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JULES DASSIN

Seu verdadeiro nome era Julius Moses Dassin (1911-2008), nascido em Middletown, Connecticut, filho de Berthe Vogel e Samuel Dassin, imigrantes judeus que se instalaram com seus oito filhos no Harlem em Nova York em busca de uma vida melhor. Jules estudou na Morris High Scholl no Bronx. O interesse pelo teatro levou-o a frequentar aulas de arte dramática na Civic Repertory Theatre Company de Eva La Gallienne. Em 1936, ele ingressou na New York Yddish Proletarian Theatre Company, onde atuou como ator e diretor em algumas peças e depois se envolveu com o Federal Theatre Project, iniciativa do “New Deal” do Presidente Roosevelt para dar trabalho a atores, diretores e autores durante a Grande Depressão. Em 1931, quando foi formado o Group Theatre por Lee Strasberg, Harold Clurman e Cheryl Crawford, Dassin participou de suas produções e, depois de ver “Waiting for Lefty” de Clifford Odets, ele se filiou ao Partido Comunista, do qual se desligaria mais tarde por desacordos sobre diferentes questões. Em 1938 começou a escrever para o rádio, fornecendo scripts inclusive para o programa muito popular de Kate Smith na CBS. Após ter dirigido a peça “Medicine Show” de Oscar Saul e H. R. Hays na Broadway com muito sucesso, a RKO lhe ofereceu um contrato de seis meses como aprendiz de direção – uma oferta que ele aceitou.

Jules Dassin

Quando seu contrato terminou, Dassin estava prestes a voltar para Nova York, mas foi chamado para ser diretor na MGM. O primeiro filme na “Marca do Leão”, o curta-metragem A Lenda do Coração / The Tell-Tale Heart / 1941, adaptação do conto de Edgar Allan Poe com Joseph Schildkraut e Roman Bohnen nos papéis principais, revelou seu senso diretorial e lhe garantiu um contrato de sete anos com o estúdio.  Em seguida ele dirigiu: A Sombra do Passado / Nazi Agent / 1942, drama de espionagem; com Conrad Veidt em um papel duplo; Sua Criada, Obrigada / The Affairs of Martha / 1942, comédia romântica com Marsha Hunt e Richard Carlson; Uma Aventura em Paris / Reunion in France / 1942, drama romântico em tempo de guerra na Europa com Joan Crawford e John Wayne; Cuidado Com Mamãe / Young Ideas / 1942, comédia de faculdade com Susan Peters e Richard Carlson; O Fantasma de Canterville / The Canterville Ghost / 1943, adaptação bastante livre do conto cômico-sobrenatural de Oscar Wilde com Charles Laughton, Robert Young e Margaret O’ Brien; Uma Carta Para Eva / A Letter for Evie / 1946 comédia-dramática inspirada em ‘”Cyrano de Bergerac”, passada na frente doméstica durante a guerra com Marsha Hunt, Hume Cronyn e John Carroll; Algemas Para Dois / Two Smart People / 1946, comédia romântica com sublinhamento policial interpretada por Lucille Ball e John Hodiak.

Joseph Schilkraut em A Lenda do Coração

Conrad Veidt em A Sombra do Passado

Joan Crawford e John Wayne em Uma Aventura em Paris

Richard Carlson e Susan Peters em Cidade com Mamãe

Margaret O’Brien e Charles Laughton em O Fantasma de Canterville

John Hodiak e Lucille Ball em Algemas para Dois

Dassin estava descontente na MGM, porque não era ele quem dava a última palavra com relação à montagem de seus filmes, mas sim seus produtores. Ele pediu a Mayer que o libertasse de seu contrato, mas Mayer negou. Como represália, Dassin ficou “de greve” treze meses em casa. Mayer o manteve na folha de pagamento, porque sabia que ele acabaria se entediando e desejando voltar a trabalhar. evoltaria para Quando Dassin retornou, teve um desentendimento tão acalorado com o patrão que este o expulsou do estúdio, mesmo sem que seu contrato ainda não tivesse expirado.

Cena de Brutalidade com Burt Lancaster (segundo à direita)

Don Taylor e Ted De Corsia em Cidade Nua

Prosseguindo na sua rota artística, como não quís mais ficar ligado a um contrato longo, Dassin acertou com o produtor independente Mark Hellinger e a Universal International a produção de seus dois próximos filmes  Brutalidade / Brute Force / 1947 e Cidade Nua / The Naked City / 1948, nos quais pôde confirmar sua versatilidade cinematográfica. O primeiro filme (com um elenco onde se destacam Burt Lancaster, Hume Cronyn, Charles Bickford, Yvonne De Carlo, Ann Blyth, Ella Raines, Sam Levene) é um drama penitenciário com uma severa acusação do sistema penal e da sociedade contemporânea. A prisão é representada como um microcosmo de uma ordem social baseada na repressão e na tirania. É um verdadeiro inferno, do qual não há escapatória. As cenas da morte do delator, ameaçado pelos maçaricos acesos de seus companheiros até ser esmagado pela prensa; a morte do suicida, vendo-se a sombra do enforcado na parede e os óculos caídos; a rebelião no pátio, com a execução do traidor amrrado ao vagão de carregamento de minério e Joe Collins (Burt Lancaster) jogando o Capitão Munsey (Hume Cronyn) do alto da torre são os momentos cinematográficos de maior impacto na direção viril de Dassin. O segundo filme (com um elenco onde se destacam Barry Fitzgerald, Howard Duff, Don Taylor, Ted De Corsia, Dorothy Hart) foi rodado em lugares autênticos, no estilo semidocumentário, é uma autêntica reportagem cinematográfica, descrevendo de maneira concisaa e vigorosa o trabalho da polícia na grande metrópole. O próprio produtor narra os acontecimentos, conversando com os os personagens, lendo seus pensamentos, fazendo comentários e até atuando como nosso substituto, quando diz, por exemplo, ao fugitivo Garzah (Ted De Corsia): “Calma, Garzah. Não corra! Não chame a atenção sobre sua pessoa!”ou “Não perca a cabeça!”, no instante em que o assassino é atacado pelo cão do cego e ele tira a arma do bolso traseiro da calça para matá-lo. O filme demonstra certa consciência social no momento em que o casal do interior chega a Manhattan para identificar o corpo de sua filha assassinada. A mãe lamenta: “Luzes brilhantes, teatro, peles, boates … Bom Deus, por que ela não nasceu feia?” Esta cena triste, passada na margem do East River, enquanto o sol se põe atrás dos arranha-céus, magnificamente fotografadas por William Daniels, tem a força de uma acusação. A fotografia, a montagem e a música, bem coordenadas por Dassin, dão um rimo ideal à narrativa, que transcorre em uma atmosfera humana e realista até o desfecho eletrizante da perseguição do criminosos pelas ruas, culminando no alto da ponte, onde ele é alvejado pelas balas dos policiais. A fotografia e a montagem mereceram um Oscar.

