GÉRARD PHILIPE I

dezembro 1, 2017

Ele foi um dos grandes atores do cinema francês ao lado de Harry Baur, Raimu, Louis Jouvet, Fernandel, Jean Gabin, Jean Marais e Pierre Fresnay, sobre os quais já me pronuncei em artigos anteriores. Sua imagem juvenil e romântica permanece na mente de todos os que o viram representar no teatro ou na tela.

Gérard Philipe

Gérard Philipe nasceu no dia 4 de dezembro de 1922 em Cannes, França, filho de Marcel Philip e Marie Elisa Villette (“Minou”), de ascendência tcheca e tida como uma cartomante notável. O pai era advogado e depois se tornou um hoteleiro rico, proprietário de diversos estabelecimentos na Côte d ‘Azur e em Paris. Gérard e seu irmão mais velho, Jean, estudaram no colégio interno Stanislas dos irmãos maristas. Gérard terminou seu ensino secundário no início da Segunda Guerra Mundial e seu pai o matriculou na Faculdade de Direito em Nice, mas o rapaz já pensava em seguir uma carreira de ator.

Minou, Gérard e seu irmão Jean

Durante a Ocupação, vários diretores, produtores e atores se refugiaram na Côte d’Azur, que estava situada na Zona Livre. Em 1941, Marc Allégret, um desses diretores, soube por acaso das sessões de vidência de Mme. Philip no Hôtel Parc de propriedade de seu marido, e foi com seus amigos consultá-la. Sabendo que seu filho queria fazer teatro, “Minou” persuadiu Allégret a fazer um teste com Gérard.

Entre os anos 30 e 50, Marc Allégret era considerado um grande descobridor de talentos, pois foi ele quem deu a primeira chance à maioria das vedetes da época: Simone Simon, Jean-Pierre Aumont, Michèle Morgan, Jean-Louis Barrault, Louis Jourdan, Daniel Gélin, Dany Robin, Jeanne Moreau e muitos outros, sem esquecer Brigitte Bardot. Por telefone, Allégret pediu a Gérard que aprendesse uma cena da peça de Jacques Deval, “Etienne”, e após a prova ficou surpreso com os dons do rapaz, muito raros em um principiante, faltando-lhe apenas a prática e as manhas do ofício de ator.

Allégret aconselhou-o a seguir o curso de arte dramática de Jean Wall e Jean Huet em Cannes. Um dia. Jean Huet aconselhou-o a procurar Claude Dauphin, que estava para encenar “Une Grande Fille Tout Simple” de André Roussin no Cassino de Nice. “O quê você preparou?”, perguntou Dauphin. Gérard lembrou-se de um poema, Les Poissons Rouges, de Franc-Noain. O nome do poeta arrancou um sorriso dos lábios de Dauphin, que era sensível às recomendações de Allégret e Huet, porém mais ainda ao nome de Franc-Noain. Gérard recitou o poema e Dauphin lhe confiou o papel de Mick, um jovem adolescente. Ele se revelou um ator completo, que não tardaria a mostrar que era capaz de interpretar qualquer papel.

Em 1941, Marc Allégret contratou-o para fazer uma “ponta” no filme A Tentadora / La Boîte aux Rêves (lançado somente em 1945) de seu irmão Yves Allégret. Em 1943, Gérard teve sua verdadeira primeira oportunidade na tela em Les Petites du Quai aux Fleurs de Marc Allégret, filme sobre uma juventude ardente que desperta para a vida e para o amor, no qual abundam os namoricos, rivalidades e reconciliações das quatro filhas (Odette Joyeux, Simone Sylvestre, Danièle Delorme, Colette Richard) de um livreiro (André Lefaur), em torno das quais gravitam vários rapazes (Louis Jourdan, Bernard Blier, Jacques Dynam, Gérard Philipe), fazendo com que o livreiro fique por vezes a ponto de perder a sua costumeira serenidade.

