muitos críticos escreviam seu nome … Fresnel.
Como na cena silenciosa não foi possível ao ator demonstrar sua magnífica dicção tão particular, seu primeiro papel realmente marcante foi na famosa trilogia de Marius / 1931 (Dir: Alexander Korda) – Fanny / 1932 (Dir: Marc Allégret) – Cesar / 1936 (Dir: Marcel Pagnol), comédias de costume meridionais, que revelaram o mundo de Pagnol com sua humanidade simples e calorosa, seu folclore marselhês, imposto nas tela pelo texto e por atores maravilhosos. Como Marius, o rapaz atormentado pelo desejo de evasão, Fresnay ofereceu ao público um bom trabalho mas, ao lado de Raimu, por melhor que fosse sua atuação, não poderia ter sido senão um coadjuvante eficiente.
Antes de ter a oportunidade de dar vida a um personagem que lhe permitiu demonstrar seu talento com maior intensidade em Sous les Yeux D’Occident / 1936 (Dir: Marc Allégret), Fresnay fez, entre Marius e Cesar, Ame de Clown / 1933 (Dir: Marc Didier, Yvan Noé); uma simples aparição em O Homem Que Sabia Demais / The Man Who Knew Too Much / 1934 (Dir: Alfred Hitchcock); A Dama das Camélias / La Dame aux Camélias / 1934 (Dir: Fernand Rivers, supervisionado por Abel Gance e primeiro dos oito filmes que fez com sua amante, Yvonne Printemps); Koenigsmark / Koenigsmark / 1935 (Dir: Maurice Tourneur); A Vida de um Homem Pobre / Le Roman d’un Jeune Homme Pauvre / 1935 (Dir: Abel Gance) e, depois da trilogia Pagnol, Mademoiselle Docteur / Mademoiselle Docteur ou Salonique, nid d’éspions (Dir: G. W.Pabst) / 1936. Em nenhuma dessas produções Fresnay atingiu a mesma capacidade artística que demonstrou, ao interpretar Razoumov, o personagem complexo, feito de inteligência e covardia, imaginado por Joseph Conrad no seu romance Under Western Eyes (1911). Em Sous les Yeux d’Occident, ele sobressaiu diante de seus ilustres colegas Jean-Louis Barrault, Michel Simon e Gabriel Gabrio, transmitindo com um vigor impressionante o desespero do protagonista, o estudante ambicioso que encontra escondido em seu quarto o assassino de um ministro da repressão tzarista, e se torna um traidor.
Em 1937, Fresnay obteve novo triunfo em A Grande Ilusão / La Grande Illusion, uma das obras-primas de Jean Renoir. No decorrer das cenas em que Fresnay e Erich von Stroheim contracenam, interpretando dois aristocratas, o capitão de Boeldieu e o comandante von Rauffenstein, difícil dizer qual o melhor. As cenas nas quais o aristocrata francês, subindo no telhado da fortaleza, começa a tocar sua flauta, para atrair a atenção dos guardas, a fim de que seus dois companheiros possam escapar enquanto o aristocrata alemão sente uma angústia dilacerante, sabendo que vai ser obrigado a mandar seus homens atirarem no seu prisioneiro, são muito comoventes. Pouco depois, o alemão coloca uma flor sobre o peito do francês, que ele mandou matar, mas que poderia se tornar seu amigo – um momento ao mesmo tempo patético e poético.
