Arquivo mensais:dezembro 2021

OTTO PREMINGER I

Sua importância na História do Cinema como produtor que desafiou o Código de Produção e a Lista Negra de Hollywood e como diretor de uma quantidade expressiva de bons filmes sobre uma ampla variedade de assuntos, é inegável. Além disso, ele quebrou outras barreiras realizando dois filmes somente com atores negros e abordando temas controvertidos ou proibidos.

Otto Preminger

Otto Ludwig Preminger (1905-1986), filho de Markus Preminger e Josefa Fraenkel, nasceu em Wiznitz na Polonia, mas sempre se apresentou como natural de Viena, a capital do Império Austro-Húngaro, do qual a Polonia fazia parte na época. Após ter exercido o cargo de promotor público em sua cidade natal, Czernovic, Galicia e em Graz, Esfíria, Markus ocupou o cargo eminente de procurador geral em Viena, para onde se mudou com sua família. Com a dissolução da monarquia depois da Primeira Guerra Mundial o Dr. Preminger abriu um escritório de advocacia e ganhou muito dinheiro defendendo clientes prósperos da elite.

Desde seus primeiros dias em Viena Otto ficou obcecado pelo teatro lendo e assistindo peças de famosos dramaturgos.  Sua ambição era se tornar um ator. Enquanto seu pai continuava a prosperar na Viena do pós-guerra, ele decidiu seriamente fazer uma carreira no palco. Sua grande chance surgiu em 1923, quando o vienense Max Reinhardt, que havia instalado sua base de operação em Berlim – onde firmou uma reputação de renome mundial como diretor e empresário teatral -, resolveu formar uma companhia em Viena no velho teatro Josefstadt. Otto escreveu uma carta para Reinhardt pedindo para fazer um teste, no qual foi aprovado. O Dr. Markus aceitou a decisão de Otto pedindo-lhe apenas que se formasse em Direito, o que ele conseguiu, embora faltando muito às aulas.

Quando o teatro, depois de uma reforma, foi reinaugurado em 1 de abril de 1924, Preminger fez uma breve aparição na peça Arlecchino Servitore di due patroni de Carlo Goldoni. Depois interpretou Stephano, um dos criados de Portia em The Merchant of Venice. Reinhardt pode ter tido reservas sobre a atuação de Otto, mas percebeu logo sua capacidade como administrador e o nomeou seu assistente. Porém o rapaz queria atuar e depois de passar um ano com o mestre, observando e aprendendo, achou que sua carreira iria avançar melhor se ele se juntasse a uma companhia onde tivesse a oportunidade de interpretar melhores papéis.

Com este objetivo Otto trabalhou em teatros de língua alemã de Praga, Zurich e Aussig e em 1928 voltou para Viena onde fundou uma companhia de teatro de câmara, Die Komödie, da qual se desligou no ano seguinte por divergência com seus associados. Com novos parceiros Otto organizou um teatro de repertório com o nome pomposo de Neues Wiener Schauspielhaus (Nova Casa de Teatro de Viena). Em junho de 1930, insatisfeito com o resultado artístico da companhia, demitiu-se. No mesmo ano, voltou para o teatro Josefstadt, desta vez como executivo solucionador de todos os problemas (inclusive o egocentrismo ou a irascibilidade de astros como Peter Lorre, Lili Darvas, Elisabeth Bergner, Oscar Karlweis e Alexander Moissi).  Apesar de ter sido contratado como executivo, Otto estava de olho na direção e não demorou muito para dirigir um drama de tribunal, Voruntersuchung (Investigação Preliminar), escrito por um advogado de Berlim, Max Alsberg em colaboração com o dramaturgo Otto Ernst Hesse. Na noite de estréia ele foi chamado vinte e uma vezes ao palco com seu elenco e os coautores exultantes.

Logo após este êxito, um industrial rico de Graz, Heinrich Haas, propôs ao jovem diretor de teatro que ele dirigisse um filme intitulado Die Grosse Liebe (o Grande Amor). Otto não sabia nada sobre técnica cinematográfica e, além disso, não tinha a mesma paixão pelo cinema como tinha pelo teatro, mas aceitou porque gostou da história sobre um soldado austríaco (Attila Hörbiger) que retornava da Rússia dez anos depois do final da Primeira Grande Guerra e encontrava uma senhora viúva (Hansi Niese) que pensava que ele é seu filho. Otto rejeitou o filme como uma loucura juvenil e preferiu esquecê-lo.

Desde a encenação de Voruntersuchung em janeiro de 1931 até sua última produção no Josefstad em outubro de 1935, Otto Preminger dirigiu 26 espetáculos até que Joseph Schenck (aconselhado por Julius Steger, um austríaco que havia sido parceiro de William Fox, ganhara uma fortuna na América e retornara a Viena onde se tornou cliente do Dr. Markus Preminger) o convidou para trabalhar na recém-formada Twentieth Century-Fox em Los Angeles. Preminger chegou em Nova York em 21 de outubro de 1935 e, antes de partir para Los Angeles, cumpriu um compromisso que havia assumido com o produtor teatral Gilbert Miller de reencenar Sensationsprozess, um de seus maiores sucessos em Viena, agora com o título americano de Libel!

Preminger foi contratado por Schenck, mas seria o parceiro dele, Darryl F. Zanuck, que determinaria seu destino na Twentieth Century-Fox. Depois de um aprendizado observando a filmagem de Novos Ecos da Broadway / Sing, Baby, Sing, musical de rotina dirigido por Sidney Lanfield, foi designado por Zanuck para a unidade de Sol Wurtzel (responsável por todos os filmes B do estúdio), ocupando-se da direção de duas comédias, Canção Facinadora / Under Your Spell / 1936 (com o cantor de ópera Lawrence Tibbett) e Quando o Amor Trabalha / Danger – Love at Work / 1937 (com Ann Sothern). Satisfeito com o trabalho de Preminger, Zanuck escolheu-o para dirigir um filme classe A, Kidnapped, adaptação do romance de Robert Louis Stevenson, cujo roteiro ele próprio escreveu; porém, após uma discussão séria entre eles, o diretor foi despedido. O filme seria realizado por Alfred Werker e exibido no Brasil com o título de Raptado.

