Vou apenas tentar dar idéia de sua obra e de seu estilo e descobrir qual é o verdadeiro Hitchcock. Porque, aparentemente, existem dois Hitchcocks: o Hitchcock popular, “mestre do suspense”, que foi a imagem que ele criou e alimentou e o Hitchcock dos intelectuais, “descoberto” pelos críticos franceses da geração Nouvelle Vague, que começaram a perceber aspectos éticos ou metafísicos e sua obra, classificando-o com um verdadeiro “autor”, como gostavam de dizer.
Hitchcock começou no cinema como redator e ilustrador de letreiros ou subtítulos em cartões, que apareciam entremeados entre as cenas dos filmes silenciosos. Ele desenhava muito bem e, quando soube que uma companhia americana, a Famous-Players Lasky, ia produzir filmes na Inglaterra em Islington, mostrou seus desenhos e foi contratado e, sempre que necessário, desenhava roupas e cenários. Chegou até a ser designado para terminar (sem ser creditado) o filme Always Tell Your Wife / 1923, quando o diretor ficou doente. Logo depois, Hitchcock se associou com a atriz Clare Greet e, aos vinte e três anos, produziu e dirigiu seu primeiro filme, Number Thirteen; porém, por falta de dinheiro, este não foi jamais terminado.
Justamente quando estava aprendendo seu ofício, a Famous Players decidiu ir encerrando aos poucos as portas do estúdio londrino e passou a alugá-lo para produtores independentes, entre eles, Michael Balcon, o homem que daria a Hitchcock a oportunidade de dirigir seu primeiro filme. Balcon fundou a Gainsborough Pictures, onde Hitchcock passou a funcionar como assistente de direção de Graham Cutts e, quando a produção precisava de um auxílio adicional, ali estava ele, ajudando na direção de arte e outras funções. Foi nessa ocasião que Hitchcock conheceu sua futura esposa, Alma Reville, que iria ser (algumas vezes creditada, outras não) uma eficiente colaboradora nos seus filmes como montadora, roteirista e continuísta.
Em 1925, Balcon ofereceu a Hitchcock a oportunidade de partir para a Alemanha, ainda na qualidade de assistente de direção de Graham Cutts, para a filmagem de The Blackguard, coprodução com Erich Pommer rodada no estúdio da UFA em Neubabelsberg. Este sistema de coprodução anglo-germânica parecia muito vantajoso e Balcon decidiu então se associar com a companhia alemã Emelka e realizar mais dois filmes, desta vez em Munich, entregando a direção a para Hitchcock: The Pleasure Garden / 1925 e The Mountain Eagle / 1926.
A estadia em Berlim foi muito importante para a sua formação. Era a época de ouro do cinema germânico, a época do Expressionismo, que influenciou grandes diretores em todo o mundo, inclusive o próprio Hitchcock, que assistira in loco ao trabalho de diretores com Murnau e Fritz Lang. Outra influência estética marcante na obra de Hitchcock foi a do cinema soviético com as teorias de montagem de Eisenstein e Pudovkin, também em evidência na mesma época.
Ao voltar para a Inglaterra, ele realizou aquele que, segundo ele, foi realmente seu primeiro filme, a primeira vez em que, de fato, exercitou seu estilo: The Lodger / 1927. A maior parte do que se tornaria o “Hitchcock touch” está contida nesta variação sobre o tema de Jack, o Estripador. Aí já apontavam os processos narrativos que viriam, como o tempo, a se consolidar como o seu método e são bem visíveis as influências germânicas e soviéticas. Foi em The Lodger que Hitchcock fez pela primeira vez a preparação cuidadosa do roteiro no papel, com todas as indicações e inclusive uma story board desenhando cada cena, inaugurando um método de trabalho que seguiria a vida toda e também a primeira de suas aparições diante das câmeras.
A fase inglêsa do diretor foi um período de aprendizagem e de criação de um estilo, com destaque para: Os 39 Nove Degraus / The Thirty-Nine Steps / 1935, A Mulher Oculta / The Lady Vanishes /1938 e Sabotagem ou O Marido era o Culpado / Sabotage / 1936. Na fase americana, nos primeiros dez anos, deu-se o aprimoramento do estilo, sobressaindo Rebecca, a Mulher Inesquecível / Rebecca / 1940, Correspondente Estrangeiro ou Este Homem é um Espião / Foreign Correspondent / 1940, O Sabotador / Saboteur / 1942, A Sombra de uma Dúvida / Shadow of a Doubt / 1943, Interlúdio / Notorious / 1946, Festim Diabólico / Rope / 1948 e, nos anos subsequentes, o auge da criatividade do diretor, avultando Pacto Sinistro / Stangers on a Train/ 1951, Janela Indiscreta / Rear Window / 1954, O Homem Que Sabia Demais / The Man Who Knew Too Much / 1956, Um Corpo Que Cai / Vertigo / 1958, Intriga Internacional; North by Northwest / 1959, Psicose / Psycho / 1960, Os Pássaros / The Birds / 1963. Na fase derradeira de sua trajetória artística, menos fértil artisticamente, distinguem-se Marnie, Confissões de uma Ladra / Marnie / 1964 e Frenesi / Frenzy / 1972.
