Em um célebre artigo intitulado “Uma certa tendência do cinema francês”, publicado pela revista Cahiers du Cinema (n°31, janeiro 1954), François Truffaut atacou a “tradição de qualidade”, um cinema de estúdio e de roteiristas dando primazia ao sistema de astros, que a crítica celebrava e os festivais premiavam.
Ele reclamava da divisão do trabalho entre o roteirista e o diretor, que se efetuava com vantagem para o primeiro, considerado na época o único “autor” do filme. Nessa configuração, o realizador não passava de um ilustrador, um artesão executando um plano que ele não determinara plenamente – e não um portador de um projeto pessoal.
O crítico de 22 anos denunciava igualmente o “inferno da adaptação” das grandes obras romanescas. O papel essencialmente literário do roteirista consistia em redigir uma continuidade dialogada que encontrasse soluções de encenação, mas que somente cuidasse da embalagem que iria acolher a matéria-prima do filme, o diálogo. Enfim, o realizador era um simples técnico que garantia a qualidade da imagem.
Truffaut acusou impiedosamente os diretores mais respeitados do cinema francês – como René Clair, Marcel Carné, Julien Duvivier, Henri-Georges Clouzot, René Clement, Yves Allegret, Christian-Jaque, Henri Decoin, Claude Autant-Lara, Jean Delannoy, etc. – poupando apenas alguns eleitos – Jean Renoir, Jacques Becker, Jacques Tati, Robert Bresson, Max Ophuls, Jean Cocteau, Abel Gance, Sacha Guitry -, considerados “autores”, e investiu também contra renomados roteiristas, como Henri Jeanson, Jacques Sigurd e, sobretudo, Jean Aurenche e Pierre Bost.
Ao mesmo tempo em que desprezava a “qualidade francesa” por causa de seu academismo, Truffaut reclamava em outro texto a abertura de um espaço para a nova geração, proclamando que “era preciso filmar outra coisa, com um outro espírito e outros métodos”, e exortando o abandono dos estúdios pois, naquela época a rigidez sindical e profissional – era preciso vinte anos de trabalho obscuro em um estúdio para se tornar diretor – desencorajava os jovens de ascender aos postos-chaves de decisão e de criação.
Em 1952 era ainda impensável se tornar um diretor sem ter passado por um aprendizado técnico e um estágio. Um jovem sem formação não tinha nenhuma chance de encontrar um produtor. E havia ainda a exigência de ser titular de uma carteira de identidade profissional de técnico da indústria cinematográfica (CIP) expedida pelo Centre National de la Cinématographie (CNC), documento exigido para trabalhar na produção de um filme. Seis anos mais tarde, os membros da Nouvelle Vague perceberam que, ao invés de se integrar ao sistema de produção corrente, era preciso mostrar seu valor independentemente do sistema e se integrar nele depois.
A emergência da Nouvelle Vague foi também a consequência lógica de outros fenômenos tais como o desenvolvimento de uma verdadeira escola de curta-metragem sob o impulso das ajudas públicas (v. g. a instituição de um subsídio pela qualidade para curtas-metragens) e a instauração, pelo trabalho dos cineclubes e das revistas de cinema, de um clima intelectual favorável ao reconhecimento do estatuto artístico da criação cinematográfica em pé de igualdade com a literatura e as outras artes.
Após a guerra, já vinha ocorrendo uma pequena revolução cultural: a cinefilia. O movimento assumiu sua forma nos cineclubes que se multiplicaram a partir de 1946: nas cidades, nos estabelecimentos escolares, nas empresas, reagrupados em uma meia dezena de federações reconhecidas e sustentadas pelo CNC (Centre National de la Cinématographie). No cineclube, via-se o filme de outra maneira, legitimando-o como um fato cultural.
O semanário L´Écran Français saiu da clandestinidade em julho de 1945. A renomada Revue du Cinéma, que havia tido uma existência efêmera editada pela Gallimard entre 1928 e 1931, reapareceu de 1946 a 1949. Em 1950, surgiu a Radio-Cinéma-Télévision futura Télérama. Em 1951, a Cahiers du Cinéma; em 1952, a Positif, em torno das quais borbulhavam as publicações mais modestas ou as revistas das federações de cineclubes, Image et Son e Cinéma. A Filmologia, nova disciplina universitária, entrou na Sorbonne com Gilbert Cohen-Séat. Ele publicou a Revue Internationale de Filmologie, que durou uma dezena de anos.
