Elas fizeram a glória do nosso teatro, mas tivemos poucas oportunidades de vê-las na tela. Dulcina apareceu somente em um filme de longa-metragem e Cacilda atuou apenas em dois.
Dulcina de Moraes de Azevedo (1908-1996) veio ao mundo em Valença no Estado do Rio, durante uma excursão pelo Brasil da companhia de Francisco Santos, na qual seus pais, Conchita (nascida em Cuba, filha de pais espanhóis) e Átila de Moraes, trabalhavam. Ela começou sua carreira profissional na Companhia Brasileira de Comédia de Viriato Correia e Niccolino Viggiani, estreando no Teatro Trianon, aos quinze anos de idade, na peça “Travessuras de Berta”, de Antonio Guimarães, em um pequeno papel no segundo ato, suscitando este comentário do crítico Mario Nunes no Jornal do Brasil: “louve-se também a Srta. Dulcina de Moraes, cujas rápidas passagens pela cena evidenciam a sua vocação para o palco”. Na mesma companhia, contracenou em “Zuzu” (o maior sucesso da temporada) com dois futuros monstros sagrados dos palcos brasileiros: Procópio Ferreira e Jaime Costa.
Porém a grande chance ocorreu quando outro ator eminente, Leopoldo Fróes, viu-se em sérias dificuldades para arranjar uma atriz que faria o papel de Jeaninne em “Lua Cheia” de André Birabeau. No seu livro Dulcina e o Teatro de Seu Tempo, Sergio Viotti conta em detalhes como foi o teste da jovem Dulcina diante de Fróes e do ensaiador Eduardo Vieira, e conclui com a percepção dela de que o papel seria seu: “Eu espiei com o rabo de olho, num movimento de cabeça, e vi que o Fróes também estava reagindo ao que eu estava dizendo. Ele estava me ouvindo, Atentíssimo! Vieira aproximou a cabeça da dele. O Fróes, sem desviar os olhos de cima de mim, disse alguma coisa. Dava pra perceber que era aprovação. Era o sinal que eu estava esperando. Que até aquela hora eu estava meio perdida. Aí, eu sentí toda a segurança da vida. Ninguém mais ia me botar medo. Nem nada. Aí começou a leitura das minhas cenas. O elenco já estava familiarizado com o texto. Já haviam feito umas leituras antes, sem mim. Eu dei tudo. Tudo. Me sentí à altura daquelas senhoras elegantes. Como se estivesse bem vestida. Bem vestidísssima. Igualzinha a elas. De chapéu! Não tinha mais jeito. Eu sentí que o papel ia ser meu. Sabia que já era meu. E foi.”
Na sua biografia, As Mil e Uma Vidas de Leopoldo Fróes, Raimundo Magalhães Júnior conta que no jornal A Notícia, o nome de Dulcina chegou a ser colocado acima do de Fróes. Depois de dizer que ele se havia portado admiravelmente em “Lua Cheia”, vinha este período: “A nota de maior êxito, porém, proporcionou-nos a estreante da noite de ontem, senhorita Dulcina de Moraes (Jeaninne), que foi uma verdadeira revelação e vale por uma boa promessa”.
Em 1931, Dulcina casa-se com o mineiro de Santa Rita de Cássia, Odilon Azevedo (1904-1966), filho de um fazendeiro próspero, formado em advocacia, escritor, jornalista que, incentivado por Renato Viana e apresentado a Leopoldo Fróes por Mario Nunes, tornou-se ator. Dulcina e Odilon trabalharam na companhia familiar que Átila de Moraes organizou com seu cunhado (marido de Esther, a irmã caçula de Dulcina), Manuel Durães. Mais tarde, em 1934, essa mesma companhia haveria de se transformar na Cia. Dulcina-Odilon estreando no Rio de Janeiro para inaugurar o Teatro Rival, na rua Alvaro Alvim, com a peça de Oduvaldo Viana “Amor”, um êxito sem precedentes.
