Arquivo diários:dezembro 3, 2024

CARL DREYER E SUA OBRA PRIMA

Nascido em Copenhagen em 1889, ele foi incialmente jornalista. Em 1912 abordou o cinema como roteirista e se tornou diretor em 1920.  Cidadão de uma pequena nação, com possibilidades de produção forçosamente reduzidas, trabalhou em cinco países e só realizou em 36 anos, apenas 13 filmes. Mas é um dos grandes nomes do cinema. 1920: Praesidenten (Dinamarca). 1921: Blade af Satan Bog (Dinamarca); Prästänkan (Suécia).1922:  Die Gezeichneten (Alemanha); Der var engang (Dinamarca). 1924: Mikael (Alemanha). 1925: Du skal aere din hustru  (Dinamarca). 1926: Glomsdalesbreden (Noruega).1928: O Martírio de Joana d’Arc / La Passion de Jeanne d’Arc (França).1931: Vampyr (França). 1940: Vredens Dag (Dinamarca). 1945: Tva (Suécia). 1955: Ordet (Dinamarca). 1964: Gertrud (Dinamarca). O Martírio de Joana d’Arc foi o único filme de Dreyer exibido comercialmente no Brasil. Os títulos em português dos filmes de Dreyer (além daquele com Falconetti) que aparecem em alguns sites ou trabalhos sobre a obra de Dreyer, são de cópias lançadas em dvd ou traduções ao pé da letra para esclarecer o título original para os leitores.

Carl Dreyer

Premiado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza Ordet é uma adaptação da peça de Kaj Munk, pastor e autor dramático muito conhecido nos países escandinavos, morto pelos alemães em 1944. Em Borgensgard na Jutlândia, Morten Borgen e seus dois filhos, Anders e Mikkel, partem à procura de Johannes, o terceiro filho. Eles o encontram no topo da duna mais alta, indignado e entristecido com a pouca fé que os homens manifestam com relação a ele, Jesus. Foi depois que estudou a teologia de Kierkegaard que Johannes enlouqueceu, achando que é o filho de Deus. Seu pai desejava que ele se tornasse o reanimador da fé na região. O filho mais velho, Mikkel, por sua vez, perdeu a fé. Sua esposa Inger, mãe de duas meninas, e atualmente grávida, diz que isto não tem importância porque ele tem a fé do coração, da bondade, que é a essencial. “Mikkel traz Deus no seu coração”, ela diz. Inge intercede junto ao velho Morten para que ele permita que seu filho mais novo, Anders, se case com Anna, a filha do alfaiate Petersen. Morten recusa obstinadamente este matrimônio porque o alfaiate pertence a uma seita protestante diferente da sua e pela qual só tem desprezo e repugnância. Ao saber desta recusa, Morten fica furioso e decide ir ele mesmo pedir a mão de Anne para seu filho. Ele lhe diz que suas divergências religiosas não devem ser um obstáculo à felicidade de seus filhos. Diante da teimosia do alfaiate, ele bate nele e vai embora. Durante sua ausência, MIkkel teve que chamar o médico para ajudar a parteira. A criança que Inge carregava nascerá morta. O doutor, que representa o ateismo completo, um positivista que só acredita nos milagres que a ciência lhe ensinou, só consegue dizer para Mikkel: “Lembre-se Mikkel, mesmo a dor pode ser bela”. Depois se retira, certo de que ao menos salvou a mãe.

Johannes nas dunas

Alguns instantes após sua partida, como havia previsto Johannes, Inger morre. Na noite seguinte, Johannes desaparece, deixando como mensagem uma citação bíblica: “Eu me vou, e vós me procurareis. Mas para onde eu vou, não podeis ir.” O corpo de Inger foi colocado num caixão.  O pastor faz seu sermão. O alfaiate vem à casa de Morten e se reconcilia com ele. Ele dá sua filha em casamento para Anders. Johannes reaparece. Ele parece ter recuperado a razão. “Nenhum de vós pensou em orar a Deus para devolvê-la a vocês?”, pergunta ele a toda a família reunida em desespero em torno de Inger. A menininha pede a Johannes de se apressar a acordar a mãe dela. Ele pronuncia então as palavras que ressuscitam a morta. Inger descruza os dedos e abre os olhos. Seu marido Mikkel se inclina sobre ela: ele reencontrou a fé. Anders coloca o pêndulo do relógio em marcha. A vida começa para nós”, diz Mikkel à sua esposa. “A vida, sim, a vida”, diz Inger.

Inger no caixão

A gandeza artística de Ordet provém, como sempre ocorre nas verdadeiras obras-primas, da conjunção harmoniosa entre a forma e o contéudo, bem como do perfeito domínio da técnica e da manifestação de um estilo personalíssimo. Com relação ao contéudo, o que Dreyer pretende transmitir ao espectador é a possibilidade da intervenção divina no mundo material e mostrar como o dom da fé pode fazer um milagre. E a fé, como diz Dreyer, só é possível quando você é bom e tem capacidade de amar concretamente as pessoas. Numa cena do filme a Inger diz para o incrédulo Mikkel: “você tem coração, bondade” e por isso a fé lhe será concedida”. Um outro tema do filme é o tema da intolerância, o choque entre os fundamentalistas da religião organizada e aqueles que têm uma fé individual não comprometida bem como as diferenças religiosas entre os dois patriarcas, Borgen e Peter, que representam, além de um orgulho camponês teimoso, a rivalidade entre suas famílias de distinta posição econômica.

Johannes e a menina

Mas eu gostaria de destacar as duas grandes questões do filme: a do milagre e a da identidade de Johannes. Pode parecer estranho que a Palavra de Deus seja confiada a um louco, mas fica claro no filme que, ao fazer o milagre, ele já havia se curado e, de qualquer forma, ele é um personagem simbólico. No momento do milagre, é como se ele estivesse deixando o Cristo agir através dele.  Ou seja, é como se o Cristo estivesse em Johannes. Já quanto ao milagre, Dreyer mostra um milagre real, autêntico. As pessoas que assistem à ressurreição de Inger, verificam com seus próprios olhos que a morta voltou à vida e que não se trata de fantasia de um louco ou de uma criança. E também funciona como um símbolo. Ele está ali para estabelecer a presença de Deus como o havia feito a morte inesperada de Inger. E a ressurreição física de Inger é um sinal de uma ressurreição moral. Com o choque da morte, os protagonistas de Ordet recobram a lucidez e se reconciliam no amor. Enfim, a “ressurreição” de um corpo é precedida de uma “ressurreição das consciências”. Porque a Palavra Divina, o Verbo, só pode se incarnar no amor, e então é capaz de vencer a morte. Já a menina significa a necessidade de se tornar uma criança para adquirir esta pureza para a qual o sobrenatural parece um prolongamento do natural.

Beleza pictórica de Ordet

No que diz respeito à forma, a gente não pode de deixar de apreciar a beleza das imagens, a perfeição dos enquadramentos e a iluminação estilizada, que fazem de cada cena um quadro de mestre bem como os planos longos e as panorâmicas lentas, que dão um tom solene à narrativa. Esta maestria, esta habilidade de Dreyer é ainda mais extraordinária porque ela se exerce na simplicidade, no despojamento, no rigor, na ordem, que são próprios do seu estilo. A última cena de Ordet com as paredes brancas, as janelas ensolaradas, os personagens negros em volta de um caixão, os círios acesos, parece ter sido composta pelo olho de um pintor.