Desde então catalogado como um “astro comercial” como Raimu, Jean Gabin, Pierre Richard Willm e alguns outros, Fresnay teve que se curvar às vezes ao mercantilismo, fazendo filmes de qualidade artística variada – La Bataille Silencieuse / 1937 (Dir: Pierre Billon); Chéri Bibi (De Volta à Ilha do Diabo) / Chéri-Bibi / 1937 (Dir: Léon Mathot); Mulheres Perdidas ou O Puritano / Le Puritain (Dir: Jeff Musso); Adrienne Lecouvreur / Adrienne Lecouvreur / 1938 (Dir: Marcel L’Herbier, com YP); Alerta no Mediterrâneo / Alerte en Méditerranée / 1938 (Dir: Léo Joannon); Três Valsas / Trois Valses / 1938 (Dir: Ludwig Berger com YP); Le Duel / 1938 (sua única incursão atrás das câmeras dirigindo ele mesmo, Raimu e YP); O Fantasma da Esperança / La Charrete Fantôme / 1939 (Dir: Julien Duvivier); Le Dernier des Six / 1941 (Dir: Georges Lacombe); Mamouret ou le Briseur de Chaînes / 1941 ( J. Daniel-Norman); Le Journal tombe à cinq heures /1942 (Dir: George Lacombe);
O Assassino mora no 21 / L’Assassin habite au 21 / 1942 (Dir: Henri-Georges Clouzot); A Mão do Diabo / La Main du Diable / 1942 (Dir: Maurice Tourneur; Sombra do Pavor / Le Corbeau / 1943 (Dir: Henri-Georges Clouzot); Je suis avec toi / 1943 (Dir: Henri Decoin com YP); L’Escalier sans fin / 1943 (Dir: Georges Lacombe); La Fille du Diable / 1945 (Dir: Henri Decoin); Le Visiteur / 1946 (Dir: Jean Dréville); Monsieur Vincent, Capelão das Galeras / Monsieur Vincent / 1947 (Dir: Maurice Cloche); Les Condamnés / 19447 (Dir: Georges Lacombe com YP); Sua Última Missão / Barry / 1948 (Dir: Richard Pottier); Horizontes Vencidos / Au Grand Balcon / 1948 (Dir: Henri Decoin); Vient de paraître / 1948 (Dir: Jacques Houssin; A Valsa de Paris / La Valse de Paris / 1948 (Dir: Marcel Achard com YP); e Ce Siécle a cinquante ans (Fresnay simplesmente se encarrega do comentário neste filme de montagem de Denise Tual) – mas mantendo sempre seu perfeccionismo interpretativo.
Como filme, Sombra do Pavor, produzido pela Continental, no qual ele era o doutor Rémy Germain, o médico acusado por cartas anônimas de ser amante da mulher de um psiquiatra, foi o melhor. Durante a Ocupação, Fresnay participou de quatro filmes da firma alemã, presidiu o Sindicato dos Atores, e manifestou simpatia por Pétain, o que lhe valeu, após a Libertação, seis semanas de detenção preventiva no comissariado de Neuilly.
Em termos de desempenho, o ator brilhou mais em Monsieur Vincent, Capelão das Galeras, que abordou os episódios da vida e obra de São Vicente de Paulo com apreciável rigor histórico e sem grandiloquência, apresentando um quadro convincente da França no século XVII. O filme de Maurice Cloche segue passo a passo o caminho do padre, misturando humildade e tenacidade, até chegar às portas da santidade. Foi um enorme sucesso internacional, graças principalmente à extraordinária composição de Pierre Fresnay. Ele assimilou totalmente o personagem de São Vicente de Paulo com o qual possuía certa semelhança física, e ficou ainda mais parecido com o biografado, graças a uma maquilagem incrivelmente hábil. Ganhou a Coppa Volpi de melhor Interpretação Masculina no Festival de Veneza.
Nos anos cinquenta, Fresnay começou muito bem com Deus Necessita de Homens / Dieu a Besoin des Hommes / 1950, drama religioso a necessidade que uma população primitiva e sem padre, de receber todos os sacramentos. Ele faz o papel de um sacristão, Thomas Gourvennec, que tenta suprir a ausência do vigário na ilha de Sein, na Bretanha. Desencorajado pela atitude de seus paroquianos, que roubam os destroços dos navios naufragados, o vigário retorna ao continente e Thomas, crente atraído pelo cerimonial religioso, ocupa seu lugar. A performance de Fresnay neste filme situa-se sem dúvida entre as mais eletrizantes de sua carreira.