Desse momento se inicia a fama de Dulcina, não só por suas qualidades como atriz como também por apresentar-se sempre muito bem vestida em modelos que eram copiados pelas fãs que acorriam aos seus espetáculos. Em 1939, a Companhia transferiu-se do Rival para o Alhambra, da Empresa Serrador, até então cinema e, em breve, Dulcina e Odilon inaugurariam um novo teatro, o Regina, na Rua Alvaro Alvim, que alguns anos comprariam anos após, tornando-o o Teatro Dulcina.
Antes disso, em 1937, o casal viajou para os Estados Unidos, onde teve contato com um teatro de densidade cultural e, ao regressar, começou a planejar mudanças no seu repertório, até então voltado mais para o gosto popular. Animados também pela qualidade das peças apresentadas pelo diretor francês Louis Jouvet, que excursionou pelo Brasil em 1942, Dulcina e Odilon pediram apoio ao governo para a famosa temporada de 1944-45 no Teatro Municipal onde a companhia apresentou “César e Cleopatra” e “Santa Joana” de Bernard Shaw; “Anfitrião 38”, de Jean Giraudoux; “Rainha Vitória” de Lawrence Housman; “O Pirata” de S.N. Behrman e “Chuva” de Somerset Maugham.
Em 1946, realizaram uma temporada em Buenos Aires, integrando um elenco argentino e representando em espanhol. Como recordou Brício de Abreu, em “Esses Populares Tão Desconhecidos”, a crítica e o público consagraram de forma definitiva a nossa grande atriz, que obteve com “Chuva” (o seu maior êxito no Brasil) um dos sucessos maiores de sua carreira. Era a primeira vez que uma atriz brasileira se apresentava em país estrangeiro, representando em uma língua que não era a sua, dominando completamente o público.
De volta à sua pátria, Dulcina e Odilon ainda realizaram várias temporadas de sucesso até que resolveram criar, em 1955, a Fundação Brasileira de Teatro que, com os seus vários cursos e espetáculos, prestaram reais serviços ao nosso teatro. A FBT funcionou primeiramente no prédio do Teatro Dulcina e mais tarde, em 1972, em Brasília, sob a denonimação de Faculdade de Artes Dulcina de Moraes. Em 21 de abril de 1980, foi inaugurado o Teatro Dulcina na nova capital do país.
O único filme de Dulcina, 24 Horas de Sonho, foi exibido na cadeia de cinemas de Luís Severiano Ribeiro, no circuito liderado pelo Cine São Luís, em setembro de 1941. O anúncio do Correio da Manhã dizia: “Uma nova Dulcina! Um Odilon que você ainda não conhece! O par de artistas que o palco já consagrou, agora ainda mais vitoriosos e brilhantes – na tela, em um filme leve, agradável, divertido!”. Entretanto, o filme não obteve aprovação unânime da crítica.
O crítico de A Noite, que assinava R., lamentou: “Na verdade, este filme não representa nada na carreira artística notável da senhora Dulcina de Moraes, que tanto se elevou como intérprete de “Amor”… Não representa nada, não é bem o termo. Representa algo desfavorável, estando abaixo do seu nível de intérprete, de sua categoria de grande comediante da ribalta … 24 Horas de Sonho não é filme, não é teatro, não é cinema, é uma salada, uma mistura inextricável … A culpa máxima é do Sr. Chianca de Garcia, que continua a nos dar coisas características e inexpressivas, sem nenhum valor artístico ou nexo cinematográfico, resolvendo os problemas da película ou por omisssão, ou da maneira mais primária possível”.
