MARIO CAMERINI

janeiro 4, 2019

Como afirmou Carlo Lizzani na sua “Storia del Cine Italiano”, a história do cinema italiano tornou-se digna de interêsse com a aparição de Alessandro Blassetti e de  Mario Camerini, os dois cineastas mais significativos dos anos 30 e 40. Eu acrescentaria Mario Soldati. Já escrevi sobre Blassetti e Soldati, e agora chegou a vez de Camerini.

Mario Camerini

Mario Camerini (1895-1981) nasceu em Roma, Via Veneto. Em 1913, frequentou a escola secundária Liceo Tasso e escreveu seu primeiro roteiro de cinema, uma história de detetive, Le Mani Ignote, que seria filmada pela Società Italiana Cines. Em 1914, ele se matriculou na Faculdade de Direito e durante a Primeira Guerra Mundial (entre 1915-1918) serviu na infantaria, ficou prisioneiro na Alemanha, e foi condecorado com a medalha do mérito militar. Em 1920, começou a trabalhar no cinema como roteirista e assistente de seu irmão, o diretor Augusto Camerini, em Tre Meno Due e L’Altra Razza, produções da Nova Film. Em 1921-1922 foi assistente de seu primo Augusto Genina em Marito, Moglie e … e Cirano Di Bergerac e finalmente, em 1923, supervisionado por A. Genina, realizou seu primeiro filme, Jolly, história de amor trágica envolvendo um velho palhaço e um trapezista, apaixonados pela mesma mulher, interpretada por Diomira Jacobini, que seria sua companheira por muitos anos.

Cena de Kif Tebbi

Entre 1924 e 1928, Camerini realizou: La Casa Dei Puccini / 1924 (comédia sentimental envolvendo uma jovem de um orfanato reduzido à miséria, que se refugia no luxuoso colégio vizinho, e seu relacionamento com a filha de um aristocrata separado de sua esposa, que se apaixona por ela); Saetta Principe Per Un Giorno / 1924 (aventura na qual um príncipe, cercado por cortesãos desleais que o impedem de governar e de esposar a jovem pobre que ele ama, acaba encontrando um sósia que o substitui e, em um só dia, resolve todos os seus problemas e depois retorna a sua vida de vagabundo); Voglio Tradire Mio Marito! / 1925 (comédia matrimonial tendo como tema o divórcio, então proibido na Itália); Maciste Contro Lo Sceicco/ 1926 (aventura expatriando o velho herói italiano para a Líbia, onde ele vai medir forças com as tropas de Beduínos e desvendar os mistérios do deserto); Kif Tebbi / 1928 (drama de guerra sobre a conquista colonial da Líbia, tendo como protagonista um nobre turco educado na Itália que, devido ao seu pouco entusiasmo para lutar pelos otomanos, é preso; mas eventualmente consegue escapar e ver a bandeira italiana tremular  sobre o pequeno forte libertado).

Em 1929, inspirado pelo menos na sua primeira parte pelo kammerspielfilm, Camerini começou a fazer seu primeiro filme importante, Rotaie, drama tratando do tema da regeneração moral após a tentação do suicídio e uma vida dissipada. Em um pequeno hotel próximo de uma estação ferroviária, dois amantes (Käte von Nagy, Mauricio D’Ancora) estão prestes a se suicidar, no quarto de um hotel, por falta de trabalho. Porém a passagem de um trem abre uma janela, que derrama o copo contendo o veneno.  Retrocedendo sobre sua decisão, os jovens embarcam em um trem de luxo (com o dinheiro oportunamente achado em uma carteira que caíra do do bolso de um cidadão), que os conduz a um ponto turístico. Ali eles participam da vida dos ricos entre o Grand Hôtel e o casino de San Remo. Mas logo o rapaz perde tudo na roleta enquanto um marquês entediado (Daniele Crespi) assedia a jovem. O rapaz dois amantes decidem renunciar a esta existência e retornam para sua cidade em um vagão de terceira classe. Aquele mundo enganoso e cheio de miragens colocou à dura prova os seus sentimentos e eles decidem procurar emprego em uma fábrica. Apesar de sua pós-sincronização, Rotaie pertence ainda totalmente à estética do cinema silencioso e, graças a utilização inspirada da imagem e do ritmo, é sem dúvida uma obra cinematográfica muito bem acabada, que não fica nada a dever aos grandes clássicos da cena muda mundial.