Otto Preminger em Abandonados

 

Otto Preminger em Um Pequeno Erro

Com dificuldade de arranjar emprego em algum outro estúdio, Preminger retornou ao teatro, dirigindo as peças Outward Bound, Margin for Error, My Dear Children, Beverly Hills, Cue for Passion, The More the Merrier, In Time to Come, funcionando também como ator em Margin for Error e somente como ator em The Man Who Came to Dinner. Impressionado com a performance de Preminger no palco como o consul nazista Karl Baumen na peça Margin for Error, Nunnally Johnson convidou -o para interpretar o papel de outro nazista, Major Diessen, no filme Abandonados / The Pied Piper / 1942, que ele estava escrevendo e produzindo na Twentieth Century-Fox, de onde ele havia sido banido. A Fox requisitou-o novamente para repetir o papel de Karl Baumen na versão cinematográfica de Margin for Error e então Otto conseguiu convencer William Goetz (que estava administrando a Fox na ausência de Zanuck, então servindo no Army Signal Corps) a lhe conceder também a direção do filme. Depois de terminar Um Pequeno Erro / Margin for Error / 1943 e antes de conseguir outra incumbência como diretor na Fox, Preminger foi contratado por Samuel Goldwyn para aparecer como um nazista em uma comédia de Bob Hope, Correspondente Fenômeno / They Got Me Covered / 1943, e ele aceitou, porque uma aliança com Goldwyn seria útil no dia em que Zanuck retornasse do serviço militar.

Entretanto, quando Zanuck reassumiu seu posto na Fox, deu permissão para que Preminger continuasse desenvolvendo seus dois projetos, Army Wives (depois renomeado Por Enquanto, Querida / In the Meantime Darling / 1944) e Laura / Laura / 1944, ambos destinados para a unidade B; porém Preminger só poderia dirigir o primeiro. A direção de Laura, depois elevado à classe A, foi entregue a Rouben Mamoulian, mas Zanuck não gostou das primeiras cenas que ele rodou e acabou colocando Preminger no seu lugar. O filme obteve êxito e proporcionou indicações ao Oscar para Melhor Direção, Ator Coadjuvante (Clifton Webb), Roteiro, Direção de Arte e Joseph La Shelle arrebatou a estatueta por sua esplêndida fotografia em preto e branco.

Começava assim a fase na qual Preminger, continuando como diretor contratado da Fox, realizou alguns de seus melhores filmes, adiante assinalados em negrito: 1944 Laura. 1945 – Czarina / A Royal Scandal, comédia romântica histórica com Tallulah Bankhead como Catarina da Rússia no papel que fôra de Pola Negri na versão silenciosa, Paraíso Proibido / Forbidden Paradise / 1924 (Dir: Ernst Lubitsch). Anjo ou Demônio? / Fallen Angel. 1946 – Noites de Verão / Centennial Summer, musical romântico histórico passado durante a Exposição de Filadélfia em 1876 com Jeanne Crain, Cornel Wilde, Linda Darnell. 1947 – Entre o Amor e o Pecado / Forever Amber, drama romântico histórico com Linda Darnell, Cornel Wilde, George Sanders, tendo como pano de fundo a côrte de Carlos II na Inglaterra do século XVII; Êxtase de Amor / Daisy Kenyon. 1948 – A Condessa se Rende / That Lady in Ermine (Preminger apenas terminou a filmagem após a morte de Lubitsch). 1949 O Leque / The Fan; A Ladra / Whirlpool. 1950 – Passos na Noite / Where the Sidewalk Ends; Cartas Venenosas / The Thirteenth Letter, drama criminal de mistério com Linda Darnell, Charles Boyer, Michael Rennie. 1952 – Alma em Pânico / Angel Face.

Gene Tierney e Dana Andrews em Laura

Gene Tierney e Clifton Web em Laura

Laura é o mais estilizado de todos os filmes noirs. Investigando o assassinato de Laura Hunt (Gene Tierney) diretora de uma agência de propaganda, o detetive Mark McPherson (Dana Andrews) interroga seu mentor, um influente jornalista quinquagenário, Waldo Lydecker (Clifton Webb) que considerava Laura não apenas como sua maior “criação”, mas também propriedade pessoal. No decorrer da investigação McPherson começa a ficar fascinado pela falecida e quando vai ao apartamento dela em busca de provas, senta-se em uma poltrona e, contemplando seu retrato pendurado na parede, adormece. De repente, a porta se abre e entra a Laura de carne e osso. “Nunca me esquecerei do fim de semana em que Laura morreu”. É com este monólogo interior de Lydecker que começa o filme. Antes do aparecimento de Laura, é ele – já no outro mundo – quem recorda uma série de flagrantes evocando a ascensão profissional da jovem. Depois que Laura surge viva, a trama passa a ser conduzida por McPherson, objetivamente. O estilo conciso e sereno do diretor é notado desde os primeiros instantes, quando a câmera desliza da esquerda para a direita pelas prateleiras e depois pela sala cheia de objetos de arte do apartamento de Lydecker. Este deslocamento de câmera fluido e delicado casa-se perfeitamente com o leit-motiv musical e com os diálogos sofisticados enquanto a iluminação dramatizada de Joseph La Shelle – premiada com o Oscar – fornece o clima noir adequado.

Dana Andrews em Anjo ou Demônio

Alice Faye e Dana Andrews em Anjo ou Demônio

Anjo ou Demônio? Tem início quando Eric Stanton (Dana Andrews) chega a Walton, pequena cidade da Califórnia, e logo se interessa por Stella (Linda Darnell), uma linda e sensual garçonete. A jovem desperta também o desejo de outros homens como o velho Pop (Percy Kilbidge) proprietário da lanchonete na qual trabalha, e Dave Atkins (Bruce Cabot), um sujeito que explora máquinas de caça níqueis. Para conquistar Stella, Eric casa-se com June (Alice Faye), uma solteirona rica, pretendendo deposá-la de sua fortuna e se divorciar em seguida. Porém Stella aparece morta. Erica acaba descobrindo que o policial Judd (Charles Bickford) adorava Stella e a matou, quando esta lhe disse que ia se casar com Dave. Um aspecto interessante da trama é justamente a paixão que Stella desperta em quatro homens, cada qual reagindo de uma maneira diferente. A reação mais estranha é a de Judd que, no final da narrativa, revela para Eric: “Durante anos eu vim tomar café aqui, somente para vê-la. Todos os dias, durante dois anos”. Uma loucura que o levou ao crime. Além de um close-up original em silhueta de Eric e Stella no   baile, chamam a atenção a cena do interrogatório na qual o assassino veste uma luva de borracha para extorquir brutalmente a confissão de um inocente e a do final, quando, antes de ser levado preso, aciona a vitrola da lanchonete e emerge a melodia favorita da vítima, restituindo por alguns instantes a sua invisível presença.