No curso da década, Fresnay apareceu ainda em: Monsieur Fabre / 1951 (Dir: Henri Diamant-Berger); Un Grand Patron / 1951 (Dir: Yves Ciampi); Le Voyage en Amérique / 1951 (Dir: Henri Lavorel com YP); Il est minuit, Docteur Schweitzer / 1952 (Dir: André Haguet); La Route Napoléon / 1953 (Dir: Jean Delannoy); Desespero d’alma / Le Défroqué / 1953 (Dir: Léo Joannon); Les Evadés / 1954 (Dir: Jean-Paul le Chanois); Les Aristocrates / 1955 (Dir: Denys de la Patellière); Vingança Diabólica / L’Homme aux Clefs d’or / 1956 (Dir: Léo Joannon); Les Oeufs de L’Autruche / 1957 (Dir: Denys de la Patellière); Les Fanatiques / 1958 (Dir: Alex Joffé); Et sa soeur / 1958 (Dir: Maurice Delbez); Tant d’Amour perdu / 1958 (Dir: Léo Joannon); Les Affreux / 1959 (Dir: Marc Allégret); La Millième Fenêtre / 1959 (Dir: Robert Ménegoz). Não foi uma fase muito feliz para o ator, mas ensejou a sua última grande atuação.
Antes de Monsieur Vincent, Fresnay já havia interpretado personagens reais (o marechal de Saxe em Adrienne Lecouvreur;
o aviador pioneiro do Correio Aéreo, Didier Daurat – mas que aparece no filme sob o pseudônimo de Gilbert Carbot – em Au Grand Balcon; o compositor Jacques Offenbach em A Valsa de Paris) e prosseguiu depois assumindo as feições do entomologista Jean-Henri Fabre em Monsieur Fabre e do missionário Albert Schweitzer em Il est minuit, Dr. Schweitzer. Porém seu grande papel nesse período foi o de uma figura de ficção, o sacerdote apóstata Maurice Morand em Desespero d’alma. O filme é um combate espiritual que se trava entre a fé de um jovem convertido, Lacassagne, e o orgulho intelectual do apóstata. Em uma das cenas culminantes do espetáculo – que os espectadores jamais esqueceram – Morand, para ferir Lacassange, pronuncia as palavras da consagração sobre um balde de vinho em uma boate. O rapaz absorve o vinho consagrado e os frequentadores daquele ambiente sacrílego pensam que se trata de uma brincadeira. No dia de sua ordenação, Lacassagne vai visitar Morand e este o mata em um acesso de cólera. Depois, veste a batina do novo sacerdote e se entrega à polícia dizendo: “Maurice Morand, padre católico”, na perfeita compreensão do sacríficio que acabara de se consumar pela salvação de sua alma.
Depois de fazer seu filme derradeiro em 1960, A Velha Guarda / Les Vieux de la Vieille (Dir: Gilles Grangier), no qual se viu acompanhado por outros dois astros, Jean Gabin e Nöel-Nöel, mas que lhe causou decepção, Fresnay dedicou-se por mais um tempo às suas atividades no teatro, que vinha dividindo com as da tela, e finalmente se entregou à televisão e às emissões radiofônicas. Por sorte, os admiradores de seu domínio verbal e voz admirável, podem garimpar nos sebos e no you tube as gravações em disco das suas narrações de textos de alta qualidade como, por exemplo, as Fábulas de La Fontaine, as Confissões de Rousseau, as Memórias do Além-Túmulo de Chateaubriand, Terra dos Homens de Saint-Exupéry ou as cartas de amor à Josephine de Napoleão Bonaparte. Outra atividade anexa da carreira de Fresnay foi sua colaboração em longas-metragens de ficção ou documentários como narrador (vg. Les Inconnus dans la Maison / 1942 de Henri Decoin, O Direito de Matar / Justice est Faite / 1950 de André Cayatte, O Corcunda de Notre-Dame / Notre-Dame de Paris / 1956 de Jean Delannoy).