Gérard Philipe e Colette Richard em Les petites du Quai aux Fleurs

No mesmo ano, Gérard obtém seu primeiro sucesso e a celebridade, aos vinte anos de idade, no papel do anjo em “Sodome et Gomorre” de Jean Giraudoux, e entra para o Conservatório Nacional de Arte Dramática, onde acompanhou os cursos de Denis d’Inès e depois o de Georges Le Roy, o homem que iria marcar sua carreira teatral e orientá-la de maneira definitiva. A confiança mútua era tão grande que, a cada etapa importante de sua carreira, Gérard ia consultar Le Roy.

Antes das provas do final de ano, Gérard pediu seu desligamento do Conservatório porque o teatro e o cinema o solicitavam, e ele iria se consagrar a eles com todo o seu entusiasmo. Em 1945, participou de uma nova peça, “Fédérigo”, de René Laporte, um filme de Georges Lacombe, Le Pays sans Étoiles e, finalmente, de outra peça, “Caligula”, de Albert Camus. Atendendo ao conselho de “Minou”, Gérard acrescentou um “e” ao seu nome, para obter treze letras com o seu nome e prenome, uma cifra de boa-sorte, segundo sua progenitora.

Gérard Philipe em Le Pays sans Etoiles

Le Pays sans Étoiles é um filme no gênero fantástico, com um roteiro muito inventivo, no qual, Simon (Gérard Philipe), jovem ajudante de escrivão sonhador e romântico, tem uma visão perturbadora de um crime cometido em 1830, no qual um tal de Frédéric (Gérard Philipe) assassinara o irmão, Frédéric-Charles (Pierre Brasseur) por causa de uma mulher, Aurélia (Jany Holt). Ele revive no tempo presente o mesmo drama do passado, ao qual é atraído por sonhos premonitórios e um sentimento inquietante de reencarnação. Agora, seu irmão chama-se Jean-Thomas (Pierre Brasseur) e Aurélia, atende pelo nome de Catherine (Jany Holt).

Em 24 de dezembro de 1945, o pai de Gérard foi condenado à morte por contumácia por ter colaborado com o inimigo e pertencer a um grupo antinacional, sem que nenhuma prova tivesse instruído seu processo. Ele se refugiou em Barcelona na Espanha, onde se tornou professor de francês. Posteriormente, veio a ser anistiado pelo General de Gaulle.

Gérard Philipe no palco como Calígula

A interpretação de Gérard Philipe em “Caligula”, de Albert Camus, foi uma espécie de revolução. Gérard fez uma composição inesquecível, metade-anjo, metade-demônio, elogiado por uma crítica entusiasmada e aclamado pelos espectadores e por seus próprios colegas. Foi então que Georges Lampin lhe deu sua segunda boa chance no cinema: o papel do príncipe Muichkine de O Idiota / L’Idiot / 1946.

A história é muito conhecida. Em síntese, o príncipe Muichkine volta a São Petersburgo, depois de passar cinco anos em uma clínica. Sofrendo de epilepsia e acreditando na bondade, ele passa por um idiota. Seu parente, o general Epantchine (Maurice Chambreuil), quer casar sua filha Aglaé (Nathalie Nattier) com Totsky (Jean Debucourt), mas é preciso afastar a amante deste, Nastasia Philippovna (Edwige Feuillère). O secretário do general, Gania (Michel André), aceita, mediante uma polpuda soma, casar-se com Nastasia. Humilhada e infeliz, Nastasia propõe se vender a quem pagar mais. Para salvá-la dessa humilhação, Muichkine lhe propõe casamento, porém ela prefere aceitar a proposta do mercador Rogojine (Lucien Coëdel), que lhe oferece cem mil rublos.

