Arquivo diários:março 23, 2018

ANÁLISE DE CIDADÃO KANE

Produto do sistema de estúdio, Cidadão Kane foi o primeiro filme que fez importantes modificações no cinema clássico, abrindo caminho para o cinema moderno.

Cia. Prod: Mercury Productions / RKO Radio Picrtures

Chefe do Estúdio: George J. Schaefer

Produtor: Orson Welles

Prod. Associado: Richard Baer (Richard Barr)

Assistentes de Produção: William Alland, Richard Wilson

Diretor: Orson Welles

Assistentes de Direção: Eddie Donahue, Freddie Fleck

Roteiro: Herman J. Mankiewicz, Orson Welles

Diretor de Fotografia: Gregg Toland

Assistente de Câmera: Eddie Garvin

Retakes e cenas adicionais: Harry J. Wild

Operador de Câmera: Bert Shipman

Montagem: Robert Wise

Assistente de Montagem: Mark Robson

Efeitos de montage: Douglas Travers

Direção de Arte: Perry Ferguson, Van Nest Polglase (Chefe do Departamento)

Decorador de Interiores: Darrell Silvera

Efeitos Especiais: Vernon L. Walker

Pintor de Matte: Mario Larrinaga (auxiliado por Chesley Bonestell, Fitch Fulton)

Efeitos óticos: Linwood G. Dunn (auxiliado por Cecil Love, Bill Leads)

Fotógrafo de efeitos visuais: Russell Cully

Música / Direção Musical: Bernard Hermann

Canção “Charlie Kane”: Herman Ruby

Figurinos: Edward Stevenson

Som: Bailey Fesler, James G. Stewart

Maquilagem: Maurice Seiderman

Distribuição: RKO

Filmagem: 22 de julho a 23 de outubro de 1940

Duração: 119 minutos

Lançamento nos EUA: 1 de maio de 1941 no RKO Palace em Nova York.

Estréia no Rio de Janeiro: 29 de setembro de 1941 no Cinema Plaza.

Orson Welles

Gregg Toland

ELENCO PRINCIPAL:

Orson Welles – Charles Foster Kane

Joseph Cotten – Jedediah Leland

Susan Alexander Kane – Dorothy Comingore

Agnes Moorehead – Mary Kane, a mãe de Kane

Everett Sloane – Bernstein

George Colouris – Walter Parks Thatcher

Ruth Warryck – Emily Monroe Norton Kane, a primeira mulher de Kane

Paul Stewart – Raymond, o mordomo

William Alland – o repórter

Ray Collins – James W. Gettys

Harry Shanon – Jim Kane, o pai de Kane

Fortunio Buonanova – Matisti

Buddy Swan – Kane com 8 anos de idade

Philip Van Zandt – Mr. Rawlston

RESUMO DO ARGUMENTO:

Charles Foster Kane morre isolado em seu fabuloso castelo. Ninguém consegue explicar a última palavra que pronunciou: Rosebud. É isso que um repórter é encarregado de elucidar quando começa a interrogar os ex-colaboradores e a segunda esposa do falecido. Assim, reconstitui o quebra cabeça da vida de Kane, porém não decifra o enigma. Só nós, espectadores, ficamos sabendo que Rosebud era simplesmente o trenó que Kane possuia quando criança, símbolo da felicidade perdida e jamais recuperada.

GÊNERO DO FILME:

Reportagem biográfica. Drama de mistério. Ensaio para apreender, em uma abreviação dinâmica, a vida de um homem em toda a sua complexidade.

ÉPOCA E LUGAR DA AÇÃO:

A América contemporânea. A duração da “vida de um homem”. Ou seja, de 1871 (Kane com 8 anos) a 1941 (morte de Kane).

Marion Davies e William Randolph Hearst

Harold B. McCormick e Ganna Walska

ROTEIRO:

Trata-se de um roteiro original, escrito por Herman J. Mankiewicz e Orson Welles, utilizando elementos da vida de William Randolph Hearst, conhecido magnata da imprensa americana (1863-1951) e também da vida do próprio Orson Welles. Nós podemos dizer que Cidadão Kane é um film à clef, isto é, muitos dos personagens são inspirados em pessoas reais. Por exemplo: Leland seria o crítico de teatro Ashton Stevens (tio de George Stevens), que era amigo do pai de Welles e que trabalhava para Hearst; Susan seria uma mistura da atriz de cinema Marion Davies, protegida e amante de Hearst e da polonesa Ganna Walska, cantora de ópera de Chicago, protegida e amante de outro magnata, Harold B. McCormick; Bernstein seria uma alusão ao Dr. Bernstein, médico, admirador e possivelmente amante da mãe de Welles e que depois foi seu guardião.