Pierre Fresnay faleceu no dia 9 de janeiro de 1975 e foi enterrado no cemitério de Neuilly-sur-Seine em um funeral pomposo assistido pelo presidente da República. Como relata Charles Ford no seu livro Pierre Fresnay, Le Gentilhomme du Cinéma (France-Empire, 1981), que muito me ajudou na elaboração deste artigo, três atrizes foram chamadas de “Madame Pierre Fresnay”: Rachel Berendt, Berthe Bovy e Yvonne Printemps.
Rachel, trabalhou somente no teatro e apareceu somente uma vez no cinema em Paris-Béguin / 1931, de Augusto Genina, ao lado de Jean Gabin e Fernandel. Berthe, conquistou na Comédie Française e no cinema uma situação invejável. Ela entrou em um estúdio cinematográfico muito cedo, integrando (como um pagem) o elenco de L’Assassinat du Duc de Guise / 1908) realizado por André Calmettes, fez mais alguns filmes mudos e, no cinema sonoro, outros tantos (vg. A Caminho do “Front” / Je t’attendrai de Léonide Moguy, La Belle Aventure de Marc Allégret, Anjo Pecador / Boule de Suif de Christian-Jaque, La Maison Bonnadieu de Carlo Rim).
Em 1935, Yvonne, divorciou-se de Sacha Guitry e Fresnay de Berthe. Yvonne assumiu a direção do Theâtre de la Michodière e Fresnay a função de diretor artístico. Yvonne nunca quís se casar com Fresnay, dizendo que o “sim” que ela havia pronunciado uma vez não dera certo. Na ocasião de seu divórcio, Berthe exigiu firmemente uma pensão alimentícia populda de Fresnay. O dinheiro foi depositado em uma conta especial e Berthe nunca tocou nele. Para alguns de seus amigos íntimos ela dizia: “É uma poupança para Pierre. No dia em que ele se desembaraçar dessa peste de Printemps, ele não terá nem mais um centavo, e poderá contar com este pecúlio”. O destino decidiu de outra forma, pois Fresnay morreu antes de Yvonne Printemps. A fidelidade de Berthe Bovy ao amor pelo seu marido era igual ao seu ódio por Yvonne Printemps. Afastada do mundo, enclausurada na sua residência, Berthe somente vivia com a esperança, alimentada por quarenta anos, de ver Yvonne Printemps desaparecer antes dela. Seu desejo foi atendido. Morta em abril de 1977, ela sobreviveu três meses à sua rival.
Mais uma vez agradeço a postagem do artigo de cinema.Muito completo e agradável leitura.
Parabéns.
G ALVES
Olá, José Maria. Obrigado por mais esta visita. Preciso do estímulo de leitores como você.Um forte abraço
Oi. Procurei um lugar mais adequado e não encontrei, então vai aqui. Queria agradecer ao sr. por existir e escrever textos maravilhosos. Te “conheci” aos 12 anos quando comprei minha primeira revista CINEMIN. Num mundo imediatista onde as revistas e o hábito de ir à banca de jornal estão sumindo, onde as páginas tem mais imagem do que texto, a qualidade da CINEMIN ficará entranhada em meu ser. Ainda bem que guardei todas. Desisti do meu sonho para “ganhar a vida”, e, agora que a “ganhei”, voltarei ao meu sonho e seja o que Deus quiser. Obrigado pelas matérias que escreveu, obrigado por tornar minha infância e início da adolescência mais suportável. Te admiro. Abraços.
Obrigado Gustavo. Leitores fiéis como você me dão ânimo para continuar divulgando o cinema clássico. Espero que realize seu sonho e seja muito feliz. Um forte abraço.