É bom lembrar também algo da sua infância e juventude que pode ter influenciado na sua obra. Hitchcock teve uma educação muito rigorosa e estudou com os jesuítas, de modo que adquiriu um senso muito grande de organização e disciplina. Isto se reflete na sua maneira de elaborar o roteiro. Ele fazia a chamada decupagem de ferro. Desenhava cena por cena do filme, dando instruções minuciosas sobre cada plano, cada movimento de câmera, cada corte, numa espécie de montagem a priori. Depois de que tudo era posto no papel, dava seu trabalho por encerrado. A filmagem era mera formalidade, mera execução.
Por outro lado, Hitchcock estudou engenharia, tinha muito muito jeito para a mecânica e espírito prático. Talvez por isso seu grande estímulo tivesse sido sempre o desafio técnico. Nós podemos dizer que o conteúdo de seus filmes no fundo era a própria técnica, que ele dominava de maneira absoluta e colocava a serviço do entretenimento.
Ele mesmo costumava dizer: “Muitos diretores fazem filmes que são pedaços da vida; os meus são fatias de bolo”.
Por causa disso, antigamente, os críticos não levavam Hitchcock a sério, achando que ele era apenas um mestre da retórica, ou seja, que tinha um discurso primoroso, mas vazio de contéudo. Enfim, era um virtuose da mise-en-scène cinematográfica mas sem profundidade, um grande técnico, um craftsman, não um “autor”, como eles gostavam de dizer. Entretanto, lá pelos anos cinquenta, a crítica francesa criou a chamada Politique des Auteurs (Política dos Autores), que depois foi seguida por alguns críticos ingleses e americanos.
O que era essa política dos autores? Os jovens críticos da revista Cahiers du Cinéma, entre eles François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol etc. estavam insatisfeitos com a situação do cinema francês. Segundo eles, os melhores filmes franceses, o chamado Cinema de Qualité, eram dominados pelos roteiristas em detrimento dos diretores, vistos como uma espécie de assistentes executivos. O diretor era um mero encenador dessas produções, geralmente adaptações de romances célebres, filmadas academicamente. Então o que eles propunham era que os filmes fossem dominados não pelos roteiristas, mas pelos diretores. Eles diziam que a contribuição do roteirista – o tema, o assunto – era artisticamente neutra. O que faz um bom filme não é o assunto, por si só, mas o tratamento que lhe dá um diretor com personalidade. O que vale é a mise-en-scène, a direção propriamente dita, a estrutura visual e rítmica, a visão pessoal do diretor, o seu estilo. E então eles se voltaram para o cinema americano, encontrando essa virtude em diretores como Hitchcock que eram encarados como simples profissionais competentes, sem personalidade. E, com o correr dos tempos, alguns críticos até começaram a encontrar profundos significados morais ou metafísicos na sua obra, considerando-o um “autor”.
Aí surgem três hipóteses: ou os críticos estavam dando asas à sua imaginação, exercendo aquela teoria tão querida de Oscar Wilde do crítico como artista, ou seja, o crítico completando a obra do artista, vendo coisas que ele próprio não viu ou o Hitchcock foi profundo, sem o saber, tal como o Mr. Jourdain da peça de Molière ou, numa terceira conjetura, o Hitchcock sempre mentiu nas entrevistas – ele tinha pretensões intelectuais, mas escondia o jogo. Porque o que ele sempre dizia nas entrevistas era isto: “Olho todas as manhãs no espelho e nunca vi traços de metafísica no meu rosto. Faço filmes somente para assustar o público”.
Na minha opinião, Hitchcock é um formalista típico, que faz a arte pela arte, a arte como um fim em si mesma. É verdade que é visível na sua obra uma repetição constante de temas e formas e às vezes alguns desses temas são tratados com mais profundidade com, por exemplo, em Janela Indiscreta. Mas acho que, se aparece algo de mais profundo nos seus filmes, somos nós que vemos isso. Ele sempre esteve preocupado foi com a forma, como emocionar o espectador através de meios puramente cinematográficos. E é isso que me fascina no Hitchcock, a sua maneira de fazer cinema, um cinema puro, essencialmente visual e não, como ele dizia, “fotografias de pessoas falando”, um cinema de invenção pictórica.
