Arquivo mensais:julho 2018

O CINEMA DE ELIA KAZAN III

Produzido com orçamento modesto pela companhia recém-fundada por Kazan, a Newtown Productions, o filme, Boneca de Carne / Baby Doll / 1956 – com roteiro escrito por Tennessee Williams partindo da reunião de duas peças suas em um ato (e inéditas), “27 Wagons Full of Cotton” e ‘The Long Stay Shot Cut” -, é essencialmente uma farsa com enredo original, envolvendo quatro tipos grotescos.

Na cidade de Benoit, Mississippi, em uma mansão em decadência, com seus cômodos imensos prestes a serem esvaziados pelos credores, vivem a tia Rose Comfort (Mildred Dunnock), velha surda e meio débil mental (que cozinha em troca do alojamento e visita doentes nos hospitais com o propósito de comer bombons de cereja), o outrora próspero agricultor de meia-idade estúpido e fanfarrão Archie Lee Meighan (Karl Malden) e sua esposa, Baby Doll (Carroll Baker), ninfeta loura menor de idade, que ainda dorme em um berço e chupa o dedo. Archie prometeu ao falecido pai de Baby Doll que instalaria sua filha na então melhor residência do condado e aguardaria o vigésimo aniversário dela para consumar o casamento. Enquanto isso, o marido frustrado tem que se contentar em espiá-la através de um buraco na parede do seu quarto de dormir. Seu acordo conjugal é um pretenso segredo por todos sabido e os habitantes do local, inclusive os negros, não têm como deixar de rir em silêncio sempre que o casal passa diante deles. Quando o sindicato algodoeiro administrado pelo imigrante siciliano Silva Vaccaro (Eli Wallach) centraliza todo o trabalho de descaroçamento do algodão antes confiado a Archie, ele, desesperado, põe fogo nas instalações do sindicato. No dia seguinte, Vaccaro é obrigado a trazer seu algodão para a velha máquina descaroçadora de Archie. Desconfiado de sua culpabilidade, Vaccaro, aproveita a ausência de Archer e, jogando inteligentemente com o temperamento infantil e a sexualidade reprimida de Baby Doll, consegue um depoimento escrito dela sobre o crime do marido. Depois, comove-se com a situação da moça e resolve libertá-la de seu marido. Após uma correria louca em uma brincadeira de esconde-esconde pela mansão atrás de Baby Doll, Vaccaro adormece, exausto, no seu berço. Quando Archer chega, Vaccaro leva-o a entender que ele possuiu Baby Doll – esta é a sua vingança. Armado de um fusil, Archie persegue Vaccaro pelo jardim. O xerife chega, e leva Archie preso. Vacarro parte, prometendo voltar no dia seguinte trazendo mais algodão. Baby Doll fica sozinha com sua tia Rose, e só lhe resta aguardar o dia de amanhã “para saber se serão lembradas ou esquecidas”

Caroll Baker em Boneca de Carne

 

Em boa parte do espetáculo a ação do filme é teatral com longas passagens nas quais os personagens falam muito e são enquadrados pela câmera em planos fechados, (v. g. a cena de alto teor erótico no balanço), embora os diálogos atraiam o nosso interesse pela qualidade da prosa de Tennessee Williams e esses trechos mais lentos não chegam a prejudicar o fluxo rítmico das imagens. Kazan filmou em locação, aproveitando muitos dos habitantes locais como extras inclusive alguns membros da população negra, que foram usados como uma espécie de côro, debochando do comportamento ridículo dos brancos. As ruínas sórdidas do esplendor do passado na zona algodoeira do Sul dos Estados Unidos, reproduzidas pela fotografia depressiva de Boris Kaufman, servem de pano de fundo perfeito para o desenrolar da história.

Caroll Baker e Eli Wallach em Boneca de Carne

Caroll Baker, Karl Malden e Eli Wallach em Boneca de Carne

Filmagem de Boneca de Carne (foto cedida por Sergio Leemann do seu Instagram A Certain Cinema)

Apesar de ter recebido indicações para o Oscar (Carroll Baker, Mildred Dunnock, Tennesse Williams, Boris Kaufman) as receitas do filme foram apenas razoáveis, provavelmente devido à censura da Legião da Decência e do Cardeal Spellman de Nova York. O cardeal na verdade não viu o filme. Foi o anúncio gigantesco na Times Square mostrando Carroll Baker de “baby doll” deitada no berço e chupando o dedo que provocou sua indignação.

Formando parceria de novo com o roteirista Budd Schulberg em Um Rosto na Multidão / 1957, Elia Kazan volta com uma temática social muito explícita: o problema da presença da televisão que começava a se generalizar como comunicação de massa na sociedade americana no início dos anos cinquenta.

Na pequena cidade de Pickett no Arkansas, Marcia Jeffries (Patricia Neal), jornalista que trabalha com seu tio, J. B. Jeffries (Howard Smith), proprietário de uma estação de rádio local, em uma série de reportagens intitulada “Um Rosto na Multidão”, descobre em uma prisão Larry Rhodes (Andy Griffith), um matuto tocador de guitarra, tagarela e insolente, preso por embriaguês em via pública. Marcia batiza-o de “Lonesome Rhodes” e, quando ele é sôlto, lhe arranja emprego na rádio de seu tio. Rhodes acompanha sua canções com comentários humorísticos e uma filosofia simplista, que logo conquistam os ouvintes. Com o tempo, este homem do campo carismático percebe a influência que tem sobre as pessoas (v. g. ele convida seus ouvintes a levar seus cachorros à presença do xerife que lhe é antipático, e logo este se vê cercado pela cachorrada; ele aconselha as crianças a irem se banhar na piscina particular do tio de Marcia, e logo toda a meninada da cidade está invadindo sua propriedade). Revelando-se como exímio comunicador de massas, Rhodes é convidado para atuar em uma emissora de televisão da cidade de Memphis. Ele aceita, e aproveita para fazer uma coleta, que faz grande sucesso, em benefício de uma mãe de família negra necessitada (o que não era necessariamente verdade). Sob orientação de Joey de Palma (Anthony Franciosa), espertalhão que se improvisa como seu empresário, e já em âmbito nacional, Rhodes promove com enorme êxito a campanha de publicidade das pílulas Vitajex e se torna o protegido de uma eminência parda da política, o general reacionário Haynesworth (Percy Waram). Rhodes pede Marcia em casamento. Ela hesita, e fica sabendo mais tarde que ele já é casado. Rhodes se considera legalmente divorciado no México e se casa com Betty Lou Fleckum (Lee Remick), jovem de dezessete anos, que conheceu e favoreceu em um concurso de balizas (ela o trairá com Joey). Marcia exige então a metade dos ganhos de Rhodes, pois foi ela que o “descobriu”. Impulsionado por Haynesworth, Rhodes assume a campanha e tenta melhorar a imagem de Worthington Fuller (Marshal Neilan, famoso diretor do cinema mudo), um senador obscuo candidato à Presidência dos Estados Unidos. Quando Marcia fica sabendo que Rhodes será gratificado com um ministério da “Moralidade Pública”, ela julga necessário interromper a ascenção irresistível do seu falso simplório e arrivista. No final de uma emissão gravada ao vivo, quando passam os créditos, Marcia deixa o som ligado e os telespectadores escutam com sobressalto e indignação as opiniões cínicas e desprezíveis que Rhodes tem do seu público. Enquanto ele desce de elevador os 42 andares da sede da emissora, sua carreira está definitivamente enterrada. Retornando ao seu apartamento no alto de um arranha céu, Rhodes ameaça se suicidar, saltando pela janela, mas Marcia o deixa sozinho, arrasado, gritando seu nome. Lá em baixo, ela parte com seu amigo Mel Miller (Walter Matthau), jornalista e roteirista da televisão, que desde cedo desconfiou do mau caráter de Rhodes

