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ANÁLISE DE PACTO SINISTRO DE ALFRED HITCHCOCK

Guy Haines (Farley Granger), tenista famoso, encontra um estranho, Bruno Anthony (Robert Walker), num trem, e trocam confidências. Guy quer se livrar de sua esposa infiel Miriam (Laura Elliot), para poder se casar com Anne Morton (Ruth Roman), filha de um senador, mas não está conseguindo obter o divórcio. Bruno lhe propõe um pacto: ele mata a mulher de Guy e, em troca, Guy mataria seu pai. Como os dois são estranhos, seria um crime perfeito. Guy não leva a sério a proposta de Bruno, mas este executa a sua parte do plano, estrangulando Miriam em um parque de diversões. Depois, assedia Guy para que ele cumpra a sua.

O nome de Raymond Chandler, um dos mais famosos escritores de romances policiai, como um dos autores do roteiro (baseado num romance de Patricia Highsmith), bastaria para classificar este filme como um drama criminal de suspense. Só que o suspense aqui é mais moral do que dramático, um suspense que nasce da conjunção dos dois temas principais.

O primeiro tema é o da transferência de identidade. Para o Bruno, mais importante do que trocar os assassinatos é tomar o lugar de Guy, identificar-se com ele. O Bruno é um rapaz atormentado e complexado (sua atitude edipiana é mostrada no relacionamento com o pai e a mãe). Ele fica seduzido pela personalidade de Guy, ele admira o Guy – e quer também dominar o Guy.

Farley Granger e Robert Walker em Pacto Sinistro

O segundo tema é o da transferência de culpa. O Guy tem interesse em se desembaraçar de Miriam, que é o único obstáculo para o seu casamento com a filha do senador. No fundo, ele deseja se livrar dela e do mundo de desordem e vulgaridade que ela representa, para penetrar no mundo ordenado e respeitável dos políticos de Washington. Ele tem inconscientemente o desejo de matá-la. Quando o Bruno mata a Miriam, o Guy descobre sua culpabilidade moral. É como se ele próprio a tivesse matado. Então o Bruno realiza o que o Guy deseja. Ele é o sósia ou o duplo de Guy, ou talvez fosse melhor dizer, a sombra do Guy. Ele mostra o lado escuro, dark, dos desejos do Guy.

O Bruno habita um mundo de trevas. O Guy, um mundo de luz. Vejam, por exemplo, aquele encontro em frente à casa do Guy. O Bruno escondido na sombra, seu rosto coberto pelas barras da grade. A Mansão onde ele mora é triste e escura, cheia de sombras, e até o barco que ele escolhe para entrar no túnel escuro do parque de diversões tem o nome de Plutão, o Deus dos Infernos na mitologia grega. Já o Guy vive no mundo da luz, representado pelas quadras de tênis claras, pelas suas roupas leves, pelos jantares nos salões iluminados de Washington. Há uma cena visualmente interessante, quando vemos, num plano geral, o Bruno aparecendo de longe como uma mancha maligna em contraste como o branco do memorial de Thomas Jefferson. O contraste simbólico entre a luz e a escuridão é forjado por uma magnífica fotografia expressionista que ajuda a criar o clima noir de inquietude e perversão, porque, de fato, o que temos aqui é uma variante do drama criminal: um filme noir.

O assassinato visto pelas lentes do óculos da vítima

Quanto à parte técnica há duas sequências notáveis: a da morte de Miriam vista através das lentes e dos óculos e a sequência final no carrossel, depois de uma montagem paralela entre o jogo de tênis e Bruno tentando apanhar o isqueiro no bueiro. O cuidado com que Hitchcock preparou a cena da morte de Miriam, justifica aquela observação de François Truffaut. Ele disse que o Hitchcock filmava as cenas de assassinato como se fosse cenas de amor e as cenas de amor como se fossem cenas de assassinato. Nesta cena, Hitchcock mandou fazer uma lente enorme e distorcida e depois fotografou os dois atores refletidos nela num ângulo de 90 graus. Na cena do carrossel, quando ele quebra, o Hitchcock usou uma miniatura, que foi explodida com uma pequena carga de dinamite. Depois, ele projetou a imagem ampliada disto numa tela e colocou pessoas em volta e na frente.

O quase estrangulamento

Eu gosto ainda de duas outras sequências: a da visita do Guy à mansão do Bruno e a da festa, quando Bruno quase estrangula a velha, ao olhar para Barbara, a irmã da noiva do Guy (interpretada por Patricia Hitchcock, filha de Hitchcock), lembrando-se de Miriam. Na visita do Guy à casa do Bruno, o Hitchcock cria primeiro o suspense com o cão ameaçador e depois uma surpresa, como o Bruno parecendo no lugar do pai. Vocês devem ter notado nesta cena a influência da iluminação germânica.

Farley e Walker na luta final no carrossel

Pode-se notar ainda o som usado no parque de diversões, onde os ruídos estão todos reunidos. Nós temos realmente a impressão de ar livre. E também a maneira visual com que o Hitchcock define o caráter dos dois personagens principais, pelos seus sapatos e suas roupas. Por exemplo: os sapatos de duas cores do Bruno e sua gravata espalhafatosa (aliás, foi o próprio Hitchcock que desenhou aquelas garras de lagosta na gravata, que sugerem um estrangulador). Já o Guy é bem esportivo. Outra cena marcante é o clímax no carrossel descontrolado onde Guy e Bruno lutam entre os cavalos de pau montados por crianças apavoradas enquanto o velho empregado se arrasta por debaixo do maquinismo para desligá-lo.

O personagem que domina todo o filme é, sem dúvida, o psicopata, maravilhosamente interpretado por Robert Walker, que foi escolhido para o papel against the type, como se diz na gíria dos estúdios, porque ele sempre foi o modelo do simpático garotão americano. Walker tem um desempenho brilhantes. Ele é um vilão elegante e sedutor. A gente não esquece facilmente a expressão do seu olhar, um olhar de louco. Nós acreditamos na sua loucura. Ele é o alter ego (o outro eu) assustador do Guy. É um dos vilões mais carismáticos e diabólicos da obra do diretor.  O Bruno herdou a loucura da mãe. Há uma cena deliciosa, na qual o Hitchcock aproveita para gozar a arte moderna, quando ela mostra ao filho o quadro cubista horrendo, e diz que é o pai dele. É o humor que Hitchcock sempre insere nos seus filmes.

AC

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