 

Madeleine Carroll, Richard Greene e Jeanne Crain em O Leque

Richard Greene, George Sanders e John Sutton em O Leque

O Leque é uma adaptação da peça de Oscar Wilde que Ernst Lubitsch já havia ilustrado no tempo da cena muda. Preminger se concentrou mais no melodrama do que sobre a sátira brilhante da alta sociedade londrina vitoriana, mas conservou os diálogos deliciosos oriundos da pena do grande escritor, dramaturgo e poeta irlandês.  Desta vez, em uma Londres devastada pelos bombardeios após a Segunda Guerra Mundial, uma velha senhora, Mrs. Erlynne (Madeleine Carroll) assiste à venda em um leilão de um leque que lhe pertence. Ela gostaria de recuperá-lo. O leiloeiro lhe dá um prazo de vinte quatro horas para provar suas alegações. Mrs. Erlynne então vai ao domicílio de um de seus antigos relacionamentos, Lord Darlington (George Sanders). Com a ajuda de retrospectos, eles revivem o passado quando Lord Darlington contou para Lady Windermere (Jeanne Crain), de quem estava apaixonado, que seu marido (Richard Greene) a traíra com Mrs. Erlynne. Magoada, Lady Windermere parte para a residência de seu admirador Lord Darlington, que lhe havia declarado seu amor. Mrs. Erlyne vai atrás dela e lhe diz qque seu marido lhe é fiel. Quando Lord Darlington chega em casa na companhia de Lord Windermere, Lord Lorton e um outro amigo, as duas mulheres se escondem. Os homens encontram o leque de Mrs. Windermere e Lord Windermere acusa Lord Darlington de ser amante de sua esposa.  Lady Windermere foge e Mrs. Erlynne, que não é outra senão a mãe que ela nunca conheceu, sacrifica sua própria felicidade que o casamento com Lord Lorton (Hugh Dempster) lhe proporcionaria, assumindo que o leque era seu. A encenação elegante e fluente de Preminger e a atuação primorosa dos quatro intérpretes principais tornam o filme muito agradável.

Dana Andrews em Passos na Noite

Dana Andrews e Gene Tierney em Passos na Noite

Passos na Noite retrata ao mesmo tempo uma cidade noturna e um homem da lei que se corrompeu. O pai de Mark Dixon (Dana Andrews) era um ladrão, e isto o tornou o que é: um policial perigoso que quer fazer justiça pelas próprias mãos. Depois de ser repreendido por seu superior por excesso de violência, Dixon investigas a morte de um sujeito que morreu no cassino clandestino do gângster Scalise (Gary Merrill). O principal suspeito é Paine (Craig Stevens) que havia atraído Morrison para o jogo, usando a jovem Morgan Taylor (Gene Tierney). Ao interrogá-lo, Dixon entre em luta corporal com ele, matando-o acidentalmente. O chofer de taxi, Jiggs Taylor (Tom Tully), pai de Morgan, é incriminado, pois fôra procurar Paine no dia em que foi morto para tentar afastá-lo da filha. Dixon interessa-se por Morgan e faz tudo para incriminar Scalise. É com um estilo visual calmo e preciso que Preminger descreve a passagem de seu herói para a ilegalidade, sua inquietude, seu trauma de infância (“Fiz tudo para ser diferente dele”) e sua visão dark do mundo (“Um passo em falso e você pode se meter em uma enrascada”). Dixon torna-se um personagem noir típico, desorientado existencialmente e vítima das circunstâncias; porém o amor o encaminhará para a redenção. Exteriores filmados em locação e a acurada fotografia em preto e branco de La Shelle criam uma atmosfera adequada ao drama e os momentos de suspense (v. g. quando Dixon deixa o local do crime disfarçado de Paine e depois carrega seu corpo até o carro; a cena em que o tenente manda-o fingir que é Paine, reconstituindo sua saída apartamento do morto) são muito bem construídos.

Robert Mitchum e Jean Simmons em Alma em Pânico

Jean Simmons e Robert Mitchum em Alma em Pânico

Alma em Pânico tem início quando o chofer de ambulância, Frank Jessup (Robert Mitchum) salva uma senhora rica, Mrs. Tremayne (Barbra O´Neil) de morrer asfixiada por gás e é contratado como motorista particular da família. Frank apaixona-se por Diane, (Jean Simmons), a enteada de Mrs. Tremayne, que odeia a madrasta. A jovem planeja um acidente, ocasionando não só a morte da madrasta, mas também a de seu pai (Herbert Marshall), que estava no carro sem que ela soubesse. Frank prepara-se para deixar Diane, porém ocorre um desenlace trágico. A personagem central tem traços que a relacionam com o arquétipo da mulher fatal. Ela manipula, e eventualmente mata, para obter o que deseja; porém o que motiva seu comportamento não é a ambição pelo dinheiro, mas uma obsessiva fixação pelo pai e o ódio patológico da madrasta. A cena final é uma das mais chocantes do cinema, não só pela maneira horrível como os personagens morrem como também pela sua absoluta imprevisibilidade. Diane se oferece para levar Frank até o ponto de ônibus, pensando que vai conseguir convencê-lo a ficar. De repente, põe a mudança do carro em marcha a ré, fazendo-o recuar para um penhasco, matando Frank e a si própria.

