CONCEITO DE FILME NOIR

junho 10, 2022

Existem listas de filmes noir tão abrangentes, algumas chegando até ao absurdo. Michael F. Kennedy, no seu livro “Film Noir Guide” (McFarland, 2011), enumera nada menos do que 745 filmes noir possíveis, entre eles, Rebecca, a Mulher Inesquecível / Rebecca / 1940, O Homem que Vendeu sua Alma / The Devil and Daniel Webster / 1941, Casablanca/ Casablanca / 1942, Os Filhos de Hitler / Hitler´s Children / 1942, O Retrato de Dorian Gray / The Picture of Dorian Gray / 1945, Amar foi Minha Ruína / Leave her to Heaven / 1945. Monsieur Verdoux / Monsieur Verdoux / 1947, Crepúsculo dos Deuses; Sunset Boulevard / 1951, O Homem do Oeste / Man of the West / 1958.

Na coletânea editada por Alain Silver e James Ursini, “Film Noir Directors” (Limelight, 2012), variados articulistas nomeiam os filmes noir de cada diretor emergindo entre eles: Carta de uma Desconhecida / Letter from an Unknown Woman / 1948; Atlântida, o Continente Perdido/ Siren of Atlantis / 1949, O Dia em que a Terra Parou / The Day the Earth Stood Still / 1951, Jardim do Pecado / 1958, Intriga Internacional / North by Northwest / 1959.

Raymond Durgnat no seu artigo, Paint it Black: The Family Tree of the Film Noir, publicado em “Film Noir Reader” (Limelight, 1996), aponta como films noirs King Kong / King Kong / 1933, Matar ou Morrer / High Noon / 1952 e 2001, Uma Odisséia no |Espaço / 2001, a Space Odyssey / 1968.

Com a devida vênia, nenhum desses filmes pode ser classificado como noir, simplesmente porque não são dramas criminais. Por exemplo: Crepúsculo dos Deuses e Amar foi Minha Ruína, que vêm sendo designados como noir por vários autores, embora contenham crimes nas suas tramas, são dramas psicológicos respectivamente sobre os distúrbios mentais de uma atriz decadente do cinema mudo e uma mulher possuída por um ciúme doentio do marido.

Nino Frank

Nino Frank, o primeiro crítico a usar o termo, disse cristalinamente no seu artigo pioneiro publicado na revista Écran Français em agosto de 1946: Un Nouveau Genre “Policier”: L´Aventure Criminelle. Ele não empregava a palavra noir no título, mas dizia em um trecho: “Ainsi, ces films ‘noirs’ n´ont pas rien de commun avec les bandes policères du type habituel (Estes filmes ‘noirs’ não têm mais nada em comum com as fitas policiais do tipo habitual). Com base nesta afirmação, deduzí que um filme, para ser considerado noir, tem que ser antes de tudo um drama criminal e como o drama criminal se subdivide em vários tipos (filmes de gângster, filme de assalto, filme de prisão, filme de amantes fugitivos ou fora-da-lei etc.) o filme noir seria cada um destes tipos acrescidos dos ingredientes noir e, tal como eles, um subgênero do drama criminal.

Acompanho também Foster Hirsch (“FIlm Noir: The Dark Side of the Screen (DaCapo, 1981) na sua percepção de que o filme noir tem todas as espécies de convenções fílmicas que normalmente associamos aos gêneros cinematográficos (convenções de estrutura, caracterização, tema e estilo visual) e o uso repetido destas convenções o qualifica como um gênero tão intensamente codificado quanto o western.

Existem autores que consideram o filme noir como um estilo, mas nunca me deparei com uma argumentação sólida sobre tal conceito. O que caracteriza o filme noir não é somente o estilo visual, a iluminação ou a fotografia, mas também o clima de pessimismo, o tom deprimente, a atmosfera de corrupção, morte, angústia, loucura, fatalismo etc.  bem como elementos típicos no que concerne ao tema, personagens e estrutura narrativa.

Pode existir ingredientes noir em filmes de outros gêneros. Entretanto este fato não os transforma em um filme noir como categoria autônoma. Sangue na Lua / Blood on the Moon / 1948 é um western com alguma característica noir na sua forma e conteúdo, mas ele será sempre um western. Capacete de Aço / The Steel Helmet / 1951 é um filme de guerra com estilo visual expressionista e certas convenções temáticas noir, mas será sempre um filme de guerra.