O relacionamento professional entre Dassin e Hellinger terminou quando este faleceu em dezembro de 1947 antes desse ultimo filme ser lançado. Dassin então foi para a Broadway, onde dirigiu duas peças: “Joy of the World”, uma comédia  e  “Magdalena-A Musical Adventure “, baseado na opereta folclórica do nosso Heitor Villa-Lobos.

Millard Mitchell e Richard Conte em Mercado de Ladrões

O próximo filme de Dassin, Mercado de Ladrões / Thieves Highway / 1949 (com um elenco onde se destacam Richard Conte, Valentina Cortese, Lee J. Cobb, Barbara Lawrence, Millard Mitchell, Jack Oakie, Joseph Pevney) foi produzido pela 20thCentury-Fox. É um drama realista de repercussão sical – caminhoneiros que vão buscar frutas às mãos dos produtores e levá-las até o Mercado distante, onde são explorados por intermediários – cuidando particularmente da vingança de um ex-pracinha  (Richard Conte) contra um dos inescrupulosos negociantes. Dassin expõe os fatos cruamente, aproveitando as locações nas estradas e no Mercado de San Francisco para efeitos de realismo – e lhes dá uma conclusão otimista, divergente da obra original (o romance “Thieves Market” de A. J. Bezzerides, autor do roteiro), pois nesta, o protagonista se converte à ganância geral. O detalhe noir está na transformação do veterano de guerra, por força das circunstâncias, em um indivíduo rancoroso, que pretende fazer justiça com as próprias mãos, e no ambiente de cobiça e de traição, no qual ele é obrigado a se envolver. Esta mudança é bem expressa pela fotografia. As cenas passadas no campo são claras e filmadas geralmente com uma câmera normal colocada na altura dos personagnes. À medida que Nick se aproxima da cidade, a iluminação se torna mais escura e os ângulos mais ousados, O espetáculo também tem cenas angustiantes (a descida vertiginosa do caminhão descontrolado de Ed (Millard Mitchell) pela ladeira) e violentas (o acerto de contas no epílogo quando Nick usa o cabo da machadinha para quebrar a mão de Figlia (Lee J. Cobb), ambas realizadas com consciência cinematográfica.

Richard Widmark em Sombras do Mal

No final dos anos 40 Edward Dmytrik prestou depoimento para a House Un American Activities Committee (HUAC), apontando Dassin como comunista (embora ele já tivesse deixado o partido em 1939). Entrando na lista negra, Dassin foi para a Inglaterra, onde fez Sombras do Mal / Night and the City, produzido pela 20thCentury-Fox Limited, subsidiária inglesa da Fox (com um elenco onde se destacam Richard Widmark, Gene Tierney, Googie Withers, Francis L. Sullivan, Hugh Marlowe, Mike Mazurki, Herbert Lom). O espetáculo possui todos os ingredients de um filme noir puro salvo o ambiente urbano americano. Seu personagem central, Harry Fabian (Rochard Widmark) é um heroi dark típico, que circula em um submundo povoado por falsos mendigos e pequenos escroques que lembram o “pátio dos milagres” Hugoniano. Ao lado desses tipos de rua surgem, em um nível mais elevado da escala social, personagnes grostescos ou patéticos (o proprietário da boate, obeso e mal amado, sua esposa frustrada e ambiciosa; o gângster  inescrupuloso e vingativo; o lutador idealista e anacrônico) cujas ações vão influenciar o fim trágico do vigarista. Desde os primeiros momentos da narrativa, fica óbvio que Fabian é um perdedor e sua sorte está selada. Nosseross  (Francis L. Sullivan) lhe diz: “Você  é um homem morto”. Após ter sido perseguido durante toda a noite, ele consegue abrigo no barraco de uma mulher que negocia no mercado negro e se abre pela primeira e única vez, confessando para a velha indiferente: “Passei toda a minha vida correndo: de assistentes sociais, de bandidos, de meu pai …” Finalmente, Fabian pensa: “Eu estava tão perto … Então um acidente, um simples acidente e tudo se desmorronou”. Na realidade, nunca esteve perto de nada, a não ser da morte. O ritmo do filme é vibrante e a composição plástica expressionisticamente barroca. Dassin e seu cinegrafista (Max Greene) exploram muito bem o claro-escuro, as ruelas e as ruínas da Londres do pós-guerra, elevando a filmagem realmente de noite a um nível máximo de criatividade. Empregam o close-up, a lente angular e os ângulos bizarros de maneira admirável, principalmente  quando focalizam o gordo Nssseross como se fosse uma aranha na sua toca ou O Estrangulador (Mike Mazurki) enfrentando Gregorios (Stanislaus Zbyszko) em um choque de gigantes.