Após a filmagem de Cartas Venenosas e antes de filmar Alma em Pânico, aproveitando a cláusula de seu contrato com a Fox que lhe permitia permanecer em Nova York por seis meses durante o auge da temporada teatral, Preminger encenou três peças (Four Twelves Are 48, The Moon is Blue, Modern Primitive) e participou como o comandante de um campo de prisioneiros nazista em Inferno nº 17 / Stalag 17 de Billy Wilder.  Depois deste intervalo teatral, Preminger preparou a adaptação cinematográfica de Ingênua Até Certo Ponto / The Moon is Blue, sua estréia como como produtor-diretor independente.

A SÉRIE BLONDIE

A série Blondie originou-se das histórias em quadrinhos de Murat (Chic) Young, criada em 15 de setembro de 1930 para o King Features Syndicate. Nas tiras de Chic Young, Blondie Boopadoop era inicialmente uma melindrosa fútil e despreocupada, cortejada por Dagwood Bumstead, filho de um rico industrial. Em 17 de fevereiro de 1933, Blondie casa-se com Dagwood, que é prontamente deserdado pelo pai. O ex-playboy então tem que trabalhar para sustentar a família enquanto Blondie torna-se uma esposa doce e devotada da classe média americana, que assume as rédeas do lar e, com paciência e sensatez, aguenta as palermices do marido, tenta todos os esquemas para reforçar a posição profissional do esposo e se mete em uma série de confusões nos seus esforços para complementar o orçamento familiar.

Penny Singleton, Daisy e Arthur Lake

Esta reviravolta na personalidade de Dagwood e Blondie foi talvez o fator preponderante para a sua popularidade internacional, traduzida em várias línguas e publicada simultaneamente em mais de dois mil jornais do mundo. Nos quadrinhos publicados no Brasil Blondie virou Belinda e Dagwood recebeu o nome de Alarico. Já o Jornal do Comércio publicou Blondie, mantendo o nome original americano.

As aventuras e desventuras do casal Bumstead e sua prole (que incluía o bebê Dumpling, depois chamado de Alexander, quando adolescente, e Cookie, a filha caçula) foram transportadas para o cinema em 28 filmes de orçamento modesto (com duração entre 65 a 70 minutos), produzidos pela Columbia Pictures entre 1938 e 1950.

Blondie era interpretada por Penny Singleton, Dagwood por Arthur Lake, Baby Dumpling e Alexander por Larry Simms e Cookie por Marjorie Kent. Nas cópias distribuídas em nosso país Blondie se chamava Florisbela; Dagwood, Pancrácio. e Baby Dumpling atendia pelo nome de Jujuba. A sensação que se sente vendo os filmes é que Florisbela, Pancrácio, Jujuba são reais, pessoas que podemos encontrar a qualquer momento. Em cada filme da série o cão Daisy, canino de raça híbrida (Cocker Spaniel-Poodle-Terrier), muito bem treinado por Rudd Weathermax e auxiliado por alguns truques de câmera, quase rouba o espetáculo. No Brasil Daisy recebeu o nome de Faísca.

Muito  fiel à sua fonte original, os espetáculos tinham um elenco bem escolhido e suas histórias foram desenvolvidas com  bom humor e ternura, gags verbais e visuais inteligentes e compreensão das excentricidades domésticas, destacando-se ainda outros personagens fixos: J. C. Dithers (Jonathan Hale), o irascível patrão de Dagwood, dono de uma construtora (personagem depois chamado de Mr. Radcliffe, interpretado por Jerome Cowan); o carteiro apressado (Irving Bacon) que sempre colide com Dagwood de manhã; Alvin Fuddle (Danny Mummet), amigo de infância de Dagwood.

Jujuba, Florisbela, Pancrácio e … Rita Hayworth

O elenco foi praticamente o mesmo nos 28 filmes – envelhecendo tanto na tela como na vida real. Sempre que um dos personagens contínuos era interpretado por um ator diferente, sua aparência diferente era cuidadosamente explicada no roteiro. Vários artistas contratados do estúdio podem ser vistos nos filmes da série, entre eles alguns que se tornariam grandes astros como Rita Hayworth e Glenn Ford ou se destacariam em produções A como Larry Parks, Anita Louise, Peggy Ann Garner, Adele Jergens, Janet Blair, Hans Conried, Adele Mara, Lloyd Bridges, James Craig. Em um dos filmes da série, A Família do Barulho, foi utilizado o samba “Solteiro é Melhor” de autoria de Rubens Soares e Felisberto Silva (gravado por Francisco Alves em 1939), Penny Singleton se solta, dançando uma conga com Tito Guizar e Lake (travestido de mulher) toca bateria na banda do ator mexicano.

Penny Singleton (1908- 2003), cujo verdadeiro nome era Mariana Dorothy McNulty, nasceu em Filadélfia, Pennsylvania. Seu pai era um jornalista e seu tio Diretor-Geral dos Correios. Quando criança interpretava illustrated songs (canções ou hinos patrióticos ilustrados por slides coloridos de lanterna mágica, mostrando as letras das canções e poses de modelos representando trechos das mesmas) nos primeiros cinemas e fazia alguns números de mímica. Após cursar a Universidade de Columbia, ela voltou para o teatro, aparecendo como cantora e acrobata em musicais da Broadway. Em meados dos anos trinta assinou contratos com a Warner Bros. e MGM, obtendo papéis insignificantes. Uma boa participação neste período foi em A Comédia dos Acusados / After the Thin Man / 1936 como uma cantora de boate (creditada como Dorothy McNulty). Em 1937 ela se casou com um dentista, Dr. Lawrence Singleton, e pintou seu cabelo preto para conquistar o papel da loura Blondie, quando a atriz Shirley Deane teve que abdicar do mesmo em virtude de doença. Em 1941, Penny já divorciada, casou-se com o produtor Robert Sparks. Desde que entrou para a série Blondie, Penny teve dificuldade de obter outros papéis, mas conseguiu aparecer em A Amazona Apaixonada / Go West Young Lady / 1941, dividindo o estrelato com Glenn Ford e Ann Miller.  Em 1951, quando a série Blondie terminou, Penny voltou para o circuito de boates. Em 1960, tornou-se líder sindical, cumprindo dois mandatos como presidente do American Guild of Variety Artists.