Gérard Philipe em O Idiota

Edwige Feuillère e Gérard Philipe em O Idiota

Gérard Philipe e Lucien Coëdel em O Idiota

O romance de Dostoiévski foi despojado de sua profundidade espiritual, porém Lampin, cineasta de origem russa, conseguiu reconstituir uma atmosfera plausível. O filme vale, sobretudo pelas interpretações de Edwige Feuillère e Gérard Philipe, notadamente em duas sequências de grande impacto dramático. A primeira, na residência de Nastasia Philippovna, quando ela joga o pacote dos cem mil rublos no fogo da lareira diante dos convidados atônitos, depois de relembrar, emocionada, incidentes de sua vida infeliz. A segunda, no final, quando Rogojine, com uma vela na mão, conduz Muichkine pelos corredores de sua casa até o quarto onde jaz o corpo de Nastasia. Aí termina o drama, com o primeiro plano do rosto do príncipe, chorando com um riso de louco nos lábios.

Gérard repousava em uma pequena cidade dos Pireneus, quando recebeu um telegrama de Paris. Claude Autant-Lara desejava lhe confiar o papel de François em Adúltera / Le Diable au Corps / 1947. O enredo tratava do seguinte: no enterro de Marthe Lacombe, um rapaz, François Jaubert (Gérard Philipe), cheio de tristeza, recorda o passado. Em 1917, ele conheceu e se apaixonou por Marthe (Micheline Presle), mas ela estava noiva. Alguns meses mais tarde, François reencontra Marthe já casada e os dois se tornam amantes enquanto o marido dela, Jacques (Maurice Lagrenée) está lutando na guerra. Marthe engravida, porém François hesita em assumir suas responsabilidades e Marthe morre no parto, pronunciando o nome do amante. Jacques vai educar a criança, sem saber que ela não era sua.

Gérard Philipe e Micheline Presle em Adúltera

Micheline Presle e Gérard Philipe em Adúltera

Micheline Presle e Gérard Philipe em Adúltera

Tal como o romance de Raymond Radiguet, o filme provocou o escândalo por abordar uma relação de adultério entre dois jovens enquanto milhares de homens estavam morrendo para salvar a pátria. Os defensores da moral não perceberam que tanto o livro como o filme proclamavam antes de tudo o direito ao amor e ao prazer reprimidos pelas guerras e que os dois amantes eram vencidos pelo que Jean Cocteau chamou de “furor público contra a felicidade”. A adaptação e a realização são impecáveis, sobressaindo a utilização muito feliz do retrospecto por meio da diminuição do som dos sinos da igreja. Micheline Presle e Gérard Philipe transmitem com emoção um relacionamento ao mesmo tempo tórrido e imaturo. Os protestos moralistas se atenuaram quando Gérard Philipe ganhou o Grande Prêmio de Interpretação Masculina no Festival de Bruxelas.

Logo depois de Adúltera, Gérard foi convidado por Christian-Jaque para filmar em Roma La Chartreuse de Parme / 1948, que aqui levou o título de A Sombra do Patíbulo ou Amantes Eternos. O argumento conta como em Parma, Fabrice del Dongo (Gérard Philipe), conquistador impenitente, apaixona-se por Clélia Conti (Renée Faure), enquanto sua bela tia, La Sanseverina (Maria Casarès), arde de um amor secreto pelo sobrinho. Ocorrem muitas peripécias, envolvendo ainda: o primeiro-ministro, conde Mosca (Tullio Carminatti), amante de La Sanseverina; o sinistro chefe de polícia Rassi (Lucien Coëdel), que quer ocupar o lugar de Mosca; o monarca Ernest IV (Louis Salou), interessado em La Sanseverina; e o anarquista Ferrante Palla (Attilio Dottesio), que durante uma revolução assassina Ernest. Finalmente, Fabrice se interna para o resto de sua existência em um convento.

Gérard Philipe e Maria Casarès em A Sombra do Patíbulo

Gérard Philipe em A Sombra do Patíbulo

Gérard Philipe e Renéee Faure em A Sombra do Patíbulo

Christian-Jaque adaptou com muita liberdade a obra de Stendhal, transformando um grande romance em um mero filme de aventuras. Concentrado no simples jogo das intrigas, o espetáculo é muito bom, graças aos acontecimentos rocambolescos – aos quais o diretor deu bastante vivacidade -, aos esplêndidos cenários, ao cuidado com que foram compostas as imagens e aos serviços prestados por intérpretes experientes. Entre eles, destaca-se a presença de Gérard Philipe, um Fabrice ardente e romântico à altura do herói stendhaliano.