Cena de Rififi (Dassin é o último à direita)

Com dificuldade de arranjar trabalho em Hollywood, Dassin partiu para a França  onde dirigiu Rififi / Du Rififi Chez les Hommes / 1955, drama criminal de assalto  baseado no livro de Auguste Le Breton (com um elenco no qual se destacam Jean Servais, Carl Mohner, Robert Manuel e o próprio Dassin, creditado como Perlo Vita).

Tony Stéphanois (Jean Servais), após cumprir cinco anos de cárcere, idealiza o roubo das jóias da Mappin & Webb e o executa com a cumplicidade de dois amigos (Robert Manuel, Carl Mohner) e de Cesar-le-Milanais (Jules Dassin), especialista em arrombar cofres. Este, por uma imprudência, revela a identidade dos assaltantes a uma quadrilha rival, ocasionando uma guerra entre os dois grupos, que só termina com a morte do último bandido. O filme ficou famoso pela sequência da execução do plano audacioso, cêrca de trinta minutos de suspense sem uma só palavra e sem fundo musical, apenas com os ruídos que os assaltantes não podem evitar furando o chão, amordaçando o alarma ou arrombando o cofre – em uma exposição minuciosa do assalto. A humanidade dos personagens também faz com que o espectador fique  preso à intriga o tempo todo e Dassin expõe a narrativa em estilo rigoroso e áspero, construindo outras boas cenas como da morte de Cesar-le-Maltais (que reconhece ter desobedecido o código de ética dos criminosos e aceita  sua punição) e principalmente o final, quando Tony, o derradeiro criminoso sobrevivente, mortalmente ferido na guerra entre quadrilhas, dirige o carro, tendo a seu lado o menino, que brinca, encostando na sua cabeça o revólver de brinquedo, sem consciência da tragédia que estava se encerrando  naquele momento. O filme teve grande sucesso e deu a Dassin o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes. Nesta ocasião Dassin conheceu a atriz grega Melina Mercouri e ao mesmo tempo a obra literária de Mikos Kazantzakis.

Pierre Vaneck em Aquele Que Deve Morrer

Em 1957 ele dirigiu Aquele Que Deve Morrer / Celui Qui Doit Mourir baseado no romance de Kazantzakis, “O Cristo Recrucificado”, produção franco-italiana (com um elenco no qual se destacam Jean Servais, Pierre Vaneck, Carl Mohner, Grégoire Aslan, Gert Fröebe, Melina Mercouri, Roger Hanin, Fernand Ledoux, Maurice Ronet).

A ação transcorre em 1920 em uma aldeia grega, estando o país sob domínio turco. É Época de Páscoa e, segundo o costume, encenar-se-á a Paixão de Cristo. Manolios (Pierre Waneck) jovem pastor, humilde e gago, encarnará o Nazareno enquanto que o papel de Maria Madalena será entregue à viúva Katerina (Melina Mercouri). Durante os preparativos para a cerimônia, liderados pelos sacerdote Fotis (Jean Sevais), surgem os retirantes de uma aldeia destruída pelos turcos, O sacerdote local, Grigoris (Fernand Ledoux), aliado às forças dominantes (o capitalismo, representado por um proprietário de terras, e a tropa de ocupação) opõe-se à sua permanência na aldeia. Há uma revolta e, no fim, o povo se une contra a tirania, e Manolios tem a sua própria Paixão, sendo apunhalado por Panagiotaros (Roger Hanin), que devia assumir o papel de Judas.

Esta alegoria religiosa mostra duas concepções da igreja cismática: um sacerdote defende a ordem estabelecida e o poder vigente enquanto que o segundo sacerdote coloca-se ao lado do refugiados e os sustenta ativamente. Os sentimentos humanos são postos em evidência, quer sejam positivos ou negativos: a coragem, a covardia, o amor, o ódio, a indiferença, a compaixão, a hipocrisia, o oportunismo etc. … em suma trata-se de um filme profundamente humano. Magníficos exteriores selvagens e rudes são captados com inspiração plástica pelas câmeras do CinemaScope e as imagens de grupos de pessoas são vistas por enquadramentos inspirados assim como o movimento das massas (os homens em trapos sentados na colina; o combate final entre as duas facções). Todos os atores desincumbem-se de seus papéis com entusiasmo.

Marcello Mastroianni e Gina Lollobrigida em A Lei dos Crápulas

Em 1958 Dassin dirigiu A Lei dos Crápulas / La Legge, baseado no romance de Roger Vailland (com um elenco no qual se destacam Gina Lollobrigida, Marcello Mastroianni, Yves Montand, Pierre Brasseur, Paolo Stoppa, Melina Mercouri),  estudo de costumes tragicômico cujos tipos pitorescos são encarnados com vigor pelos seus intérpretes. No centro da intriga está Marietta (Gina Lollobrigida), a moça mais bonita de Porto Manacore, pequena aldeia de pescadores da Sicília. Todos os homens do lugar a cobiçam. Entre eles: Enrico Tosso (Marcello Mastroiani), jovem agrônomo novo na região; Matteo Brigante (Yves Montand), líder da contravenção; Don Cesare (Pierre Brasseur), velho latifundiário e patriarca da região; o tímido serviçal de Don Cesare, Toni, que é cunhado de Marietta (Paolo Stoppa). Brigante tem um filho, Francesco (Raf Mattiolo), que ama Donna Lucrezia (Melina Mercouri), mulher do juiz. O enredo é tortuoso e complicado, as cenas são muito longas. Dassin apresenta alguns trechos de bom cinema em sequências dispersas: a tentativa de estupro de Marietta por Tonio, os desocupados na praça e a morte de Lucrécia com um excelente corte para o último suspiro de Don Cesare. Deste modo, A Lei dos Crápulas fica no meio têrmo. Não é um mau filme, mas não está à altura das realizações anteriores do cineasta.