Arthur Lake e Penny Singleton

Arthur Lake (1905 – 1987), cujo verdadeiro nome era Arthur Silverlake Jr., nasceu em Corbin, Kentucky. Seu pai e o tio faziam um número de acrobacia aérea e eram conhecidos como “The Flying Silverlakes”. A mãe de Lake, Edith Goodwin, era atriz. Quando a família mudou do circo para o circuito do vaudeville, Lake e sua irmã juntaram-se a eles. O grupo viajou pelo Sul dos EUA, anunciado como “Family Affair”. Lake apareceu no cinema pela primeira vez em João, o Matador de Gigantes / Jack and the Beenstalk / 1917, produzido pela Fox Corporation. Durante os anos vinte ele participou de comédias curtas da Universal e, nos períodos de folga, trabalhou no vaudeville. O primeiro filme falado dele foi Conquistadores do Ar / Air Circus / 1920. Os espectadores ouviram sua voz pela primeira vez como Harold Astor, o papel principal que ele teve no musical de bastidor Toca a Música / On With the Show! / 1929. Nos anos trinta, os fãs veteranos devem se lembrar de Lake como o ascensorista na divertida comédia sobrenatural A Dupla do Outro Mundo / Topper / 1937. Uma vez que entrou para a série Blondie, ele se tornou tão tipificado pelo personagem abobalhado, que raramente teve oportunidade de aparecer em papéis diferentes como (v. g. Amores de Folga / Sailor´s Holiday / 1944, O Crime do Fantasma / The Ghost That Walks Alone / 1944 e Três é Demais / Three is a Family / 1944). Em 1954 ele participou, com sua esposa Patricia Van Cleve e seus dois filhos, de um telefilme piloto, Meet the Family, baseado em uma idéia de Marion Davies. Lake frequentava a mansão dos Hearst, onde conheceu Patricia que, segundo consta, era filha ilegítima de Marion e do famoso magnata da imprensa.

Em 1943, após os quatorze filmes iniciais, a Columbia perdeu o interesse pela série, porém os espectadores escreveram para o estúdio com tanto entusiasmo, que os responsáveis pela produção resolveram reativá-la em 1945 e ela continuou até 1950.

Blondie na TV

Blondie chegou ao rádio transmitido pela CBS em 1939. A série radiofônica apresentava todos os elementos familiares aos leitores da história em quadrinhos e aos espectadores da série cinematográfica e obteve o mesmo sucesso. No ar foi ouvida de 1939 a 1951 com as vozes de Penny Singleton e depois sucessivamente Ann Rutherford, Alice White e Patricia Van Cleve como Blondie; Arthur Lake como Dagwood; Leone Ledoux (especialista em papéis infantís) como Baby Dumpling e Cookie quando crianças; Larry Simms e Bobby Ellis, Jefffrey Silver como Alexander; Marlene Aames e depois Norma Jean Nilsson, Joan Rae como Cookie; Hanley Stafford como J.C. Dithers; Dix Davis como Alvin Fuddle, etc. Cada programa começava com a famosa “Uh-uh-uh- don´t touch that dial! Listen to …  (Nâo toque naquele botão de contrôle! Ouça – Blondie!). Voz de Dagwood: B-l-o-o-o-o-n-d-i-e!!! Uma sequência sempre repetida no programa de rádio era aquela de Mr. Dithers gritando por Dagwood “Come into my office” (Entre no meu escritório) contrapontuada por um obbligato de trombeta em surdina.

Na televisão, Blondie mereceu duas séries. A primeira, transmitida pela NBC, tinha 26 episódios e foi ao ar de janeiro a junho de 1957 com Pamela Britton como Blondie, Arthur Lake como Dagwood, Florenz Ames como J. C. Dithers, Ann Barnes como Cookie e foi ao ar de setembro de 1968 e janeiro de 1969 de 1968 (exceto o 14º que não chegou a ser programado) com Patricia Harty como Blondie, Will Hutchins como Dagwood, Pamelyn Ferdin como Cookie, Peter Robbins como Alexander, Jim Backus como J.C. Dithers., etc.

FILMOGRAFIA

Dirigidos por Frank Strayer:

1938 Florisbela / Blondie.

1939 Florisbela Secretária / Blondie Meets the Boss

Florisbela em Férias / Blondie Takes a Vacation.

Florisbela Domestica o Baby / Blondie Brings Up Baby

1940 Florisbela Quer o Divórcio / Blondie On a Budget

Florisbela Boa-Vida/ Blondie Has Servant Trouble

Cupido Perigoso / Blondie Plays Cupid

1941 Família do Barulho / Blondie Goes Latin

Bancando a Grã-fina / Blondie in Society

1942 Blondie Goes to College

Um Papai em Apuros / Blondie´s Blessed Event

Esposas em Pé de Guerra/ Blondie for Victory

1943  It´s a Great Life

Footlight Glamour

Dirigidos por Abby Berlin:

1945 Donativo Desastroso / Leave it to Blondie

Life with Blondie.

1946 Blondie Knows Best

Blondie´s Lucky Day

1947 Blondie’s Big Moment

Blondie’s Holiday

Bondie in. the Dough

Blondie´s Anniversary

Blondie’s Reward

1948 Blondie ´s Secret

1949 Blondie’s Big Deal

Blondie Hits the Jackpot

1950 Blondie’s Hero.

Beware of Blondie

O CINEMA DE MARCEL PAGNOL E SACHA GUITRY

Menosprezados durante muito tempo pelos críticos e pouco conhecidos pelo público brasileiro (todos os filmes de Pagnol, menos um, não foram exibidos comercialmente em nosso país e dos 27 filmes de Guitry apenas 9 passaram em nossas telas), eles foram recentemente reabilitados graças a várias retrospectivas de suas obras e uma maior divulgação por meio da televisão e dos dvds; hoje, são considerados grandes cineastas.

