Por falta de oportunidade ou ambição ele teve sua carreira quase inteiramente dominada pelos filmes B, porém soube transformar as limitações orçamentárias em virtude. Distinguiu-se pela inteligência e originalidade na maneira de colocar a câmera e de movimentá-la. Suas obras mais expressivas não ficam nada a dever aos melhores filmes de muitos diretores de filmes classe A. Mesmo nos seus filmes mais fracos, surgem aqui e ali algumas tomadas brilhantes ou movimentos de câmera complexos e inesperados.
Joseph H. Lewis (1907-2000) nasceu no Brooklyn, Nova York, filho de imigrantes russos judeus. Cresceu no Upper East Side e estudou na DeWitt Clinton High School no Bronx. Quando seu irmão Ben foi para Hollywood, ele o acompanhou com a esperança de se tornar ator. Ben lhe arrumou emprego como montador na Mascot em 1935, onde depois passou a ser supervisor de montagem, prosseguindo nesta mesma função depois na Republic.
Lewis co-dirigiu (com Crane Wilbur) seu primeiro filme, Segredos Navais / Navy Spy / 1937, distribuído pela Grand National. Seu primeiro filme como único diretor foi Coragem Cativante / Courage of the West / 1937, estrelado pelo cowboy Bob Baker. Sua notável intuição cinematográfica manifestou-se desde este modestíssimo western da Universal. “Neste filme, o presidente Abraham Lincoln participava de uma conferência no auge da Guerra Civil. Ele era o único que falava, mas eu não queria mostrar o seu rosto. Comecei a fazer um movimento circular que dava várias voltas em torno da mesa. No final, o espectador devia se perguntar: ‘Mas quem é que está falando?’. Então ele via o presidente Lincoln: foi um plano revelador”, contou Lewis numa entrevista.
Ele fez mais três westerns com Baker, três com Charles Starrett e dois com Bill Elliott e, em seguida, três exemplares da série East Side Kids, seguindo-se vários filmes modestos (inclusive um da série The Falcon, O Falcão em San Francisco / The Falcon in San Francisco / 1945), até realizar seus primeiros trabalhos importantes, Trágico Alibi / My Name is Julia Ross / 1945, Satã Passeia à Noite / So Dark the Night / 1946 e O Czar Negro / The Undercover Man / 1949.
Em Trágico Alibi Julia Ross (Nina Foch), jovem americana desempregada em Londres, procura uma agência onde precisam de uma secretária particular. Na manhã seguinte, ela desperta em uma mansão isolada na Cornualha, onde vivem Mrs. Williamson (Dame Way Whitty) e seu filho Ralph (George Macready). Todos a chamam de Marian, a nora de sua patroa, e a tratam como se fosse meio louca. Prisioneira, Julia vive um longo suplício, uma série de decepções cruéis, e cai pouco a pouco no desespero. O filme aborda temas noirs clássicos como os de identidade instável, amnésia e loucura. As imagens de solidão, de aprisionamento, de abandono gradual da vítima aos seus carrascos, se acumulam na tela com uma notável economia de meios. Lewis enfatiza a situação da moça por meio de elementos estritamente cinematográficos (v. g. a protagonista enquadrada atrás da janela com grades etc.).
Em Satã Passeia à Noite Henri Cassin (Steven Geray), célebre detetive particular parisiense, de férias na pequena cidade de Sainte-Margot, apaixona-se por uma camponesa, que se torna a primeira de uma série de vítimas de assassinato. O detetive investiga os crimes e chega à conclusão de que o culpado é ele mesmo. Variação estranha e original sobre o tema da dupla personalidade, passada em um ambiente rural francês (muito falso), cuja placidez contrasta com os horríveis fatos ali ocorridos. O tormento interior do personagem autodividido é evocado através de numerosos planos, nos quais se interpõem entre ele e a câmera, os objetos, os reflexos, as sombras e um vão envidraçado, que Cassin quebra no final, tendo decifrado o segredo do seu eu mais íntimo.
