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CAROL REED II

Como membro da Army Officer’s Emergency Reserve, no qual se alistara juntamente com Rex Harrison, Reed recebeu o pôsto de capitão-ator na Royal Army Ordnance Corps (RAO), que tinha sob sua responsabilidade o Army Kinematograph Service (AKS), sediado no antigo estúdio da Fox British. Sua missão era fazer filmes de treinamento, o primeiro dos quais destinado aos futuros chefes de desembarque em uma invasão anglo-americana na Europa, com a finalidade de abrir uma nova frente de batalha.

Após três semanas de preparação para o filme. Reed foi designado para trabalhar com os roteiristas Eric Ambler e Peter Ustinov, e os três foram para Troon na Escócia, a fim de se apresentarem a Thorold Dickinson. Os quatro ficaram alarmados sobre os fatos que iam descobrindo sobre os planos do exército para o desembarque nas praias, principalmente no que se referia ao número de baixas esperado; porém subitamente o projeto foi cancelado.

Cena de The New Lot

Ficou então decidido que o short a ser feito, intitulado The New Lot, seria para ajudar os recrutas a se adaptarem à vida militar. Quando o filme de 40 minutos acabou de ser exibido para um comitê de generais na sala de projeção do War Office, um deles, dirigindo-se a Reed, desabafou: “Você não pode chamar esses homens de soldados; eles não fazem outra coisa senão resmungar. Soldados de verdade nunca resmungam”. O curta-metragem foi considerado inútil e possivelmente subversivo, inclusive proibido de ser mostrado não somente aos recrutas como também para qualquer outra pessoa estranha ao War Office.

Tanto a Marinha quanto a Aeronáutica haviam sido beneficiadas por filmes que fizeram sucesso popular nos cinemas. A Marinha teve Nosso Barco, Nossa Alma / In Which We Serve, filme comercial dirigido por Noel Coward e David Lean, sobre os sobreviventes de um destróier torpedeado e a Royal Air Force, E … Um Avião Não Regressou / One of Our Aicraft is Missing, dirigido por Michael Powell e Emeric Pressburger sobre a tripulação de um bombadeiro abatido na Holanda ocupada pelos nazistas. O Exército necessitava de um filme como esses para levantar a moral dos novos recrutas. David Niven, tecnicamente major na Rifle Brigade, foi solicitado como interlocutor, pois desfrutava da posição de intermediário entre as forças armadas e os estúdios cinematográficos como Two Cities, que produzira Nosso Barco, Nossa Alma. Primeiro, ele pediu a Noel Coward que fizesse um filme semelhante para o exército, mas Coward delicadamente recusou. Então mostraram a Niven The New Lot, do qual ele gostou muito. Finalmente, ficou decidido que Carol Reed seria liberado do serviço militar e ficaria responsável pela direção de Têmpera de AçoThe Way Ahead, versão ampliada do curta, a ser produzido pela Two Cities de Filippo del Giudice.

Cena de Têmpera de Aço

Trata-se de um filme de guerra sobre a Infantaria, seguindo passo a passo o treinamento de um grupo de recrutas composto por pessoas de diferentes profissões e classes sociais, que se transformam de novatos imaturos em soldados disciplinados, e prontos para enfrentar o inimigo, substituindo o ressentimento pelo respeito por seus superiores, representados pelo afável Tenente Jim Perry (David Niven) e pelo rigoroso sargento Fletcher (William Hartnell). Embora realizado com fins de propaganda, o espetáculo não glamouriza nem glorifica, apenas tenta mostrar tudo com realismo.