Nos anos 60 Dassin realizou:  Nunca os Domingos / Pote tin Kyriaki / 1960; Profanação / Phaedra / 1962; Topkapi/ Topkapi / 1964; Corações Desesperados / 10.30 P. M.  Summer / 1966; O Poder Negro / Up Tight / 1968 e um documentário, Survival Hamichama al Hashalom / 1968, sobre a Guerra dos Seis Dias.

Melina Mercouri e Jules Dassin em Nunca aos Domingos

O primeiro filme é o melhor. Homer Thrace (Jules Dassin) turista americano, apaixonado pela Grécia antiga e seus filósofos, chega a Atenas para descobrir a verdade sobre a queda da civilização grega. Em um bar no porto de Pireu ele conhece Ilya (Melina Mercouri), prostituta muito popular, que “recebe” todos os dias da semana menos no domingo (que reserva para a sua grande paixão: o teatro clássico grego – embora veja nas peças antigas apenas aquilo que ela quer ver). Surpreendido por este interesse Homer, como um novo Pigmalião, decide dar-lhe lições sobre literatura, música clássica e as belas artes e ajudá-la a  ascender socialmente. Porém ele financia seu projeto com o dinheiro do principal proxeneta do Pireu, M. Noface (Alexis Solomos) que vê em Ilya, trabalhadora independente, um mau exemplo e quer se desembaraçar dela. Quando Ilya descobre o acordo secreto que liga Homer à Noface, ela renuncia a mudar de vida e incita a revolta de suas companheiras de lenocínio. Ilya acaba por se reconciliar com Homer, que parte para os Estados Unidos, depois de descobrir o que ele nunca aprendeu nos livros: o prazer de viver. Quanto à Ilya, ela encontra o amor junto de Tonio  (Giorgos Foundas), operário do porto. Com esta história hedonista (da qual ele é também o autor e intérprete), Dassin realiza um filme arrebatador que deve à sua estrela Melina Mercouri grande parte de sua vivacidade e bom humor. Ela recebeu por sua criação o prêmio de interpretação no Festival de Canne e uma indicação para o Oscar de Melhor Atriz. Dassin também foi indicado por sua direção e roteiro e “Ta Paidia tou Peiraia”, com letra e música de Manos Hadjidakis, ganhou o Oscar de Melhor Canção. O filme foi um tremendo sucesso de bilheteria.

 

Melina Mercouri e Anthony Perkins em Profanação

Profanação é uma versão moderna da peça de Eurípedes, apresentando Fedra (Melina Mercouri) como a segunda mulher de Thanos, grande armador grego; Teseu reincarnado como Thanos (Raf Vallone) e Hipólito  (Anthony Perkins), filho de Teseu, revivendo como Alexis, o rapaz que se torna amante de sua enteada. A direção de Dassin de um modo geral é firme e os três intérpretes dão a devida intensidade dramática às paixões exacerbadas de seus personagens. Percebe-se algumas referências clássicas como, por exemplo, o encontro de Fedra com Alexis no British Museum de Londres, onde vemos as esculturas de mármore do Parthenon. A figurinista Denny Vachlioti ganhou uma indicação para o Oscar, destacando-se aquele contraponto que percebemos na cena final do filme, quando Melina Mercouri toda vestida de branco abre caminho através de um grupo de mulheres de luto, lembrando imediatamente a imagem do côro no drama antigo. A melhor sequência em termos cinematográficos, cheia de angústia, é a da morte de Alexis no seu carro-esporte.

Cena de Topkapi

Topkapi é uma comédia policial baseada em um romance de Eric Ambler sobre o roubo de uma adaga com quatro esmeraldas fabulosas (guardada em uma vitrine de vidro inquebrável e hermeticamente fechada com o assoalho cheio de dispositivos de aviso impossíveis de neutralizar) no Palácio Topkapi em Istambul. Os autores intelectuais do assalto, Elizabeth Lipp, também conhecida como Elizavetta Lippmanova (Melina Mercouri) e seu amante Walter Harper, um larápio internacional também conhecido como Walter Haberlee (Maximilian) recrutam como cúmplices Arthur Simon Simpson (Peter Ustinov), guia turístico; Cedric Page (Robert Morley), inventor excêntrico; Gerven (Akim Tamiroff), cozinheiro alcoólatra; Hans Fisher (Jess Hahn), atleta vigoroso; e o acrobata mudo, Giulio (Gilles Segal), formando um bando de amadores, sobre os quais é mais difícil atrair a atenção da polícia. Neste seu primeiro filme em cores Dassin providencia um espetáculo divertido, repetindo a fórmula já usada em Rififi, mas construindo uma sequência de assalto mais longa (cerca de 40 minutos) e com um suspense extra causado pela acrofobia do guia turístico. Peter Ustinov arrebatou o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante.