A sala da cinemateca francesa (fundada por Henri Langlois) atraía os parisienses e excitava a imaginação dos provincianos. Nasceu um público que justificava a multiplicação das salas chamadas “d´art et d´essai”, um cartel de cinemas de arte. Enfim, uma grande fração do público adquiriu certos conhecimentos e estava pronta para, nos fins dos anos 1950, acolher, pelo menos com curiosidade, toda tentativa de renovação.
A expressão “nouvelle vague” foi criada por Françoise Giraud na revista L´Express do dia 3 de outubro de 1957 para qualificar os jovens dos anos 50 no seu conjunto. Ela não fazia nenhuma referência ao cinema e foi somente em 1959 que Pierre Billard retomou o termo para designar os cineastas oriundos da Cahiers du Cinéma, formados sob conduta espiritual de André Bazin, morto em 11 de novembro de 1958 sem assistir, não à eclosão de uma escola ou movimento, mas sim o surgimento de uma geração espontânea de vários diretores com idéias novas e adeptos da “política do autor”, que estavam realizando seus primeiros longas-metragens (Claude Chabrol, Pierre Kast, Jacques Rivette, François Truffaut, Jean-Luc Godard, Éric Rohmer, Jacques Doniol-Valcroze), apelidados de “jeunes turcs” em referência ao movimento, chamado Revolução dos Turcos (3 de julho de 1908,) que marcou a dissolução do Império Otomano.
Houve duas tendências bem diferentes deste fenômeno de renovação no cinema francês: uma, concentrada no grupo da Nouvelle Vague, de tendência direitista; outra, identificada com o grupo Rive Gauche, apoiado pela revista Positif, que funcionava como contraponto da Cahiers du Cinéma e era de tendência esquerdista, envolvendo uma geração um pouco mais velha (Alain Resnais, Agnes Varda, George Franju, Chris Marker, Henri Colpi). A rapaziada da Nouvelle Vague, apelidados de “jovens turcos”, privilegiava a encenação, o ato cinematográfico, em detrimento do conteúdo, da mensagem, e era criticada pela turma da Positif pela ausência de engajamento político.
Em um número especial sobre a Nouvelle Vague, Cahiers du Cinéma (nº 138 – dez. 1962) publicou uma lista de 162 cineastas que realizaram seu primeiro longa-metragem depois de 1 de janeiro de 1959, incluindo nomes como Jacques Demy, Louis Malle, Jean Pierre Melville, Edouard Molinaro, Jean Rouch, e outros que às vezes são citados como cinemanovistas ou como Alexandre Astruc e Roger Vadim apontados como seus precursores.
O impacto inicial da Nouvelle Vague veio de quatro filmes lançados em 1959 e 1960: Nas Garras do Vício / Le Beau Serge e Os Primos / Les Cousins de Claude Chabrol, Os Incompreendidos / Les 400 Coups de François Truffaut e Acossado / A Bout de Souffle de Jean Luc Godard. O filme prototípico do grupo Rive Gauche foi Hiroshima, meu amor / Hiroshima, mon amour, dirigido por Alain Resnais. Chabrol investiu uma pequena herança (proveniente de sua esposa) na produção de seu primeiro longa-metragem e criou sua própria produtora Ajym Films. Truffaut recebeu ajuda financeira de seu sogro Ignace Morgenstern, dono da importante distribuidora Cocinor, e fundou a Les Films du Carrosse. O filme de Godard foi produzido pela Les Films Impéria de Georges de Beauregard e o de Resnais pela Argos Films de Anatole Dauman. Beauregard e Dauman foram, juntamente com Pierre Braunberger, os principais produtores da Nouvelle Vague
Já introduzidos nos meios profissionais, os novos cineastas souberam utilizar extraordinariamente sua rede de relações, a começar pelo mundo da imprensa. Saudados como deuses pelo conjunto desta, eles encontraram no semanário L´Express a tribuna permanente necessária. No exterior a Nouvelle Vague, novo instrumento de propaganda para a cultura gaullista (provando que a França era um país jovem, fazendo filmes jovens), conheceu um verdadeiro triunfo e influenciou o cinema de vários países, inclusive o Cinema Novo brasileiro.
