SHAKESPEARE NO CINEMA (1899-1957)
abril 13, 2021O Cinema foi atraído por Shakespeare desde sua invenção. Em 1899, apenas quatro anos depois que os irmãos Lumière promoveram a primeira projeção pública do seu Cinematógrafo em Paris, William Kennedy-Laurie Dickson filmou em Londres uma cena de quatro minutos da peça King John de Shakespeare, protagonizada pelo ator Sir Herbert Beerbohm Tree.
Nos anos seguintes a relação Shakespeare-Cinema progrediu através de três estágios de desenvolvimento: era do cinema silencioso, as primeiras experiências com o som em Hollywood e na Inglaterra, e uma grande fase internacional após a Segunda Guerra Mundial, iniciada com os filmes de Laurence Olivier e Orson Welles.
A fase silenciosa cobriu três décadas do século, de King John de Dickson a A Mulher Domada / Taming of the Shrew / 1929 de Sam Taylor, o primeiro filme shakespereano falado, estrelado por dois astros consagrados, Mary Pickford e Douglas Fairbanks. Nestes trinta anos mais de 400 filmes mudos foram baseados em Shakespeare, a maioria com apenas um ou dois rolos (10 ou 20 minutos de duração), entre eles The Taming of the Shrew / 1908 (17 minutos) de David Wark Griffith, produzido pela American Mutoscope BIograph e Macbeth, Romeo and Juliet, Richard III, Antony and Cleopatra / Julius Caesar, The Merchant of Venice, King Lear, A Midsummer Night´s Dream de J. Stuart Blackton, realizados para a American Vitagraph Company.
O primeiro filme shakespereano de longa-metragem (55 minutos) parece ter sido Richard III / 1912, co-produção franco-americana, dirigida por André Calmettes e James Keane, com Frederick Warde no papel principal. A única cópia sobrevivente era de propriedade de um ex-projecionista de um cinema de Portland, Oregon, que doou o filme para o American Film Institute em 1996, sem saber que estava preservando uma preciosidade cinematográfica.
As peças de Shakespeare têm alcance global e logo cineastas de vários países demonstraram interesse pela realização de filmes shakespereanos. Um exemplo curioso foi o filme alemão Hamlet / Hamlet / 1921 (Dir: Svend Gade) com a célebre atriz dinamarquesa Asta Nielsen no papel de Hamlet que, no caso, é uma mulher. Na trama, baseada em um livro do americano Edward P. Vining, Hamlet nasceu uma menina. Como o nascimento ocorreu quando seu pai estava lutando em uma guerra contra a Velha Noruega, na qual se disputava terras existentes entre os dois países, a rainha Getrudes escondeu a verdadeira identidade da criança, como proteção caso seu esposo fosse morto na batalha. Quando a menina cresce, ela tenta expor a traição de Claudius, suprimindo o tempo todo sua paixão por Horácio. Outra grande atriz, Sarah Bernhardt, havia interpretado Hamlet na tela em 1900, porém estava representado um papel masculino e não uma mulher vestida de homem.
Outros atores – Godfrey Tearle (Romeo and Juliet / 1908); Jacques Grétillat (Hamlet / 1908); Jean-Mounet-Sully (Hamlet / 1910); Ermete Novellli (Re Lear / 1910); Constance Benson (Julius Caesar, Macbeth, The Taming of the Screw e Richard III / todos de 1911); Amleto Novelli (Marco Antonio e Cleopatra / Marc’Antonio e Cleopatra / 1913); Sir Johnston Forbes-Robertson (Hamlet / 1913);Matheson Lang (The Merchant of Venice / 1916); Frederick Warde (The Life and Death of King Richard III / 1912, King Lear / 1916); Ruggero Ruggeri (Hamlet / Amleto / 1917) – seguiram os passos de Beerbohm Tree, Asta Nielsen, Sarah Bernhardt e no British Film Catalog (1895-1970) de Dennis Gifford (McGraw-Hill, 1973) encontramos diversos filmes shakespereanos ou inspirados em obras do Bardo, incluindo versões cômicas ou paródias.