Em suma, a arte pode ser vista através de várias perspectivas. Ela pode ser gratuita – a arte pela arte-, pode ter função social, pode ser denúncia, pode conter valores éticos, filosóficos, religiosos, psicológicos etc. Então tudo depende de como você vê a arte. O Hitchcock é tão artista quanto o Bergman ou o Fellini. Só que ele faz arte pela arte e os outros dois fazem uma arte mais complexa, uma arte que, além de fazer o homem conhecer a beleza, lhe dá uma maior compreensão sobre si mesmo e sobre o mundo que o cerca, especula sobre problemas transcendentais e inclusive exige mais atenção e criatividade por parte do espectador.
APÊNDICE
Temas recorrentes na obra de Hitchcock:
– O tema do falso culpado, isto é, o inocente acusado de um crime que não cometeu, que aparece em The Lodger, Os 39 Degraus, O Sabotador, Pacto Sinistro, Ladrão de Casaca, O Homem Errado, Intriga Internacional, Frenesi.
– O tema da transferência de identidade, da captação mental de um ser fraco por um ser forte, que surge em A Sombra de uma Dúvida, Pacto Sinistro, Psicose.
– O tema da transferência de culpa, ou seja, o tema segundo o qual um personagem, agindo com intencional ou acidental cumplicidade com outro, assume seus crimes ou seus desejos criminosos como seus próprios, que se manifesta em Pacto Sinistro, A Tortura do Silêncio (o assassino confessa seu crime ao padre e o torna cúmplice de seu crime), O Homem Errado (a falsa acusação produz uma carga intolerável de culpa, não no homem acusado, mas na sua esposa).
– O tema da suspeita e da angústia, visível em Suspeita, Rebecca, O Homem Errado, Marnie.
– O tema terapêutico. O personagem fica curado de alguma fraqueza ou obsessão depois de passar por várias peripécias como em Um Corpo Que Cai, Janela Indiscreta, Quando Fala o Coração, Marnie.
– O tema da curiosidade obsessiva, expresso em Janela Indiscreta, Um Corpo que Cai, Psicose.
– O tema da precariedade e da vulnerabilidade da ordem humana, do surgimento de uma situação inesperada na vida cotidiana das pessoas, evidente em Os 39 Degraus, O Homem que sabia Demais, O Homem Errado, Janela Indiscreta, Os Pássaros.
Além dos temas, podemos perceber uma retomada de certas características de personagens. Por exemplo, a fascinação do advogado pela sua cliente em Agonia de Amor / The Paradine Case antecipa a do ex-policial pela impostora em Um Corpo Que Cai; o relacionamento de Bruno Anthony com sua mãe louca em Pacto Sinistro antecipa o Norman Bates em Psicose etc.
Características de sua dramaturgia:
– Mistura de Suspense – Humor. Angústia e mistério coloridos com humor.
– Manipulação do espectador. Identificação com o personagem. Hitchcock faz com que o espectador se envolva emocionalmente com o personagem e sinta que está compartilhando diretamente de suas experiências.
– O prazer de meter medo. O gosto pelo macabro.
– Atenção aos detalhes e didatismo nas informações para a rápida aferição das regras do jogo pelo espectador.
– Sacrifício da lógica e da verossimilhança. Situações absurdas.
– Evitação deliberada do clichê. Ele procura sempre evitar o clichê. Se um homem vai ser atraído para uma tentativa de assassinato, a tradição pede uma rua escura, passos na noite etc. Mas em Intriga Internacional, por exemplo, Hitchcock escolheu o lugar mais amplo e mais claro do país à sua disposição e filmou uma sequência antológica.
– Personagens artificiais, esquemáticos, de pouca densidade humana. Peças de xadrez.
– Atores como objeto, mero elemento estético. Como James Stewart me falou, quando tive o privilégio de lhe fazer algumas perguntas durante uma entrevista coletiva, “Com Hitchcock havia apenas um jeito de fazer uma cena – o dele”. E com aqueles que teimavam em utilizar um “método de interpretação”, ele avisava: “Faça o que quiser. Há sempre a sala de montagem”. Era a câmera, e depois a edição, que atuavam, e não os atores.
– Suas encenações comportam quase sempre proezas de estilo, chegando à acrobacia técnica, como ele fez em Festim Diabólico, filmado em continuidade real de tempo sem o uso dos cortes.
Resumo de sua filmografia:
Foram 23 filmes ingleses e 30 americanos, excluídos os esquetes para o primeiro filme musical inglês, Ellstree Calling e para um curta-metragem, An Elastic Affair, ambos produzidos em 1930; os dois filmes de média-metragem feitos em 1943 para o Ministério de Informação Britânico, Bon Voyage e Aventure Malgache; um documentário sobre os campos de concentração intitulado Memory of the Camps, realizado em 1945, mas que só foi ao ar pela TV em 1985; e mais 20 telefimes que ele dirigiu para séries antológicas entre 1955-1962.