A apreciação de Maria Andréia na revista Carioca, foi bastante severa: “Falando de 24 Horas de Sonho, devemos acentuar a grande melhoria do som e da fotografia, em condições muito superiores do que as que já temos visto; os cenários esforçaram-se por ser elegantes e “distingués” e em algumas passagens o conseguiram. O mais desagradável em tudo foi um argumento lamentável: as “24 Horas de Sonho” parecem mais vinte e quatro horas de pesadêlo na imaginação de uma criança. O tema é dos mais explorados: uma criatura que quer suicidar-se e resolve gozar, antes, alguns momentos de prazer; no fim, justamente daquelas últimas horas de vida, encontra o “mocinho” aquele que lhe há de fazer a felicidade da vida inteira. Temos visto isto em todas as variantes que lhe pode dar o cérebro de um escritor que encontra qualquer coisa de mais original. Dulcina julga-se antes num palco que diante de uma câmera e emprega aquelas mesmas mímicas, aquela voz arrastada e aqueles exageros que tanto destoam na arte cinematográfica. Aliás, este é o grande mal do cinema: artistas de teatro que pensam que assim é que se faz cinema, daí provem tudo o que fere o nosso senso artístico e a descrença do público pelo cinema brasileiro”.
O comentarista de Cinearte mostrou-se mais benevolente: “Vale a pena ser visto. É uma boa realização do cinema brasileiro, especialmente na parte técnica. Som, fotografia, ambientes luxuosos, movimentação de “câmera”, exteriores variados, tudo mostra os recursos técnicos de uma realização segura e marcante igualando o filme brasileiro às produções americanas do gênero. Uma coisa porém, não está a altura do progresso obtido e por vezes tenta desvalorisar o filme – o argumento. A história da campeã de suicídios que passa 24 horas de vida luxuosa no Rio, pretende ser moderna no gênero das comédias de Hollywood – mas consegue ser apenas artificial dando ao filme uma certa frieza. Assim mesmo há efeitos cômicos interessantes, como o “tratamento” pelo lado da fantasia – mas quando o argumento tem intenções dramáticas levadas a sério pela direção, o filme não convence … Dulcina está feliz na sua estréia; adapta-se ao cinema, revelando personalidade boa para os filmes, leve, desembaraçada, juvenil e, muito expontânea, principalmente na cenas cômicas”.
Graças a Sra. Alice Gonzaga, podemos ver o filme hoje e, na minha opinião, ele tem os seus méritos. A história diz respeito a uma moça, Clarice (Dulcina), que tem a mania de suicídio. Já havia tentando matar-se 43 vezes, sem sucesso. Conhece um motorista de taxi, Cícero (Aristóteles Pena), que tenta demovê-la da idéia, mas ela continua firme no seu propósito de suicidar-se. Cícero propõe a Clarice que passe suas últimas 24 horas realizando todos os seus sonhos, como hospedar-se no Copacabana Palace, encomendar roupas caras e fazer-se passar por uma baronesa. Tudo caminha bem até que aparece Roberto (Odilon), um empregado do hotel, por quem ela se apaixona.
Essa imitação das comédias românticas norte-americanas não tem o mesmo brilho das suas congêneres de Hollywood, mas a meu ver é uma produção digna de respeito com um argumento (de Joracy Camargo) interessante e divertido, uma técnica razoável dentro das possibilidades dos nossos estúdios na época, interpretações corretas (distinguindo-se Dulcina, que está muito a vontade diante das câmeras) e, quanto à direção de Chianca de Garcia, se ele não foi tão feliz com relação principalmente ao ritmo, como no seu filme português A Aldeia da Roupa Branca, também não merece desprezo.
Conforme nos informa Lécio Augusto Ramos no seu verbete sobre Dulcina na Enciclopédia do Cinema Brasileiro (org. Fernão Ramos, Luiz Felipe Miranda, Senac, 2004), antes de 24 Horas de Sonho, Dulcina havia tido duas experiências com o cinema. Em 1935, participou de testes de câmera na Cinédia para o elenco do projeto Canção da Felicidade, baseada na peça de sucesso de Oduvaldo Viana, que acabou não se concretizando. Em 1937, depois da viagem que fizeram a Terra do Cinema, Dulcina e Odilon resolveram produzir a peça “Hollywood”, sobre a decadência de uma grande estrela do cinema americano. Decidiram então incluir um pequeno curta-metragem para ambientar a peça, mostrando um dos antigos sucessos da atriz. Intitulado A Mulher que Passa, o filme curto foi realizado na Cinédia (dirigido por Adhemar Gonzaga e fotografado por Edgar Brasil), tendo Dulcina contracenando com o ator Mario Salaberry.