Andy Griffith e Patricia Neal em Um Rosto na Multidão

Anthony Franciosa, Andy Griffith e Patricia Neal em Um Rosto na Multidão

Elia Kazan conversa com Patricia Neal e Andy Griffith na filmagem de Um Rosto na Multidão

Para os autores Kazan / Schulberg o poder manipulativo da televisão é uma ameaça social óbvia e eles ressaltaram muito bem este aspecto da trajetória fulgurante de Lonesome Rhodes. O filme é ainda uma sátira extremamente virulenta da vida americana e os instintos gregários do americano médio. Basta que um desocupado bêbado e sem cultura (mas não sem malícia) entre no ar, para que se torne o ídolo de milhares de pessoas. Kazan não se restringe ao combate da máquina toda poderosa da televisão. Sua câmera (apoiada na direção de fotografia de Harry Stradling), que nunca esteve tão móvel, multiplica imagens sugestivas da força (e às vêzes emprego caricato ou histérico) da publicidade e sua cumplicidade com a política. Mas há ainda um aspecto íntimo: o problema de uma mulher e sua consciência: quando Marcia percebe que sua criação se tornou uma influência corruptora, ela admite sua responsabilidade e, figurativamente, o mata. Em uma surpreendente estréia no cinema, Andy Griffith nos oferece uma performance hipnótica como o joão ninguém truculento, que ascende meteoricamente, conhece a glória, e a perde brutalmente.

 

Em 1960, Kazan realiza Rio Violento / The Wild River, que tem novamente por cenário o Sul dos Estados Unidos, e se desenrola nos anos trinta quando, diante das devastações causadas pelas enchentes do Rio Tennessee, o Congresso Americano autorizou o governo a comprar as terras às margens do rio, para construção de uma série de represas. Um agente federal, o engenheiro Chuck Glover (Montgomery Clift), tem a díficil missão de desalojar Elia Garth (Jo Van Fleet), ocotogenária que vive em uma ilha com sua família e seus operários agrícolas negros. Na primeira visita, ela lhe dá as costas, sai da varanda de sua velha casa e fecha a porta. Depois, Chuck sofre os maus tratos de seus filhos e, em uma segunda visita a anciã lhe diz que existe um plano do presidente Roosevelt (o New Deal) para prejudicar os pequenos latifundiários. Chuck sofre oposição também por parte de outros proprietários locais, quando contrata os negros da ilha para trabalhar nas obras, concedendo-lhes o mesmo salário pago aos brancos. Um deles o procura no seu quarto de hotel, para lhe cobrar o que gastou por ter contratado um negro para um trabalho extra, e depois o espanca. Chuck não dá queixa ao xerife, e passa a procurar uma nova morada para Elia. Ele conhece sua neta Carol (Lee Remick), jovem viúva e mãe de duas crianças. Pela primeira vez Carol retorna em companhia de Chuck à casa que ela habitava com seu falecido marido. Ela espera convencer sua avó a ir viver alí em sua companhia. Uma noite, alguns homens chegam à residência de Carol: uns sobem no telhado e começam a dançar, outros viram o carro de Chuck e alguém até dispara um tiro de fusil. O sujeito que o agrediu no hotel ataca-o novamente, e agride também Carol. Após este incidente, Chuck casa-se com Carol. Finalmente, uma delegacão conduzida pelo xerife conduz Elia para a sua nova morada, e ela morre pouco depois. Após seu enterro, Chuck, Carol e seus dois filhos deixam a região. Do avião, eles lançam um último olhar sobre a ilha, que vai ser engolida pelas águas.

A travessia de balsa em Rio Violento

Cena de Rio Violento

Lee Remick e Montgomery Clift em Rio Violento

 

O tema desse drama rural escrito por Paul Osborne com base nos romances “Dunbar’s Cove” de Borden Deal e “Mud on the Stars” de William Bradford Huie é basicamente o confronto entre o interesse coletivo e o individualismo. O enfrentamento entre o expropriador bem intencionado e a idosa recalcitrante que ele deve expulsar é uma metáfora entre o progresso e o apego à terra. Kazan não toma partido, pois na verdade ambas as partes têm suas próprias e válidas razões (e, apesar de sua convicção de que está fazendo um bem, Chuck sente uma profunda empatia por aquela mulher obstinada). Além de ter que lidar com uma pessoa cheia de dignidade e orgulho, Chuck tem ainda de encarar o racismo tradicional da população branca contra os direitos dos negros. No meio desses conflitos nasce o amor que o une a Carol.

Jo Van Fleet em Rio Violento

Montgomery Clift e Jo Van Fleet em Rio Violento

Montgomery Clift e Lee Remick em Rio Violento

O cineasta trata o assunto com um lirismo certamente inspirado pela natureza selvagem (belíssimamente focalizada em cores e CinemaScope pelas lentes de Elsworth Fredericks), onde transcorre a trama e que tem uma relação profunda com os personagens (a personagem de Elia e o rio antes das represas são uma coisa só, formam uma única entidade). Jo Van Fleet, artificialmente envelhecida, é uma Elia Garth inesquecível. Kazan revelaria na sua autobiografia, Elia Kazan: A Live (Da Capo, 1997), que Jo entrava na sala de maquilagem às quatro horas da manhã e ficava cinco horas se transformando em uma matriarca indomável do campo. Mesmo nos dias em que ele lhe dizia que não ia chegar perto dela com a câmera, ela passava uma hora aplicando as manchas de uma senhora de oitenta anos nas costas de suas mãos. “Jo”, eu dizia, “Não vamos fotografar suas mãos hoje. Aproveita para ganhar mais uma hora de sono”. “Isto não é para a câmera”, ela respondia: “É para mim”.

Resultado de uma perfeito entendimento entre Kazan e o escritor e roteirista William Inge, Clamor do Sexo / Splendor in the Grass / 1961 é um melodrama com uma análise límpida da sociedade puritana e arrivista no final dos anos vinte e início dos anos trinta. O título original “Splendor in the Grass” provém de parte de um poema de William Wordsworth, “Ode: Intimations of Immortality”, que diz notadamente o seguinte: “Embora nada possa devolver os momentos de esplendor na relva, de glória nas flores, jamais sofreremos, ao contrário, encontraremos força no que ficou para trás”.

