DON QUIXOTE NO CINEMA E NA TV

Com sua figura grotesca e patética – que luta contra moinhos de vento e depõe sua espada aos pés de Dulcinéia, uma criada vulgar de estalagem de beira de estrada – dom Quixote de la Mancha ofereceu a Cervantes um pretexto para ridicularizar os romances de cavalaria, gênero literário cujas implausibilidades e estilo pomposo o escritor deplorou.

Insólito e anacrônico defensor da paz, do amor e da justiça, montado em seu esquelético cavalo Rocinante, causando inúmeros atropelos, dom Quixote permanece até hoje uma criação ímpar, interessando estudiosos, artistas e cineastas. Construído em dois níveis – a realidade e o mundo imaginário – é o retrato simbólico da Espanha do século XVII, da vida cotidiana do povo, proposto por Cervantes numa admirável variedade de tipos e episódios tragicômicos.

Para alguns analistas, dom Quixote e Sancho Pança personificam as duas faces conflitantes da personalidade humana arrastada, ora pela ilusão, ora pela crua realidade. Anti-herói ridículo, metido numa velha armadura de lata, ele oferece um pouco de sonho e de loucura que Sancho tenta contrabalançar com seu rude bom senso.

O gênio de Cervantes levou muitos a colocarem-no ao lado de Dante e Shakespeare. Influenciou, aliás, inúmeros autores mais modernos que neles se inspiraram, sem jamais o igualarem.

Foi na França, a partir de 1902, que se realizaram as primeiras adaptações da obra-prima de Miguel de Cervantes, entre elas as de Ferdinand Zecca / Lucien Nonguet, George Mélìes, Emile Cohl, Paul Gavaut e Camille de Morlhon, esta última já em 1913, com Claude Garry como dom Quixote, Vallez como Sancho Pança e Léontine Massart como Dulcinéia.

Na Espanha, data de 1908, o primeiro Don Quijote de la Mancha, dirigido pelo pioneiro Narciso Cuyás. Na Itália, em 1915, Amleto Palermi fez Il Sogno di Don Chischiotte que, segundo Robert Paolella, era “uma produção patriótica contra os impérios da Europa Central”. No mesmo ano, D.W.Griffith, na recém-formada Triangle, supervisionou Don Quixote, de Edward Dillon, estrelado por um ator de renome no teatro, DeWolf Hooper (dom Quixote), Max Davidson (Sancho Pança) e Fay Tincher (Dulcinéia). As derradeiras versões silenciosas foram as do inglês Maurice Elvey / 1923 com Jerrold Robertshaw (dom Quixote), George Robey (Sancho Pança) e Minna Leslie (Dulcinéia) e a do dinamarquês Lau Laritzen / 1926 com a dupla Carl Schenstrom e Harald Madsen, que ele costumava dirigir em comédias curtas da firma Palladium.

Don Quixote com Chaliapin

No período sonoro, em 1933, G. W.  Pabst rodou na França um filme com roteiro de Paul Morand e Alexandre Arnoux, colocando o célebre tenor Fiodor Chaliapin como dom Quixote. O grande cineasta não captou o universo do “Cavaleiro da triste figura”. Como observou Ángel Zúñiga, “a tela nos mostra um dom Quixote desprovido de fantasia e, no conjunto, o filme não tem unidade nem equilíbrio”. Muitos acharam-no enfadonho, mas elogiando a belíssima fotografia do húngaro Nikolas Farkas, que depois se tornaria diretor (A Batalha / La Bataille / 1934; Varietés / Varietés / 1935; Port Arthur / Port Arthur / 1936).

Nos Estados Unidos, em 1934, Ub Iwerks, o prodigioso colaborador de Walt Disney, fez, por conta própria, e dentro da série Comicolor Cartoons, um desenho animado sobre o personagem de Cervantes; no gênero, somente em 1962, voltaria ele a ser visto numa animação iugoslava de Vlado Kristi.

Rafael Rivelles como Don Quixote

Em 1947, novamente na terra do romancista criador de Dom Quixote, Rafael Rivelles personificou o andarilho visionário no filme de Rafael Gil que Fernando Méndez-Leite disse possuir “um realismo e dignidade artística impressionantes”. No mesmo ano, surgiu nas telas Dulcinea de Luis Arroyo com Ana Mariscal como Dulcinéia.

Na década seguinte, em 1952, foi transmitida a série de TV da CBS Don Quixote com direção de Sidney Lumet tendo Boris Karloff como dom Quixote e Grace Kelly como Dulcinéia. As gravuras de Gustave Doré (ilustrador de vários clássicos da literatura entre eles o Don Quixote de Cervantes), foram por sua vez objeto de um curta-metragem de Raymond Voinquel com oito minutos de duração, realizado em 1954 e narrado por Jean Marchat. Orson Welles, em 1955, iniciou um projeto com Mischa Auer (depois substituído por Francisco Reiguera) e Akim Tamiroff (Sancho), infelizmente inacabado. O filme foi eventualmente montado por Jesus Franco e lançado como Dom Quixote em 1992.

Don Quichotte de Orson Welles

Em 1956, Israel produziu Dan Quihote V’ Sa’adia Pansa, dirigido por Nathan Axelrod e exibido nos EUA como Don Quixote and Sa’ad olz Pancha. Em 1957, em Dom Quixote / Don Kikhot, Grigori Kozintzev conseguiu apreender a essência da obra de Cervantes, valendo-se das ilustrações de Gustave Doré para as caracterizações e usando o notável ator Nikolai Cherkassov (Cavaleiros de Ferro / Aleksander Nevski / 1938, Ivan, o Terrivel / Ivan Grozny /1945) como dom Quixote. Mas o filme trazia a marca do academicismo que dominou a obra do velho teórico futurista (fundador da FEKS, Fábrica do Ator Excêntrico), expressionista (Nova Babilônia / Novyy Vavilon / 1923) e mestre do realismo socialista (Trilogia de Máximo / 1935-39) nos últimos anos de sua vida.