Cena de Corações Deseperados – Roy Schneider, Peter Finch, Melina Mercouri

Cena de O Poder Negro

Corações Desesperados, melodrama psicológico baseado no romance “Dix heures et demie du soir en été” de Marguerite Duras  (com um elenco no qual se destacam Melina Mercouri, Peter Finch e Romy Schneider) e O Poder Negro, drama racial baseado no romance de “The Informer” de Liam O’Flaherty, mudando o cenário da Irlanda para a América do Norte (com um elenco no qual se destacam Ruby Dee, Raymond St. Jacques, Frank Silvera, Roscoe Lee Browne) desapontaram os críticos.

Cena de Promessa ao Amanhecer

Nos anos 70, Dassin fez: Promessa ao Amanhecer / Promise at Dawn / 1970, drama baseado em um romance autobiográfico de Romain Gary, no qual Melina Mercouri interpreta a mãe do escritor, a atriz Nina Kacew, que cria – com sonhos megalomaníacos – seu filho ilegítimo (interpretado por Assaf Dayan, filho de Moshe Dayan, militar e político israelense) nascido do seu romance com o famoso ator do cinema mudo Ivan Mosjoukine, encarnado por Dassin (mais uma vez sob o pseudônimo de Perlo Vita); The Rehearsal / 1974), recriação em forma de ensaio teatral (no ICinema Studio em Nova York) do massacre em 1973 de estudantes e trabalhadores na Escola Politécnica de Atenas pela Junta Militar, com Melina Mercouri como narradora, atores gregos (Olympia Dukakis, Stathis Giallelis etc.) e a participação de celebridades (Laurence Olivier, Arthur Miller, Maximilian Schell, Lillian Hellmann) lendo poemas ou cartas; A Dream of Passion / 1978, drama no qual em virtude de um golpe de publicidade, Maya (Melina Mercouri), atriz grega que está interpretando o papel principal de Medéia no teatro, é posta em contato com Brenda Collins (Ellen Burstyn), americana presa na Grécia por ter assassinado seus três filhos para se vingar de seu marido infiel. A paixão alucinada de Brenda e o horror de seu crime fascinam Maya, a ponto de que seu desempenho em cena vem a ser consideravelmente influenciado: quanto mais ela reencontra Brenda na prisão  mas ela parece se identificar com a infeliz. Na noite de estréia da peça, enquanto Maya grita sua dor e seu ódio a Jasão, Brenda, na sua cela, repete seus berros como um eco, exprimindo toda a solidão e o desespero de uma mulher atormentada. A  proposta de todos esses filmes era interessante, porém mais uma vez o trabalho de Dassin decepcionou.

Richard Burton e Tatum O’Neal em Círculo de dois Amantes

Nos anos 80 foi lançado o último filme do diretor, Círculo de dois Amantes / Circle of Two, produção canadense sobre o amor impossível entre um pintor famoso sexagenário  (Richard Burton) e uma jovem de 16 anos (Tatum O’Neal) – outro fracasso profissional. E assim terminou melancolicamente a carreira de Jules Dassin, cineasta habilidoso que, na sua melhor fase, realizou filmes importantes nos Estados Unidos e na Europa. Ele se casou duas vêzes: em 1937 com Béatrice Launer, violinista judaico-americana, da qual se divorciou em 1962; em 1966 com Melina Mercouri. Dassin faleceu em 2008 aos 96 anos de idade. Melina havia falecido em 1994. Em 1971 ela abandonou a vida artística, após ter sido eleita para o Parlamento Grego como uma ardente socialista. A ex-atriz tornou-se Ministra da Cultura em 1981 e tentou em vão obter a devolução dos mármores do Partenon, que estão no Museu Britânico, para sua terra natal.

ALFRED HITCHCOCK – JANELA INDISCRETA

ALFRED HITCHCOCK – JANELA INDISCRETA

RESUMO DO ARGUMENTO

Um repórter fotográfico, L. B. Jeffries (James Stewart), confinado em uma cadeira de rodas por causa de uma perna quebrada, observa ociosamente o comportamento de seus vizinhos através do pátio interno de seu apartamento em Greenwich Village. Suas observações levam-no a suspeitar de que um dos vizinhos, Lars Thorwald (Raymond Burr), assassinou a esposa, mas não consegue convencer sua noiva, Lisa Fremont (Grace Kelly,) e seu amigo detetive, Thomas J. Doyle (Wendell Corey), de que está certo. Eventualmente, quando Lisa encontra uma prova incriminadora, confirmando suas suspeitas, o assassino descobre que está sendo vigiado e tenta matar o fotógrafo. Este é salvo no momento exato, porém sua outra perna é quebrada no curso da operação de resgate.

Alfred Hitchcock e James Stewart

TEMA.

O tema mais geral, é óbvio, é o do voyeurismo, a curiosidade incontrolável de espiar os outros. O Hitchcock faz do espectador um cúmplice do voyeurismo do protagonista, criando uma metáfora da própria essência do cinema. Existe uma analogia entre o voyeurismo do Jeff (James Stewart) e o do espectador de cinema. Nós espectadores espreitamos a vida dos personagens que vemos na tela, penetrando na sua intimidade que, para nós, se torna um espetáculo; porém há uma nuance: o que vemos na tela é puramente imaginário e feito para ser visto, ao contrário do que ocorre com Jeff. Ele vê o que, para ele, é real e não consentido. Outra comparação que se pode fazer é que o Jeff espia os vizinhos para fugir dos seus próprios problemas – a perna quebrada, a imobilidade forçada, o tédio – assim como o espectador médio entra no cinema e espia a vida dos personagens que vê na tela, para escapar dos seus. É o escapismo típico do cinema. E nós nos identificamos a tal ponto com o Jeff, que esperamos fervorosamente que a sua dedução esteja certa e que o suspeito tenha mesmo cortado a esposa em pedacinhos. Vejam só que coisa macabra:  a gente torce para que um crime horrendo tenha sido cometido. O fascínio consiste justamente em provar a veracidade da hipótese levantada por Jeff.