Natalie Wood e Warren Beatty em Clamor do Sexo

Em uma pequena cidade do Kansas no final dos anos vinte, dois estudantes da escola secundária, Wilma Dean Loomis (Natalie Wood) e Bud Samper (Warren Beatty), se apaixonam. O pai de Bud, Ace (Pat Hingle), capitalista poderoso da indústria petrólifera, aconselha seu filho a não pensar em casamento, antes de se formar na Universidade de Yale. A mãe de Wilma (Audrey Christie), casada com um farmacêutico, pequeno acionista, é uma mulher despótica que, orientada pela moral rígida da época, adverte sua filha sobre os perigos do desejo carnal. Impedidos de consumar seu amor, sexualmente ou através do matrimônio, os jovens põem fim ao seu relacionamento. Para Bud isto significa um choque físico e emocional e, após ser acometido de pneumonia, ele se envolve com Juanita (Jan Norris), a garota mais permissiva da escola. De coração partido, Wilma se oferece a Bud, mas ele recusa, dizendo que ela é boa demais para se entregar a um homem antes de se casar. Depois de ter tentado se matar, Wilma sofre um colapso mental, e é internada em uma clínica de repouso para tratamento psiquiátrico. À medida que o tempo passa, nova tragédia abala Bud: sua irmã promíscua Ginny (Barbara Loden) morre em um acidente de carro e seu pai, cujo negócio foi abalado pela crise de 1929, comete suicídio. Bud deixa Yale depois de ter sido reprovado em quase todas as matérias e se casa com uma jovem italiana Angelina (Zohra Lampert), cujos pais são donos de um restaurante, depois de engravidá-la. Quando Wilma recebe alta do sanatório, um outro paciente, Johnny Masterson (Charles Robinson), pede-a em casamento, e lhe oferece a chance de uma nova vida. Antes de aceitar esta proposta, Wilma sente que tem que ver Bud mais uma vez. Ela o visita na sua pequena fazenda e eles percebem que são quase estranhos e que o passado deve ser enterrado.

Cena de Clamor do Sexo

Nesta crônica de um amor contrariado, Kazan traça um retrato amargo da intolerância e da hipocrisia na sociedade americana no período em que transcorre a ação, mostrando a repressão da sexualidade e a triste resignação de dois jovens apaixonados, depois das desilusões violentas e das vicissitudes físicas que sofreram. Uma melancolia perturbadora envolve progressivamente a narrativa e a sequência final é de uma tristeza tocante. A partida de Wilma de carro deixando para trás Bud provoca uma dor no nosso coração, é como se presenciássemos uma morte, a morte do tempo pretérito que não volta jamais

Cena na escola em Clamor do Sexo

Barbara Loden e Warren Beatty vem Clamor do Sexo

Visualmente o filme é soberbo, seja pela qualidade da imagem (Boris Kaufman), seja pela reconstituição de época, seja pela direção de Kazan, que soube captar o modo de viver naquele momento em que os valores materiais predominavam sobre a realização pessoal. A produção ocasionou um Oscar de Melhor História e Roteiro Original para William Inge e a indicação de Melhor Atriz para Natalie Wood.

Kazan, Warren Beatty e Natalie Wood em Clamor do Sexo

Terra de um Sonho Distante / América, América / 1963, é uma crônica familiar, em grande parte autobiográfica, inspirada na vida do tio de Kazan, Avroni Kazanjoglous, cuja odisséia em busca da terra prometida é mostrada em um longo relato (168   min.) cheio de incidentes. Kazan acumulou as funções de produtor, roteirista, diretor e realizou seu filme mais pessoal.

Elia Kazan e Sthatis Gialellis na filmagem de Sonho de uma erra Distante

Em 1896, nas montanhas da Anatólia, pátria ancestral dos gregos e armênios dominada e tiranizada pelos turcos há cinco séculos, o jovem grego Stavros Topouzoglou (Stathis Gialellis) e seu amigo armênio, Vartan Damadian (Frank Wolff) sonham em emigrar para a América. Na aldeia de Stavros os turcos incendeiam a igreja onde se havia refugiado a comunidade armênia e Vartan é morto combatendo. Mais do que nunca, Stavros sente que deve partir. Por outro lado, seu pai Isaac (Harry Davis), comerciante que colabora com os turcos e cujos acontecimentos recentes lhe abriram os olhos, toma a decisão de enviá-lo para Constantinopla, levando todo o seu dinheiro, a fim de se associar ao seu primo Odysseus (Salem Ludwig), mercador de tapetes, e preparar o êxodo da família. Durante a viagem, Stavros é roubado por um turco e depois por um escroque, que ela acaba matando. Em Constantinopla, o primo fica decepcionado ao ver Stavros chegar de mãos vazias, que então vai então trabalhar como estivador no porto durante o dia, e como lavador de pratos em um restaurante à noite. Sua meta é ajuntar o mais rápido possível cento e dez libras turcas para pagar sua passagem para os Estados Unidos. Um amigo, Garabet (John Marley) leva-o para um bordel, onde uma prostituta rouba tudo o que ele havia ganho. Stavros assiste a uma reunião clandestina de conspiradores anarquistas à qual Garabet participa e escapa miraculosamente de morrer quando a policia invade o local. Ferido, consegue chegar à casa do primo e, nos dias que se seguem, ele se resigna ao projeto que este tem de casá-lo com uma das quatro filhas do riquíssimo negociante de tapetes Sinnikoglou (Paul Mann). Stavros agrada a Thomma (Linda Marsh), uma das filhas, e o casamento está prestes a se concretizar. Em lugar das quinhentas libras de dote que lhe propõe o futuro sogro, ele quer apenas cento e dez, para comprar a passagem de navio. Assim que as recebe, ele rompe o noivado, e compra a passagem. Entre os passageiros, Stavros reconhece o jovem vagabundo Hoaness (Gregory Rozakis), que ele havia encontrado em Anatólia e para quem havia dado um par de sapatos. Hoanness também sonhava em conhecer a América e agora faz parte de um grupo de sete rapazes contratados por um americano, que os levará para trabalhar como engraxates. Durante a travessia, Stavros torna-se amante de Mme. Kebabian (Katharine Balfour), esposa de um emigrado armeniano que fez fortuna na América. O marido enganado ameaça impedir seu desembarque mas, quando o navio chega ao porto de Nova York, Stavros recebe de uma criada, cinquenta dólares que Mme. Kebabian lhe enviou. Com essa quantia, e depois que Hoannes, tuberculoso, se suicida, após ter deixado no convés o par de seus sapatos e uma carta para Stavros, este assume sua identidade e, sob o nome de Jo Arness, cumpre as formalidades da imigração. Nos anos seguintes, ele fará vir um a um todos os seus parentes para a America, com exceção de seu pai, que morre em sua terra natal.