Os dois filmes seguintes de Gérard, Une Si Jolie Petite Plage / 1948 e Tous les Chemins Mènent à Rome / 1948, tiveram resultados diferentes: o primeiro filme, resultou bem melhor do que o segundo.

Em Une Si Jolie Petite Plage, dirigido por Yves Allégret, Pierre Monet (Gérard Philipe) chega em uma noite chuvosa a uma praia no norte da França. Ele se dirige ao hotel de Mme. Mayeu (Jane Marken), sobrinha do antigo proprietário paralítico, que parece reconhecer o rapaz, mas não pode falar. Mme. Mayeu maltrata um órfão de 15 anos da Assistência Pública, que uma ricaça usa para seus caprichos sexuais. Pierre esteve outrora nessa mesma situação. Foragido da Assistência Pública, maltratado pelo velho hoteleiro, ele fugiu com uma cantora mais velha, assassinou a amante e, procurado pela polícia, voltou ao lugar de sua adolescência. Marthe (Madeleine Robinson), uma criada do hotel, tenta ajudá-lo, mas ele se suicida.

Gérard Philipe e Madeleine Robinson em Une Si Jolie Petite Plage

Trata-se de um drama profundamente triste, típico do realismo negro, que sucedeu no pós-guerra ao realismo poético. A história que tem suas raízes no passado, é contada em um estilo indireto, sem nenhum retrospecto. A verdade é revelada pouco a pouco, através do comportamento de Pierre e da cantora assassinada, evocada por um velho disco, que os clientes do hotel costumam escutar. A ação transcorre em uma atmosfera pesada de chuva e nevoeiro incessantes, criada por uma excepcional fotografia em preto e branco. Gérard Philipe vive um de seus melhores papéis no cinema, compondo com muita sobriedade o perfil do jovem criminoso atormentado, que retorna àquela “pequena praia tão bonita”, para encontrar seu destino

Em Tous le Chemins Mènent à Rome, dirigido por Jean Boyer, Gabriel Pégase (Gérard Philipe), jovem geômetra amalucado, vai para Roma com sua irmã Hermine (Marcelle Arnold), a fim de participar de um congresso. No caminho, eles encontram Laura Lee (Micheline Presle), uma atriz. Obcecado por romances policiais, Gabriel pensa que esta última está sendo perseguida por gangsters e se oferece para protegê-la. Laura, que procura viajar incógnita, aproveita da ingenuidade do jovem para escapar dos jornalistas. Depois de perseguições inverossímeis, Gabriel e Laura chegam a Roma, onde eles descobrirão a felicidade.

Micheline Presle e Gérard Philipe em Tous les Chemins Mènent a Rome

Infelizmente, um ponto de partida inteligente e situações originais imaginadas pelo roteirista Jacques Sigurd foram desperdiçados por uma direção fraca, que transformou a possibilidade de uma boa comédia à moda americana em um espetáculo que suscita tímidos sorrisos apesar do esforço dos intérpretes para dar credibilidade aos seus personagens.

Entre a Mulher e o Diabo / La Beauté du Diable / 1949 marcou o primeiro encontro de Gérard Philipe com René Clair. Embora costumasse escrever sozinho o argumento e os diálogos de seus filmes, o cineasta apelou para a colaboração do conhecido dramaturgo Armand Salacrou, para ajudá-lo a atar e desatar os fios das maquinações deste Fausto moderno. Na versão deles, o velho professor Fausto (Michel Simon) recebe a visita de Mefistófeles (Gérard Philipe). Fausto se recusa a lhe vender sua alma em troca da juventude, o que, no entanto, Mefistófeles lhe concede sem fazer nenhuma exigência. Fausto recupera sua aparência de vinte anos e encontra a cigana Margarida (Nicole Besnard), que se apaixona por ele. Porém, ele se dá conta de que a juventude não vale nada sem dinheiro e assina o pacto com o diabo. Mefistófeles, que tomou as feições do velho Fausto, ensina-lhe a fabricar ouro e o introduz na corte do príncipe regente. Fausto recebe todas as honrarias e se torna amante da princesa (Simone Valère). Quando Mefistófeles cobra a sua parte no acordo, Fausto não quer mais cumprí-lo.