Em 1930, Camerini trabalhou nos estúdios da Paramount em Saint Maurice-Joinville, onde aprendeu a técnica do som, adaptando-se rapidamente ao novo meio de expressão ao realizar a versão italiana de Paraíso Perigoso / Dangerous Paradise de William Wellman (baseado no romance “Victory” de Joseph Conrad), estrelado por Carmen Boni, esposa de Augusto Genina.

Depois de Figaro E La Sua Gran Giornata / 1931 (comédia passada no começo do século vinte em um teatro de província, onde uma trupe, vinda da cidade, prepara uma representação do “Barbeiro de Sevilha) e L’Ultima Avventura / 1932 (comédia   girando em torno de um conde sedutor de certa idade que se apaixona por uma jovem, mas é preterido por um jovem estivador), Gli Uomini Che Mascalzoni representou o resultado da sua perfeita absorção do cinema falado que, de uma certa maneira, dinamizou o cinema de Camerini.

Lia Franca e Vittorio De Sica em Gli Uomini Che Mascalzoni

Nesta esplêndida comédia romântica, Bruno (Vittorio De Sica) é um chofer, a serviço de uma família rica. Para impressionar Mariuccia (Lia Franca), vendedora de perfumaria, filha de um motorista de taxi, ele se serve do carro de seus patrões, para levá-la em uma excursão na região dos lagos. Seu idílio é interrompido por uma série de incidentes que obrigam Bruno a abandonar a moça sem dar explicações. O amor nascente entre os dois jovens parece comprometido, mesmo quando eles continuam a se procurando e se vendo. Bruno e Mariuccia fingem ter um outro relacionamento amoroso para causar ciúme mutuamente até que, entrando por acaso no taxi do pai de Mariuccia, eles se reconciliam sob o olhar do papai satisfeito.

Cena de Gli Uomini Che Mascalzoni

A abertura do filme mostra uma câmera agitada que acompanha os personagens nos seus movimentos, sendo célebre a sequência rodada nas ruas de Milão, onde Bruno segue Mariuccia de bicicleta, que anda pela calçada e depois toma um bonde ao mesmo tempo em que a objetiva, perpetuamente em movimento, acompanha a perseguição com uma vivacidade espantosa. Mais adiante, a corrida louca que Bruno faz de carro de Arona a Milão e depois de Milão a Arona para reencontrar a moça que abandonou na taverna, sem poder lhe explicar as razões de sua partida precipitada, mostra – como observou Gian Piero Brunetta (“Cent’anni di cinema italiano”, Laterza, 1995) – “um estilo e uma leveza narrativa que lembram René Clair e Ernst Lubitsch e um senso de observação da realidade que o tornam comparável a Frank Capra”. Por outro lado, em uma época dominada pelo cinema de estúdio, Camerini se acomoda bem com o ar livre e utiliza com muita espontaneidade o cenário natural. Gli Uomini Che Mascalzoni foi o precursor do que ficaria conhecido como a pentalogia pequeno-burguesa de Camerini: Darò Un Milione, Ma Non È Una Cosa Seria, Il Signor Max e I Grandi Magazine. Neste quinteto principalmenteestá o “universo cameriniano”, um mundo popular de vendedores de jornais, caixeiros e choferes, gente simples que ele trata com muita ternura e alegria.

Depois de T’Amerò Sempre (drama focalizando uma mãe solteira que reencontra seu sedutor e, quando este tenta reconquistá-la, é defendida por um tímido contador, com quem decide se casar); Cento Di Questi Giorni (que ele apenas supervisionou); e Giallo  (thriller de supense baseado em um romance de Edgar Wallace, no qual uma mulher, por uma série de coincidências, desconfia que seu marido é um assassino perigoso) realizados em 1933 e Il Cappello A Tre Punte (sátira histórico-política inspirada no romance “El sombrero de tres picos” de Alarcón, retratando um ridículo governador de província) e Come Le Foglie (comédia enfocando um industrial arruinado que é obrigado a aceitar um emprego na empresa de um sobrinho e as reações dos membros de sua família), realizados em 1934, Camerini deu à luz o excelente Darò Un Milione / 1935.