Cena de Terra de um Sonho Distante

Sthatis Gialellis e Linda Marsh em Terra de um Sonho Distante

Cena de Terra de um Sonho Distante

Stathis Gialellis em Terra de um Sonho Distante

Stavros nutre o desejo – melhor dizendo, tem a obsessão – de imigrar e não há nada que o demova da idéia, nem a advertência de um companheiro que lá esteve (“A América é como aqui, só para os ricos”) nem a perspectiva de abundância e futuro tranquilo ali mesmo em Constantinopla. Kazan expõe a aventura – cheia de obstáculos e sofrimento – e a experiência humana do jovem grego através de imagens eloquentes (providenciadas em um estilo próximo do documentário por Haskel Wexler), registradas em locais autênticos na Grécia. É verdade que ele se demorou mais do que devia em algumas sequências do périplo do jovem grego (v. g. a descrição da vida no seio da família Sinikoglou); porém o fluxo dos episódios, mesmo quando se torna mais lento, não deixa de ganhar a adesão e mesmo o entusiasmo do espectador. A produção foi indicada para o Oscar e Kazan concorreu para receber a estatueta pela Melhor Direção e Melhor História e Roteiro Original.

Os três filmes seguintes e derradeiros de Elia Kazan (Movidos pelo Ódio / The Arrangement / 1969, Os Visitantes / The Visitors / 1972 e O Último Magnata / The Last Tycoon / 1976) são obras menores na sua carreira.

A ação de Movidos pelo Ódio se passa em Los Angeles, onde o imigrante grego de segunda geração Eddie Anderson (Kirk Douglas), publicitário bem sucedido de uma companhia de cigarros, após tentar o suicídio, decide romper com o mundo onde vive. Cercado pela mulher Florence (Deborah Kerr), sua filha Ellen (Dianne Hull), seu irmão Michael (Michael Higgins) e seus colegas de escritório ele, a princípio, se recusa a falar e a trabalhar. Enquanto convalesce, tem alucinações relacionadas com sua infância nada memorável e recorda seu caso amoroso com uma colega de trabalho, Gwen (Faye Dunaway). Saindo do seu mutismo, Eddie conta para Florence que detesta sua vida de perpétuos “compromissos” com o sistema. Disposta a tudo para manter a fortuna de seu marido, Florence o convence a voltar ao trabalho. Os colegas exultam, mas Eddie quase arruina a firma desta vez, tratando mal um cliente importante e praticando alguns atos insensatos. Ele reata o caso com Gwen e vai a Nova York visitar o pai hospitalizado, o mercador de tapetes Sam (Richard Boone). A pedido deste, leva-o para morar consigo e Gwen na velha casa da familia em Long Island. Os planos de enriquecimento de Sam fracassam e a família o transporta novamente ao hospital enquanto Gwen e Eddie se desentendem, e a moça parte com seu novo companheiro Charles (John Randolph Jones), disposta a iniciar uma outra vida com ele e o filho pequeno que nascera de seu romance com Eddie. Apesar dos apelos de Florence e da filha para voltar ao lar, Eddie tem uma discussão violenta com sua esposa, procura Gwenn, leva um tiro de Charles, incendeia a velha casa de seus paes, e se interna em uma instituição para tratamento mental. Tempos depois, quando Sam morre, Gwen vai buscar Eddie, e os dois comparecem juntos ao enterro, diante de Florence.

Deborah Kerr e Kirk Douglas em Movidos pelo Ódi

Faye Dunaway e Kirk Douglas em Movidos pelo Ódio

Kirk Douglas e Richard Boone em Movidos pelo Ódio

Nesse filme, extraído de seu próprio romance muito bem sucedido nas vendas, Kazan pretendeu criticar o American Way of Life através de um drama pessoal. Eddie pretende fazer uma mudança radical em seu modo de vida. Ele se dá conta de que ela está baseada em mentiras: nas relações profissionais com seu patrão ou seus colegas, exercendo uma profissão que ele finge amar (vende cigarros ditos “puros”) e sobretudo na sua vida familiar. Sofre por ter colocado o êxito profissional e o bem estar material como valores dominantes e pelos “arranjos” a que chegou com o sistema. Sua insatisfação interior situa-se na linha do movimento hippie que surgiu nos Estados Unidos nos anos sessenta, e talvez por causa disso, Kazan se rendeu a efeitos modernosos, recorrendo a flashes de quadrinhos pop art para ilustrar um sonho de briga, zooms em grande quantidade, jump cuts, flashbacks com passado e presente justapostos em uma mesma cena, fotografias animadas, montagem associativa etc., resultando uma espantosa colcha de retalhos de efeitos fílmicos que, aliada às deficiências do roteiro e à longa duração do espetáculo, produziram um melodrama confuso e maçante.

O cenário de Os Visitantes é uma casa de campo na Nova Inglaterra, onde Bill Schmidt (James Woods), ex-soldado na guerra do Vietnã, vive com a mulher Martha (Patricia Joyce), o filho recém-nascido e o sogro Harry Wayne (Patrick McVey), veterano combatente da 2a Guerra Mundial. Surgem dois visitantes, Mike Nickerson (Steve Railsback) e Tony Rodriguez (Chico Martinez), recém-saídos da prisão military, condenados por estupro e assassinato de uma adolescente vietnamita, e que agora procuram Bill, o homem que teria prestado testemunho contra eles. A visita, aparentemente é cordial. Bill e Tony fazem amizade com Harry que hoje é alcoólatra e se dedica a escrever livros de bôlso do gênero western. O clima de violência latente se agrava quando Mike tenta seduzir Martha. Na briga com Bill, Mike leva a melhor. Martha é então estuprada pelos dois visitantes, que repetem assim os fatos ocorridos no Vietnã, e partem, deixando o casal traumatizado.

Cena de Os Visitantes

Esse filme produzido de maneira totalmente independente – com argumento original e roteiro escrito por Chris Kazan (filho de Elia), rodado quase que inteiramente na fazenda da família em Newton, Connecticut com uma câmera de 16 mm (para posterior ampliação em 35mm) e planos breves “à moda européia”, contando com um orçamento insignificante de 135 mil dólares, elenco de atores desconhecidos, e equipe técnica reduzida – se destaca pelo tema da delação, já tratado em Sindicato de Ladrões (trazendo à baila de novo a colaboração de Kazan com a HUAC) como também pelo tratamento pioneiro da Guerra do Vietnã e sua influência sobre os combatentes americanos. A fórmula escolhida para tratar desses assuntos foi a do thriller psicológico, porém o diretor lhe imprimiu um ritmo enfadonho, que provoca mais tédio do que tensão. É um filme difícil de ver, sem a energia e a convicção de que Kazan trouxe para os seus outros filmes. Como observou Richard Schikel (Elia Kazan, a Biography, Harper – Perennial, 2006), Os Visitantes não é particularmente um filme longo (apenas 90 min.), mas parece que nunca acaba, arrastando-se no mesmo nível emocional do princípio ao fim.

Jack Nicholson, Robert De Niro e Theresa Russell em O Último Magnata

O Último Magnata tem como ambiente a Hollywood glamourosa dos anos trinta. Apesar de sua pouca idade Monroe Star (Robert De Niro) é o diretor de produção de um dos estúdios mais importantes da “Cidade dos Sonhos”. Depois da morte de sua mulher, que era atriz, ele se entrega de corpo e alma ao trabalho. O último filme sob supervisão de Monroe foi estrelado por dois atores populares, Rodriguez (Tony Curtis) e Didi (Jeanne Moreau). Cecilia (Theresa Russell), filha de seu patrão, Pat Brady (Robert Mitchum), tenta em vão atrair seu interesse. Um dia, Monroe conhece uma moça, Kathleen Moore (Ingrid Boulting), que lembra sua falecida esposa com quem marca um encontro. A certa altura dos acontecimentos, o médico de Monroe (Jeff Corey), julga-o acometido de câncer, e o romance com Kathleen acaba, quando ela lhe revela que vai se casar com outro. Monroe se embriaga e frustra uma reunião com um sindicalista, Brimmer (Jack Nicholson). Brady fica furioso com o mau comportamento de Monroe e decide derrubá-lo profissionalmente. Devido à pressão que sofre, a saúde de Monroe é abalada.