Orson Welles e Herman Mankiewicz

O roteiro foi escrito pelos dois da seguinte maneira: Mankiewciz escreveu o arcabouço da história e Welles depois ia revisando, cortando e / ou acrescentando novos incidentes. A idéia da multiplicidade de pontos de vista foi de Welles, que já a havia usado em uma peça que escrevera nos seus tempos de colégio, intitulada “Marching Song”, versando sobre o líder abolicionista John Brown. A idéia do enigma de Rosebud foi de Mankiewicz. Quem colocou mais fatos sobre a vida de Hearst foi também Mankiewciz, porque conhecia o Hearst intimamente e sabia muitas anedotas a seu respeito. O Welles introduziu mais acontecimentos sobre o outro magnata, McCormick, e sua própria vida. Nesta questão de autoria Mankiewciz contribuiu muito para dar consistência ao roteiro, mas foi Welles que deu o brilho cinematográfico à narrativa, impondo seu extraordinário estilo visual barroco, seu cinema essencialmente dinâmico.

DIVISÃO DO FILME:

O filme se divide em 4 partes:

  1. Um prólogo, mostrando a grade com o aviso No Tresspassing, e a morte de Kane.
  2. O cine-jornal mostrando de forma sucinta e didática (imitando o estilo da série A Marcha do Tempo / The March of Time, produzida nos anos 1935-1951 por Louis de Rochemont) a vida pública, política e sentimental de Kane. O ator William Aland imita a voz estentória do locutor do famoso newsreel, Westbrook Van Voories. Mais de quarenta anos antes de Zelig / Zelig / 1983, de Woody Allen, Welles inseriu o personagem de Kane nas tomadas de arquivo ao lado de figuras históricas famosas como Adolf Hitler e Teddy Roosevelt.
  3. Os trechos com as entrevistas e os flashbacks mostrando de forma prismática a verdadeira vida de Kane.
  4. Um epílogo, mostrando a fumaça que sobe e novamente a grade com o aviso No Trespassing.

 

 

CONSTRUÇÃO DRAMÁTICA:

Podemos observar:

1. O abandono da forma tradicional de narração clássica:

Em lugar do relato linear, Orson Welles optou por um relato “desintegrado”, “atomizado”, justapondo momentos isolados da vida de Kane, peças de um quebra cabeça que se arma diante de nossos olhos, e somente a última peça nos dará a chave do mistério. Através da verdade de cada um, vamos desmontando a personalidade de Kane do exterior para o interior, isto é, da sua vida pública, aparente, superficial, para a sua vida privada, onde se constata uma angústia profunda. Apesar dessa estrutura difusa, dispersiva, os roteiristas conseguiram dar ao relato uma continuidade bastante densa, a continuidade do que passou, do que foi vivido, enfim, conseguiram passar uma dimensão existencial ao relato.

2. A preocupação de não dizer tudo:

O filme inteiro apresenta apenas uma metade de Kane, e só as últimas cenas nos revelam a outra metade, aliás, a mais importante. Existe durante todo o tempo a preocupação de não dizer tudo. O repórter não fica sabendo quem era Kane. A verdade subjetiva de Kane nos é dada como um presente visual; somente nós, espectadores, conseguimos encaixar a última peça do quebra cabeça.

3. O uso original do flashback (uma década antes de Rashomon / Rashômon / 1950, de Kurosawa):

Em Cidadão Kane, o elemento tempo assume uma importância fundamental, tal como ocorre na obra literária de Marcel Proust ou William Faulkner. Para jogar com o tempo, geralmente usa-se o flashback. Só que, em Cidadão Kane, os flashbacks não representam as recordações apenas de uma pessoa, que é a forma mais comum, mas sim de várias pessoas. São cinco pessoas: Thatcher, Bernstein, Leland, Susan, e o mordomo Raymond. Isso além do jornal cinematográfico, que não deixa de ser também um retrospecto. Cada um desses flashbacks começa em um momento posterior àquele que o precede, mas um acontecimento ou período é recordado por dois ou três pontos de vista: a estréia de Susan na ópera é vista no jornal cinematográfico, no retrospecto objetivo de Leland e no retrospecto subjetivo da própria Susan.