Em O Czar Negro agentes do Departamento do Tesouro tentam obter provas de que um figurão do submundo, “Big Fellow”, está sonegando impostos. Frank Warren (Glenn Ford) e seus homens começam a interrogar pessoas que têm acesso aos livros contábeis do gângster. O primeiro contato, Manny Zanger (Robert Osterloh), é morto logo após ter se encontrado com Warren. Quando um segundo informante, Salvatore Rocco (Anthony Caruso, também é assassinado, todo o esquema da investigação parece destinado ao fracasso. Entretanto, a mãe de Salvatore decide cooperar, entregando a Warren o livro comprometedor que seu filho mantinha escondido. O espetáculo segue a linha realista, laudatória (homenagem aos esforçados agentes do Fisco) e até patriótica (elogio da velha imigrante italiana ao grande país da democracia) dos semidocumentários criminais da época. A inteligência visual de Lewis é perceptível na elipse usada na cena da morte de Zanger, vendo-se apenas o pacote de biscoitos atirado ao meio-fio; na fuga desesperada de Rocco pelas ruas cheias, perseguido por dois capangas do gângster e, atrás destes, a pequenina Maria (Esther Minciotti) gritando pelo pai; no murro que sai da câmera e atinge o queixo de Warren, causando um sobressalto no público; no atropelamento de O’Rourke (Barry Kelley), após certo suspense durante a caminhada ao lado de Warren, seguidos pelos bandidos de carro.
O ápice da criatividade e imaginação de Lewis ocorreria em Mortalmente Perigosa / Gun Crazy / 1950 e Império do Crime / The Big Combo / 1955.
Em Mortalmente Perigosa Bart Tare (John Dall) é fascinado por armas de fogo desde menino. Em um parque de diversões itinerante, Bart é imediatamente atraído por Annie Laurie Starr (Peggy Cummings), uma bela artista que faz um número de tiro ao alvo. Ele a vence em um concurso de tiro, sendo contratado para formar uma dupla no espetáculo. Os dois se casam e, quando ficam desempregados, cometem uma série de roubos à mão armada. Procurados pela polícia, eles vão se esconder na cidade natal de Bart. Seus amigos de infância tentam convencê-los a se entregar, porém os dois fogem e se embrenham-no pântano, onde são metralhados pelos policiais. Os protagonistas de Lewis são unidos por estranha afinidade: a fascinação por armas de fogo e forte atração física. Como diz o dono do parque de diversões: “os dois se olham como um casal de animais selvagens”. Sob influência de Annie Laurie, Bart envolve-se em uma vida de crimes e, apesar de seus conflitos de consciência, não condena ou abandona a companheira Quando Laurie diz que vai embora, Bart exclama: “Não”! Vamos ficar juntos! Como as armas e as munições ficam juntas”. O filme está cheio de cenas admiráveis – o roubo do revólver da vitrine da loja durante a chuva; o concurso de tiros no parque de diversões com seu simbolismo erótico; o assalto ao banco visto em um único plano-sequência filmado com a câmera colocada no assento traseiro do carro, fazendo-nos participar da ação; o roubo d fábrica de empacotamento de carnes com a fuga frenética através das carcaças de bois dependurados no teto enquanto o alarme não para de tocar; a separação dos amantes, cada qual dirigindo seu carro em direções opostas, para um imediato reencontro extático no meio da estada; o desenlace trágico nitidamente expressionista, no meio do nevoeiro -, todas expostas com impressionante economia visual e expressividade.