Cacilda Becker Iaconis (1921-1969) nasceu em Pirassununga, São Paulo – filha de um caixeiro-viajante descendente de imigrantes italianos calabrêses, Edmundo Radamés Iaconis e de Alzira Leonor Becker com ascendência alemã na Saxônia – tendo sido registrada no Cartório do Registro Civil como Yaconis pelo pai, que optou pelo Y no sobrenome. Em 1927, a família mudou-se para São Paulo, e foi então que, após onze anos de desacêrtos conjugais, Edmundo abandonou a família para viver com outra mulher e embarcou esposa e três filhas (Cacilda e sua irmãs Dirce e Cleyde) de volta para Pirassununga.
Em 1930, sete meses depois do retorno à cidade natal, Cacilda subiu pela primeira na vida em um palco durante o Festival da Escola de Instrução Militar, que contava com a participação de estudantes normalistas e de crianças “encantadoras, entre as quais ela (aos oito anos de idade) se incluia. Como relata Luís André do Prado na sua excelente biografia, “Cacilda Becker fúria santa”, de onde colhí a maior parte dos dados sobre a grande atriz, o bailado apresentado por Cidinha (a música era Canção do Amor Pagão), foi o ponto máximo do festival. Um repórter profetizou: “Esta menina na arte coreográfica, será uma grande artista”.
Passado algum tempo, a mãe de Cacilda tornou-se professora do Estado, começando a lecionar em uma escola rural em São Simão, perto de Pirassununga, tendo sido depois transferida em 1932 para o Grupo Escolar de São Vicente no município do mesmo nome vizinho à cidade de Santos. Em 1933, Cacilda prestou exame de admissão para o curso ginasial na Associação Instrutiva José Bonifácio (escola particular e “mista”) onde, com o incentivo de sua professora de música, dona Oraida Amaral, na festa de encerramento do ano de 1935, ela dançou A Dança Ritual do Fogo de Manuel de Falla, causando tal sensação, que a direção do colégio ofereceu gratuitamente o curso todo de Cacilda e das suas irmãs. Esta apresentação amadora foi, pode-se dizer, o início da ascensão da estrelinha Cacilda Becker em sua curta carreira de bailarina em Santos, que duraria de fins de 1935 a 1940, tendo sempre a Dança Ritual do Fogo como carro-chefe.
Após ter concluído o curso de normalista, Cacilda apenas deu aulas até que, com o apoio de Miroel Silveira, que se tornara seu amigo e incentivador, conseguiu fazer um teste de atriz no Teatro do Estudante do Brasil (TEB), então orientado pela escritora Maria Jacinta, em substituição a Paschoal Carlos Magno, que retornara a Londres para assumir o consulado de Liverpool. Maria Jacintha confiara a Miroel a tradução de um texto que pretendia encenar, e ele aproveitou para indicar Cacilda para um teste de atriz, pois estava certo de que a carreira de bailarina da amiga não tinha futuro.
A estréia de Cacilda no palco foi em 1941 na peça “3.200 Metros de Altitude”, de Julien Luchaire, sob os auspícios do Serviço Nacional de Teatro – SNT, no Teatro Ginástico. Ela acabou fazendo também uma substituição de última hora no elenco de “Dias Felizes” de Claude-André Puget, apresentada na inauguração do novo palco do Fluminense Football Clube, recebendo calorosos elogios e um vaticínio promissor por parte de Raimundo Magalhães Junior: “Possuindo uma bela figura, uma dicção clara, expressiva, com verdadeira virtuosidade interpretativa, essa jovem estreante pode ser aproveitada com brilho em qualquer dos nossos elencos profissionais, pois se mostrará à altura das responsabilidades que lhe foram confiadas”.