Robert Wise, Richard Wilson e Orson Welles

4. O uso do montage como parte da ação:

Não confundir montage com montagem, que em inglês é editing. São duas coisas diferentes. O montage (ou sequência de montagem) é uma série de cenas rápidas condensando acontecimentos. Por exemplo: quando Kane obriga Susan a continuar cantando, vemos cenas rápidas mostrando diferentes teatros e manchetes de jornais estampando o nome de Susan com letras cada vez maiores. Geralmente o montage é usado à margem da ação ou como elemento de transição, mas em Cidadão Kane ele é usado como parte da ação.

TEMA:

Existe um tema filosófico e um tema social.

O tema filosófico é, em primeiro lugar, uma reflexão sobre a felicidade e uma meditação sobre a existência. Charles Foster Kane teve riqueza e poder, mas não conseguiu ser feliz. Talvez fosse até melhor dizer que foi justamente a riqueza e o poder que o impediram de ser feliz. Rosebud simboliza o reconhecimento do seu fracasso existencial, a nostalgia do “paraíso perdido”, que era a sua infância tranquila, antes de ser obrigado a se separar dos pais. Inconsciente de sua ambição desenfreada, de seu delírio de poder, de seu egoismo e de seu orgulho, é só na hora da morte que percebe cruelmente a sua solidão. E aí nós lembramos de uma cena importante do filme, quando Kane, garoto, agride com o trenó o homem que lhe traria a fortuna. Era como se o menino estivesse pressentindo o seu destino. Ainda no plano filosófico, percebemos uma reflexão sobre o conhecimento. O repórter tenta apreender a vida de um homem na sua complexidade, tarefa que, segundo o aviso simbólico na grade de Xanadu, é impossível de realizar. No Trespassing, entrada proibida.

O tema social se desdobra em vários aspectos:

1. a crítica a uma concepção do homem e a uma certa forma de civilização baseada no mito do sucesso e no gigantismo. Crítica ao capitalismo e ao materialismo. Apesar da profusão de obras de arte e de amplos aposentos, Xanadu é um lugar sem vida, onde reina a solidão. Kane não capta o conteúdo espiritual das obras de arte, compra-as como mercadoria, como adorno. Trata-se apenas de acumular riqueza. Kane passou a vida inteira tentando usar seu dinheiro para fazer com que as pessoas gostassem dele. Criado por um banqueiro, em vez de seus pais, foi o dinheiro, e não o amor, que governou seus anos de juventude; portanto é natural que ele pensasse que o dinheiro devesse reger seu relacionamento com as pessoas.

2. a crítica à imprensa venal, à pressão que um truste da comunicação pode exercer sobre a opinão pública, inclusive impondo o sucesso de certos artistas. Apesar das críticas negativas dos demais jornais e do seu próprio comentarista de arte, a temporada lírica de Susan é noticiada nos jornais de Kane com manchetes efusivas e elogiosas. O magnata da imprensa faz tudo o que julga necessário para transformar a sua segunda esposa em uma das grandes cantoras do mundo operístico.3. a crítica aos costumes eleitorais. Ao tipo de publicidade empreendida por Kane contra seu adversário na eleição para governador, “Boss” Jim Gettys (os jornais de Kane publicam desenhos retratando Gettys em um uniforme de presidiário) e à chantagem política (os detetives que Gettys contratou, documentam o envolvimento de Kane com a amante e ele arranja um encontro com Kane e sua primeira esposa Emily no apartamento de Susan). Gettys oferece silêncio em troca da desistência de Kane de disputar a eleição, mas Kane se recusa. Os jornais rivais publicam a história do adultério e Kane perde a eleição – mas seus jornais proclamam que houve fraude.

Ray Collins, Dorothy Comingore, Welles e Ruth Warryck

Essas mensagens trazidas pelo filme eram das mais agressivas até então saídas de Hollywood. Assuntos “audaciosos” como esses, só costumavam ser abordados quando se tratava da adaptação de algum best seller cuja perspectiva de lucro acalmava os produtores como foi, por exemplo, o caso de As Vinhas da Ira / The Grapes of Wrath / 1940 de John Ford. Atacar um “Deus” da América como Kane, mostrar o inverso de sua vida, questionar o mito do sucesso, doutrina pouco conforme àquela que era pregada em 95% dos filmes americanos, trouxe evidentemente muitos inimigos para Orson Welles e explica a cólera de Hearst.