Outra coisa parece evidente, e este seria um subtema: aquilo que o Jeff vê pela janela dos fundos, pela rear window, é um microcosmo, um pequeno universo com várias facetas do comportamento humano. É uma alegoria da solidão e do egoismo nos grandes centros urbanos, do isolamento entre as pessoas. Todo esse pequeno mundo cohabita se ignorando. Não há nenhuma comunicação, nenhuma fraternidade, nenhum calor humano entre eles. É o triunfo da solidão e do egoismo. Quando aquela mulher grita pela morte do seu cachorrinho, os vizinhos chegam na janela, mas só mostram curiosidade, nada mais. Não há qualquer gesto de solidariedade. Hitchcock olha para esse mundo com certa compaixão e não como um misantropo, como alguém que tem aversão à sociedade. E não sei se vocês notaram. Todas aquelas mini-histórias ou vinhetas têm um denominador comum: elas envolvem algum aspecto do relacionamento homem-mulher, do amor ou do casamento. A mulher solitária, os jovens récem-casados, o músico solteirão, a bailarina assediada pelos homens, o casal sem filhos que transfere o amor para o cãozinho e o casal que se odeia, ou seja, o suspeito e sua mulher.

James Stewart

Uma observação: tudo aquilo pelo qual o Jeff passou não teria sido uma espécie de experiência terapêutica, que é um tema recorrente de Hitchcock? Isto é, depois de tudo o que ele passou é que ele se tornou apto para aceitar o noivado e se libertou da compulsão de espiar os outros? Acho que, depois que ele viu o espírito de iniciativa e a coragem de Lisa, indo lá no apartamento do assassino, sentiu que tinha uma afinidade com ela. Jeff é um homem de ação e aventura e descobriu uma Lisa diferente daquela Lisa manequim ou dondoca. E aí ele passou a aceitar a possibilidade de casamento. Há um plano que mostra bem o seu contentamento e admiração pela namorada, quando ela está no apartamento do assassino. E, ainda quanto à libertação terapêutica do voyeurismo, vejam que na última cena Jeff está sentado de costas para a janela.

Mais uma interpretação possível: o Hitchcock teria desejado dar uma de moralista, fazendo o Jeff ser punido por ter cedido à tentação de espiar os outros. Ele recebeu o que merecia, quebrando a outra perna. No final, quando o criminoso vai ao quarto de Jeff, ele pergunta: “O que é que você quer de mim? E Jeff não responde. Porque, de fato, as sua ações não tinham justificativa, eram motivadas por pura curiosidade.

Hitchcock e o roteirista John Michael Hayes

ROTEIRO.

O roteiro foi escrito por John Michael Hayes, inspirado no livro de Cornell Woolrich. conhecido autor de romances policiais, que usava às vezes o pseudônimo de William Irish. Irish foi o escritor que forneceu mais histórias para os filmes noirs entre eles, A Dama Fantasma / Phantom Lady /1944, Anjo Diabólico / Black Angel / 1946, Morte ao  Amanhecer / Deadline at Dawn / 1946, Chantagem / Fall Guy /1947, Um Rosto no Espelho / Fear in the Night /1947, A Noite Tem Mil Olhos/ Night Has A Thousand Eyes / 1948 etc. Michael Hayes era redator de rádio e sua contribuição foi mais com relação aos diálogos. Ele foi responsável pelos diálogos espirituosos que valorizaram muito o filme. São diálogos mordazes, às vezes carregados de um humor macabro, principalmente os que são ditos pela massagista (Thelma Ritter). Na história original o herói era um inválido, que acabava levando um tiro do assassino e a bala pegava, imaginem só, em um busto de Beeethoven. O Hitchcok, em vez de aproveitar esta cena absurda, inventou o lance genial dos flashes da máquina fotográfica etc.O roteiro é bastante original na apresentação da intriga, pois o herói, ao contrário do que costuma acontecer nas histórias policiais, está imobilizado e faz suas investigações usando o telefone, a luneta, o binóculo, a teleobjetiva, enfim, os seus próprios instrumentos de trabalho. E aí vocês vêem como os acessórios podem assumir uma importância particular em um filme.

CONSTRUÇÃO DRAMÁTICA

A construção dramática é a do drama clássico com unidade de tempo, lugar e ação. Com um detalhe interessante: é como se nós estivessemos duplamente no cinema. Nós vemos o Jeff e seus problemas que, por sua vez, nos faz ver as pequenas misérias de seus vizinhos. Estes vizinhos são personagens de “filmes dentro do filme”. Eles são distribuídos em sequências, que são enquadradas pelo Jeff com o binóculo ou a teleobjetiva, como se estivesse reinventando os planos, uma metalinguagem.

CENÁRIO.

O cenário ao fundo,James Stewart, Grace Kelly, Hitchcock.