Após sua estréia brilhante, Cacilda recebeu duas propostas. Dulcina e Odilon ofereceram-lhe um papel em “Nunca me deixarás” de Margaret Kennedy enquanto Raul Roulien lhe propunha outro em “Prometo ser Infiel” de Dario Niccodemi (ambos os títulos traduzidos dos originais). Seguindo orientação de Miroel Silveira, Cacilda optou pela companhia Dulcina-Odilon; porém depois, percebendo a pouca chance que teria de aparecer dividindo um palco com Dulcina, ela repentinamente abandonou os ensaios de “Nunca me Deixarás”, para se juntar ao elenco de “Prometo Ser Infiel, cuja atriz principal era Laura Suarez
Depois de trabalhar um certo tempo na Companhia de Comédias Íntimas de Roulien, Cacilda ingressou, em 1943, no Grupo Universitário de Teatro- GUT. Em 1944, foi para a Companhia de Comédias de Bibi Ferreira. Em 1945, voltou para o GUT. Em 1947, colaborou com Os Comediantes na remontagem do “Vestido de Noiva” de Nelson Rodrigues e em outras peças dirigidas por Zigmunt Turkov e Ziembinski. No mesmo ano, participou de uma festa comemorativa da existência do Teatro Experimental do Negro – TEN, aparecendo em uma cena de Otelo de Shakespeare, ela como Desdêmona e Abdias do Nascimento como o Mouro de Veneza. Na festa do TEN, Cacilda reencontrou Miroel Silveira, agora à frente do grupo Os V Comediantes, no qual ela se integrou, participando, em 1947, da terceira remontagem de “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues, que eu gostaria muito de ter visto, pois nela, além de Cacilda (Lúcia) estavam também Maria Della Costa (Alaíde) e Olga Navarro (Madame Clessi). Em 1948, protagoniza “A Mulher do Próximo” de Abílio Pereira de Almeida, um dos espetáculos inaugurais do Teatro Brasileiro de Comédia – TBC em sua fase amadora. Entre 1949 e 1955, Cacilda esteve presente em quase todas as montagens do TBC, destacando-se “Entre Quatro Paredes”, de Jean Paul Sartre (que trinca: Cacilda, Nydia Lícia, Sergio Cardoso!), “Pega-Fogo” de Jules Renard, “Seis Personagens à Procura de um Autor” de Luigi Pirandello e “Maria Stuart”de Schiller.
Em 1953, ela trabalhou na televisão no teleteatro intitulado Teatro Cacilda Becker, estreando com “A Dama das Camélias”. Em 1957, despede-se do TBC e funda com Walmor Chagas, Cleyde Yaconis e Fredi Kleemann, o Teatro Cacilda Becker – TCB, onde encantou o público em “Jornada de um Longo Dia para Dentro da Noite”, de Eugene O’Neill, “A Visita da velha Senhora”, de F. Dürrenmat, “Quem Tem Medo de Virginia Woolf? “, de Edward Albee, “Entre Quatro Paredes”, de Jean-Paul Sartre (que trinca: Cacilda, Nydia Lícia e Sergio Cardoso!) e outros belos espetáculos. Em 1969, durante uma sessão de “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, a atriz sofreu um derrame cerebral, e faleceu 38 dias depois aos 48 anos de idade.