Ingrid Boulting e Robert De Niro em O Último Magnata

Robert Mitchum e Theresa Russell em O Último Magnata

Kazan aceitou com certo descuido substituir Mike Nichols, para realizar este filme baseado em um romance inacabado de F. Scott Fitzgerald (que é um retrato ficcionalizado do legendário produtor executivo Irving Thalberg dos tempos dourados do sistema de estúdio), pois deu apenas uma olhada no roteiro escrito por Harold Pinter. O que o motivou a aceitar deste jeito a proposta de Sam Spiegel, foi a preocupação com a saúde de sua mãe, que necessitava urgentemente passar uns tempos em Los Angeles, para fugir do clima frio do Leste. O desinteresse do diretor, conjugado com seu cansaço criativo e um roteiro débil e verborrágico, ocasionou um espetáculo maçante e insípido, que nem um ator como Robert De Niro conseguiu salvar. Restou apenas a crítica à indústria de cinema de Hollywood, sua ânsia desmesurada de obter cada vez mais lucro em detrimento da qualidade, e o elogio aos trabalhadores humildes do estúdio. Quanto a este aspecto, o filme de Elia Kazan é interessante.

Nos anos sessenta, setenta e oitenta Kazan também se dedicou ao teatro (v. g. dirigindo “After the Fall de Arthur Miller”) e à literatura (escrevendo os romances “The Assassins”, “The Understudy”, “Acts of Love”, “The Anatolian” e uma autobiografia, Kazan, a Life (Alfred A. Knopf, 1988). Em 1994, ele produziu mais um romance, ”Beyond the Aegean”.

Elia Kazan e Arthur Miller

Elia Kazan faleceu em 27 de setembro de 2003, duas semanas e três dias após o seu 94º aniversário. No folheto “On What Makes a Director”, ele enumerou os conhecimentos que um diretor deve ter: conhecimento de literatura, comédia, pintura, escultura e dança; de vistas da cidade e do campo; de topografia, animais e das habilidades da voz humana; de psicologia do ator e do público; da vida erótica. Além desse conhecimento abstrato, o diretor deve ter qualidades pessoais: as qualidades de um caçador de leões em um safari, de um de mestre de obra, de um psicanalista, um hipnotizador, um poeta, e a esperteza de um comerciante em um bazar de Bagdad; deve ter a ardilosidade de um ladrão de jóias, a firmeza de um treinador de animais, a capacidade de persuasão de um publicista, para não mencionar coragem, paciência e aptidão para dizer “Eu estou errado” ou “Eu estava errado”.

 

 

O CINEMA DE ELIA KAZAN II

Em 1952, a busca de realismo de Kazan foi mais longe com a realização de Uma Rua Chamada Pecado / A Streetcar Named Desire, adaptação da peça de teatro de Tennessee Williams que ele já havia encenado na Broadway com muito sucesso.

Vivien Leigh e Marlon Brando em Uma Rua Chamada Pecado

Blanche Dubois (Vivien Leigh) chega a Nova Orleans e pega um bonde chamado “Desejo”, que a conduz até um sobrado, no velho bairro francês da cidade, onde sua irmã Stella (Kim Hunter) vive com seu esposo, Stanley Kowalski (Marlon Brando), operário de ascendência polonesa, rude e brutal. Blanche espera começar uma nova vida depois de perder seu jovem marido (que se suicidou), o dinheiro de família e uma mansão ancestral, Belle Rive; seu emprego de professora; e sua reputação em Auriol (na peça era Laurel), no Mississippi, cidade onde nascera. O filme estabelece deste o princípio o contraste entre o refinamento da recém-chegada e a grosseria do ambiente. Criaturas de meios sociais contrastantes, Stanley e Blanche colidem, ele acabando por descobrir o passado que ela escondia para recuperar a dignidade perdida. Stanley fica sabendo que, em Auriol, Blanche era conhecida por sua promiscuidade sexual e por ter tido um caso amoroso com um estudante adolescente. Ele revela o resultado de sua investigação para seu companheiro Mitch (Karl Malden), que pensava em casar-se com Blanche. Quando Stanley trata a cunhada cruelmente, entregando-lhe uma passagem de ônibus de volta para Auriel, Stella entra em trabalho de parto. Ela, juntamente com Stanley, vão para o hospital. Mitch chega bêbado e rompe seu relacionamento com Blanche. Ela fica sozinha no apartamento e se embriaga. Stanley retorna ao apartamento, estupra Blanche, e ela se desliga mentalmente da realidade. Semanas após o abuso sexual, Stella prepara a internação de Blanche em um asilo, Quando o médico chega, Blanche sai de braço dado com ele e diz a célebre fala: “Seja você quem for – eu sempre dependí da gentileza de estranhos”.

Por causa da censura prévia do Código de Produção, referências à homossexualidade do marido de Blanche foram removidas; o final da peça foi alterado, com Stella rejeitando seu marido em vez de permanecer ao seu lado; a cena do estupro foi apenas sugerida – o espectador vê o espelho quebrado, que mostra o desmaio de Blanche, quando Stanley a toma em seus braços. Ainda assim, o filme causou controvérsias durante seu lançamento e a Warner Bros. extirpou cinco minutos do filme (reacrescentados em uma restauração feita em 1993), que incluiam alusões à antiga promiscuidade de Blanche e a evidência visual do seu relacionamento sensual com Stanley.

Marlon Brando e Vivien Leigh em Uma Rua Chamada Pecado

O tema principal do filme é a incapacidade da fantasia de superar a realidade. Embora a protagonista de Tennessee Williams seja a romântica Blanche Dubois, a peça é uma obra de realismo social. Blanche diz para Mitch que ela conta histórias porque se recusa a aceitar as cartas que o destino lhe deu. Mentindo para si mesma e para outros faz com que a vida pareça como deveria ser, e não como é (“Eu não quero realismo. Eu quero mágica!”). A relação antagônica entre Blanche e Stanley é uma luta entre aparência e realidade. Ela impulsiona a trama da peça e cria uma grande tensão. As tentativas de Blanche para refazer sua existência e salvar Stella de uma vida com Stanley, fracassam.