Em Império do Crime o tenente Leonard Diamond (Cornel Wilde) investiga obsessivamente as atividades criminosas de um gângster chamado Mr. Brown (Richard Conte). Susan Lowell (Jean Wallace), a amante de Brown, tenta o suicídio, mas é salva a tempo e levada para o hospital. Diamond ouve um murmúrio dela sobre Alícia (Helen Walker), a primeira mulher de Brown e testemunha importante. Os dois capangas do gângster, Fante (Lee Van Cleef) e Mingo (Earl Holliman), arrombam a porta do apartamento de Diamod e atiram, mas só conseguem matar Rita (Helene Stanton), uma dançarina que às vezes passava a noite com o detetive. Susan lê a notícia da morte de Rita, decide cooperar e Brown é preso. A primeira coisa que chama atenção neste filme de gângster é a mistura de sexo e violência, também notada em Mortalmente Perigosa. Primeiramente a perversidade sexual no relacionamento entre Susan e Brown, bem representada por aquela cena em que ele acaricia os ombros dela e vai descendo pelo seu corpo até sair do quadro enquanto vemos a expressão de prazer no rosto da mulher. Os exemplos de violências são numerosos: a tortura de Diamond com o som altíssimo do rádio no seu ouvido; a bomba que Brown deixa estourar na mão dos dois capangas e a eliminação de McCLure (Brian Donlevy), um dos pontos altos da direção. Nesta cena memorável, McClure, o segundo no comando da organização, atrai Brown até o hangar do aeroporto secreto, pensando que os dois capangas estão trabalhando para ele e vão matar Brown. Acontece que os pistoleiros apontam suas armas para McClure, em vez de Brown. Procurando refúgio junto à parede, McClure pede misericórdia. Brown arranca seu aparelho de surdez e diz: “Vou lhe fazer um favor. Você não vai ter que ouvir os tiros”. A morte de McClure é então descrita do ponto de vista da vítima e nós vemos apenas os clarões das rajadas silenciosas das metralhadoras.
Antes de encerrar sua carreira cinematográfica e passar para a televisão, Lewis dirigiu quatro westerns: Obrigado a Matar / Lawless Street / 1955, O Fantasma do General Custer / 7th Cavalry / 1956, Ódio Contra Ódio / The Halliday Brand / 1957 e Reinado do Terror / Terror in a Texas Town / 1958. O primeiro é melhor do que o segundo, embora apresente defeitos no trecho final. São os outros dois que merecem destaque.
Em Ódio Contra Ódio o patriarca tirânico da dinastia Halliday, Big Dan (Ward Bond), é o delegado de uma pequena comunidade. Por causa do seu preconceito, ele nada faz para impedir o linchamento do mestiço Jivaro (Christopher Dark), que está namorando sua filha Martha (Betsy Blair). O filho mais velho do delegado, Daniel (Joseph Cotten), consola Chad Burns (Jay C. Flippen), o pai branco de Jivaro, cuja inocência foi depois confirmada, e passa a hostilizar Big Dan. Western melodramático e expressionista, levantando vários problemas como racismo, justiça pelas próprias mãos, lealdade filial, etc. Lewis arma algumas cenas de intensidade dramática (o linchamento, a morte de Chad, a briga de socos entre Daniel e seu pai) e, no final, uma iminência de tragédia, quando Big Dan, moribundo, ainda se levanta da cama armado para matar o filho, antes de sofrer um colapso.
Em Reinado de Terror um marinheiro sueco, George Hansen (Sterling Hayden), chega a Prairie City no Texas e encontra o pai morto misteriosamente. Ninguém na cidade, nem mesmo o delegado, deseja tomar qualquer providência a respeito. Hansen afinal descobre que um grileiro, Ed McNeill (Sebastian Cabot), com o auxílio do pistoleiro Johnny Gale (Ned Young), está forçando os fazendeiros a vender suas terras, porque sabe que nelas existe petróleo. O filme é sempre lembrado pelo famoso clímax, no qual o sueco usa seu arpão para matar o vilão; mas, além deste final extraordinário, há outras cenas que mostram o incrível senso cinematográfico de Lewis, graças ao qual valorizava suas modestas realizações. Podemos citar a sequência, inteiramente muda, em que Hansen abre a porta da casa do mexicano, vê o caixão coberto de flores e depois a mulher e os filhos. Sem dizer uma palavra, ele pega o harpão e sai, ouvindo-se apenas o choro do bebê que acabara de nascer.