O cenário é confinado. Tudo se passa em um mesmo lugar: o pátio interno de um edifício. O Hitchcock retoma o desafio técnico que enfrentara em Um Barco e Nove Destinos / Lifeboat / 1944, filme no qual a ação se passava toda em um bote salva vidas e Festim Diabólico / Rope / 1948, que se passava todo em um apartamento.   Ele planejou tudo minuciosamente, fazendo questão de supervisionar a construção dos cenários. Além do seu costumeiro desenho de produção. Ele desenhava cena por cena do filme dando instruções minuciosas sobre cada plano, cada movimento de câmera, cada corte, em uma espécie de montagem a priori. Depois que tudo era posto no papel, dava seu trabalho por encerrado. A filmagem era mera formalidade, mera execução. O crítico André Bazin ficou espantado quando foi assistir à filmagem de Ladrão de Casaca / To Catch a Thief / 1955 e viu o Hitchcock entediado, sentado  em uma cadeira, quase dormindo. E James Stewart contou,  durante uma entrevista coletiva à imprensa da qual participei  (em outubro de 1980, quando ele veio ao nosso país para promover o relançamento de quatro filmes de Hitchcock), que nunca viu o Hitchcock olhando pelo visor da câmera. É claro que há exagero nestes depoimentos, pois em uma filmagem às vezes ocorrem imprevistos; mas, de uma maneira geral era aquilo mesmo que acontecia. Segundo Stewart, Hitchcock era um dos poucos diretores que terminava o filme com 80 ou 100 metros de película filmada. A maioria deles terminava com 8 mil metros.

Grace Kelly e James Stewart com Hitchcock

 

DIREÇÃO.

O filme é um perpétuo exercício de estilo, que contém e resume a maior parte das proezas da obra anterior de Hitchcock. É uma espécie de súmula, uma obra-prima de suspense e humor. Nós estamos ao mesmo tempo, dentro do filme, subjugados pela trama policial e pelas leis do suspense, e fora dele, como observadores, ora risonhos, ora comovidos com a tragi-comédia humana que são aquelas vinhetas, aqueles aspectos do comportamento humano. E, apesar de todo virtuosismo técnico, trata-se de um estilo sóbrio, cristalino, econômico. A simplicidade e a clareza cujo segredo só os grandes cineastas conhecem.

É impressionante como Hitchock fica à vontade em um espaço reduzido, usando principalmente o ponto de vista subjetivo, as panorâmicas e o contraste constante entre os planos mais próximos e os mais afastados, Enfim, ele joga com a identificação e com a distância. E vocês notaram que quando o assassino percebe que a Lisa se comunica  com alguém do prédio vizinho, ele encara ostensivamente a câmera e dá um choque na platéia.  Tal como deu no Jeff. Ambos, a platéia e o Jeff, até então vinham observando tudo anonimamente  mas, a partir daí, o Jeff  se separa, se liberta do público, deixa de ser um voyeur como ele – a metaliguagem cede lugar à ação.

Grace Kelly e James Stewart

Além deste, há um outro momento em que o filme muda o seu ponto de vista subjetivo. É no final da cena em que a mulher começa a gritar, histérica, ao saber da morte do seu cachorrinho e os vizinhos chegam nas janelas, exceto o assassino, que fica fumando no escuro. A câmera aí, sai do apartamento do Jeff e a cena se torna totalmente objetiva. Esta cena ilustra uma regra do trabalho do Hitchcock que consiste em não mostrar uma vista geral do cenário até um auge dramático. É só naquele instante que ele mostra pela primeira vez todo o pátio. Certa vez ele contou  que estava fazendo um filme para a TV e havia uma cena na qual um homem entrava em uma delegacia para se entregar. Disse o Hitchock: “eu dei um close dele entrando, da porta se fechando atrás dele e dele caminhando até a mesa. Tudo em close. E então alguém me perguntou: “O senhor não vai mostrar todo o cenário para que as pessoas saibam que estamos em uma delegacia?”. E ele respondeu: “Porque que eu vou me preocupar com isso? O sargento que está sentado na mesa tem três listras no seu braço direito, que está perto da câmera, e isso é o bastante para dar a idéia de uma delegacia. Por que vou desperdiçar um plano geral que poderá ser útil em um mmento dramático? Este conceito de desperdício, de poupar a imagem para uso futuro é interessante.

Grace Kelly mostrando a aliança

 

Outra coisa que o Hitchcock faz admiravelmente é expor a ação e os personagens com muita economia de meios. Vejam a cena da abertura do filme. Ele se abre como o rosto do Jeff. A câmera se move para a parede, onde se vê fotos de carros de corrida virados na pista. Por meio deste simples movimento de câmera nós ficamos sabendo quem é o personagem, o que ele faz, e até como teria sido o seu acidente. É um exemplo de como se usa meios puramente cinematográficos para se contar uma história. É muito mais interessante do que se o Hitchcock tivesse posto alguém perguntando ao jeff como foi que ele quebrou a perna. Isso é o que um diretor comum faria, ele recorreria ao diálogo.

Grace Kelly

E por falar em diálogo, nós vimos que os diálogos são muito espirituosos, mas eu gosto muito é de uma cena muda. Aquela quando a Lisa entra no apartamento do criminoso e acha a aliança da vítima. Ela coloca a aliança no dedo e balança a mão para que Jeff a veja. O gesto tem dupla significação: é a vitória dela, achando a prova do crime e, ao mesmo tempo, uma insinuação para que Jeff se case com ela. É um toque irônico. A ironia está sempre presente nos filmes de Hitchcock.

Na filmagem, Grace Kelly (em pé), Wendell Corey James Stewart (sentados), Robert Burks (ao fundo no centro ), Hitchcock (na extrema direita)

FOTOGRAFIA E ILUMINAÇÃO.

Quanto à iluminação e à cor a gente tem um belo exemplo de sua utilização expressiva quando o assassino fica no escuro e o vermelho da brasa do seu cigarro aceso se reflete nos seus óculos. E depois, a cena climax, quando Jeff se defende usando os flashes da sua máquina fotográfica. A câmera aí se torna por um instante subjetiva e nós é que ficamos cegos com os clarões de luz. É uma sequência admirável e muito bem montada por George Tomasini, o mesmo que ajudou o Hitchcock em Psicose / Psycho / 1960. O Tomasini e o fotógrafo Robert Burks eram colaboradores assíduos do diretor assim como o Bernard Hermann que, entretanto, não participou de Janela Indiscreta.