Assia Noris em Darò Un Milione

Vittorio De Sica  Darò Un Milione

O enredo de Darò Un Milione é o seguinte: Gold (Vittorio De Sica), cansado da vida, tenta se suicidar, atirando-se de seu iate. Salvo por um mendigo, ele lhe promete que oferecerá um milhão àquele que praticar, com relação a ele, um gesto generoso e desinteressado.  Depois o ricaço desaparece, disfarçado como um pobre miserável. A notícia se espalha e provoca uma epidemia de filantropia para com os mendicantes, todos suspeitos de ser o milionário incógnito. Dentro em pouco, Gold conhece uma jovem, Anna (Assia Noris), que trabalha em um circo. Ela o ajuda e o protege. Após ter suspeitado que ela só pensa, como os outros, em ganhar o prêmio, ele acaba por compreender que sua afeição e sua generosidade são sinceras e  consequentemente se casa com ela e o milhão será inútil.

Sátira de costumes – mostrando a desigualdade social, o egoismo e a arrogância presentes em certa parte da sociedade – que se torna um conto de fadas  – no qual uma tímida e pudica costureira esposa um príncipe encantado, no caso, um milionário-, o espetáculo proporciona alta dose de comicidade, cheia de achados irresistíveis e trechos de bravura cinematográfica dignos de uma antologia. Foi um grande sucesso, impulsionando a carreira de De Sica e de Assia Noris, com quem o diretor se casou.

Vittorio De Sica e Assia Noris em Mas Não É Uma Coisa Séria

Os filmes seguintes de Camerini nos anos trinta foram: Mas Não é Uma Coisa Séria / Ma Non È Una Cosa Seria / 1936 (comédia romântica baseada em uma peça de Luigi Pirandello cuja versão alemã, Der Mann, Der Nicht Nein Segen Kann/ 1938, ele também dirigiu); O Grande Apelo / Il Grande Appello (aventura africana durante a guerra ítalo-abissínia, endossando a política colonial italiana através da redescoberta do patriotismo por um italiano contrabandista de armas a serviço dos etíopes); Os Apuros do Senhor Max / Il Signor Max/ 1937 (comédia  sobre um jornaleiro que, confundido com um conde, aceita a falsa identidade, para penetrar na alta sociedade, mas acaba se sentindo incomodado no meio da aristocracia, assume a sua verdadeira identidade,  e se casa com a camareira da ricaça que ele pretendia conquistar); Batticuore/ 1939 (versão italiana da comédia Prazer de Amar / Battement de Coeur de Henri Decoin com Assia Noris no papel interpretado por Danielle Darrieux da jovem aluna  de uma escola de batedores de carteiras); Calúnia / I Grandi Magazine / 1939 (comédia  passada em uma loja de departamento, onde um mensageiro se apaixona por uma vendedora e descobre que o chefe do pessoal, que corteja a jovem, é o líder de uma quadrilha que rouba as mercadorias do estabelecimento); e Il Documento / 1939 (comédia  passada no século dezenove, tendo como personagem central o mordomo de um conde, supostamente de posse de um documento comprometedor, que obriga um escroque  a se regenerar). Os Apuros do Senhor Max Calúnia, são mais duas comédias muito divertidas da pentalogia pequeno-burguêsa, tal como as outras, estreladas pelo então jovem galã Vittorio De Sica.

Cena de Os Apuros do Senhor Max

Vittorio De Sica em Calúnia

Assia Noris e Amedeo Nazzari em Centomila Dollari

O trabalho de Camerini nos anos quarenta foi uma prova de sua inegável habilidade para dominar todos os gêneros. Ele fez primeiro uma comédia, Centomila Dollari / 1940, cuja história merece ser lembrada – Lily (Assia Noris), telefonista no Gran Hotel, está prestes a se casar com seu primo Paolo (Arturo Bragaglia). Um milionário americano (Amedeo Nazzari) de passagem lhe oferece mil dólares, com a condição que ela aceite simplesmente jantar com ele. Indignada, a jovem recusa, mas Paolo e seus familiares se convencem, diante da enormidade da quantia, que a proposta é inocente, e obrigam Lily a aceitar. Durante a refeição os dois protagonistas se apaixonam um pelo outro. Lily faz crer ao seu noivo, que ela aliás despreza, que o encontro não foi tão casto como previsto. Paolo consegue reconquistá-la simulando uma tentativa de suicídio. Porém o milionário entra rocambolescamente na igreja conduzindo uma ambulância, interrompe a cerimônia nupcial, e os dois enamorados fogem em direção ao campo.