DIREÇÃO:

Com um conteúdo tão original, Cidadão Kane merecia receber uma forma também original e Welles, apropriando-se, com poder de síntese extraordinário, de tudo o que havia de mais expressivo em termos de linguagem cinematográfica até então, renovou-a com o seu gênio. Pode-se dizer que, desde os filmes de Griffith, nenhum outro filme marcou mais a História do Cinema como Cidadão Kane. O cinema que se fazia por ocasião do lançamento de Cidadão Kane em 1941 era praticamente aquele inventado por Griffith com predominância da montagem de planos curtos, e que chegou ao auge no fim do período silencioso com as obras de diretores como Eisenstein, Murnau, Fritz Lang, Stroheim, Chaplin, Victor Sjostrom, Carl Dreyer etc. Esses cineastas foram enriquecendo a linguagem criada por Griffith. Eisenstein, propondo a montagem intelectual; Murnau, mobilizando a câmera ao máximo e projetando, com Fritz Lang, o expressionismo; Stroheim, introduzindo o naturalismo no cinema; Chaplin, o humanismo e a poesia; Sjostrom, a natureza; Dreyer, compondo uma sinfonia com os primeiros planos.

Com o advento do cinema sonoro, houve um retrocesso. A câmera, por imposição da nova tecnologia, ainda não aperfeiçoada, voltou a se imobilizar como nos tempos de Lumière, e o cinema reaproximou-se do teatro. Foi preciso um certo tempo para que outros tantos cineastas inventivos como Rouben Mamoulian, King Vidor, Ernst Lubitsch, René Clair, John Ford etc. reconduzissem o cinema para o seu caminho mais legítimo, porém ainda formulado de acordo com o padrão griffithiano. Em 1939, surgiu o filme famoso que representa bem esse tipo de cinema … E O Vento Levou / Gone With the Wind. A estética do cinema estava nesse estágio, quando um jovem de 25 anos lhe deu uma sacudidela, tornando-se o precursor do cinema moderno.

Orson Welles e Gregg Toland

Welles contava com sua experiência no teatro e no rádio, setores onde havia demonstrado o seu gênio e causado sensação. Mas, de cinema mesmo, não conhecia nada. Foi na sala de uma cinemateca que viu os clássicos pela primeira vez, notadamente No Tempo das Diligência / Stagecoach / 1939 de John Ford e, com espantosa intuição, aprendeu como funcionava o maravilhoso brinquedo, que lhe puseram nas mãos. Antes de Welles, já se usava os big close ups (por exemplo, Dreyer em O Martírio de Joana D’Arc / La Passion de Jeanne D ‘Arc / 1928, os expressionistas e os russos); já se usava a iluminação contrastada (por exemplo, John Ford em O Delator / The Informer / 1935 e os expressionistas); já se usava imagens surrealistas (por exemplo, Cocteau e Buñuel); já se usava cenários com tetos de verdade (por exemplo, Ford em No Tempo das Diligências / Stagecoach / 1939); já se usava a profundidade de campo (por exemplo, Jean Renoir em A Regra do Jogo / La Régle du Jeu / 1939): já se usava a estrutura prismática (por exemplo, William K. Howard em Glória e Poder / The Power and the Glory / 1933) etc. Portanto, Welles não inventou nada. Apenas se apropriou de tudo o que havia sido feito e empregou esses elementos de uma maneira nova.

Orson Welles e Gregg Toland

Muitos acham que há em Cidadão Kane um excesso de efeitos. Esta é a maior crítica que fazem ao fime. Por exemplo, a decisão tomada do uso da câmera baixa ao nível do chão na cena em que Leland está bêbado ou na repetição inútil do lance da grua entrando pela clarabóia da boate. Talvez haja de fato um excesso aqui e ali, mas não prejudicam o filme. Vejamos os acertos, que são abundantes.

  1. Utilização interessante dos meios técnicos:

1.1. No plano visual:

a) o emprego da profundidade de campo (ou foco profundo) e do plano-sequência.

