Era assim que Graciliano Ramos encarava o ofício de escritor: “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso: a palavra foi feita para dizer.”
Este entendimento exprime perfeitamente o estilo do romancista, um estilo de concisão, de unidade entre as palavras e os seus sentimentos, de rígido ascetismo tanto na narração como nos seus diálogos, todos rápidos, exatos, precisos. Diálogos e narração que fazem dele um mestre no seu ofício de romancista, um mestre da arte de escrever.
Romances de Graciliano Ramos inspiraram três filmes importantes da história do cinema brasileiro, dois dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, Vidas Sêcas / 1964 e Memórias do Cárcere / 1984 e o outro, São Bernardo / 1971, dirigido por Leon Hirszman. Este último filme é a obra-prima da filmografia de Hirszman que inclui ainda outros longas-metragens de valor como A Falecida / 1965, com argumento baseado na peça homônima de Nelson Rodrigues e Eles Não Usam Black-tie / 1981, com argumento baseado na peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri.
A história de S. Bernardo se passa na década de trinta. O narrador, Paulo Honório (Othon Bastos), escreve suas memórias, revisitando friamente dramas de sua vida e conflitos interiores que até então permaneciam inexplicáveis. Sertanejo de origem humilde, determinado a ascender socialmente, faz fortuna como caixeiro-viajante e agiota. Numa manobra financeira, assume a decadente propriedade São Bernardo, fazenda tradicional do município de Viçosa, Alagoas, transformando o inepto e endividado ex-dono das terras em seu empregado. Recupera a fazenda, expande a sua cultura, introduz máquinas para tratamento do algodão, entra na sociedade local. Desejando um herdeiro para um dia assumir o fruto da acumulação do capital, firma um contrato de casamento com a professora da cidade, Madalena (Isabel Ribeiro). O casamento se consuma, mas gradativamente as diferenças entre eles se acentuam. Paulo Honório é brutal no trato com os empregados, cujo trabalho explora impiedosamente; Madalena tem consciência social e se solidariza com os oprimidos. Seu humanismo e sensibilidade se chocam com a rudeza do marido. O fazendeiro torna-se paranóico e passa a imaginar que a mulher o trai. Persegue-a em busca de provas da traição. Madalena não suporta a pressão e se suicida. Paulo Honório penosamente tenta assumir a consciência de seus atos. “Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. E a desconfiança que me aponta inimigo em toda a parte! A desconfiança é também consequência da profissão. Foi este modo de vida que me inutilizou.”
São Bernardo é ao mesmo tempo uma análise psicológica (do drama existencial do protagonista) e uma análise social (crítica ao capitalismo latifundiário) realizado com um rigor e contenção idênticos ao dos romances de Graciliano. Para obter esta identificação estética entre o livro e o filme, Hirszman usou cenas longas com planos fixos (v. g. o monólogo de Madalena na igreja; Paulo Honório sentado na mesa após a morte da esposa resumindo sua vida marcada pela volúpia da posse e pelo arbítrio); voz over constante do narrador; quase total ausência de close-ups e planos-contraplanos; profundidade de campo; diálogos rápidos e precisos ditos magnificamente pelos atores, entre os quais se destacam naturalmente Othon Bastos e Isabel Ribeiro, muito bem acompanhados por um elenco de coadjuvantes de comprovada experiência no cinema no teatro ou na televisão como Nildo Parente, Vanda Lacerda, Mário Lago, Joffre Soares, Josef Guerreiro, Ângelo Labanca, José Policena, Rodolfo Arena.
A fotografia de Lauro Escorel (para a qual contribuiu também o admirável senso de composição do diretor) é primorosa (notando-se a reprodução na tela do tom ocre do sertão em interiores) assim como a cenografia e figurinos de Luis Carlos Ripper, a montagem de Eduardo Escorel e a acertadíssima música em tom de aboio e lamento de Caetano Veloso.
Esta fiel adaptação da obra de Graciliano Ramos foi feita sob estritas limitações financeiras e técnicas contornadas habilmente por Hirszman e teve problemas com a censura, que só liberou o filme depois que a Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB), lhe outorgou o prêmio Margarida de Prata, conferido anualmente ao filme que melhor represente temáticas centradas sobre os valores humanos, éticos e espirituais.