Gérard Philipe em Entre a Mulher e o Diabo

Gérard Philipe e Michel Simon em Entre a Mulher e o Diabo

René Clair dirige Gérard Philipe e Nicole Besnard em Entre A Mulher e o Diabo

Nicole Besnard e Gérard Philipe em Entre Deus e o Diabo

Gérard Philipe e Simone Valère em Entre a Mulher e o Diabo

Eis aqui a velha lenda do Fausto, que exprime dois grandes temas da humanidade: a nostalgia da juventude perdida e a tentação do poder. Apesar da magnitude e da seriedade do assunto, René Clair tratou seu filme em um tom de fantasia. O espetáculo propicia um confronto entre dois atores absolutamente fora de série: Gérard Philipe como um Fausto diabolicamente rejuvenescido e Michel Simon como um diabo truculento. As cenas nas quais Fausto ainda não está habituado com o seu corpo de jovem e conserva a maneira de andar e os tiques de um ancião ou aquelas nas quais, até então desligado dos bens deste mundo, ele é subitamente habitado por um anjo do mal barbudo, debochado e concupiscente, bastam para demonstrar o talento extraordinário dos dois intérpretes.

Nos anos cinquenta, os filmes em esquetes estava na moda e Gérard participou de dois: Lembranças do Pecado / Souvenirs Perdus / 1950 de Christian-Jaque e Conflitos de Amor / La Ronde / 1950 de Max Ophuls

No primeiro filme, quatro objetos perdidos e depois encontrados – uma estatueta de Osiris, uma corôa mortuária, uma echarpe de peliça e um violão – fornecem os temas de quatro esquetes, cada qual interpretado por grandes atores do cinema francês (Edwige Feuillère, Pierre Brasseur, François Périer, Bernard Blier, Yves Montand. Suzy Delair, Armand Bernard). Gérard Philipe participou do episódio da echarpe, como um homem que estrangulou sua antiga amante e depois o médico que mandou interná- lo em um asilo. Ao fugir da polícia, ele encontra uma jovem (Danièle Delorme) prestes a se suicidar nas margens do Sena, e a leva para um quarto, onde lhe revela que foi internado por sórdidas questões de interesse: sua família colocou-o no asilo para se apropriar de sua fortuna. Ele acaba estrangulando a jovem com a echarpe.

Simone Signoret e Gérard Philipe em Conflitos de Amor

No segundo filme, um narrador (Anton Walbrook) faz a A Roda do Amor girar como um carrossel e apresenta os amores da prostituta Léocadie (Simone Signoret) com o soldado Franz (Serge Regiani). Depois, Franz seduzindo a empregadinha Marie (Simone Simon) que iniciará no sexo o jovem de boa família Alfred (Daniel Gélin) que, por sua vez, faz sucumbir a virtude de Emma (Danielle Darrieux), uma mulher casada. Emma se reune com seu marido Charles (Fernand Gravey) em seu leito conjugal. Charles busca uma aventura amorosa com a costureirinha Anna (Odette Joyeux), que é presa fácil do poeta-dramaturgo Robert Kuhlenkampf (Jean-Louis Barrault), que a abandona, para se encontrar com a atriz (Isa Miranda) que, a seu turno, se entregará ao conde (Gérard Philipe). Ele não voltará para um segundo encontro, passando a noite com Léocadie. E assim a Roda termina, precisamente onde havia começado.