James Stewart e Grace Kelly

SOM.

Enquanto a imagem se aproxima dos vizinhos através da luneta, do binóculo ou da telobjetiva, o som continua em plano geral. Isto é, o som não é audível como, por exemplo, na experiência mal sucedida da mulher solitária. O espectador é obrigado a construir um som subjetivo para essa sequência. O público assume a função de autor dos diálogos. Uma cena de bom emprego do som é quando o criminoso vai para o apartamento do Jeff. Ouve-se o barulho dos seus passos e outros ruídos, aumentando a tensão.

James Stewart e Grace Kelly

MONTAGEM.

Na entrevista que concedeu ao Truffaut, Hitchcock referiu-se à experiência de Kulechov que consistiu em colocar a imagem do ator Ivan Mosjoukine  sucessivamente ao lado de um prato de sopa, de uma mulher moribunda e o deuma criança sorrindo. O rosto do ator em uma atitude impassível, parecia exprimir em cada caso: fome, pena ou ternura. Pois bem, o Hitchock fez a mesma experiência com dois closes de James Stewart. Ele deu um close de Jeff e em seguida cortou para o cachorrinho que está descendo em uma cesta; quando cortou de novo para o  mesmo close, o Jeff parece que está dando um sorriso amável.  Depois ele usou novamente o close, desta vez cortando para uma garota semi nua, exercitando seus passos de dança; e quando volta a mostrar o close do James Stewart, o sorriso de Jeff parece lascivo. Mas era sempre o mesmo close, com a mesma expressão do ator.

PERSONAGENS.

Jeff é o centro do filme. Ele está sempre presente. Sempre como testemunha. Ele é “aquele que espia” e nós o espiamos, espiando. É um personagem curioso e cínico. E parece misógino. A Lisa está louca para casar com ele,. Mas ele, sendo um homem acostumado com a ação e a aventura, não quer perder a liberdade. A cena da primeira aparição de Lisa, sua sombra cobrindo o corpo do Jeff, é bastante simbólica do seu desejo de conquista. E a cena do beijo prolongado também é significativa da oposição Jeff-Lisa. Ela, envolvente e ele distraído, com a atenção voltada para outro lugar, preocupado como o que está acontecendo do outro lado do pátio.  Lisa é a manequim, elegante, uma dondoca; mas depois se revela como uma moça de ação e coragem, que poderá  ser uma boa companheira para Jeff. A Grace Kelly era mesmo a atriz ideal para o papel.

Thelma Ritter e James Stewart

A massagista é responsável pelos diálogos mais engraçados. Suas reflexões sobre o casamento, seu humor macabro, são hilariantes. Thelma Ritter sempre foi uma ótima atriz coadjvante. O detetive (Wendell Corey) é sarcástico, incrédulo. É uma figura antipática. O Hitchcock, desde que contou aquela história da sua infância, quando ficou preso em uma cela por ter feito uma travessura, ficou com a fama de ser contra a polícia, mas sempre que tocavam no assunto, ele dizia: “Não sou contra a polícia. Só tenho medo dela”.

Grace Kelly, Wendell Corey, James Stewart

Raymond Burr

Quanto ao casal Thorwald, a mulher, apesar de doente, é despótica, é uma megera, quase justificando o ato do marido. E o Raymond Burr é um excelente vilão. O Hitchcock tinha uma regra: quanto melhor o vilão, melhor o filme. A mulher solitária é uma personagem triste, levemente ridicularizada, No desespêro, ela acaba recorrendo ao aliciamento e a experiência  é catastrófica, porque o gigolô não tem a delicadeza que ela esperava. O casal sem filhos transfere o amor para o cachorrinho. Os jovens récem-casados estão sempre em lua de mel mas, quando amanhece, já começam a brigar. O compositor almeja o sucesso e bebe. A bailarina, é um tanto exibicionista e cortejada pelos admiradores. Talvez seja uma imagem de Lisa que era manequim e deveria também ser cortejada. A escultora, feia, bota no barro as formas horrorosas e futuristas, uma nota de humor tipicamente hitchcockiana.

Grace Kelly

CONCLUSÃO.

O Hitchcock tinha um espírito prático, uma queda para a engenharia e estudou mecânica e eletricidade. Talvez por isso o seu grande estímulo tenha sido sempre o desafio técnico. Nós podemos mesmo dizer que o conteúdo de seus filmes no fundo era a própria técnica, que ele dominava de maneira absoluta e punha a serviço da diversão, do entretenimento. Como disseram Claude Chabrol e Eric Rohmer no seu livro clássico sobre ele, “A forma dos filmes de Hitchock cria o conteúdo”. Hitch costumava dizer: “Muitos diretores fazem filmes que são pedaços da vida, os meus são pedaços de bolo”. Não estou interessado em conteúdo, ele dizia, “Sou como um pintor que não se importa com as maçãs que está pintando, se são doces ou amargas. O que interessa é seu estilo, sua maneira de pintá-las – daí é que vem a emoção”. Hitchcock é um formalista típico, que faz a arte pela arte, a arte como um fim em si mesma. Ele sempre esteve preocupado com a forma, como emocionar o espectador através de meios puramente cinematográficos.  E é isso que me fascina, a sua maneira de fazer cinema, um cinema puro, essencialmente visual e não como ele próprio dizia, “fotografias de pessoas falando”, um cinema de invenção pictórica.