Quando o cinema começou a falar, teve que se confrontar com o texto profundo e poético de Shakespeare. O segundo filme shakespereano falado reuniu o notável diretor de teatro alemão Max Reinhardt com seu conterrâneo companheiro de exílio, o diretor de cinema William Dieterle, em Sonho de uma Noite de Verão / A Midsummer Night´s Dream / 1935. Embora repleta de atores populares (Dick Powell, Olivia de Havilland, James Cagney, Joe E. Brown, Mickey Rooney, Anita Louise, etc.) e tecnicamente inventiva, esta produção da Warner Bros. não encontrou um público e o filme shakespereano seguinte Romeu e Julieta / Romeo and Juliet / 1937, produzido pela MGM dirigido por George Cukor, talvez por causa da idade avançada de seu Romeu (Leslie Howard, 43 anos e sua Julieta (Norma Shearer com 35 anos), não teve melhor destino na bilheteria.
No início dos anos trinta a famosa atriz polonesa Elizabeth Bergner e seu marido alemão Paul Czinner, fugiram da Alemanha nazista para Londres onde, em colaboração com o dramaturgo J.M. Barrie, participaram da realização do filme shakespereano Como Gosteis / As You LIke It / 1936, estrelado por ela e Laurence Olivier; porém o espetáculo não teve o sucesso esperado, deixando a impressão de que Shakespeare e o Cinema não se combinavam.
Entretanto, o primeiro filme de Olivier como diretor, Henrique V / Henry V / 1944, deu início a uma grande fase internacional de obras cinematográficas no gênero, que compreendeu, nos anos 40-50, mais dois filmes de Olivier, Hamlet / Hamlet / 1948 e Ricardo III / Richard III / 1955; Macbeth, Reinado de Sangue / Macbeth / 1948 e Othelo / The Tragedy of Othello: The Moor of Venice / 1951 de Orson Welles; Júlio César / Julius Caesar de J. L. Mankiewicz / 1953; Romeu e Julieta / Giulietta e Romeo / 1954 de Renato Castellani; Otelo, o Mouro de Veneza / Otello / 1956 de Sergei Youtkevich; Trono Manchado de Sangue / Kumonosu-jô / 1957 de Akira Kurosawa. Destaco em negrito os melhores.
Henrique V
Encarregado do comando de todo o projeto (como diretor, ator principal, co-autor do roteiro e co-produtor), no momento em que os Aliados estavam reunidos na Inglaterra para planejar e lançar uma invasão massiva da França a fim de retomar a Europa de Hitler, Laurence Olivier percebeu que o texto shakespereano (embora dizendo respeito a uma outra invasão da França bem menor mas igualmente famosa, levada a efeito por um jovem rei inglês em 1415), devidamente ajustado, poderia servir ao esforço de guerra. Com esta compreensão, ele concebeu ao mesmo tempo uma peça de propaganda estimulante e uma obra de arte cinematográfica, misturando habilmente teatro e cinema, em uma profusão de cores e efeitos técnicos surpreendentes. Sua idéia mais fértil foi começar e terminar o filme pela descrição realista de uma representação do teatro elisabetano. O espetáculo começa com a panorâmica de uma maquete da Londres Elizabetana e em seguida a câmera nos conduz pelo Tâmisa até uma réplica do Globe Theater. Após as cenas de abertura, filmadas como se estivéssemos diante de uma performance da peça de Shakespeare no Globe, o filme volta no tempo para a França no final da Idade Média, mostrada por cenários pintados e paisagens construídos no palco de filmagem de um estúdio. Finalmente, Olivier transporta a narrativa para uma locação na Irlanda, onde filma a Batalha de Agincourt. Transcorridos alguns acontecimentos na côrte francesa, o espetáculo retorna ao Globe para o final. Nas cenas da batalha – empolgantes por seu movimento, sua montagem e pela música agitada de Wiliam Walton – com a câmera ao ar livre, o filme se torna totalmente cinematográfico, salientando-se outro grande momento, como a alocução feita aos soldados por Henrique, finalizada quando o rei, sobre uma carreta e cercado por todos, faz a incitação ao combate. O idílio dele no fim com a princesa Catherine (Renée Asherson) encanta pela graça do diálogo e comportamento dos atores.
