Arquivo diários:março 10, 2024

FILMES DE GUERRA BRITÂNICOS 1942

O ano de 1942 foi um dos períodos mais ricos do filme de guerra na Grã-Bretanha. A “história de guerra” com cunho patriótico passou a dar lugar para o “documentário de guerra”, que fazia a ação derivar de eventos reais e pessoas reais. Não que as histórias de guerra estilo-estúdio tivessem cessado completamente: elas continuaram, por exemplo, em Paris Era Assim / This Was Paris (Dir: John Harlow), Secret Mission, Unpublished Story, Surgirá a Aurora / The Day Will Dawn (Dir: Harold French), Fortalezas Voadoras / Flying Fortress (Dir: Walter Forde), Às da Morte / Squadron-Leader X (Dir: Lance Comfort), Morrerremos ao Amanhecer / Tomorrow We Live (Dir: George King) e O Grito de Rebelião / Uncensored (Dir: Anthony Asquith). E uma abordagem mais leve para a situação de guerra apareceu em Professor Astuto / The Goose Steps Out (Dir: Basil Dearden, Will Hay), na qual um professor (Hay) é sósia de um general alemão e usa esta semelhança para ter acesso ao segredo de uma nova bomba.

Ainda no ano de 1942, o Ealing Studios lançou O Grande Bloqueio / The Big Blockade e Querer e Vencer / The Foreman Went to France (ambos produzidos pelo brasileiro Alberto Cavalcanti e dirigidos por Charles Frend); Alguém Falou / The Next of Kin (Dir: Thorold Dickinson); 48 Horas! / Went the Day Well? (Dir: Alberto Cavalcanti).

48 Horas

O Grande Bloqueio tem apenas 1 h 13 min de duração e foi feito com a ajuda do Ministry of Economic Warfare, The War Office, The Royal Navy e da RAF. O assunto é o bloqueio econômico da Alemanha e da Europa ocupada pelos nazistas. Querer e Vencer conta como um capataz de uma fábrica de aviões em Birmingham, por iniciativa própria, tenta recuperar uma peça importante de maquinaria de guerra que fora emprestada para a França, antes que ela caia nas mãos dos invasores nazistas. Alguém Falou, originalmente concebido como filme de treinamento militar pelo War Office para alertar sobre ao segurança nas forças armadas, notadamente o perigo de conversas descuidadas, o filme foi expandido para longa-metragem, visando encorajar um senso maior de discrição também entre os civís. Em 48 Horas, uma vila inglesa pacata, distante da guerra, é tomada por pára-quedistas alemães disfarçados de engenheiros do Real Corpo de Engenharia do Exército Britânico. O líder da comunidade é um traidor. Os aldeões levam algum tempo para perceber a presença do inimigo entre eles. Mas quando isto acontece, eles respondem com determinação, desenvoltura e, quando necessário, com uma surpreendente crueldade.

Outros estúdios britânicos adotaram o “novo realismo” e foi este espírito que determinou a natureza de filmes como E Um De Nossos Aviões Não Regressou / One of Our Aircraft is Missing, produzido pela British National Films -The Archers e realizado por Michael Powell e Emeric Pressburger e Por Um Ideal / The First of the Few, produzido pela British Aviation Film e realizado por Leslie Howard. O primeiro filme reconstrói, da maneira mais autêntica possível, a história verídica da tentativa da tripulação de um bombardeiro britânico, que estava em missão de ataque na Alemanha, para retornar à Inglaterra, quando sua aeronave foi abatida na Holanda ocupada pelos alemães. Eles procuram apoio de civis que arriscam suas vidas para salvá-los. O segundo filme conta a verdadeira história de como o projetista de aeronaves R.J. Mitchell (Leslie Howard), alarmado pelo crescente militarismo germânico, desenvolveu com a ajuda do piloto de provas Geoffrey Crisp (David Niven) um avião aerodinâmico e em forma de um pássaro, cuja superioridade tecnológica ajudou seu país a ganhar a Batalha da Grã-Bretanha, superando os Messerschmidts alemães. Ao custo da própria saúde, Mitchell sacrificou sua vida para concretizar seu projeto. Sua obstinação criativa e sacrifício físico tornam esta cinebiografia cativante do início ao fim.