Gérard já era um ator célebre quando atuou em Juliette ou la Clé des Songes / 1950 e seu diretor, Marcel Carné, desde o primeiro dia de filmagem ficou surpreso com a atitude deste jovem tão diferente dos outros, que procurava aprofundar, sem cessar, seu personagem. Durante seu trabalho, ele não deixava nada ao acaso ou à improvisação, tudo era estudado, calculado, anotado. “Um dia em que nós discutíamos calmamente – como sempre era o caso com ele – a entonação de uma frase, ele abriu a sua cópia do roteiro e me mostrou o que havia escrito à margem de uma cena, neste lugar preciso, o sentimento que ele pretendia exprimir. Ele não podia modificá-la, porque – ele virava as páginas procurando – dez páginas mais adiante uma outra réplica, que estava igualmente anotada, um outro sentimento expresso, contrabalançava com o anterior. Todo o roteiro era assim repleto de reflexões, de observações ou de reações, formando um todo bastante meditado, do qual ele não tinha intenção de se afastar.”(Marcel Carné em Ma Vie À Belles Dents – Mémoires, l’Archipel, 1996).

Gérard Philipe e Suzanne Cloutier em Juliette ou la Clé des Songes

No filme de Carné, Gérard Philipe é Michael Grandier, um jovem vendedor, que ama Juliette (Suzanne Cloutier), sua companheira de trabalho. Para oferecer à sua colega algumas horas de perfeita felicidade à beira mar, ele rouba dez mil francos da caixa registradora de seu patrão, Monsieur Bellanger (Jean-Roger Caussimon). Quando retornam, Michel é preso e na prisão, ele adormece e sonha. Subitamente, o rapaz se vê livre e do lado de fora depara com um ambiente campestre, céu azul e o canto dos pássaros. Ele chega ao topo de uma montanha e avista uma aldeia totalmente branca. Todos os habitantes perderam a memória. Apenas um acordeonista (Yves Robert) é capaz de lembrar do passado enquanto está tocando seu instrumento. Na aldeia, Michel encontra Juliette novamente, mas ela também perdeu a memória. Ele a segue até um castelo, habitado por um nobre estranho e barbudo, (Jean Roger Caussimon), que é uma espécie de Barba Azul. Ao saber que o Barba Azul subjuga Juliette e vai se casar com ela, Michel subleva os aldeões e os lança em um assalto ao castelo. Arrombando as portas dos armários, eles encontram vestidos sujos de sangue e alianças. Quando finalmente Michel tenta arrancar Juliette do poder do Barba Azul, ouve-se um som estridente. Este toque, que é o da prisão, desperta Michel na sua cela. Ele é conduzido à presença do comissário, que é o retrato vivo de um guarda que ele encontrara no País das Pessoas Sem Memória, e lhe informa que seu patrão, a pedido de Juliette, retirou a queixa contra ele. Michel vai ser libertado. Um pouco mais tarde, ele ouvirá da própria Juliette, que ela vai se casar com seu patrão, que ele reconhece como o Barba Azul do seu sonho. Michel foge de novo. Juliette corre atrás dele. Michel para diante de uma placa, onde está escrito: Perigo de Morte. Juliette passa sem vê-lo, e ele empurra uma porta, que atravessa sem hesitar. Suicídio ou evasão, Michel volta para o País das Pessoas Sem Memória.

Gérard Philipe em Juliette ou la Clé des Songes

 

Jean Cocteau havia adaptado para o cinema a peça de Georges Neveu. Sob direção de Marcel Carné, André Paulvé deveria ser o produtor e Jean Marais o intérprete principal. Dificuldades impediram a realização do filme, que só veio a ser produzido mais tarde por Sacha Gordine, sem Jean Marais, e com uma adaptação de Jacques Viot, bem diferente daquela feita por Cocteau. Selecionado para o Festival de Cannes, o filme foi um fracasso retumbante. Entretanto, Juliette ou la Clef des Songes não é um filme desprezível. Embora não tivesse sido um espetáculo perfeito, por causa da percepção de uma certa frieza no conjunto desse conto de fadas, os cenários soberbos de Alexandre Trauner, iluminados e filmados por Henri Alekan, (as cenas na floresta são absolutamente maravilhosas), a música melodiosa de Joseph Kosma, e a técnica experiente do diretor, conseguiram criar uma atmosfera onírica, que não deixa de ter o seu encanto. Quanto à Gérard Philipe, ele teve uma interpretação digna do seu talento nos limites do papel que lhe foi confiado.