Hamlet
Apesar da eliminação drástica de várias personagens da peça como Fortimbrás, Reinaldo e a dupla Rosencrantz e Guildenstein e da alteração de vários trechos até em sua colocação em cena, como foi o caso do monólogo “To be or not be”, recitado após o encontro com Ofélia (Jean Simmons), quando devia precedê-lo, trata-se aqui de uma adaptação cinematográfica soberba da obra-prima de Shakespeare, feita pelo melhor especialista. Olivier optou por uma leitura Edipiana do texto e, embora enunciado como a história de um homem indeciso, o filme mostra um Hamlet em ação, quase sempre impulsivo e violento, que trama sua vingança com forte determinação. O diretor abandona o Technicolor brilhante de Henrique V, para explorar, com a fotografia em preto e branco contrastada, a atmosfera sombria e profundamente psicológica de Elsinore, onde se desenvolve o drama do atormentado Príncipe da Dinamarca. Combinando profundidade campo com a movimentação incessante da câmera pelos cenários tenebrosos do castelo, com suas escadas gigantescas e corredores intermináveis, Olivier cria uma espécie de paralelismo com o que se passa no âmago de Hamlet, sondando sua inteligência secreta, que se manifesta por vezes através de solilóquios em voz over como monólogos interiores. Avultam, pela sua dramaticidade, as cenas da representação dos comediantes na côrte reconstituindo o crime nefando de Claudio (Basil Sidney), a visita incestuosa de Hamlet ao quarto de sua mãe (Eileen Herlie) ocasionando a morte acidental de Polônio (Felix Aylmer), e o duelo final trágico.
Ricardo III.
Tal como nas suas precedentes transposições para a tela das obras de Shakespeare, Laurence Olivier logrou de forma admirável, traduzir o pensamento do dramaturgo elisabetano com os recursos da câmera cinematográfica. Suprimindo personagens (como a rainha Margaret), acrescentando outros (como Jane Shore, apenas mencionada na peça), ou refazendo cenas (Ricardo seduz Anne não diante do caixão de seu sogro Henrique VI, mas do seu esposo), soube traçar um retrato perfeito do ambicioso e diabólico Duque de Gloucester e sua conspiração contra o rei para se apoderar da corôa que, em primeiro plano, abre e fecha o espetáculo. Uma das originalidades do filme é que Ricardo é um vilão disforme e carismático que, confidenciando seus planos diretamente para os espectadores, os faz cúmplices de suas tramas e crimes; ele acaba manipulando o público tão habilmente quanto faz com seus rivais pelo trono da Inglaterra. O diretor usa por vezes a sombra de Ricardo como uma metáfora visual, refletindo o defeito físico e moral do protagonista e sua perversidade. Como ator, Olivier compõe magnificamente esta figura envolvente e sinistra, cercado por um elenco de apoio notável, no qual se destacam Cedric Hardwicke (Eduardo IV); Ralph Richardson (Duque de Buckingham); John Gieguld (Duque de Clarence); Claire Bloom (Lady Anne).
Macbeth, Reinado de Sangue.
Nesta sua primeira incursão na obra de William Shakespeare, produzida com poucos recursos, em vez de uma representação acadêmica, Orson Welles preferiu realizar um espetáculo inovador bárbaro e barroco, influenciado pelo expressionismo e pelo cinema de Eisenstein, criando com audácia estilística uma atmosfera fantasmagórica e funérea, que confere ao relato um poder visual impressionante. Utilizando cenários primitivos de formações rochosas (v. g. o castelo escocês cujos interiores mais parecem grutas) envoltos em sombras e névoas; fazendo todo o elenco dizer suas falas com sotaque escocês; suprindo ou mudando a ordem de cenas, e até mesmo criando um novo personagem como o Homem Santo com longas tranças (Alan Napier) para acentuar o conflito com a antiga religião; impondo um vestuário insólito (v. g. a coroa em forma de tridente de Macbeth) e, evidentemente, expondo sua enorme visão de cinema em cenas admiráveis como a morte de Duncan (Erskine Sanford) off-screen e a aproximação de Macduff (Dan O´Herlihy) e dos soldados ingleses no final, Welles confirmou plenamente seu gênio artístico.