Nos anos sessenta, na televisão italiana, Carlo Rim fez, em 1964, Dulcinea del Toboso com o ator Joseph Meinrad como dom Quixote.  Na televisão francesa, Éric Rohmer dirigiu Don Quichotte, documentário de 22 minutos de duração.

O Homem de La Mancha com Peter O’Toole

Nos anos setenta, foram apresentados nas telas dos cinemas em 1972, O Homem de la Mancha / Man of La Mancha, versão musical de Arthur Hiller com Peter O’Toole como Don Quixote, Sophia Loren como Dulcinéia e James Coco como Sancho Pança; em 1973, o mexicano Roberto Gavaldón filmou na Espanha a sátira Dom Quixote é uma Parada / Don Quijote Cabalga de Nuevo com Fernando Fernán Gómez (dom Quixote), o popular cômico Cantinflas (Sancho Pança) e Maria Fernanda D’Ocon (Dulcinéia). Ainda no mesmo ano, na Austrália, sob direção de Rudolf Nureiev e Robert Helpmann, foi filmada uma adaptação do balé de Marius Petipa, contando com o corpo de baile do Balé Australiano e a foto em eastmancolor do inventivo cinegrafista Geoffrey Unsworth (Oscar por Cabaret / Cabaret / 1972) e, na televisão britânica, Alvin Rakoff convocou Rex Harrison para interpretar o engenho fidalgo em dois episódios da série BBC Play of the Month. Em 1979, na televisão espanhola, Cruz Delgado e José Romagosa criaram uma série de animação de 40 episódios, utilizando na dublagem as vozes de Fernando Fernán Gómez (dom Quixote) e Antonio Ferrandis (Sancho Pança).

Don Quixote é uma parada com Cantinflas

Nos anos oitenta, a televisão japonesa pôs no ar a minissérie de animação Zukoke Knight: Donderamancha / 1980 com as vozes de Mamy Koyama (Dulcinéia) Kenji Utsumi (dom Quixote) e Setsuo Wakui (Sancho Pança); a televisão russa exibiu Tskhovreba Don Kikhotisa da Sancho Panchosi / 1988 com Kakhi Kavsadze (dom Quixote) e Mamuka Kikaleishivili (Sancho Pança) sob a direção de Rezo Chkheidze; o ex-pintor Robert Lapoujade concebeu um longa-metragem de marionetes, Les Mémoires de Don Quichotte / 1980, com música de Claude Nougaro e Romain Didier, que ficou inacabado.

Nos anos noventa, em 1991-1992, a televisão espanhola mostrou a minissérie El Quijote de Miguel de Cervantes, abrangendo apenas a primeira metade do famoso romance de Cervantes com Fernado Rey (dom Quixote) e Alfredo Landa (Sancho Pança), dirigidos por Manuel Gutiérrez Aragón. O roteiro foi escrito por Camilo José Cela, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura.

Donkey Xote

O Homem que Matou Don Quixote

Em 2000, surgiu Don Quixote / Don Quixote, telefilme americano dirigido por Peter Yates com John Lithgow (dom Quixote), Bob Hoskins (Sancho Pança) e Vanessa Williams (Dulcinéia). Em 2006, Honra de Cavalaria / Honor de Caballeria, filme espanhol com uma visão minimalista da história de dom Quixote, dirigido por Albert Serra, com Lluís Carbó (dom Quixote) e Lluís Serrat Masanellas (Sancho Pança). Em 2007, Donkey Xote, animação espanhola de Jose Pozzo, na qual quem conta a história é o cavalo de Sancho Pança, Rucio, que insiste que o cavaleiro não era tão louco e fora do comum como muitos pensam. Em 2018, chegou às telas finalmente  O Homem que Matou Dom Quixote / The Man Who Killed Don Quixote que Terry Gilliam vinha preparando há muito tempo, com José Luis Ferrer (dom Quixote), Ismael Fritschi (Sancho Pança) e Adam Driver como Toby Grummett, diretor de cinema desiludido que é puxado para um mundo de fantasia quando um sapateiro espanhol acredita ser Sacho Pança.

Já o próprio Cervantes aparece no cinema, vivido por Horst Buchholz em O Jovem Rebelde / Cervantes / 1967, biografia romantizada dirigida por Vincent Sherman, conhecido cineasta da Warner. A trama envolve negociações diplomáticas com o sultão Jassan Bey (José Ferrer), problemas com o amor da cortesã Giulia (Gina Lollobrigida).

Lee J. Cobb como Cervantes

Lee J. Cobb havia encarnado Cervantes e dom Quixote num teleteatro da série Dupont Show of the Month, produzido em 1959 e escrito por Dale Wasserman, no qual foi baseado o musical da Broadway. O texto de Wasserman também inspirou o já citado filme O Homem de la Mancha / Man of  la Mancha / 1972, com Peter O´Toole. Sem ter a profundidade e o lirismo do original literário, tão complexo no plano humano, dramático e poético, o espetáculo transmite as idéias básicas da peça. Entre elas, a crítica a muitos conceitos estabelecidos pela sociedade que despreza quase sempre os idealistas, alimentados por “sonhos impossíveis”, sonhos de paz e liberdade.

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