Gérard Philipe no palco como Le Cid

Em 1951, Jean Vilar, que assumira a direção do Théâtre National Populaire (TNP), convida Gérard a integrar sua trupe e interpretar “Le Prince de Hombourg” de Kleist e “Le Cid” de Pierre Corneille, e ele aceita com entusiasmo. Os que viram “Le Cid” e a performance de Gérard no papel mais mumificado da tragédia francêsa, jamais o esquecerão. Fogoso, apaixonado, sensível, romanesco, ele conseguiu o que o teatro não havia conhecido desde Mounet-Sully: uma criação de instantes perfeitos”. (Armand Gatti – Paris-Match, citado por Maurice Périsset no seu magnífico livro Gérard Philipe ou la jeunesse du monde, Ouest-France 1985).

Gérard Philipe e Jean Vilar

Gérard Philipe no palco com Gaby Silvia em Ruy Blas

Gérard garantiu um imenso sucesso popular ao repertório clássico em Paris, em excursões, e no Festival de Avignon, participando de várias peças também como diretor ou sob as ordens de Jean Vilar, notadamente em Ruy Blas (1954), dizendo com perfeição os belos versos tão numerosos de Victor Hugo.

Gérard e sua esposa Anne

Em 29 de novembro de 1951 Gérad se casou com Nicole Fourcade, uma etnóloga com a qual já vivia desde 1946, na prefeitura de Neuilly-sur-Seine, após o divórcio dela. Ele pediu a sua esposa que readotasse seu primeiro prenome, Anne, que ele achava mais poético. Eles tiveram dois filhos, Anne-Marie Philipe, que se tornou escritora e atriz e Olivier Philipe.

Gérard não abandonou o cinema e em 1952 fêz Fanfan la Tulipe / Fanfan la Tulipe de Christian-Jaque. Eis o resumo do argumento: a bela cigana Adeline (Gina Lollobrigida) revela a Fanfan (Gérard Philipe) que ele se cobrirá de glória no exército e se casará com a filha do rei. Fanfan consegue salvar de uma emboscada a Marquesa de Pompadour (Geneviève Page) e a própria Henriette de France (Sylvie Pélayo). Desejoso de rever Henriette, Fanfan penetra clandestinamente no castelo, mas é preso e condenado à fôrca. Adeline, que o ama, obtém a graça do rei. Mas como ela se recusa a “agradecer” o gesto do monarca, este encarrega seu homem de confiança, Fier-à-Bras (Nöel Roquevert), de raptá-la. Mas Fanfan vai salvá-la.

Gérard hilipe em Fanfan la Tulipe

Gérard Philipe e Gina Lollobrigida em Fanfan la Tulipe

Gérard Philipe e Gina Lollobrigida em Fanfan la Tulipe

Seguindo a fórmula de Alexandre Dumas, Christian-Jaque entrecruza personagens da história da França, em particular Luis XV e madame de Pompadour, com criaturas de ficção, em um redemoinho de peripécias cheias de charme, fantasia e humor. Fanfan torna-se, graças ao talento de Gérard Philipe, uma espécie de herói saltitante à maneira de Douglas Fairbanks, pronto para enfrentar o irascível ferrabrás (magnificamente composto por Nöel Roquevert) com uma agilidade e um entusiasmo que eletrizam o público. É preciso render homenagem ao diretor, que impôs ao espetáculo uma animação que não se enfraquece em nenhum momento, seja nas cenas de ação ou nas passagens mais intimistas.

 

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