MARCEL PAGNOL

Marcel Pagnol (Aubagne, 1895 – Paris, 1974) defendeu a causa do “cinema teatral” e expôs os princípios que ele chamou de Cinematurgie na revista Les Cahiers du Film. Na sua síntese: “O filme falado devia reinventar o teatro”. Os críticos diziam que Pagnol não fazia cinema mas “teatro em conserva, porém ele sabia que fazia um cinema à sua maneira (e com o seu dinheiro, pois, a partir de certa época, abriu a sua produtora, o seu estúdio e até o próprio cinema).

Seguindo os passos do pai, Pagnol exerceu a profissão de professor de inglês nos arredores de Marselha. Em 1922 lecionou no Lycée Condorcet em Paris, mas logo abandonou o magistério para se dedicar exclusivamente ao teatro. O sucesso de Topaze, e depois de Marius, revelou ao público francês que ele era um escritor de verdade. Em seguida vieram Fanny, César e finalmente Pagnol decidiu entrar no novo mundo do filme sonoro. Marius / 1931 e Fanny / 1932, os primeiros filmes baseados em suas peças, foram respectivamente realizados, sob sua orientação, por Alexander Korda e Marc Allégret. Mas ele próprio completaria com César / 1936, a trilogia marselhesa, comédias de costumes impregnadas de um calor humano inimitável, que asseguraram a glória de seu autor e de seus intérpretes (Raimu – César, Pierre Fresnay – Marius, Orane Demazis – Fanny, Charpin – Panisse).

Em 1933 Pagnol estreou na direção com Le Gendre de Monsieur Poirier, adaptação de uma comédia de costumes de Emile Augier e Jules Sandeau e logo depois Angèle e Joffroi, ambos realizados em 1934, iniciaram uma série de filmes baseados nos contos e novelas de Jean Giono, destacando-se, Regain / 1937 e A Mulher do Padeiro / La Femme du Boulanger / 1938. Servindo-se de atores excepcionais, tendo à frente Raimu e Fernandel, Pagnol mostrava os habitantes do Midi tais como eram, gente simples de espírito franco e bem-humorado com um gosto especial pelas réplicas espirituosas, e os fazia falar a própria língua, com a impetuosidade verbal e o sotaque que era um dos encantos do pequeno mundo provençal, embora em certos trechos desses filmes eles falassem demais. Ninguém descreveu melhor o universo campestre, recriado em cenários naturais com simplicidade e absoluta fidelidade, o que levou De Sica e Rosselini a reconhecê-lo como inventor do neorrealismo italiano.

Outros filmes de Pagnol produzidos nos anos 1930 (Merlusse / 1935; Le Schpountz / 1938) ou nas décadas posteriores (La Fille du Puisatier / 1940; Naïs / 1945; Manon des Sources / 1952) têm algum encanto por seus tipos humanos sobretudo o palerma que acredita ser um artista de Le Schpountz e o corcunda comovente de Naïs, duas admiráveis interpretações de Fernandel; Manon no entanto é cansativo com suas quatro horas de projeção e verbosidade incontida. Quanto aos demais, Cigalon / 1935 é uma fábula provençal muito palavrosa; Topaze / 1936 vale apenas pela interpretação de Fernandel; La Belle Meunière / 1948 é uma experiência frustrada inclusive na aplicação do processo de cor Rouxcolor testado na ocasião; Les Lettres de Mon Moulin / 1954, último filme do cineasta baseado em quatro contos de Alphonse Daudet, peca pela loquacidade e estaticidade.

Em 1957, Pagnol publica suas memórias de infância, “La Gloire de Mon Père” e “Le Chateau de Ma Mère” (transportadas para o cinema anos em 1990 por Yves Robert). Em  1986, Claude Berri filmou “L’Eau des Collines”, epopéia romanesca em duas  partes,  “Jean de Florette“ e “Manon des Sources”, espetáculo esplêndido que reproduz magnificamente o universo do cineasta com atuações notáveis de Gerard Depardieu, Yves Montand e Daniel Auteuil. Pagnol reuniu sob o título “L’Eau des Collines” o roteiro de seu filme Manon des Sources (tema da segunda parte do livro) e Jean de Florette, (tema da primeira parte, a história do corcunda, pai de Manon, sua chegada nas colinas com a mulher e a filha, sua obstinação, seu calvário, sua ruína e sua morte).

No meu livro “Uma Tradição de Qualidade: O Cinema Clássico Francês 1930-1959” (Editora PUC / Contraponto, 2010) incluí três filmes de Marcel Pagnol e dois de Sacha Guitry entre os 150 filmes representativos do cinema clássico francês:

MARIUS

Pierre Fresnay e Orane Demazis em Marius

 

O jogo de cartas

No velho porto de Marselha, o Bar de la Marine é mantido por César (Raimu), que ali vive com seu filho Marius (Pierre Fresnay). Honorine (Alida Rouffe), vizinha e comerciante, tem uma filha, Fanny (Orane Demazis), apaixonada por Marius. Porém o rapaz só sonha com o mar e com os grandes veleiros, que poderão levá-lo para lugares longínquos. Panisse (Fernand Charpin), viúvo e rico, embora bem mais velho que Fanny, quer se casar com ela. Fanny torna-se amante de Marius, mas constata a amargura dele, contrariado nos seus projetos de evasão, e o incita a se engajar como marinheiro em um navio que está partindo. Primeiro exemplar da trilogia Marius-Fanny-Céar, comédias de costume meridionais que revelaram o mundo de Pagnol com sua humanidade simples e calorosa, seu folclore marselhês, imposto na tela pelo texto e por atores maravilhosos. A cena na qual Raimu tenta trapacear no jogo de cartas, dizendo para seu parceiro “tu me partes o coração” é apenas um dos vários momentos antológicos do espetáculo, filmado em exteriores bastante fotogênicos. Pierre Leprohon tinha razão:  o teatro convinha a Pagnol por causa do seu gôsto pelo verbo, pela eloquência, mas o cinema também lhe convinha porque o liberava da cena, do cenário, do pano de fundo. Pagnol precisava do ar livre, do sol, do espaço. O cinema foi para o jovem autor o desejo de evasão que atormentava Marius.