Cenas de Têmpera de Aço

A narrativa é simples, mas eficiente, e o sentimentalismo é reduzido ao mínimo. Reed deixou as sequências de ação para o final, quando o navio que conduz a tropa é bombardeado por um submarino alemão e em seguida os homens enfrentam o inimigo no Norte da África, revelando sua coragem e espírito coletivo. Nesses momentos, Reed demonstra sua habilidade técnica, mais notadamente na cena do afundamento do navio, por meio de uma montagem rápida e uso de angulações inusitadas, para transmitir o choque inicial e a desordem entre a tripulacão. Além disso, durante todo o desenrolar do relato – escrito por Eric Ambler e Peter Ustinov – as figuras do grupo que aprendem progressivamente o ofício de combatente, são sempre enquadradas com muito equilíbrio dentro de cada plano.

A Verdadeira Glória / The True Glory / 1945 é um exemplo raro na história do filme documentário de uma colaboração bem sucedida entre dois diretores de países diferentes, Carol Reed (Grã Bretanha) e Garson Kanin (Estados Unidos), trabalhando sob a supervisão de um comitê militar. A principal tarefa dos dois cineastas foi selecionar e dar unidade artística a uma quantidade enorme de sequências filmadas pelos cinegrafistas de combate de nove nações aliadas (sem falar nos episódios de cinejornais feitos pelos inimigos, que haviam sido capturados), entrecortando-as com mapas para facilitar o acompanhamento pelo público do progresso dos Aliados das praias da Normandia até a conquista da Alemanha propriamente dita.

Cenas de A Verdadeira Glória

Cena de A Verdadeira Glória

O que mais impressiona é o trabalho de montagem através de uma sucessão rápida de planos curtos ligados por uma pontuação que lhes dá uma fluência, uma continuidade perfeita. Além da narração explicativa dos fatos, ouvem-se comentários na primeira pessoas nos mais variados sotaques, por soldados, enfermeiras, e alguns civis – na verdade, Richard Attenborough, Françoise Rosay, Claude Dauphin, Sam Levene, Peter Ustinov, Arthur MacRae, Jimmy Hanley, Frank Harvey, John Laurie, Reed e Kanin falando em voz over, textos escritos pelos roteiristas. Os eventos panorâmicos da guerra são contrapostos sutilmente com pequenos detalhes de caráter pessoal – um toque possivelmente providenciado por Reed – como uma senhora idosa vestida de preto andando entre as ruínas de uma cidade. Em uma escala maior, o filme contrabalança a chegada das tropas americanas em Rennes, o retorno triunfante de De Gaule a Paris com o barbarismo dos campos de concentração, onde chama atenção a cena comovente de uma sobrevivente vista beijando a mão de um soldado. Pelos seus méritos indiscutíveis, A Verdadeira Glória arrebatou o Oscar de Melhor Documentário de longa-metragem.

Cena de A Verdadeira Glória

O fim da guerra trouxe muitas oportunidades para Reed, agora conhecido em ambos os lados do Atlântico (seus filmes Gestapo e Sob a Luz das Estrelas fizeram grande sucesso nos Estados Unidos) como um mestre no thriller, na comédia de costumes, no drama de época, no filme de ação e no documentário. Ele sentiu que estava sendo tão solicitado, que poderia escolher um assunto, e ter certeza de que um patrocinador arranjaria o dinheiro para o seu filme ser feito. O assunto que escolheu (prontamente aceito por Filippo del Giudice) para Condenado / Odd Man Out / 1946, foi o de tom mais sombrio do que quaisquer outros de seus projetos anteriores: a história um líder de uma organização revolucionária da Irlanda do Norte, Johnny McQueen (James Mason) que, ferido mortalmente em uma tentativa de assalto a uma fábrica, vagueia pelas ruas de Belfast na escuridão da noite, em busca de segurança.

Na sua fuga, Johnny vai se seconder em um abrigo anti-aéreo. Seus amigos procuram por ele, porém são rapidamente presos ou mortos pela polícia, que estende suas redes e procede a várias investigações. Kathleen (Kathleen Ryan), a jovem em cuja casa estava se escondendo desde que fugira da prisão, também procura por ele. Seguida pelo chefe da polícia (Denis O’Dea), ela procura ajuda junto ao sacerdote, Padre Tom (W. G. Fay). Este recebe a visita de um vendedor de pássaros excêntrico, Shell (F. J. MacCormick), que sabe onde Johnny se encontra, mas quer vender sua informação.