Depois, o cineasta volta-se para o drama com Uma Romântica Aventura / Una Romantica Avventura (adaptação de um conto de Thomas Hardy); o romance histórico com Os Noivos / I Promessi Sposi (baseado no romance de Mazzoni); o drama criminal com História de Amor / Una Storia D’Amore; o drama romântico com T’Amerò Sempre; o drama de guerra com Due Lettere Anonime: o fantástico com L’Angelo E Il Diavolo; a aventura com A Filha do Capitão / La Figlia Del Capitano, adaptação do conto de Pouchkine; e finalmente volta à comédia com O Sonho das Ruas / Molti Sogni Per Le Strade.

Cesare Danova e Irasema Dilian em A Filha do Capitão

Anna Magnani e Massimo Girotti em O Sonho das Ruas

Em 1943, o cineasta se separou de Assia Noris e se casou com uma austríaca, Mattilde (Tully) Hruska com a qual passaria o resto da vida. Em 1945, ele fez parte da comissão de depuração do cinema com Umberto Barbaro, Mario Chiari, Luchino Visconti, Alfredo Guarini e Mario Soldati. A comissão condenou a seis meses de suspensão de atividade, por colaboração como o fascismo, os cineastas Goffredo Alessandrini, Augusto Genina e Carmine Gallone. Em 1946, ele se inscreveu no Partido Socialista e fez parte de uma comissão de cineastas para a elaboração da nova lei sobre cinema. Foi presidente da ANAC (Associazione nazionale autori cinematografici).

Silvana Magano e Kirk Douglas em Ulysses

Durante os anos 50, 60 e 70, Camerini realizou: O Flagelo de Deus / Il Brigante Musolino/ 1950; Duas Mulheres É Demais / Due Moglie Sono Troppe / 1951; Esposa Por Uma Noite / Moglie Per Una Notte/ 1952; Gli Eroi Della Domenica / 1953; Ulysses / Ulisse / 1954; A Bela Moleira / La Bella Mugnaia/ 1955; foi um dos roteiristas de Guerra e Paz / War and Peace/ 1956 de King Vidor / 1956; Irmã Letizia / Suor Letizia/ 1956; Férias no Paraíso / Vacanza A Ischia / 1957; Primeiro Amor / Primo Amore / 1959; Via Margutta / 1960; Crime em Monte Carlo / Crimen / 1960; Legenda Heróica / I Brigante Italiani / 1961; Kali-Yug, A Fúria dos Bárbaros / Kali Yug, La Dea Della Vendetta / 1963 e Il Mistero Del Templo Indiano / 1963; Crime Quase Perfeito / Delitto Quasi Perfecto/ 1966; Io Non Vedo Tu Non Parli Lui Non Sente / 1971; Don Camillo E I Giovanni D’Oggi / 1972. Nenhum desses filmes se iguala às suas comédias dos anos trinta – que representam  o coração e a espinha dorsal da obra cameriniana -, sobressaindo apenas pelos seus valores de produção, Ulysses (que deveria ter sido rodado por G. W. Pabst, mas o contrato dele com Ponti-De Lurentiis foi rescindido) e A Bela Moleira (refilmagem de Il Capello a Tre Punte).

Marcelo Mastroianni, Sophia Loren e Vittorio De Sica em A Bela Moleira

Em 1975, Camerini participa de uma retrospectiva parcial de seus filmes dos anos trinta no Festival de Pesaro. Em 1981, morre em Salò nas margens do Lago di Garda.

2 Responses to “MARIO CAMERINI”

  1. Mestre ,
    De cinema não americano os que mais admiro são o Italiano, o frances e o mexicano , mas de Camerini só vi Ulisses que é quase um filme americano pois tem Kirk Douglas que inclusive na sua autobiografia “O filho do trapeiro” tem um capitulo “17” só sobre este filme e é muito interessante.
    Abs.

  2. Escrevo sobre Blasetti, Soldati e Camerini, porque sempre foram esquecidos em prol dos neo-realistas. Claro que estes são muito importantes, mas convém divulgar a obra dos seus antecessores, igualmente respeitável.

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