Kim Hunter e Marlon Brando em Uma Rua Chamada Pecado

Marlon Brando e Vivien Leigh em Uma Rua Chamada Pecado

Outro tema é a relação entre Sexo e Morte. O medo que Blanche tem da morte manifesta-se no seus temores de envelhecer e de perder a beleza. Ela se recusa a revelar sua idade verdadeira ou aparecer diante de uma luz intensa, que revelará suas feições envelhecidas. Blanche parece acreditar que, afirmando continuamente sua sexualidade, especialmente com respeito aos homens mais jovens, conseguirá evitar a morte e retornar ao mundo de felicidade que ela experimentou na sua adolescência antes do suicídio de seu marido. Quando chega na casa dos Kowalskis, Blanche diz que pegou um bonde chamado Desejo, depois transferiu-se para outro chamado Cemitério, que a trouxe para uma rua chamada Campos Elísios. Esta jornada representa alegoricamente a trajetória da vida de Blanche. Os Campos Elísios, como se sabe, é a terra dos mortos na mitologia grega.

Kim Hunter, Viviven Leigh e Elia Kazan na filmagem de Uma Rua Chamada Pecado

Kazan dirige Karl Malden e Vivien Leigh

Rodado quase que totalmente em estúdio, em um ambiente único, sente-se a presença do teatro, mas com a ajuda de uma esplêndida direção de arte (Richard Day, George James Hopkins), de uma iluminação primorosa (Harry Stradling), de uma trilha sonora (Alex North) inovadora e evocativa e, é claro, do trabalho magistral de todo o elenco, Kazan conseguiu dar perfeita continuidade cinematográfica ao relato, manter intacta a riqueza literária da obra de Tennessee Williams e seu clima de morbidez, violência e sensualidade, bem como projetar sobre a tela, com muita sensibilidade, os tormentos interiores dos personagens.

Marlon Brando e Vivien Leigh em Um Rua Chamada Pecado

Vivien Leigh foi agraciada com o Oscar de Melhor Atriz, Karl Malden e Kim Hunter com o de Melhor Coadjuvante, Richard Day e George James Hopkins como o de Melhor Direção de Arte e Decoração de Interiores em preto e branco, sendo ainda indicados: Marlon Brando, Elia Kazan, Alex North (música), Tennessee Williams (roteiro), Nathan Levinson (som) e Lucinda Ballard (figurinos em preto e branco).

Kazan e seus colegas do Group Theatre: Roman Bohnen, Morris Carnovsky, Harold Clurman, Phoebe Brand,Luther Adler e Lee J. Cobb

Um ponto crítico na carreira de Kazan ocorreu com o seu depoimento perante o House Committee on Un-American Activities em 1952, no tempo da Lista Negra de Hollywood. Seu testemunho ajudou a encerrar a carreira, entre outros, de seus antigos colegas do Group Theatre. Sua delação anti-comunista continuou causando controvérsia. Quando Kazan recebeu um Oscar honorário em 1996, dezenas de atores preferiram não aplaudí-lo. Em uma entrevista coletiva que o cineasta concedeu aos jornalistas durante o Festival de Cinema, TV e Vídeo no Rio de Janeiro, realizado entre os dias 18 e 27 de novembro de 1984, tive oportunidade de fazer algumas perguntas, indagando finalmente – após certa hesitação – por que ele delatou seus companheiros. “Porque eu tinha quatro filhos para sustentar”, respondeu, e não disse mais nada. Terminada a entrevista, descemos no mesmo elevador. Achei que ele tinha ficado chateado comigo por ter feito a pergunta, mas tomei coragem, e lhe pedi para autografar um folheto contendo o texto de uma aula que ele deu no outono de 1973 na Wesleyan University, Middletown, Connecticut e que me havia sido enviado junto com a revista Action do Director’s Guild of America. Ele assinou na capa do folheto e, sorrindo amavelmente, perguntou-me:”Onde você conseguiu isso?”.

Viva Zapata! / 1952 foi o primeiro filme que Kazan rodou em campo aberto, ou seja, em cenários naturais, primeiramente em Roma, no Texas, perto da fronteira do Rio Grande com o México e depois na Fox, em um rancho perto de Malibu. Apoiado no roteiro de John Steinbeck, ele evoca a figura lendária do revolucionário mexicano, não sob a forma de um relato preciso dos acontecimentos, mas sim como uma reflexão sobre o poder e a maneira de exercê-lo.

Em 1909, o Mexico está sob o domínio do ditador Porfirio Diaz (Fay Roope). Um grupo de campesinos de Morelos vai a sua presença, para se queixar dos fazendeiros ricos, que roubaram suas terras. Diaz percebe entre eles um homem altivo que parece ser um possivel agitador, e faz um círculo em torno de seu nome, para que ele seja vigiado no futuro: Emiliano Zapata (Marlon Brando). De volta a Morales, os campesinos são massacrados pelos tiros de uma metralhadora instalada pelos soldados de Diaz. Zapata lidera a luta contra os agressores e suas ações o tornam um criminoso procurado pelas autoridades. Ele se esconde nas montanhas com seu irmão Eufemio (Anthony Quinn) e uns amigos e, quando a notícia se espalha, é procurado por um jornalista aventureiro Fernando Aguirre (Joseph Wiseman). Fernando sugere a Zapata que se junte à causa de Francisco Madero (Harold Gordon), líder mexicano que tenta derrubar Diaz; mas Zapata prefere levar uma vida pacífica ao lado de sua amada Josefa (Jean Peters). Entretanto, o pai de Josefa (Floerenz Ames) se recusa a dar permissão para o casamento enquanto ele for um fora-da-lei. Procurando torna-se respeitável Zapata, grande conhecedor de cavalos, aceita um emprego na fazenda de Don Nacio de la Torre (Arnold Moss), e este consegue um perdão para ele. Porém, antes de se casar com Josefa, Zapata se enfurece com o tratamento cruel que os soldados dão a um velho campesino, e mata os agressores. O tempo passa e Zapata e seus seguidores se engajam em batalhas contra os militares de Diaz. Quando Madero nomeia Zapata seu general no sul e Pancho Villa (Alan Reed) é seu general no norte, o pai de Josefa permite que ele faça a côrte a sua filha. Depois que Diaz foge do Mexico e Madera assume o contrôle do governo, Zapata e Josefa se casam, e ela ensina o marido a ler. O corrupto general Huerta (Frank Silvera) manda seu exército matar Zapata e, enquanto se travam os combates entre suas respectivas forças, Madero é preso e assassinado. Huerta é derrotado e, em uma reunião com outros líderes revolucionários na cidade do México, fica decidido que Zapata será o presidente. Quando os campesinos vêm se queixar dos malfeitos de seu irmão Eufemio (Anthony Quinn), e ele marca os nomes deles, percebe que está cometendo os mesmos erros de seu predecessor, e se demite. O novo presidente, estimulado por Fernando, resolve mandar matar Zapata, a fim de consolidar seu poder. Zapata cai em uma cilada, crivado de balas mas, para o povo mexicano, ele é imortal.

Marlon Brando em Viva Zapata!

Jean Peters e Marlon Brando em Viva Zapata!

Marlon Brando em Viva Zapata!

Steinbeck e Kazan formulam muitas das questões sobre a moral revolucionária, sobre a dificuldade de manter seus ideais uma vez no poder, e sobre a utilidade das revoluções. “Um homem forte enfraquece um povo, um povo forte não necessita de um homem forte”- diz Zapata a certa altura da trama. Dos fatos históricos Steinbeck extraiu os mais aptos para delinear o “tigre” Emiliano Zapata como um peão de caráter íntegro que não queria ser mais do que defensor dos camponeses na questão agrária contra espoliadores e acabou caudilho, mostrando-o o filme como um herói idealista, que tinha problemas de consciência e pensava muito antes de resolver, porque não queria ser injusto.