A profundidade de campo tende a substituir as constantes mudanças de planos. Seu objetivo é dar ao espectador maior liberdade em relação ao acontecimento. O crítico francês André Bazin chamou isso de “a democratização da mise-en-scène”. A profundidade de campo enseja o plano-sequência, que registra a ação de uma sequência inteira, sem cortes. Enquanto na decupagem clássica o diretor mostra uma ação em vários planos por meio de cortes, com a profundidade de campo ele permite que a gente veja essa ação de uma só vez como no teatro. A importância de cada momento da ação não é mais acentuada arbitrariamente pelo diretor. O espectador pode escolher o foco de sua atenção entre diversos pontos de interesse, que são mostrados simultaneamente. O diretor de fotografia Gregg Toland disse em uma entrevista: “Nós queríamos que o público, ao ver Cidadão Kane, tivesse a impressão de estar vendo não um filme, mas a própria realidade”. E Welles declarou: “Na vida a gente vê tudo em foco ao mesmo tempo e por que não no cinema?”

O problema era como obter a imagem nítida no fundo do quadro e isso foi solucionado por Toland usando uma lente grande angular (24mm, 28mm) anti-reflexo (AR Coating Lens) e fechando o diafragma ao máximo (f. 8 e f. 16); um filme super sensível (negativo Eastman Kodak Super XX); e forte iluminação, obtida com refletores de alta potência.

Profundidade campo e plano sequência

Em Cidadão Kane podemos apontar vários momentos nos quais se usou a profundidade de campo: nas cenas dos pais de Kane dentro da casa discutindo sobre o futuro do menino e este visto através da janela brincando lá fora na neve; na cena da entrada de Leland no fundo da sala de redação do jornal enquanto Kane está trabalhando na máquina de escrever e acaba por despedí-lo; na cena da lição de canto, quando Kane surge no fundo da sala; na cena do envenenamento de Susan com o frasco com o veneno em primeiro plano; nas cenas do banquete e da festa na séde do Inquirer etc.

b) o emprego do travelling.

Há quatro, magistrais, cada qual um tour de force de fluidez e continuidade: 1. O travelling inicial da grade com o cartaz No Trespassing até a boca de Kane. 2. O travelling na boate El Rancho, quando a câmera sobe verticalmente até as letras de vidro de gás néon e depois desce através da clarabóia. O movimento continua após uma rápida dissolvência (disfarçada por um relâmpago e um trovão), para ir apanhar embaixo Susan Alexander Kane e um repórter conversando em uma mesa no interior do estabelecimento (que era um antigo set da RKO). 3. O travelling vertical nos bastidores do teatro, durante a representação da ópera, até o teto onde estão os maquinistas. 4. O longo travelling final com a câmera sobrevoando o amontoado de caixotes até chegar à lareira, onde é jogado o trenó.

c) o emprego do simbolismo.

O simbolismo da palavra Rosebud, cujo significado nós já vimos: a felicidade perdida etc.o simbolismo das grades de ferro e o aviso No Tresspassing cujo significado nós também já vimos: não se pode penetrar totalmente na vida de um homem etc.

O simbolismo da bola de vidro com a miniatura da cabana de neve, cujo significado é bem claro: a nostalgia da paisagem da infância, les neiges d’antan, como diria o poeta François Villon.

O simbolismo da sombra dominadora de Kane sobre Susan e da boneca de pano de Susan.

O simbolismo das obras de arte encaixotadas, focalizadas do alto, sugerindo a vista aérea de uma grande metrópole e significando a capital do império que Kane construiu para seu uso e gozo.

d) o emprego da elipse.

Por exemplo, uma elipse cronológica quando Tatcher deseja ao pequeno Kane um feliz Natal e logo em seguida um próspero Ano Novo ao mesmo Kane mais velho.

e) o emprego irônico do chicote (whip pan), que é um elemento de pontuação no qual a câmera abandona uma imagem e vai colher a seguinte em uma panorâmica rapidíssima. Por exemplo, o uso de vários chicotes para mostrar a deterioração do casamento de Kane e Emily, sua primeira mulher, na mesa do jantar. Kane aparece cada vez mais vagaroso e Emily acaba lendo o jornal concorrente. São seis cenas de dois minutos, cada uma cobrindo nove anos de matrimônio.

f) o emprego das fusões ou dissolvências (lap dissolves).