REGAIN

Fernandel e Orane Demazis em Regain

Orane Demazis e Fernandel

Aubignane é uma aldeia perdida na montanha, que está morrendo. Seus últimos habitantes são Panturle (Gabriel Gabrio), o caçador, e La Mamèche (Marguerite Moreno), uma velha italiana meio louca. Esta sugere a Panturle que procure uma mulher, a fim de dar vida às ruínas. Chegam Arsule (Orane Demazis), uma jovem miserável, e Gédémus (Fernandel), um amolador de facas itinerante sórdido e egoísta. Arsule abandona Gédémus e vai morar com Panturle. E enquanto La Maméche morre despedaçada pelas aves de rapina, Panturle e Arsule, unidos pelo amor e ardor pelo trabalho, vão enfim regenerar aquele solo árido.

História de uma aldeia abandonada por seus habitantes que vai reviver graças ao amor, à coragem e à esperança de um casal de deserdados. Os símbolos são simples e diretos. O sulco nos campos, o nascimento de uma criança, o azul do céu, a fecundidade do solo … a vida ganhando da morte. Panturle e Arsule são personagens de coração puro que vivem no ritmo das estações em comunhão com uma Provença bucólica e profundamente verdadeira. Uma cena particularmente comovente e poética ocorre quando os amigos das aldeias vizinhas vêm em ajuda ao casal: uns lhe emprestam o trigo, um outro a relha do arado, que é o seu único bem na terra.

A MULHER DO PADEIRO

Raimu e Ginette Leclerc em A Mulher do Padeiro

Cena de A Mulher do Padeiro

Aimable Castanet (Raimu), o novo padeiro da aldeia de Sainte-Cécile, na Provença não tem rival para fazer um bom pão branco. Um dia, sua mulher, Aurélie (Ginette Leclerc), foge com Dominique (Charles Moulin), o pastor de ovelhas do marquês de Monelles (Fernand Charpin). O infortúnio do padeiro a princípio diverte a comunidade, mas Aimable, desesperado, não tem mais ânimo para o trabalho. Ele se embriaga, abandona o forno e quer se enforcar. Os aldeões então se organizam para trazer a infiel Aurélie de volta.

Crônica camponesa tão rica de verdade humana quanto os outros filmes provençais do diretor. É um estudo preciso das reações que a infelicidade provoca em um homem simples do coração. O filme trata também da solidariedade de um grupo, que estava oculta e se manifesta em razão do desespêro pela inação do padeiro. Toda a intriga gravita em torno de Raimu e ele nos proporciona uma de suas melhores composições: vejam a longa cena de embriaguez na qual ele ri, canta em italiano, diz obscenidades, se afoga em lágrimas e adormece, evocando com lirismo o dor dos braços de sua mulher. Fica-se com vontade de chorar quando Aimable, sem ousar se dirigir a Aurélie no retorno de sua fuga, expressa toda a sua dor, dirigindo-se à gata, que também fugira.

SACHA GUITRY

Sacha Guitry

Filho do ator de teatro Lucien Guitry, Alexandre-Pierre Georges “Sacha” Guitry (São Petersburgo, 1885 – Paris,1957) passou a infância entre celebridades artísticas (Claude Monet, Auguste Renoir, Sarah Bernhardt, Anatole France etc.), que figuraram no seu curta-metragem amador Ceux de Chez Nous, realizado em 1915. No ano seguinte, estreou os palcos e depois se tornou um ator aclamado pelo público e um dos dramaturgos mais fecundos e espirituosos do teatro de boulevard parisiense. Apesar de seu ceticismo inicial com relação ao cinema falado, Guitry ingressou nesse meio com Pasteur / Pasteur / 1935, adaptação palavra por palavra de sua peça sobre o ilustre sábio francês. Desde então, continuou escrevendo, dirigindo e interpretando alguns dos filmes mais inventivos e livres das regras sacrossantas da  “gramática” cinematográfica, como Bonne Chance /  1935; O Novo Testamento / Le Nouveau Testament / 1936; O Romance de um Trapaceiro / Le Roman d´um Tricheur / 1936; Mon Père Avait Raison / 1936; Vamos Sonhar / Faisons um Rêve /1936; sua primeira fantasia histórica,  As Pérolas da Corôa / Les Perles de la Couronne / 1937; A Palavra de Cambronne / Le Mot de Cambronne / 1937, Madame e seu Mordomo / Desiré /1937; Remontons les Champs Elysées / 1938; Quadrille / 1938; Eram Nove Solteirões / Ils étaient Neuf Celibataires / 1939.

A liberdade com a qual Guitry lida com as formas cinematográficas é espantosa. Seus créditos vivos, espontâneos nos quais ele apresenta seus atores e cita cada um dos técnicos, por exemplo, são algo de original nos anais da Sétima Arte. O teatro-cinema de Guitry é também interessante pela crítica de costumes corrosiva presente na maioria de seus filmes e pela participação nos seus filmes de intérpretes admiráveis bastando mencionar Fernandel, Raimu e Michel Simon além dele próprio com sua dicção característica. É verdade que ele gostava de se ouvir falando e falava muito, mas sem dúvida com que elegância de espírito!

Dos grandes diretores veteranos que ficaram na França durante a Ocupação, alguns se sentiram à vontade no novo regime. Sacha Guitry, que circulou nesses anos negros como vedete na vida mundana, onde se misturavam celebridades parisienses e os uniformes dos oficiais alemães, realizou três filmes nesta época: Le Destin Fabuleux de Desirée Clary / 1941; Donne-moi tes Yeux / 1943 e La Malibran / 1943. Com a libertação da França foi preso sob a acusação de colaboracionismo, tendo sido posteriormente inocentado. Depois da guerra, ainda na década de quarenta, ele nos ofereceu: Le Comédien / 1948; Le Diable Boiteux / 1948; Aux Deux Colombes / 1949; Toâ / 1949.

Nos anos cinquenta, continuou trabalhando com a sua habitual liberdade de expressão, surgindo então: Le Trésor de Cantenac / 1950; Tu m´as Sauvé la Vie / 1950; Debureau / 1951; Adhémar ou Le Jouet de la Fatalité / 1951; La Poison / 1951; Je l´ai été Trois Fois / 1952; La Vie d´un Honnête Homme / 1953; suas três versões da História da França, Se Versailles Falasse / Si Versailles m ´était Conté / 1954, Napoleão / Napoléon / 1955 e Si Paris nous était Conté / 1956; Amantes e Ladrões / Assassins et Voleurs / 1957; Les Trois font la Paire / 1957; La Vie a Deux / 1958.

