CABIRIA, MACISTE E UMA CENA DE SANGUE
julho 7, 2017Produzido pela Itala Film, Cabiria / Cabiria / 1914 (subintitulado “Visione Storica dei Terzo Secolo A.C.”) não foi baseado em nenhuma obra literária. Apenas os produtores tiveram a idéia de interessar o grande escritor Gabriele D’Annunzio a participar do projeto, a fim de conferir um título de nobreza ao filme (inicialmente intitulado “Il Romanzo delle Fiamme”) e, ao mesmo tempo, garantir seu êxito comercial. O que atraiu D’Annunzio para o cinema foi sobretudo o interesse financeiro. Os temas extraídos de seus livros lhe rendiam bastante dinheiro, sendo que, com a sua colaboração em Cabiria, ganhou 50 mil liras.
Giovanni Pastrone começou sua carreira em 1905, trabalhando como contador no estúdio Carlo Rossi & C. Em setembro de 1908, ele e o engenheiro Carlo Sciamengo, que ficara encarregado da liquidação do estúdio, reestruturaram a empresa e lhe mudaram o nome para Itala Film. Nessa nova estrutura, Pastrone tornou-se diretor artístico enquanto Sciamengo cuidava da parte financeira da companhia. A Itala Film contratou diversos atores francêses como o cômico André Deed, intérprete de vários filmes da série Cretinetti, muito apreciados pelo público e que contribuiram grandemente para as receitas da empresa, e lhe permitiram se afirmar no mercado europeu. Em 1911, a Itala Film transformou-se em sociedade em nome coletivo e adotou a razão social Itala film-Ing. Sciamengo & Pastrone:snc.
A filmagem de Cabiria durou vários meses em Turim para as cenas de interiores e nos Alpes para os exteriores. O espetáculo durava mais de duas horas e compreendia sequências com uma cenografia inponente para a época e o emprego tímido do travelling lateral tentando produzir efeito estereoscópico. Entre as cenas mais impressionantes: o cerco de Siracusa, a travessia dos Alpes pelo exército de Aníbal, a escalada de Fulvio nos muros de Cartago; o incêndio das naves romanas com a utilização dos espelhos de Arquimedes, a invocação dos sacerdotes no templo de Moloch.
A trama, de veia romântica, e com evidentes defeitos de grandiloquência e ingenuidade dramática, transcorre no tempo das Guerras Púnicas. Piratas cartaginêses assombram as costas italianas, raptam romanos, que são vendidos como escravos. A menina Cabiria (Carolina Catena) é comprada pelo sumo sacerdote de Moloch, que deseja queimá-la viva em louvor à sua divinidade. Ela é salva pelo romano Fulvius Axilla (Umberto Mozzato) e seu escravo africano Maciste (Bartolomeo Pagano). Mas quando eles tentam sair de Cartago, a fim de salvar Roma do ataque iminente de Aníbal, são emboscados. Fulvius consegue escapar, mas Maciste, depois de entregar Cabiria para Sofonisba, (Italia Almirante Manzini), a filha do Rei Asdrúbal, é aprisionado. Cabiria recebe um novo nome, Elissa (Lidia Quaranta), e se torna escrava de Sofonisba.
Dez anos depois, Fulvius retorna a Cartago e resgata Maciste. Porém os dois são capturados pelos cartaginêses. Elissa lhes dá água e os trata com bondade. Maciste foge, entortando as barras de ferro da prisão, e ele e Fulvius se refugiam em uma adega subterrânea. Sofonisba, persuade Massinissa, agora governando Cartago, a poupar a vida deles e, antes de sacrificar a própria vida para não se entregar a ele, ela liberta Elissa. Fulvius e Elissa se apaixonam enquanto Maciste os acompanha na sua viagem vitoriosa de volta a Roma.
Na noite de 18 de abril de 1914, no Teatro Vittorio Emanuelle de Turim, com uma orquestra de noventa professores e um côro de setenta vozes para executar a partitura original de Manlio Mazza e um interlúdio de onze minutos especialmente composto por Ildebrando Pizzetti, deu-se a pré-estréia de Cabiria, seguida um mês depois pela sua apresentação simultânea em Paris, Londres e Nova York.
Após o lançamento de Cabiria a imprensa e as platéias nacionais e internacionais aclamaram Maciste como um herói italiano, admirado por sua força e bravura, assim como pela sua bondade e gentileza, logo apelidando-o de “Il Gigante Buono”.