Susan Alexander

As dissolvências foram muito usadas em Cidadão Kane. Por exemplo, para resumir em poucas imagens o suplício de Susan na ópera ou combinadas com o movimento de câmera, como no travelling da boate El Rancho.

g) o emprego da iluminação.

O papel da iluminação em Cidadão Kane, aliás tomada da escola expressionista, é importantíssimo, contribuindo frequentemente para a dramaticidade. Welles contou com a inestimável colaboração de um grande diretor de fotografia, Gregg Toland. (1904-1948). Curiosamente, foi Toland quem se ofereceu para trabalhar com aquele jovem de 25 anos, porque sentiu que ia poder ter liberdade para fazer experiências. A relevância da colaboração de Toland está refletida nos créditos do filme, nos quais o seu nome aparece com o mesmo destaque que o do diretor.

Welles não somente encorajou as experimentações de Toland, como positivamente insistiu para que ele fizesse isso. Desde os primeiros dias de trabalho eles mantiveram um espírito de fervor revolucionário com relação ao filme e esta atmosfera continuou a caracterizar o seu relacionamento durante toda a produção.

Há uma tendência no filme para iluminar violentamente os personagens que escutam e deixar na sombra os que falam. Também as luzes, às vêzes, vêm de uma só fonte de iluminação, para aumentar a dramaticidade como, por exemplo, na cena da biblioteca ou quando Kane e Susan estão na enorme sala de visitas de Xanadu, que é iluminada só pelo fogo da lareira.

Durante o comício, somente Leland está visível; o restante da multidão, está obscurecido por sombras. Outro exemplo do uso de sombras ocorre quando, depois da terrível performance de sua esposa na ópera, Kane fica de pé e bate palmas sozinho, vendo-se apenas sua silhueta. Mais um exemplo: Kane apanha um pedaço de papel no qual escreveu a “Declaração de Princípios” e, enquanto lê em voz alta, seu rosto cai na sombra, obscurecendo suas feições.

A utilização da backlighting (contra-luz), que faz com que as figuras apareçam na sombra ocorre na cabine, após a projeção do cine-jornal. Tudo o que vemos são as silhuetas dos jornalistas e o contôrno de suas mãos se movendo.

h) o emprego do surrealismo.

Emprego sutil de imagens surrealistas. Por exemplo: o estranho castelo e o big close up da boca de Kane. Um efeito surreal é a imagem distorcida da enfermeira que entra no quarto de Kane moribundo como se a câmera estivesse vendo através de pedaços quebrados de vidro.

i) o emprego do jump cut (corte interrompido, quebra abrupta da continuidade de uma cena, também chamado de salto de montagem, o efeito que se obtém na tela quando se projetam dois fragmentos que não montam), para acelerar o tempo. Um exemplo é o corte para o discurso político no Madison Square Garden, onde vemos Kane falando diante de seu poster gigantesco.

1.2. No plano auditivo:

a) SOM:

Com sua experiência radiofônica, Welles deu ao elemento sonoro uma importância quase igual à imagem. Podemos notar, por exemplo:

  1. a atmosfera sonora na cena da visita à biblioteca com o emprego dos ecos.
  2. o afastamento progressivo do som à medida em que o travelling vertical nos bastidores do teatro nos conduz até o alto, onde estão os maquinistas.
  3. a lâmpada de cena que se apaga em um decrescendo delirante, exprimindo o esgotamento da personagem incapaz de suportar por mais tempo a vida de cantora medíocre, imposta por seu marido.
  4. o grito da cacatua após a partida de Susan em uma metáfora sonora exprimindo todo o desespêro de Kane. É como se ele estivesse tendo um ataque do coração.

  1. emprego do som para provocar um choque, uma surpresa brutal, uma comoção. Por exemplo, naquele corte para a música estridente iniciando o jornal cinematográfico, “News on the March”.
  2. a montagem sonora por analogia dos aplausos forçados de Kane e os aplausos também falsos de seus partidários.
  3. a montagem sonora pela qual os planos são interligados rapidamente não pela lógica da narrativa de suas imagens mas pela continuidade na trilha de som. Por exemplo, o crescimento de Kane de criança para adulto é transmitido em questão de segundos por uma técnica que Welles chamou de “lightning mix”: o guardião dá um trenó para o menino e lhe deseja “um feliz Natal” montado com o plano do mesmo homem completando a frase, agora endereçada a um adulto: “e um Feliz Ano Novo”. Ou seja, as cenas são ligadas pela trilha de som, e não pelas imagens.

b) MÚSICA:

A música acompanha a ação nas passagens cômicas ou dramáticas e é tão variada quanto o tom do filme. Um leit motif grave persegue Kane o tempo todo. Quando a narrativa ganha tons mais leves, esta gravidade desaparece como na sequência musical na séde do Inquirer. Pode-se notar um efeito interessante de sincronismo com a imagem quando a música para no momento em que se apagam as luzes do castelo.