La Poison e La Vie d´un Honnête Homme, ambos interpretados por Michel Simon, se destacam. O primeiro filme instala uma situação dramática no centro da qual está um homem que, para se desembaraçar de seu “veneno”, ou seja, sua esposa, consulta um advogado, antes de assassiná-la, para saber qual a melhor maneira de pôr fim aos dias de sua companheira, e obtém efetivamente sua absolvição pelo crime cometido. No segundo filme, Simon interpreta dois irmãos gêmeos que, após duas vidas separadas, se reencontram. O irmão pobre e marginal, mas despreocupado e feliz morre nos braços do irmão rico e mesquinho, mas infeliz, sem o amor até de sua família; daí a idéia, para este, de mudar de vida assumindo a identidade do outro. Excelente oportunidade para verificar a mentira e a superficialidade de sua antiga existência.

Guitry não era o cineasta de um dogma, ou de um sistema; ele era, antes de tudo, um experimentador. Sua carreira aborda ou inventa os gêneros: biografias, crônicas subjetivas, fantasias históricas, peças filmadas, melodrama e documentário. Como escreveu Jean Tulard (Dictionnaire du Cinéma: les réalisateurs, 2003), nada resume melhor a obra filmada de Sacha Guitry como a definição que ele dava do cinema: “É uma lanterna mágica. Dela não deveriam ser excluídas a ironia e a graça “.

O ROMANCE DE UM TRAPACEIRO.

Sacha Guitry em O Romance de um Trapaceiro

Jacqueline Delubac e Sacha Guitry em O Romance de um Trapaceiro

Por ter roubado oito centavos do cofre de seus pais, um menino fica probido de comer cogumelos no almoço. Os onze membros de sua família morrem envenenados. Daí ele conclui que deve a vida à sua desonestidade, uma vez adulto (Sacha Guitry), torna-se croupier e depois trapaceiro profissional. O homem que lhe salvou a vida na Primeira Guerra mundial faz dele um jogador, e o nosso herói perde jogando honestamente tudo o que havia ganho trapaceando.

Em vez de decupar seu livro em cenas dialogadas, Sacha Guitry teve a idéia de se servir do texto – inteiramente escrito na primeira pessoa – como um comentário, as imagens vindo simplesmente em apoio às palavras. Somente uma vez o herói, que está escrevendo suas memórias, interrompe a narração para conversar cm uma velha conhecida. O autor, com sua voz nasal e modulada, fala sem parar, mas as idéias que exprime são inteligentes, espirituosas e vêm sempre acompanhadas de achados visuais muito interessantes. No filme só há um ponto de vista: o seu. O cinema de Guitry é um cinema singular, descontraído, que esperou o tempo de uma geração para ser reconhecido.

El: Jacqueline Delubac (a mulher) / Marguerite Moreno (a aventureira) / Rosine Deréna (a ladra) / Pauline Carton (Mme. Moriot,a tia) / Fréhel (a cantora) / Sacha Guitry (o trapaceiro  Serge Grave (ele, garoto)/ Pierre Assy( (ele, rapaz)/ Henri Pfeiffer (M. Charbonnier) / Pierre Labry (M. Moriot, Gaston Dupray (garçom do café).

AS PÉROLAS DA CORÔA

Jacqueline Delubac e Sacha Guitry em As Pérolas da Coroa

Guitry dirige Arletty em As Pérolas da Coroa

Um escritor francês, Jean Martin (Sacha Guitry), um ajudante-de-ordens do rei da Inglaterra, John Russell (Lyn Harding), e um camareiro do papa, Giovanni Riboldi (Enrico Glori), evocam a história de sete pérolas valiosas, que o papa Clemente VII reuniu para dar de presente de casamento à sua sobrinha Catarina de Médicis, das quais quatro figuram na coroa real britânica. Percebendo que ignoram tudo a respeito das outras três pérolas, eles unem seus esforços e descobrem o paradeiro das jóias que estão faltando.

Sacha Guitry revive, do século XV até à época contemporânea, personagens famosos da história, interpretados por renomados atores, alguns vivendo mais de um papel. Com essa obra, ele aborda pela primeira vez e simultaneamente, dois gêneros que lhe valeram seus maiores sucessos comerciais: o filme de grande espetáculo e a fantasia histórica. Dotado de fertilíssima imaginação e fina ironia, Guitry mistura realidade e ficção, comédia e drama, comentários espirituosos e frases célebres (mais ou menos autênticas), ritmo rápido e lento, além de abolir as fronteiras geográficas e de tempo. Mas o que aconteceu com as pérolas? A última caiu no mar e reencontra seu habitat inicial em uma ostra aberta.

El: Jacqueline Delubac (Françoise Martin, Maria Stuart, Josefina de Beauharnais / Yvette Pienne (Elisabeth, Maria Tudor e rainha Vitória idosa) / Arlety (rainha Etíope) / Simone Renant (Madame Du Barry) / Barbara Shaw (Ana Bolena) / Marguerite Moreno (Catarina de Médicis e Imperatriz Eugenia idosa) / Germaine Aussey (Gabrielle d´Estrées) / Raymonde Allain (Imperatriz Eugenia) / Lisette Lanvin (rainha Vitória jovem) /  Cecile Sorel (a Francesa do Grande Século) / Huguette Duflos (rainha Hortensia) / Pauline Carton (uma camareira) / Rosine Dérean (uma jovem e Catarina de Aragão) / Renée Saint-Cyr (Madeleine de la Tour d´Auvergne) /  Lynn Harding (Henrique VIII e ajudante de ordens do rei da Inglaterra) / Sacha Guitry (Jean Martin, Francisco I , Barras, Napoléon III) / Raimu (o meridional) / Jean-Louis Barrault (Bonaparte) / Claude Dauphin (prisioneiro italiano) / Marcel Dalio (abissínio) / Robert Pizani (Talleyrand), etc.