Arquivo diários:novembro 14, 2023

CHIANCA DE GARCIA NO BRASIL

Em 18 de abril de 2011, amparando-me no Dicionário do Cinema Português 1895-1961 de Jorge Leitão Ramos (Ed. Caminho, 2011) e na História do Cinema Português de Luís de Pina (ed. Europa-América, 1986), escreví neste blogue “A Época de Ouro do Cinema Português” (um dos artigos mais apreciados pelos leitores conforme os comentários que recebí), no qual, entre outros, fiz referência à obra de cineastas portugueses renomados como, por exemplo,  Cottinelli Telmo, Antonio Lopes Ribeiro, Arthur Duarte, Jorge Brum do Canto, Manoel de Oliveira, Arthur Duarte Leitão de Barros, Chianca de Garcia. Neste artigo desejo falar sobre os dois filmes que este último realizou no Brasil: Pureza / 1940 e 24 Horas de Sonho / 1941, fazendo antes um resumo de sua vida e obra em Portugal e no Brasil.

Chianca de Garcia

Eduardo Augusto Chianca de Garcia (1898-1983) nasceu em Lisboa. Após a Primeira Guerra Mundial, seu nome começa a aparecer nos jornais, com artigos sobre teatro, esporte, cinema.  Em 1923, ele escreve, com Norberto Lopes, a peça A Filha de Lázaro, estreada no Teatro T-Politeama pela Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro. Em 1928, está na direção da revista de cinema Imagem (como João Botto de Carvalho e Antônio Lopes Ribeiro). Secretário técnico do Cineteatro São Luiz, ele teve, em 1929, a idéia de fazer um curta-metragem para abrilhantar o Carnaval de 1930. Devia chamar-se São Luiz Melody, mas acabou por se chamar Ver e Amar / 1930, tornou-se um longa-metragem, e chegou mesmo a ser vendido para o Brasil.

Na sinopse, uma jovem costureira aspira a ser vedete do teatro de revista, porém acaba escolhendo uma vida simples, por amor a um motorista de taxi. As filmagens decorreram no jardim de Inverno e no palco do teatro, transformados em um estúdio improvisado. O filme teve uma estréia polêmica e animadora, que mais espicaçou Chianca na sua idéia da necessidade de um estúdio devidamente equipado para que pudesse haver cinema em Portugal. Ele pugnou na imprensa e acabou nomeado para a comissão a que o Governo propôs para o estudo da questão. Assim nasceu a Tobis Portuguesa. Chianca é indicado como conselheiro técnico da primeira produção da nova empresa – A Canção de Lisboa /1933, dirigida por Telmo Continelli e com Beatriz Costa encabeçando o elenco.

Diretor de produção de As Pupilas do Sr. Reitor / 1935 de Leitão de Barros, Chianca consegue, no ano seguinte, realizar o seu primeiro filme sonoro – O Trevo de Quatro Folhas – estrelado por Beatriz Costa, num papel duplo. Ela foi também a protagonista da revista Água Vai! (que ele escreveu em 1937 de parceria com Tomás Ribeiro Colaço e foi apresentada no Teatro Trindade), e um dos filmes que fez em 1938, Aldeia da Roupa Branca – enorme sucesso. O outro filme dele de 1938 foi A Rosa do Adro, baseado no popularíssimo romance de Manuel Maria Rodrigues, mas com Maria Lalande no papel título.

Cenas de Aldeia da Roupa Branca

Para minha alegria, encontrei em Lisboa o dvd de Aldeia da Roupa Branca, produzido pela Madragoa Filmes, com a nova versão restaurada e, ao exibí-lo em minha casa, foi amor à primeira vista. Numa aldeia nos arredores de Lisboa, na zona saloia, duas famílias lutam pelo monopólio do transporte das lavadeiras, que se deslocam à capital, para recolher as roupas dos citadinos e entregar as encomendas de camisas e calças, já devidamente lavadas e engomadas. A personagem central da história é Gracinda (Beatriz Costa), sobrinha de Jacinto (Manuel Gomes Carvalho), que tem longa inimizade com sua eterna rival, a viúva Quitéria (Elvira Velez). As coisas não correm bem para o velho Jacinto, privado da ajuda do seu filho Chico (José Amaro), que tinha decidido seguir outro rumo. Enquanto na aldeia se luta pelo domínio do transporte, ele anda por Lisboa, divertindo-se com a namorada, uma fadista de renome (Herminia Silva) e trabalhando como motorista. Até que Gracinda vai à cidade convencer Chico, por quem se apaixonou, a voltar à terra e ajudar o pai a recuperar seu negócio. O filme é uma delícia e eu notei algumas influências do cinema americano de Ernst Lubitsch. Na sequência de abertura Beatrizinha – mais bela e faceira do que nunca – canta “Água fria na ribeira / Água fria que o sol esqueceu” enquanto a câmara ágil de Aquilino Mendes vai mostrando com inspiração pictórica e rítmica as lavadeiras na prática do seu ofício.