Um filme que olhou para a guerra exclusivamente de um ponto de vista civil foi Salute John Citizen / 1942 (Dir: Maurice Elvey), mostrando a vida de uma família comum durante o bombardeio alemão de Londres. Mr. Bunting (Edward Rigby), é o chefe de uma família feliz, com sua esposa, filha e dois filhos. Quando chega a Blitz, observamos seus efeitos sobre a família e como eles lidam com a crise.

Dois filmes de 1942 foram de excepcional interesse: Thunder Rock, dirigido por Roy Boulting e Nosso Barco, Nossa Alma / In Which We Serve, sob direção de Noel Coward e David Lean. Gosto muito de ambos.

Thunder Rock, baseado em uma peça de Robert Ardrey atacando o isolacionismo americano, adota uma abordagem alegórica da guerra através da figura de um repórter britânico, Dave Charleston (Michael Redgrave), que tenta alertar o público para a agitação política que ele acredita que vai levar a outra guerra contra Alemanha; mas seus avisos passam despercebidos. Desesperado, ele então vai morar em um farol no lago Michigan nos Estados Unidos, e ali é visitado pelos fantasmas de um grupo de imigrantes da Europa que morreram há noventa anos, quando o navio que os conduzia para uma nova vida na América naufragou na costa devido a uma tempestade violenta. O capitão do navio, que parece ser o único que tem consciência de que está morto, age como mediador entre Charleston e os outros espíritos enquanto eles contam seus dramas, perseguidos que foram por suas idéias progressistas.  No final, os fantasmas convencem Charleston de que ele deve voltar para a Europa e continuar sua luta pela verdade  contra o mal que ameaça o continente.

David Lean e Noel Coward na filmagem de Nosso Barco, Nossa Alma

Cena de Nosso Barco, Nossa Alma

Nosso Barco, Nossa Alma, foi estrelado, escrito e codirigido (com David Lean fazendo sua estréia como diretor) por Noel Coward (autor também da trilha sonora), inspirado nas façanhas de Lord Mountbatten no comando do destroyer HMS Kelly, quando ele foi afundado na Batalha de Creta. É uma imagem patriótica de unidade nacional e coesão social no contexto da guerra e teve um valor de propaganda incalculável. Coward e Lean estudaram a estrutura de Cidadão Kane / Citizen Kane / 1941 de Orson Welles, daí ser a história contada em retrospectos rápidos e de forma não-linear, ligando a frente doméstica e a zona de combate. A maior parte do espetáculo envolve o afundamento do HMS Torrin. Enquanto os homens flutuam na baleeira aguardando o resgate, os sobreviventes relembram suas vidas em casa e os acontecimentos anteriores ao ataque que destruiu o navio. Coward interpreta magnificamente  Kinross, o capitão do HMS Torrin, como um oficial modelo, impecável, preocupado com seus homens, muito exigente, mas não um tirano, que pede uma tripulação feliz e eficiente. O marinheiro Shorty Blake (John Mills) é o representante de todos os jovens cujas vidas são mudadas pela guerra. Ele conhece e se casa com Frieda (Kay Walsh), relacionada ao terceiro personagem proeminente, o Subchefe Oficial Hardy (Bernard Miles), que supera os golpes da perda da esposa e da sogra em um bombardeiro e se esforça para ajudar os outros. A cena no final em que o Capitão Kinross se despede de seus homens fazendo questão de apertar as mãos de cada um deles ficou na minha memória como uma das mais belas do cinema. Noel Coward ganhou um Certificado Especial da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas pela produção de Nosso Barco, Nossa Alma.