Kathleeen Ryan e James Mason em Condenado

Entrementes, Johnny sai do abrigo e se arrasta de porta em porta. Ele desmaia na rua e duas transeuntes o recolhem, pensando ter sido atropelado. Quando descobrem quem ele é, Johnny parte, e se infiltra no taxi de “Gin” Jimmy (Joseph Tomelty) que, ao reconhecê-lo, o deixa em um depósito de ferro-velho, onde Shell o encontrou. Finalmente, Johnny chega em um bar no qual está um pintor perturbado mentalmente, Lukey (Robert Newton), que leva o moribundo para a sua casa a fim “captar o brilho do olhar que vê a morte”. Johnny consegue escapar novamente. Kathleen o encontra, lhe revela seu amor e, sabendo que ambos estão perdidos, ela atira na direção dos policiais que se aproximam. Uma rajada de balas, e Johnny e Kathleen caem mortos na praça em frente do porto, onde estava de partida, o navio que levaria Johnny para bem longe dalí.

Carol Reed dirige James Mason em Condenado

Assumindo também a posição de produtor, Reed conduz de maneira excitante a narrativa na sua primeira parte, mas quando, na segunda parte, começa a sublinhar os aspectos teológicos do enredo, o andamento do filme fica um pouco pesado, principalmente no diálogo entre o padre e o vendedor de pássaros, que aliás se torna implausível, quando o sacerdote dissuade um sujeito mal afamado como Shell de vender Johnny em troca da fé.

James Mason e F. J. McCormick

F.J. McCormick e Robert Newton em Condenado

Cena de Condenado

Cena de Condenado

Sob o ponto de vista puramente cinematográfico, Reed, com o auxílio precioso do fotógrafo Robert Krasker (o mesmo de O Terceiro Homem / The Third Man / 1948), produz efeitos de luz expressionista muito parecidos com aqueles que a dupla John Ford-Gregg Toland ensejou em A Longa Viagem de Volta / The Long Voyage Home / 1940 e com os dos films noirs, tão em voga na época. O clima pessimista e fatalista evoca filmes do Realismo Poético Francês de antes da guerra como Cais das Sombras / Quai des Brumes / 1938 de Marcel Carné, notadamente naquele final de uma grandeza trágica no porto.

Cena de Condenado

Cena de Condenado

Cena de Condenado

Kathleen Ryan e James Mason em Condenado

Reed forja cenas marcantes: a bola que um transeunte chuta e vai cair no esconderijo de Johnny; a menina contemplando-o silenciosa e mais tarde tímida atrás do poste, indicando ao companheiro do fugitivo onde achá-lo; o encontro com o casal furtivo no abrigo anti-aéreo; as imagens em câmera alta sobre a rua cercada pela polícia; a briga no ônibus; a chegada de Johnny à cabine telefônica, última esperança de salvação que se esvai, vendo-a ocupada por duas mulheres risonhas; o uso do relógio significando a passagem inexorável do tempo para quem tem os minutos de vida contados; as bolhas de espuma da cerveja na mesa do bar com a visão alucinatória dos rostos das pessoas com as quais Johnny cruzou na sua fuga e o grito desesperado do moribundo, causando um silêncio paralisante naquele ambiente barulhento e cheio de gente; os quadros que, no delírio de Johnny, se movem no atelier do pintor desequilibrado; e o clímax na praça coberta de neve, onde Kathleen finaliza o drama.

Penelope Dudley Ward

Em 1948, Reed divorciou-se de Diana Wyniard, casou-se com Penelope Dudley Ward e, mantendo a capacidade de funcionar também como produtor, que lhe havia sido assegurada no seu filme anterior, começou a trabalhar com Alexander Korda, dono da London Films Productions. O Ídolo Caído / The Fallen Idol / 1948 foi uma co-produção Anglo-Americana, financiada por Korda e David Selznick, baseada em um conto de Graham Greene, “The Basement Room”, e com roteiro do próprio autor da obra literária.