Do Brasil Adhemar Gonzaga convida Chianca para realizar Pureza, inspirado no romance de José Lins do Rego. Chianca aceita e parte para o Rio de janeiro, em junho de 1939.  No enredo, num pequeno vilarejo paraibano, um político dissoluto, Dr. Jorge (Sérgio Serrano) desperta o amor das duas irmãs, ávidas de uma vida melhor. Primeiramente atrai a loura Margarida (Nilza Magrassi), que sonhava com uma vida melhor na capital e depois a morena Maria Paula (Sônia Oiticica) que, mesmo prometida ao pobretão Chico Bem-Bem (Roberto Acácio) não consegue resistir aos encantos do doutor. O pai das moças, Cavalcanti (Procópio Ferreira), chefe da estação ferroviária, é covarde e relapso, trazendo transtornos constantes aos familiares.

Não posso comentar o filme, porque não pude ver a cópia recuperada por Alice Gonzaga em 1977. Mario Nunes (Jornal do Brasil, 5/11/1940 considerou Pureza “o melhor filme feito até hoje entre nós” e apontou sequências magníficas, como a festa da usina, a da luta do pequeno Joca (Jayme Pedro Silva) com a correnteza do rio e a queda na catarata, “que nada deixam a desejar e podiam figurar com honra em filmes de Hollywood”. Pureza recebeu o primeiro prêmio para filmes nacionais, instituído pelo então Departamento de imprensa e Propaganda. (DIP).

O segundo filme que Chianca realizou no Brasil, 24 Horas de Sonho, também produzido pela Cinédia, conta a história de uma moça, Clarissa (Dulcina de Moraes) decidida a se suicidar, mas antes quer aproveitar os últimos momentos de sua vida de maneira intensiva. Instala-se em um hotel luxuoso, fingindo-se passar por uma baronesa, compra a crédito e flerta com um empregado do hotel (Odilon de Azevedo).

Odilon e Dulcina em 24 Horas de Sonho

No meu artigo “Dulcina e Cacilda no Cinema” (2/8/2018) expûs as apreciações severas de Maria Andréia na revista Carioca e de crítico de A Noite (que se assinava R) e o comentário mais benevolente do comentarista da revista Cinearte e, em seguida, dei minha opinião: ”Esta imitação das comédias norte-americanas não tem o mesmo brilho das suas congêneres de Hollywood, mas a meu ver é uma produção digna de respeito com um argumento (de Joraci Camargo) interessante e divertido, uma técnica razoável dentro das possibilidades de nossos estúdios na época, interpretações corretas (distinguindo-se Dulcina, que está muito à vontade diante das câmeras)e, quanto à direção de Chianca de Garcia, se ele não foi tão feliz com relação principalmente ao ritmo, como no seu filmes português A Aldeia da Roupa Branca, também não merece desprezo”.

Chianca de Garcia assumiu então a direção artística do Cassino da Urca, tendo produzido inúmeros espetáculos (vários com Luís Peixoto) até o jogo ser proibido no Brasil em 1946. A seguir deslocou-se para o Teatro Carlos Gomes, onde produziu inúmeras revistas e peças de teatro ligeiro.

Cena de Escândalos com Bibi Ferreira e Mara Rubia

Em 1947, ele montou uma revista feérica, “Um Milhão de Mulheres”, de muito sucesso. Como informa Salvyano Cavalcanti de Paiva no seu magnífico Viva o Rebolado – Vida e Morte do Teatro de Revista Brasileiro (ed. Nova Fronteira, 1991). Em 1948, Chianca escreveu (com Geysa Bôscoli e J. Maia) e superproduziu o primeiro espetáculo musicado a despertar real entusiasmo da crítica e do público: Beijos, Abraços e Amor! estreada no João Caetano. Em 1950, Chianca escreveu com o jovem industrial Hélio Ribeiro, na época marido da artriz Bibi Ferreira, uma das melhores revistas do ano, Escândalos, superprodução montada por Hélio. Conta Salvyano que a profusão de graça e beleza surpreendeu a Praça Tiradentes, e a Zona Sul desceu toda para a cidade a fim de ver Bibi na revista.

Bibi Ferreira

Em 1951, Chianca entrou para a TV Tupi, onde dirigiu as primeiras novelas (entre elas Coração Delator, adaptação de um texto de Edgar Allan Poe), musicais com cantores da Rádio Tupi (entre eles Aracy de Almeida e Elizete Cardoso) e dois teleteatros intitulados Retrospectiva do Teatro Universal e Retrospectiva do Teatro Nacional, que a cada semana apresentavam uma peça do repertório clássico mundial e nacional, com um elenco do qual faziam parte Fernanda Montenegro, Paulo Porto, Fregolente, Heloisa Helena. Chianca escreveu ainda o argumento de Appassionata / 1952, filme produzido pela Companhia Vera Cruz e dirigido por Fernando de Barros com Tonia Carrero, Ziembinski, Anselmo Duarte e Paulo Autran.

Em 1960, Chianca retirou-se do mundo do espetáculo, torna-se bibliotecário da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais e dirige revista da instituição. Nessa década retoma o contato com os portugueses através de crônicas regulares no Diário de Lisboa. Mas nunca mais votaria a Portugal. Ele morreu, no Rio de Janeiro a 28 de janeirode1983.