Foi Celso Guimarães, o famoso locutor e rádio-ator da Rádio Nacional, que comunicou por um telefonema a Cacilda que a Atlântida Cinematográfica estava interessada em tê-la como protagonista de sua nova produção, Luz dos Meus Olhos. O filme conta a história de um pianista cego, Roberto (Celso Guimarães), que vive como afinador de piano. Um dia, ao atravessar uma rua, encontra-se com um moleque chamado Basilio (Grande Otelo), que se prontifica a acompanhá-lo como seu guia. Auxiliando-se mutuamente, nasce entre ambos uma forte amizade. Certa tarde, chamado para afinar um piano em uma residência, ao dedilhar as primeiras notas de sua canção predileta, Luz dos meus Olhos, a filha da sua cliente, Suzana (Cacilda Becker), ao ouví-la do seu quarto, reconhece imediatamente a melodia, que fora composta para ela por Renato, no tempo em que estudavam em uma academia de música. Em retrospectos, o espectador fica sabendo que os dois se estimavam muito, mas o amor não vingara porque, ao sentir os sintomas de cegueira, Renato se afastara da moça. De volta ao presente, descobrimos que Suzana está noiva. O guia tenta bancar o cupido, mas quem afinal reaproxima Roberto de Suzana é o próprio rival, que rompe com a noiva, ao perceber que ela gosta mesmo é de Roberto.
Luz dos Meus Olhos chegou às telas em setembro de 1947, recebendo pouco apoio da crítica e do público. Cumpriu o período obrigatório de exibição para filmes brasileiros e saiu de cartaz. Originalmente o filme tinha cem minutos de duração, mas seu master foi perdido durante um incêndio que destruiu quase todo o acervo da Atlântida e hoje só restam dele 58 minutos em cópia de 16mm.
Jonald em A Noite comentou: “O ponto alto do conjunto, que merece citação em primeiro lugar, é o desempenho de Grande Otelo. Possuindo qualidades natas para o sentido cinematográfico, atua de maneira espontânea e natural, chegando, por vezes, a entusiasmar… Não há dúvida alguma de que Celso Guimarães e Cacilda Becker, respectivamente nos meios radiofônico e teatral, têm provado seus merecimentos. Neste celulóide, apesar de Celso ter momentos bens razoáveis, há outros em que trai – particularmente pela inflexão da voz – a ascendência do rádio. Sente-se também que faltou melhor direção, pois defeitos mais acentuados são encontrados em Cacilda, além do mais, pouco fotogênica … O cenário, de autoria de Paulo Wanderley, revela uma série de concepções interessantes, algumas aproveitadas pelo diretor e outras não … Considerada em conjunto, a direção é nítidamente arrastada, alternando momentos aceitáveis com outros que deixam a desejar”. Mais adiante, Jonald faz restrições à parte técnica, apontando falhas na iluminação e a presença de algo mais de meia dúzia de sombras de microfone, em movimento, no fundo das cenas, e conclui: “Considerada em conjunto, a direção é nitidamente arrastada, alternando momentos aceitáveis com outros que deixam a desejar”.
Moniz Viana escreveu no Correio da Manhã: “O que Luz dos Meus Olhos põe em evidência – e não é o primeiro, nem será o último a fazê-lo – é a falta de conhecimento cinematográfico que vem caracterizando quase todos os filmes do Brasil”. Porém Moniz fez uma ressalva em favor da nova estrela da tela: “A estreante Cacilda Becker vai melhor que qualquer veterano, parecendo um elemento bem aproveitável. Com um diretor mais diligente, teria, é fora de dúvida, se sobressaído mais”.
Só pude ver o filme em uma versão reduzida, mas deu para notar a pobreza técnica e a má continuidade (as sequências são cortadas de um modo brusco) dessa imitação de melodrama mexicano mas, em compensação, a ótima performance de Grande Otelo, o melhor de todos em cena por sua extroversão e talento humorístico (v. g. a imitação que ele faz de uma cantora portuguêsa) e a beleza da valsa-tema composta pelo diretor José Carlos Burle, interpretada por Silvio Caldas (e depois gravada por Jorge Goulart). Quanto a Cacilda, não vislumbrei nenhum defeito na sua interpretação e concordo totalmente com as impressões de Moniz Viana.