Na minha concepção o filme noir é um desvio ou evolução dentro do vasto campo do gênero drama criminal, que teve seu apogeu durante os anos 40 até meados dos anos 50, e foi uma resposta às condições sociais, históricas e culturais reinantes na América durante a Segunda Guerra Mundial e no imediato pós-guerra. Nele se combinariam, basicamente, as formas de ficção criminal americana produzida por escritores como Dashiel Hammett, Raymond Chandler, James M. Cain, Cornell Woolrich e seus descendentes ou semelhantes literários, com um estilo visual inspirado nos filmes expressionistas alemães dos anos 30. Em O Outro Lado da Noite: Filme Noir (Rocco, 2001) exponho com mais amplitude o tema proposto por este livro e proponho uma filmografia comentada.

Para escrevê-lo, estudei por cinco anos o assunto com muito cuidado, procurando ler todos os livros ou artigos já existentes sobre o mesmo e adquirir (inclusive de colecionadores de países distantes como Islândia) o máximo de dvds de filmes que poderiam ser noir. Recorrí também à New York Public Library (New York), Bibliothéque André Malraux (Paris), Biblioteca do IBEU (Rio de Janeiro), Museu Lasar Segall (São Paulo) porém, mesmo assim, cometí algumas falhas. Indiquei como noir filmes que não eram dramas criminais (v. g. Angústia / The Locket / 1947, Alma em Suplício / Mildred Pearce / 1945, Gilda / Gilda / 1946, O Beco das Almas Perdidas / Nightmare Alley / 1947, Acossado / Cornered/ 1945, Anjo do Mal / Pickup on South Street / 1953, Nuvens de Tempestade / The Woman on Pier 13, No Silêncio da Noite / In a Lonely Place / 19050, O Tempo não Apaga / The Strange Love of Martha Ivers / 1946, Ao Cair da Noite / Moonrise / 1949 mas sim, respectivamente, um melodrama (os quatro primeiros), um drama de guerra (o quinto), um drama político, de espionagem ou de propaganda anticomunista (o sexto e o sétimo), um drama psicológico (o oitavo e o nono) e um drama social (o décimo). A presença de elementos noir em todos estes filmes me confundiu; porém devo dizer que a maioria dos autores continuam considerando-os como filmes noir.

Deixei também de incluir como noir alguns dramas criminais que não tinha visto (v. g. Johnny Angel / Johnny Angel / 1945, The Lady Confesses / 1945, Mulher Dillinger / Decoy / 1949, Prisioneiro do Medo / The Pretender / 1947, Maré Alta / High Tide / 1947, Traição / Race Street / 12948, Desafiando o Perigo ; Red Light / 1950, Na Noite do Crime / Woman on the Run / !950, The Man who Cheated Himself / !950, Cidade Tenebrosa / Crime Wave / 1954, Fúria Assassina / The Naked Alibi / 1954, Pecado e Redenção / Rogue Cop / 1954. Para corrigir as falhas, escreví uma série de artigos neste meu blog (Film Noir I, II, III e IV), publicados sucessivamente em 21 e 27 de março de 2004 e 7,14, e 26 de abril do mesmo ano, como uma espécie de revisão do livro. Agora, alarmado com as listas de filmes noir, a meu ver estafúrdidas, que continuam aparecendo, retomo o assunto, para confirmar meu conceito de filme noir.

Para ser franco, ainda tenho dúvidas sobre se determinados filmes são noir ou não, porque nem sempre é fácil distinguir o gênero de um filme. Sombras do Mal / Night and the City / 1950 tem todos os ingredientes de um filme noir, porém a ação transcorre fora do ambiente ubano americano. E seria drama criminal? ou drama psicológico? Borde e Chjaumeton “Panorama du Film Noir Américan” (Flammarion, 1955) escolheram a foto de Richard Widmark como o seu personagem em Sombras do Mal para a capa do seu livro. Entretanto, no Índice Cronológico das Séries (pois eles consideravam o fenômento noir como uma série (sugerindo não se sabe bem se um ciclo ou um gênero), os dois autores não colocaram o filme de Jules Dassin entre os Films Noirs, mas sim entre os de Psychologie Criminelle ao lado de Amar foi Minha Ruína, como se fosse um drama psicológico, onde ocorre um crime.

Spencer Selby (“Dark City -The Film Noir” (McFarland, 1984) tinha razão ao sugerir que “O filme noir é talvez a mais escorregadia de todas as categorias fílmicas”. Brutalidade / Brute Force / 1947 e Cidade Nua / The Naked City / 1948 possuem alguns aspectos noir mas hoje, pensando melhor, não os colocaria no meu livro.

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