Bartolomeo Pagano, nascido em Sant’Ilario Ligure, Gênova em 1878, trabalhava como estivador no pôrto quando Pastrone (que procurava um desconhecido para interpretar o escravo em Cabiria) ”descobriu-o”, e o levou para os estúdios da Itala Film em Turim. Ele conquistou a admiração do público no papel secundário do homenzarrão simpático e sorridente e continuou na tela como ator principal (na Itala Film, na Jakob Karol Film da Alemanha, e na Fert Film e Società Anonima Pittaluga) a partir da série inaugurada com Maciste / Maciste / 1915, tornando-se um dos astros mais bem pagos do cinema italiano.
De escravo africano em Cabiria a soldado alpino ou gentilhomem burguês nos tempos modernos, Maciste era uma figura que refletia o ideal clássico de beleza masculina e virilidade, que seria depois usado por Mussolini com intenções políticas. A palavra “Maciste” entrou para o vocabulário italiano como um termo geral para um colosso ou gigante; alguém diria que uma pessoa “era um verdadeiro Maciste”. Muitos anúncios de filmes nos quais Pagano não fazia papel de Maciste, o anunciavam como Maciste ou pelo menos colocavam o nome do personagem em parêntesis ao lado do nome do ator.
A cinematografia italiana possuía então o maior grupo de atletas cujas proezas na tela faziam as delícias do público daquela época – Bruto Castellani (o Ursus nos dois Quo Vadis?, o de 1913 e o de 1924); Mario Guaita (o Spartaco em Spartaco / 1913), Alfredo Boccolini (Galaor); Domenico Gambino (Saetta); Carlo Aldini (o Aquiles em Helena, filme alemão de 1924); Giovani Raicevich (“O Rei da Força”); Adelardo Arias e Lionel Buffalo (juntos em A. O Príncipe Enrique / Sua Alteza Reale, Il Principe Enrico / 1916) -, porém nenhum desses rivais de Maciste o suplantaram em popularidade.
Um dia, o telégrafo anunciou que Maciste morrera na frente de batalha pelos austríacos, em consequência de uma luta corpo a corpo à baioneta. A notícia causou consternação no Brasil. Depois veio o desmentido: a pessoa citada no despacho – Ernesto Pagani – não era o querido a ator peninsular!
Pagano ainda faria quase duas dezenas de filmes e abandonaria o cinema somente quando da fase final do cinema mudo de sua pátria, não por causa do advento do som, mas devido a um caso severo de diabetes e arterioesclerose. Ele faleceu em sua residência, Villa Maciste, na cidade de Gênova, em 1947, aos 69 anos.
Conforme noticiou o Correio da Manhã de 11 de fevereiro de 1916, uma cena de sangue ocorreu no Cinema Odeon no Rio de Janeiro durante a exibição do filme Maciste: um espectador foi ferido a bala, no ventre. Aconteceu na sessão das oito da noite do dia anterior. O ferido era o capitalista João Vaz de Carvalhaes, de 25 anos de idade, solteiro, brasileiro e portador de um título nobiliárquico. O senhor Visconde de Carvalhaes, como era geralmente conhecido, foi educado em Paris, onde tinha pessoas da sua familia. Ali conheceu Mme. Louise Duchen, que se tornou sua amante, vindo com ele para o Rio de Janeiro, há uns três mêses.
A polícia apurou que o tenente-coronel Mendes de Moraes, diretor da Cooperativa Militar, acompanhado de uma senhora e do seu amigo, o sr. João Cavalcanti do Rego, tenente-coronel da Guarda Nacional e gerente da Cooperativa Militar, foi ao Odeon assistir a Maciste. Na frente deles, sentaram-se João Vaz e Mme. Louise e, quando começou a projeção, o jovem se manteve de chapéu, impedindo que a senhora que acompanhava Mendes de Moraes e João Cavalcanti pudesse ver o filme. Mendes de Moraes reclamou, discutiram, João Cavalcanti interveio, houve troca de insultos e agressões e, no meio da confusão que se estabeleceu, ouviu-se um tiro. Uma testemunha ocular do fato, o guarda que o desarmou, apontou o tenente-coronel Cavalcanti do Rego como autor do disparo. Por ser crime inafiançável, o acusado foi conduzido para o Estado-Maior da Brigada Policial. Quanto ao tenente-coronel Mendes de Moraes, foi ele pela madrugada, posto em liberdade.