Bernard Herrmann e orson Welles

O autor da música, Bernard Herrmann, que já havia colaborado com um Welles ainda mais moço na radiofonização de “Macbeth” no Mercury Theater of the Air e seria o futuro colaborador de Alfred Hitchock, compôs uma fictícia Ária de Salammbô (Dorothy Comingore deliberadamente dublada por uma soprano lírico leve, Jean Forward, para dar a impressão de que a personagem era inadequada para interpretá-la) especialmente para o filme, e aproveitou trechos de Chopin, Rossini, Handel, Mendelssohn e música de jazz (“This Can’t Be Love”, com o arranjo do Nat King Cole Trio).

Para simbolizar a deterioração gradual do casamento de Kane com sua primeira esposa, que transcorre na mesa do café da manhã, Herrmann usou um tema de valsa lenta com uma série de variações, que ficam cada vez menos parecidas com uma valsa e mais sombrias, na medida em que o clima entre os dois se torna progressivamente mais frígido.

O significado da palavra Rosebud, em torno da qual o filme inteiro gira, é expresso através da música, muito antes de ser revelado nas imagens. Um fragmento melódico (o motivo de Rosebud) é ouvido desde quando Kane a pronuncia no instante de sua morte e depois esse mesmo motivo é ouvido quando, ainda criança, ele está brincando na neve com o seu trenó, e mais uma vez quando a identidade de Rosebud é revelada visualmente. Outro fragmento melódico (o motivo do Poder) simboliza a sede insaciável de Kane pelo poder e sucesso indiferente às consequências.

c) DIÁLOGOS:

Os diálogos normalmente cumprem sua função de sustentar a progressão dramática ou de expor as idéias do autor. Em Cidadão Kane porém nenhum personagem é porta-voz do autor. Cada personagem dá a sua opinião sobre Kane, mas exprime apenas uma parte da verdade. A verdade total não é revelada pelos diálogos mas pela imagem do trenó se queimando na lareira. As réplicas que os roteiristas puseram na boca de Kane contribuem para exprimir as contradições do seu caráter. E as dos outros personagens também o retratam muito bem como na frase “Tudo o que ele realmente desejava na vida era amor, mas simplesmente não tinha nenhum para dar”, ou esta outra, “Ele só sabia dar gorjetas”.

Nota-se o uso do overlapping (diálogos justapostos) ou seja, quando várias pessoas falam ao mesmo tempo (como na realidade) e não uma depois da outra como fazem no teatro. Diálogos justapostos entre atores principais de um filme já haviam sido utilizados desde 1931 por Lewis Milestone em A Primeira Página / The Front Page, porém não para produzir uma impressão de conversação coletiva, como ocorreu em Cidadão Kane. Um exemplo de diálogos justapostos neste filme ocorre na cabine após a projeção do cinejornal “News on the March”.

Cenas dramaticamente expressivas:

a) a cena da chantagem de Gettys, especialmente nas últimas imagens, quando ele vem em direção à câmera para o primeiro plano com uma expressão de indiferença desdenhosa enquanto, no fundo, Kane explode de raiva.

b) a cena da cólera de Kane , quebrando o quarto de Susan.

Nessas duas cenas, a interpretação de Welles é notável. Ela tem uma grande intensidade dramática e um ritmo ofegante, e os enquadramentos, sensacionais. Por falar em interpretação, todos os atores eram desconhecidos no cinema, oriundos, como Welles, do Mercury Theatre, e por isso a equipe era bastante homogênea. Todos estão ótimos, destacando-se Welles por causa de seu papel mais importante. Outra prova da sua capacidade como ator Welles deu ao personificar com 25 anos um homem em várias fases de idade até a velhice. Mesmo com o auxílio da excelente maquilagem de Maurice Seiderman foi preciso também um esforço interpretativo por parte de Welles.