Lançado em outubro de 1954, Floradas na Serra, com roteiro de Fábio Carpi baseado no romance de Dinah Silveira de Queirós e direção de Luciano Salce, foi o derradeiro filme da Companhia Cinematográfica Vera Cruz que, atolada em dívidas, fecharia suas portas logo em seguida. Reproduzo a seguir alguns trechos dos comentários de quatro críticos de cinema importantes, que escreviam na época.
Decio Vieira Ottoni (Diário Carioca): “Floradas na Serra (Vera Cruz, Colúmbia) a última, a menos sensacional e a melhor produção da falecida companhia de São Bernardo do Campo continua em cartaz esta semana num grupo de cinemas de segunda categoria, valendo o sacrifício por ser a obra que melhor caracteriza as possibilidades do filme nacional até agora. É um filme tecnicamente limpo, desenvolve uma situação dramática fundada num fato social de estreita correspondência com a realidade. Sua narrativa, segura e econômica, não exibe as incorreções contundentes da maioria das fitas brasileiras … O que o filme extraído do romance de Dinah Silveira de Queirós mostra, além dos seus melhores antecessores, é uma interpretação segura no seu conjunto, a objetividade da linguagem e, principalmente, a extraordinária interpretação de Cacilda Becker, que produz o mais sensível e inteligente desempenho de um atorno cinema brasileiro desde que se faz cinema no Brasil …
Moniz Viana (Correio da Manhã): “Floradas na Serra supera em qualidades técnicas (e morais) as outras fitas que saíram de São Bernardo do Campo: os Caiçaras e as Apassionatas, as Sinhás Moças e os Tico-Ticos, que são cavalcantices, lusitanismos ou napolitanadas. Só fica atrás – e, convém frisar, muito atrás – de O Cangaceiro ... A direção de Luciano Salce, com a atenuante de não ter tido o realizador um bom script, é satisfatória, em termos de cinema brasileiro. Falta a Salce o lampejo do cineasta, que pode acontecer em qualquer lugar, até mesmo no Brasil, onde surgiu um Lima Barreto. Mas o desempenho de Cacilda, superando todas as debilidades , é tão firme que se tem a impressão de que ela exerceu também certa influência na direção da fita”.
Hugo Barcelos (Diário de Notícias): “Envolta num enredo confuso, que os cenaristas colheram no romance de Dinah Silveira de Queirós, em falsas bases do melodrama sentimental, Cacilda Becker opera o milagre de uma “performance”, fenômeno até agora desconhecido no cine pátrio … Floradas na Serra desenvolve-se em um sanatório de Campos do Jordão, onde se cruzam os caminhos de Miro Cerni (o médico), Cacilda, Jardel, Ilka Soares e outros enfermos. A tuberculose é o pretexto para o tema: o amor de Cacilda e Jardel. Enquanto este, atacado pela doença, observa as prescrições do doutor Cerni e, como os demais, tem pavor da morte, a fita, apesar de modesta em sua expressão, adquire certa densidade dramática. Mas quando Jardel consegue alta, e despreza o amor de Cacilda, depois de terem coabitado sob o lema “o nosso amor e uma choupana”, Floradas na Serra encarreira-se, decididamente, na trilha dos dramalhões.