Depois de algumas modificações, aceitas por Greene, a história ficou assim: um menino, Felipe (Bobby Henrey), filho do embaixador francês em Londres, é deixado por seus pais aos cuidados do mordomo da embaixada, Baines (Ralph Richardson), e de sua esposa (Sonia Dresdel). Felipe idolatra Baines e testemunha as brigas constantes dele com sua mulher tirânica e perversa. Ele também descobre que Baines está vivendo um romance com uma francêsa, esteno-datilógrafa da embaixada, Julie (Michele Morgan). Mrs. Baines finge sair de casa durante um fim-de-semana, mas logo retorna, a fim de surpreender Baines com sua amante. Ao vigiá-los, sofre uma queda fatal tentando abrir uma janela. Como o breve interlúdio que separou uma discussão entre o casal presenciada por Felipe e o acidente, foi apenas imaginado por este ao descer a escada de incêndio, o garoto está certo de que Baines matou a esposa.

Cena de O Ídolo Caído

Ralph Richardson e Bobby Henrey em O Ídolo Caído

Cena de O Ídolo Caído

Desorientado, ele sai correndo de pijama pela rua molhada até ser levado para a delegacia por um guarda. Os policiais o levam de volta para a embaixada e começa a investigação sobre a morte da esposa de Baines, considerando-o principal suspeito. Desejando salvar o amigo, o menino se envolve em uma série de mentiras, que comprometem o mordomo quase irremediavelmente. A descoberta ocasional de um vaso quebrado estabelece a inocência do acusado, mas, ironicamente, esta prova é falsa, e quando o menino – ainda achando que Baines foi o culpado – procura explicar aos policiais que foi ele quem quebrou o vaso (pela primeira vez dizendo a verdade), ninguém lhe dá crédito.

Michele Morgan e Ralph Richardson em O Ídolo Caído

Embora integrando o gênero policial, o filme tem ressonância psicológica, pois é uma evocação da infância e sua relação com um mundo adulto confuso. A historia é contada do ponto de vista do menino, que observa as paixões de um triângulo romântico, em torno do qual Reed criou uma narrativa interessante e cheia de suspense. À proporção que os conflitos emocionais se amontoam, é o menino que ouve, que deduz e, finalmente, que confunde as intenções daqueles que espreita. Felipe é uma criança separada emocionalmente de seus pais, segregada do convivio com outras crianças de sua idade, e educada por uma mulher, que é uma verdadeira megera. Porém Baines lhe dedica uma atenção extremada, leva-o ao jardim zoológico ou o fascina com histórias fantásticas de uma frica imaginária, cativando a sua mente infantil; daí sua idolatria pelo mordomo.

Carol Reed dá instruções para Bobby Henry

Reed dirige Ralph Richardson

Reed dirige Michele Morgan

O essencial no argumento é a progressiva desilusão do menino que atinge o auge, quando o mordomo diz a polícia jamais ter estado na África. Porém o público mereceu um final feliz: o amor entre Julie e Baines prevalece e Felipe adquire uma visão mais madura da vida. Duas sequências de puro cinema tornaram-se inesquecíveis: o jogo de esconde-esconde na mansão deserta e escura, salientando-se as colocações de câmera, ângulos e efeitos de iluminação inusitados, e o momento no qual o avião de papel, contendo um telegrama condenatório de Baines, rodopia graciosamente do alto da escadaria até aterrissar nos pés do detetive.

Depois de O Ídolo Caído, Reed continuou a trabalhar como produtor-diretor para a London Films em O Terceiro Homem / The Third Man, colaborando mais uma vez com Graham Greene.