Othelo
Apesar da filmagem ter sido perturbada por problemas financeiros e interrompida por períodos de tempo prolongados, Welles conseguiu juntar os fragmentos rodados quase que inteiramente em múltiplos interiores e exteriores naturais na Itália e no Marrocos, oferecendo-nos uma transcrição visualmente excitante da obra do Bardo. O cineasta resolveu contar a história em retrospecto, filmando primeiro os funerais do Mouro de Veneza e de Desdêmona (Suzanne Cloutier) em vez de seguir um relato linear tal como na peça. Desde o plano de abertura em íris do rosto de Otelo no seu caixão a Iago suspenso em uma gaiola nas muralhas de Mogador, ao assassinato de Rodrigo (Robert Coote) no banho turco sob o som de bandolins, à perseguição de Cassio (Michael Lawrence) nos esgotos de Chipre, à capela abobadada onde se dá a morte de Desdemona, ele demonstra uma criatividade sem limites, exprimindo em termos puramente cinematográficos (por meio de planos breves, variedade dos enquadramentos e ritmo sempre dinâmico) os lances de perfídia, ciúme e ódio que motivam a tragédia shakespereana.
Trono Manchado de Sangue
Akira Kurosawa transfere o drama inglês para o Japão medieval, adaptando-o à uma cultura, que o enriquece. Inspirado pela simplicidade e estilização do Teatro Nô, a peça é reduzida, vários personagens secundários desaparecem, os lugares de ação são limitados a duas fortalezas e à floresta, os diálogos são ínfimos, a voz over não é utilizada, os atores se deslocam o mínimo possível, os cenários são minimalistas e em lugar das três feiticeiras em torno de um caldeirão, só subsiste uma, trabalhando em sua roda de fiar como uma Parca – a deusa da mitologia romana clássica que controla o destino dos mortais, que tece o fio da vida. Dois samurais do século XVI, Washizu (Toshiro Mifune) e Miki (Minoru Chiaki) substituem os dois cavaleiros escoceses Macbeth e Banquo e o bosque de Birnam torna-se a brumosa e emaranhada floresta perto do Castelo da Teia de Aranha, que põe em destaque o fantástico latente na peça de Shakespeare. A força expressiva de Kurosawa manifesta-se em sequências antológicas como aquela em que um bando de pássaros, assustados porque o inimigo está destruindo a floresta, invadem a câmara do castelo onde Washizu preside um conselho de guerra. Sem poderem sair, as aves atacam os cortesãos atônitos, que vêem isso como um mau agouro. Washizu se levanta e diz que se trata de um bom augouro, porque significa que o inimigo está encurralado na floresta. Pouco depois, ouve-se um grito. Washizu decide ver do que se trata e no caminho vai sendo esbarrado por várias moças que estão correndo assustadas até que encontra sua esposa Asiju (Isuzu Yamada) tentando em vão lavar as mãos encharcadas de sangue. Outra sequência memorável ocorre no final quando, ao perceber a “floresta” que se move, Washizu entra em pânico. As flechas batem na madeira ao redor dele, cravam em sua armadura, e depois na sua carne. Lentamente, cambaleante, ele desce as escadas do castelo como um porco-espinho humano. Mesmo nesta condição, ele confronta seus inimigos, seus próprios homens. Então uma flecha trespassa seu pescoço. É um esplêndido final, quase operístico.
Bravo mestre , esperamos ansiosos a segunda parte da matéria, mas pra mim o Shakespeare inesquecível do cinema é Oscarito e Otelo na famosa cena de Romeu eJulieta de “Carnaval de fogo” o maior momento da comédia cinematográfica nacional.
Abs
Eustáquio nardini
Nâo haverá segunda parte. Tem outros artigos aguardando na fila.