Toland, Welles e Maurice Seiderman

CENÁRIOS:

Com relação aos cenários, em interiores, aparece o teto. Na maioria dos filmes até então, nunca se via o teto, porque a iluminação vinha de cima. Para fotografar o teto, Toland colocou a câmera ao nível do assoalho com a iluminação também vindo de baixo. Os tetos que aparecem sempre que os ângulos de câmera ficam mais baixos (low angle), eram feitos de tecido (mousseline), e a captação do som, com o microfone atrás do tecido. Os cenários com tetos contribuiam para fechar o universo em que se moviam os personagens, tornando-o mais angustiante, mais “esmagador”.

Darrell Silvera e Van Nest Polglase

A gente pode perguntar qual é o significado daquela imensa biblioteca de estilo expressionista. Será que era para abrir pomposamente o livro da vida daquele homem pomposo ou, mais simplesmente, para criticar o abuso americano dos meios desproporcionados aos seus fins?

Em muitas cenas Welles e Perry Ferguson reutilizaram cenários de outros filmes da RKO e na sequência em Everglades eles usaram tomadas de arquivo de O Filho de King Kong / Son of Kong / 1933.

Perry Ferguson

Cumprindo instruções de Welles, Perry Ferguson desenhou cada cena (story board), pois o diretor queria que os cenários do filme fizessem parte integral da narrativa do filme; eles deveriam contribuir para a ação do filme, e não meramente funcionar como seu pano de fundo.

O principal interior de Xanadu é uma vasto salão definido por uma escadaria muito alta de pedra, uma lareira gigantesca e estátuas colossais – frequentemente a única companhia do casal. A esposa de Kane se entretem com um jogo de quebra cabeças enorme – tudo neste lugar é demasidamente grande. Neste aspecto Cidadão Kane é um refêrencia aos filmes de horror como Drácula / Dracula / 1931 realizados anteriormente por Charles D. Hall na Universal.

EFEITOS ESPECIAIS:

Em Cidadão Kane há um trabalho consideravelmente maior de efeitos especiais do que na maioria dos filmes de Hollywood na época. Uma das razões é de ordem financeira. Cidadão Kane foi realizado dentro de um orçamento que, devido à natureza e extensão de seu tema, era bastante limitado, e todo o empenho foi necessário para manter seu custo reduzido. Por exemplo, Welles foi obrigado a recorrer a artifícios óticos: nos planos do Madison Square Garden, somente a plataforma dos oradores é um set de ação com atores; o gigantesco salão e a platéia são pintados.

Na RKO, ao contrário de outros estúdios, as funções dos efeitos especiais estavam agrupadas em um departmento único e integrado, chamado Efeitos de Câmera, dirigido por Vernon L Walker. Havia câmeras especificamente projetadas ou adaptadas para a filmagem de efeitos. Mario Larrinaga era o pintor de matte e Linwood Dunn operava a trucagem ótica. Há no filme muito pouca projeção de fundo; essa técnica opunha-se à paixão de Welles pela profundidade de campo e pelo movimento sofisticado da câmera.

Vernon L. Walker e Linwood Dunn

Quanto ao uso do matte (que ocorre quando um elemento da cena sendo filmada é ação ao vivo e o remanescente é uma imagem pintada), temos dois exemplos notáveis: 1. Na cena em que os empregados do Inquirer têm o primeiro vislumbre da noiva de Kane apenas um detalhe do set foi realmente construído. O edifício e seus arredores foram pintados por Larrinaga; 2. Na cena do cortejo para o piquenique em Everglades, a ação com atores foi filmada na praia de Malibu, onde o terreno em volta é montanhoso. Larrinaga pintou um panorama mais nivelado e uma vegetação mais típica de uma locação na Flórida. O castelo de Xanadu foi inspirado na mansão de San Simeon de propriedade de Hearst e no famoso Mont Saint Michael da França.

Um efeito ótico memorável providenciado por Lindwood Dunn foi aquele travelling já mencionado nos bastidores da ópera: Welles lhe pediu que o movimento de câmera fosse bem longo para que ela chegasse até o teto. Dunn construiu uma miniatura e, na medida em que a câmera subia, alternaram-se imagens da miniatura com as reais. Cinquenta por cento das tomadas de Cidadão Kane foram obtidas por efeitos especiais.