Ely Azeredo (Tribuna da Imprensa): “Floradas na Serra, a 18ª produção da Vera Cruz, tem uma história acidentada. Após a filmagem dos “exteriores” em Campos do Jordão, veio a público a longamente prevista crise da emprêsa. Por falta de capital, durante cêrca de seis meses, permaneceram erguidos e desertos os cenários construídos no estúdio. E, quando terminadas as filmagens, por obra e graça do apoio oficial, nada mais se ergueu em São Bernardo. Não conhecemos o romance de Dinah Silveira de Queirós, mas, a julgar por opiniões fidedignas, inúmeras modificações viscerais feitas por Fabio Carpi foram indispensáveis e habilidosas. Carpi dotou a história de uma espinha dorsal: Lucília (Cacilda Becker) a moça rica que procura refúgio e paz de espírito na quietude de Campos do Jordão e, numa visita de rotina ao médico (Miro Cerni), descobre que está tuberculosa. Faminta de vida, hiper-sensível, Lucilia negligência o tratamento, e caminha inexoravelmente para o fim. Elza (Ilka Soares), que narra no livro o caso de Lucília, é reduzida a figura secundária, no script. A narrativa da escritora, que era fragmentada, recebeu uma base uniforme na Lucília cinematográfica, ao redor da qual giram as demais personagens. A figura número dois é Bruno (Jardel Filho), doente pobre e amargurado, que pretende reunir em um romance todos os seus ressentimentos contra a sociedade. Sob os cuidados e o amor de Lucília, ele caminha rapidamente para a cura. Paralelamente, a doença da moça leva a melhor. E o conflito resultante dá ao filme o final trágico – coerente com a linha nervosa e amarga adotada por Carpi e Luciano Salce. A concentração no caso Lucília-Bruno transforma o filme num drama amargo, sem perder os principais ingredientes do romance, que eram a nostalgia e o sentimentalismo”.
Em outra edição do jornal, Ely Azeredo continua a sua crítica: “É em Floradas na Serra, o último filme da Vera Cruz, que a equipe dessa emprêsa manifesta, pela primeira vez, perfeita identidade de movimentos. Nem em O Cangaceiro (que não aceita comparação com qualquer outro filme de nosso “falado”) teve a unidade interpretativa e narrativa da fita de Carpi e Salce. Valendo-se de sua experiência teatral na direção de atores e da sensibilidade do fotógrafo Ray Sturgess e do montador Haffenrichter, Salce fez um filme que domina de ponta a ponta o espectador, apesar da debilidade da história … A sensibilidade de Ray Sturgess, dá-nos uma perfeita fotografia de serra: a impressão de ar puro e leve; o isolamento de um dia chuvoso; a neblina; a beleza da paisagem que desperta o desejo de viver na heroina condenada à morte … Mas de nada adiantariam os esforços da equipe, se a fita não tivesse em Cacilda Becker mais que sua espinha dorsal, sua alma, sua razão de ser”.
A meu ver, Floradas na Serra é um filme com boa direção, interpretações razoáveis – salvo a de Cacilda Becker, que está irrepreensível – e desenvolvimento narrativo sucinto e fluente (Oswald Hafenrichter – montador de O Terceiro Homem / The Third Man / 1949 de Orson Welles – como chefe da edição e Mauro Alice como montador). A música de Enrico Simonetti é atraente e funcional. A fotografia de Ray Sturgess (que era operador de câmera na Inglaterra, inclusive em Hamlet / Hamlet / 1948 de Laurence Olivier) aproveita muito bem em preto e branco a beleza da paisagem natural de Campos do Jordão. Os diálogos são econômicos, mas às vêzes têm arroubos de “filosofia” (v. g. “Os pobres quando são doentes e adultos deveriam morrer”). Entre os momentos mais inspirados da encenação destaco: a da visita obrigatória de controle de Lucília ao consultório do Dr. Celso; a corrida de Lucília e Bruno em vão para pegar o trem e o desmaio dela; o reencontro “por engano” de Lucília e Bruno no leito dele no hospital; a comemoração no Ano Novo à luz das velinhas do bolo, enquanto ouvimos os gritos de Olga (Lola Brah) conduzida à força para o sanatório; a festa de aniversário com o jôgo das cadeiras, a irritação ciumenta de Lucília ao ver Bruno flertando com a noiva (Silvia Fernanda) do médico e a morte de Belinha (Gilda Nery); Lucília e Bruno brigando na cabana e depois ela saindo correndo pelas colinas até desmaiar; a ambulância que leva Lucília cruzando-se com o trem que leva Bruno, já curado, para outro lugar – um belo final, acentuado pela melodiosa partitura de Simonetti.
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