As convenções estilísticas mais importantes dos filmes da Nouvelle Vague foram o uso da montagem elíptica e dos cortes interrompidos. Quando os jovens da Nouvelle Vague se tornaram diretores, conheciam tudo sobre cinema como uma forma de arte e pouco sobre os aspectos práticos da produção. Autodidatas, eles cometeram erros que seus orçamentos baratos e cronogramas de filmagem exíguos não permitiam que fossem corrigidos. Como não podiam fazer retaques, confiavam na montagem elíptica para esconder defeitos técnicos na tela. Os cortes interrompidos, por exemplo, eram um meio de restaurar tomadas malfeitas, extirpando cenas com erros de algum ator ou cinegrafista. Outra função da montagem elíptica e do corte interrompido foi a de eliminar as transições suaves que permitiam ao público esquecer de que estava vendo um filme, pois o cinema da Nouvelle Vague é de certo modo, um cinema auto-reflexivo ou meta-cinema.
Segundo os cineastas da Nouvelle Vague a montagem invisível do cinema comercial dos anos trinta, quarenta, cinquenta e boa parte dos anos sessenta foi projetada para desviar a atenção dos espectadores do fato de que ele ou ela estava assistindo um artefato criado conscientemente. E, curiosamente, eles não viam nenhuma contradição em rejeitar o cinema tradicional de qualidade francesa e ao mesmo tempo admirar descaradamente a Hollywood comercial clássica, alegando que certos diretores-autores como v. g. Otto Preminger, Nicholas Ray ou Douglas Sirk existiam no cinema americano.
A qualidade mais obviamente revolucionária dos filmes da Nouvelle Vague foi o seu aspecto informal, desleixado. Os diretores novavaguistas admiravam os neorealistas (especialmente Rosselini) e, em oposição à filmagem em estúdio, preferiram filmar nas ruas. Semelhantemente, a iluminação de estúdio brilhante foi substituída pelo que Raoul Coutard chamou de “luz do dia”. Tinham também preferência pela câmera na mão e pelo plano longo. De outro lado, encorajaram os atores a improvisar suas falas, mesmo que isto contribuísse para desacelerar o enredo. Faziam também alusões a outros realizadores e filmes e in-jokes com colegas de profissão aparecendo em pequenos papéis (v. g. o diretor Jean-Pierre Melville como um romancista Parvulesco em Acossado).
Durante três anos os filmes da Nouvelle Vague tiveram bons lucros pela novidade e porque satisfizeram as necessidades financeiras dos produtores. Rodados em locação, usando equipamento portátil, atores pouco conhecidos, e equipes pequenas, eles puderam ser feitos rapidamente e por menos da metade de um custo normal. Entretanto, o cinema tradicional, o cinema comercial de rotina, de gênero e de astros, perdurava. O grande público continuava prestigiando mais o “cinema de papa” com artistas populares como Fernandel, Jean Gabin e Jean Marais e, a partir de 1962, o entusiasmo pela Nouvelle Vague regrediu, tanto por parte dos produtores como por parte dos espectadores. As rendas de bilheteria dos filmes cinemanovistas começaram a despencar e os distribuidores cada vez mais hesitavam a lançar os filmes deles.
Por ironia, Truffaut, Chabrol e outros depois seguiriam o caminho de um novo academismo, tornando-se o Carné ou Delannoy de uma nova “qualidade francesa”, e Aurenche e Bost, os roteiristas preferidos de um ex-crítico bem mais novo do que eles, Bertrand Tavernier. Para Tavernier, Aurenche e Bost – depois da morte de Bost, Aurenche sozinho – escreveram ou adaptaram L´Horloger de Saint Paul, Que La Fête Commence, Le Juge et L´Assassin, A Lei de Quem Tem o Poder / Coup de Torchon. Somente Godard, o mais radical de todos os diretores da Nouvelle Vague, continuou com seu cinema anárquico e arrogante, amado por uns e detestado por outros.
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