Kazan no set de Viva Zapata! (à dir.Anthony Quinn)

Anthony Quinn e Marlon Brando em Viva Zapata!

Marlon Brando e Jean Peters em Viva Zapata!

Além do belo simbolismo “hollywoodiano” no final – o cavalo branco de Zapata correndo livremente pela montanha -, ocorrem vários momentos de bom cinema -valorizados pela fotografia em preto e branco de Joe MacDonald e pela música local inspirada de Alfred Newman -, entre os quais destaco estes três: a prisão de Zapata que segue pela estrada enquanto aparecem de todos os lados os caponeses que vêm prestar auxílio ao homem que começa a ser o seu líder: quanto mais a coluna de soldados avança, mais os camponeses que a seguem aumentam em número, até representarem um verdadeiro exército dez vêzes mais numeroso do que a milícia; a execução de Madero por Huerta, que acontece de noite em um clima no limite do fantástico graças a uma iluminação expressionista; o assassinato traiçoeiro de Zapata, o seu corpo abatido por centenas de balas, e tombando ao solo, de joelhos.

Anthony Quinn e Marlon Brando em Viva Zapata!

Cena de Viva Zapata!

Com sua direção deste drama histórico com dimensão filosófica, Kazan demonstrou, de uma vez por todas, que não era tão somente um talentoso homem de teatro. Anthony Quinn ganhou o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante e foram indicados: Marlon Brando (Ator), John Steinbeck (História e Roteiro), Lyle Wheeler e Leland Fuller (Direção de Arte preto-e-branco), Thomas Little e Claude Carpenter (Decoração de Interiores preto-e-branco), Alex North (Música de filme não musical).

O filme seguinte de Kazan, Os Saltimbancos / Man on a Tightrope / 1953, relata um incidente real, a fuga do Circo Brumbach da Tchecoslováquia para a Alemanha Ocidental. Karel Cernek (Fredric March), dono do circo (que atua também como palhaço), revolta-se contra as restrições crescentes da burocacia comunista – no repertório, obrigando a introdução de mensagens pró-regime nos números circenses (v. g. palhaço que leva pontapés caracterizado de negro vermelho americano e o palhaço agressor de Tio Sam); no quadro de seu pessoal (v. g. convocação de artistas circenses para o exército); e nos seus bens (v. g. equipamento do circo considerado como propriedade do governo) – e planeja uma fuga da trupe para a zona americana.

Acontecimentos desencadeados pela presença de um espião, Krofta (Richard Boone,) no grupo a serviço do chefe da polícia secreta, Fesker (Adolphe Menjou), obriga o dono do circo a realizar a escapada atravessando a fronteira à vista dos guardas e à luz do dia, valendo-se do elemento surpresa. Paralelamente ao tema político, o argumento de Robert E. Sherwood melodramatizou-se, ao criar alguns problemas pessoais para o atribulado Cernek concernentes à incompreensão de sua segunda mulher, Zama (Gloria Grahame), que o considera um covarde por temer as autoridades e flerta com o domador de leões (Roy D’Arcy); ao namoro de sua filha rebelde Tereza (Terry Moore) com Joe Vosdek (Cameron Mitchel), um operário misterioso do circo; e a ameaça de seu eterno rival, Barovik (Robert Beatty).

Fredrich March em Os Saltimbancos

Este filme de atmosfera sombria e depressiva sobre o mundo do circo, descrevendo ao mesmo tempo as duras condições de vida sob a ditadura comunista no tempo da Guerra Fria, tem certa beleza formal e grande força dramática. Aproveitando artistas do verdadeiro Circo Brumbach, filmando em locação nas montanhas da Bavaria, e usufruindo de uma colaboração preciosa dos alemães Gerd Oswald (então produtor associado) e Georg Krauser (fotógrafo), Kazan deu veracidade ao ambiente e, com seus próprios recursos de cineasta, criou um clima de “suspense’, que chega ao climax na cena da travessia da fronteira, quando aquele desfile lento e pitoresco de carros pesados e elefantes, sob o olhar estupefato dos soldados, é um brado de vitória contra a opressão.

Fredrich March, Cameron Mitchell, Terry Moore em Os Saltimbancos

Fredrich March e Richard Boone em Os Saltimbancos

Em 1954, depois de ter dirigido no teatro “Camino Real” de Tennesseee Williams e “Tea and Sympathy” de Robert Anderson, Kazan continuou a exercer seu trabalho de cineasta com Sindicato de Ladrões / On the Waterfront, transposição de fatos reais relatados em uma série de reportagens (intitulada “Crime on the Waterfront”), feita em 1949, sobre a situação dos estivadores do porto de Nova York, explorados e atemorizados por uma quadrilha que dominava os sindicatos. O padre Barry do filme foi inspirado no padre John Corridan, que realmente existiu e prestou várias informações a Kazan e ao roteirista Budd Schulberg.

Marlon Brando e Eva Marie Saint em Sindicato de Ladrões

O tema social aproxima Sindicato de Ladrões dos filmes de tese que Kazan havia feito no final dos anos 40 como O Justiceiro, sobre erro judiciário; A Luz é para Todos, sobre anti-semitismo e O Que a Carne Herda, sobre discriminação racial dos negros. O roteirista Budd Schulberg, com base nos mesmos fatos, escreveu o romance intitulado “Waterfront”, que é mais fiel à realidade. O personagem central é o padre e não o jovem estivador, e o desenlace é de um pessimismo totalmente escamoteado no filme: o gangster denunciado continua à frente do sindicato, o padre é transferido para outra paróquia, após ter sido repreendido pelo bispo e, algumas semanas mais tarde, o corpo de Terry Malloy é encontrado em uma lata de lixo, perfurado com 27 golpes por um pegador de gelo.