FILMOGRAFIA DE MACISTE
1914: CABIRIA / CABIRIA
1915: MACISTE / MACISTE
1916: MACISTE ALPINO / MACISTE ALPINO
1918: MACISTE POLICIAL / MACISTE POLIZIOTO
1918: MACISTE ESPÍRITA / MACISTE MEDIUM
1918: MACISTE ATLETA / MACISTE ATLETA
1919: MACISTE CONTRA A MORTE / MACISTE CONTRO LA MORTE
1919: A VIAGEM DE MACISTE / IL VIAGGIO DI MACISTE
1919: O TESTAMENTO DE MACISTE / IL TESTAMENTO DI MACISTE
1919: MACISTE ENAMORADO/ MACISTE INNAMORATO
1919: MACISTE EM FÉRIAS / MACISTE IN VACANZA
1919: A DESFORRA DE MACISTE / LA RIVINCITA DI MACISTE
1922: AVENTURAS DE MACISTE E DO MOLEQUE GIBI ou MACISTE E O GAROTO GIBI / MACISTE UND DIE JAVANERIN
1922: MACISTE E O FORÇADO / MACISTE UND DER STRÄFLING Nr. 51
1923: MACISTE UND DIE CHINESISCHE TRHUE.
1923: MACISTE NOIVO / MACISTE UND DIE TOCHTER DES SILBERKÖNIGS
1924: MACISTE E IL NIPOTE D’AMERICA
1924: MACISTE IMPERADOR / MACISTE IMPERATORE
1924: MACISTE CONTRO LO SCEICCO
1924: MACISTE NO INFERNO / MACISTE ALL’INFERNO
1926: MACISTE NA JAULA DOS LEÕES / MACISTE NELLA GABBIA DEI LEONI ou VIDA DE CIRCO
1927: MACISTE, O GIGANTE DAS MONTANHAS / IL GIGANTE DELLE DOLOMITI
1927: O POSTILHÃO DE MONT CENISI / IL VETTURALLE DEL MONSENISIO
1928: GLI ULTIMI TZAR
1928: GIUDITA E OLOFERNE
Saudações Professor A. C!
Magnífica matéria sobre um dos grandes alicerces do cinema, que só vim a conhecer faz pouco tempo através de uma exibição no Youtube (que muitas vezes faz um esplendido trabalho resgatando velhos clássicos do cinema silencioso).
Mas ouvira falar de CABIRIA, que se tornou definitivamente (e se posso dizer isso) uma das primeiras grandes superproduções épicas da Sétima Arte. Entretanto, o que mais me chama a atenção são dois pontos referentes tanto a esta produção quanto as demais que se seguiriam na Itália. A primeira, é justamente o personagem secundário que viria a dar sequencia em outros trabalhos, o fabuloso MACISTE.
Acredito que muitos de minha geração só conhecem este personagem vivido inúmeras vezes por “bombados” como Reg Park, Alan Steel, ou Mark Forest, nas produções “Peplum”, ou simplesmente “Espadas & Sandálias”, uma moda que veio no final da década de 1950 e foi até metade da década seguinte. Entretanto, o que mal sabíamos, é que este personagem já era encarnado, de forma muito mais séria, por Bartolomeo Pagano. E aí entra outro ponto: não foi de hoje, e nem Stallone ou Schwarzenegger, ou mesmo Steve Reeves, que deram o ponto inicial para personificar heróis de força que requeriam músculos e ousadia. Pagano e outros atores de sua época como que mencionado em seu brilhante texto deram o alavanco inicial, onde o cinema pôde apresentar para o mundo o casamento perfeito da arte com o entretenimento. E mais: Pagano se revelou um ótimo ator, comprovando que nem só de músculos era seu perfil, mas talento e carisma foi sua força ainda maior.
O Cine-Odeon, um dos poucos sobreviventes cinemas de rua na lendária Cinelândia (e não muito longe de minha casa), foi a primeira sala que frequentei na vida, em 1976 (tinha 6 anos), para assistir ao KING KONG produzido por Dino de Laurentiis e estrelado por Jessica Lange. A última vez que frequentei a sala foi para assistir A PAIXÃO DE CRISTO de Mel Gibson, em 2004. Um cinema que me é bem lembrado visto que fui assíduo frequentador, e mal podia imaginar que esta mesma sala, tristemente, foi palco de um crime em tempos muito idos. Costumamos reclamar da violência moderna, mas poucos ignoram que no passado a coisa talvez pudesse ser muito pior, pois qualquer um podia andar armado e fazer “justiça” como bem entendesse motivado pela chamada “honra”.
Parabéns pela matéria, Professor Mattos.
Um forte abraço
Paulo Telles
Blog Filmes Antigos Club – A Nostalgia do Cinema
http://articlesfilmesantigosclub.blogspot.com.br/
Obrigado Paulo. Suas intervenções são sempre oportunas. Cabiria influenciou Griffith e Maciste foi o precursor dos parrudos do Peplum. Veja como é importante conhecer o cinema de outrora. Um forte abraço.