Marlon Brando e Eva Marie Saint em SIndicato de Ladrões

Brando e Kazan em um intervalo de filmagem de Sindicato de Ladrões

Marlon Brando e Eva Marie Saint em Sindicato de Ladrões

Já o filme tem um final feliz e nele os autores se interesssaram menos pela denúncia social do que pelo drama de consciência do delator. A ação do filme assemelha-se com a dos filmes de gangster, tem toda a iconografia do gênero; mas, além dessa aventura exterior e policial, há uma aventura interior, que é a da alma sobressaltada do jovem estivador, diante do dilema de delatar ou não a quadrilha da qual faz parte o seu próprio irmão e da qual ele é ao mesmo tempo protegido e ingênuo comparsa. Enfim, mais do que um filme de gangster, Sindicato de Ladrões é a análise de uma consciência que desperta. Este é o primeiro tema do filme. Aos poucos, duplamente influenciado pelo padre (Karl Malden) e pela moça que ama, Edie (Eva Marie Saint), Terry (Marlon Brando) adquire a noção de um dever pessoal para com a coletividade, para com a justiça e com a verdade e, ao enfrentar com esforço sobrehumano a gangue sindical, ele se torna um mártir. Aquela caminhada final é sem dúvida uma via crucis, um calvário. Mas ele age também por um desejo de vingança: Terry fora vendido pelos dois “pais”, o irmão mais velho (Rod Steiger) e o “meta-pai”, Johnny Friendly (Lee J. Cobb) – que de amigo não tinha nada. Uma originalidade do filme são os personagens da moça e do padre. Em vez de se aproveitar da possibilidade de sucesso individual que lhe dá a instrução que recebeu, Edie se volta para o seu meio humilde, chama a atenção do padre sobre a situação dos estivadores e até o recrimina duramente, dizendo-lhe: “O senhor fica na sua igreja enquanto a sua paróquia é o cais”. O padre, por sua vez, é um padre também diferente do que o público estava acostumado a ver nos filmes americanos. Ele não prega a resignação e o amor ao trabalho qualquer que ele seja e se posiciona publicamente contra a opressão. “Aproveitar-se do trabalho dos outros para se enriquecer sem trabalhar é colocar o Cristo de novo na cruz”, diz ele a certa altura da trama. Kazan sempre teve muita habilidade para conduzir atores e um dom especial para dramatizar o relacionamento entre os personagens como, por exemplo, na cena do taxi, quando Terry tem aquela conversa com o irmão; na cena em que ele apanha a luva de Edie e custa a devolvê-la; ou quando faz um convite tímido e embaraçado à moça para tomar uma cerveja. O desempenho de Marlon Brando é realmente extraordinário. É mais do que uma interpretação, é uma verdadeira encarnação. É uma maravilha como ele transmite os gestos e o andar de um ex-boxeur, a maneira lenta de pensar e de falar. Ele fica procurando as palavras, titubeando, antes de pronunciá-las. Enfim, ele se identifica com o personagem confuso e iletrado, dando um exemplo perfeito da aplicação do método de Stanislavski. É com uma sinceridade profunda que ele passa de fracassado a justiceiro. E a idéia de escalar Rod Steiger como irmão de Brando foi um achado genial, porque Steiger usava os maneirismos de Brando. De modo que assim os dois ficaram bem parecidos.

Rod Steiger e Marlon Brando em Sindicato de Ladrões

Elia Kazan dirige Marlon Brando em SIndicato de Ladrões

Lee J. Cobb e Marlon Brando em uma cena de Sindicato de Ladrões

Cena de Sindicato de Ladrões

Marlon Brando em Sindicato de Ladrões

O filme, que é a um só tempo violento e poético, foi um imenso sucesso crítico e popular, e recebeu os Oscar de Melhor Filme, Melhor Diretor (Elia Kazan), Melhor Ator (Marlon Brando), Melhor Atriz Coadjuvante (Eva Marie Saint), Melhor Fotografia em preto de branco (Boris Kaufman), Melhor História e Roteiro (Budd Schulberg), Melhor Montagem (Gene Milford), tendo sido ainda indicado Leonard Bernstein por música de não musical.

Richard Davalos, Julie Harris e James Dean

Kazan disse que convenceu facilmente Jack Warner a produzir Vidas Amargas / East of Eden / 1955, seu primeiro filme em tela larga. A ação transcorre em Salinas na Califórnia e tem como personagens centrais, o velho Adam Trask (Raymond Massey), agricultor intransigente e puritano, e seus dois filhos, Cal (James Dean) e Aron (Richard Davalos). Aron é o favorito do pai e Cal, que sente necessidade de ser amado, tem ciúmes do irmão, inveja o namoro de Aron com Abra (Julie Harris), hostiliza seu progenitor. Cal detém um segredo: ao contrário do que Adam sempre lhe dissera, a mãe dos dois rapazes, Kate (Jo Van Fleet) não morreu, mas abandonara o lar, e vive, não longe dali, em Monterey, como dona de um prostíbulo. Quando descobre a verdade sobre a mãe, ele acha que, agora, passou a entender de onde herdou seu mau temperamento. E acha também que é por causa da sua semelhança com a mãe que o pai tem preferência por Aron. Quando Adam sofre dificuldades financeiras, por ter posto todas as suas economias em um negócio audacioso na época, a conservação de vegetais por meio de refrigeração, Cal procura sua mãe e pede dinheiro para plantar feijão, aproveitando a subida de preços decorrente da Primeira Guerra Mundial, como previsto por seu sócio, Will Hamilton (Albert Dekker). No dia do aniversário do pai, Cal lhe oferece a quantia ganha com os feijões, mas Adam repele seu presente, porque não pode aceitar um dinheiro trazido pela guerra. Sentindo-se expulso do coração do pai e para vingar-se do irmão, que o ferira também com a notícia de seu noivado com Abra, Cal arrasta Aron até o quarto de Kate. Ao ver a prostituta artrítica e bêbada, Aron não consegue suportar esta revelação e se alista para lutar na guerra. Ao ver o rosto sem expressão do filho favorito, na janela do trem que o conduz para “o leste do Paraíso”, ele sofre uma trombose, e fica paralítico. Abra, que percebera que é a Cal que ela ama, suplica a Adam que faça um gesto que perdoe seu filho. O pai encontra forças para articular algumas palavras e murmura no rosto de Cal com os olhos vivos, bem abertos: “Cuide de mim”, “Cuide de mim”.

James Dean

James Dean em Vidas Amargas

James Dean e Jo Van Fleet em Vidas Amargas

Julie Harris e James Dean em Vidas Amargas

Adaptação de parte de um romance de John Steinbeck (apenas as 80 últimas páginas do livro), o filme renova o drama bíblico de Caim (que, enraivecido por seu pai preferir as oferendas de Abel às suas, mata o próprio irmão e se retira para o “leste do Paraíso”), dando-lhe um enfoque psicanalítico. Além da trama familiar, girando em tôrno da sôfrega busca do passado e de ternura por parte de um jovem confuso e incompreendido, o espetáculo aborda ainda algumas questões sociais (o preconceito da população contra o sapateiro alemão) e filosóficas (apreciação subjetiva da bondade e da maldade: Cal se julga mau, mas na verdade ele é bom). O roteiro de Pal Osborn soube conservar da obra de Steinbeck tudo o que lhe dava potência dramática e que Kazan nos transmite com firmeza diretorial, inteligente utilização do CinemaScope tanto em paisagens como em interiores e bela fotografia em cores (de Ted McCord), usando às vêzes ângulos estranhos.

James Dean e Raymond Massey em Vidas Amargas

Distinguem-se dois momentos muito fortes: a cena do aniversário quando Adam recusa o presente de Cal e ele foge para o bosque como um animal ferido e a cena em que Cal leva seu irmão até o quarto de sua mãe, empurrando-o aos gritos e trancando a porta. Porém Vidas Amargas foi marcado sobretudo pela presença de James Dean, representando uma figura de jovem rebelde com quem uma parcela enorme de jovens espectadores passou a identificar-se. Ele foi indicado para o Oscar (póstumo) de Melhor Ator e Kazan para o de Melhor Diretor, mas quem arrebatou a estatueta da Academia foi Jo Van Fleet como Melhor Atriz Coadjuvante.