A ação do filme situa-se na Viena do pós-guerra, dividida pelas quatro forças de ocupação aliadas, uma cidade que quase parece ser um personagem da história. Ali chega um escritor americano de romances populares, Holly Martins (Joseph Cotten), com pouco dinheiro no bolso, a convite de seu amigo de infância, Harry Lime (Orson Welles, depois de cogitado Noel Coward), que lhe oferecera um emprego. Holly vai ao apartamento de Harry, e fica sabendo pelo porteiro, que seu amigo foi atropelado por um carro e morto. Três homens carregaram a vítima mas Holly só consegue identificar dois: falta-lhe o terceiro. No enterro de Harry, Holly é informado pelo Major Calloway (Trevor Howard) de que Harry era um escroque notório. Mais tarde, Holly conhece a amante de Harry, Anna Schmidt (Alida Valli, uma atriz que se apresenta no Josefstadt Theatre), que suspeita de que a morte de Harry não foi um acidente.

Alida Valli e Joseph Cotten em O Terceiro Homem

Eles começam a investigar e, depois de alguns incidentes, o Major Calloway põe Holly a par do mercado negro de penicilina, do qual Harry fazia parte, explicando que os traficantes costumam aumentar seus lucros, diluindo o remédio e provocando assim efeitos médicos desatrosos. Holly fica estupefacto com as atividades de seu amigo, vai procurar Anna, diz que está voltando para os Estados Unidos, e admite seus fortes sentimentos por ela. Após deixar o apartamento de Anna, Holly percebe um homem nas sombras e quando um vizinho abre uma janela, a luz ilumina o rosto de Harry Lime, que desaparece antes que Holly possa alcança-lo. Holly pede ajuda a Calloway que novamente traça a rota de fuga de Harry, e descobre um quiosque, que conduz subterrâneamente a um esgôto. Calloway manda abrir o caixão de Harry e o corpo encontrado é o do chofer dele. Através de um intermediário, Holly consegue marcar um encontro com seu amigo “desaparecido” na roda gigante de um parque de diversões.

Orson Welles em O Terceiro Homem

Cinicamente e com muita calma, Harry repudia o ultraje moral de Holly com relação ao contrabando de penicilina e o adverte de que deve parar de falar com a polícia. Sem se intimidar, Holly oferece-se para ajudar Calloway a capturar Harry em troca de um salvo-conduto para Anna, que está prestes a ser presa pelos russos. Quando Anna rejeita furiosamente este acordo, Holly quer desistir de seu auxílio à polícia militar, mas Calloway o leva a um hospital infantil, para que ele veja as jovens vítimas com o cérebro danificado pela penicilina adulterada de Harry. Deprimido pelo que viu, Holly concorda em servir de isca para a captura de Harry. Após aguardar Harry durante horas em um café, Holly de Anna que o repreende por estar colaborando com a polícia. Quando Harry chega, Anna o avisa da emboscada, e ele escapa pelo esgoto, sendo perseguido por Holly, Calloway e seus homens. Harry atira e mata um soldado e Holly mata Harry, quando ele tentava se arrastar até uma saída para a superfície. Depois do segundo enterro de Harry, Holly vê Anna passar silenciosamente na sua frente, como se ele não existisse.

Reed e Graham Greene examinam o roteiro de O Terceiro Homem

Reed na direção de O Terceiro Homem

O Terceiro Homem, é um thriller policial, mas também drama de consciência e defesa de uma tese: luta do Bem contra o Mal. Vemos um mundo corrupto, que perdeu sua humanidade e seu limite ético. Harry acha que “o mundo não é dos trouxas, e se os governos têm planos quinquenais, ele também pode tê-los pois, afinal”, diz com um sorriso, “a Itália dos Borgia conheceu trinta anos de guerra, terror, derramamento de sangue, mas dela saíram Miguel Angelo, Leonardo da Vinci e a Renascença. A Suiça conheceu a fraternidade e quinhentos anos de democracia. E o que foi que eles produziram? O relógio de cuco!”. Porém Holly não dá ouvidos ao canalha, e prefere ficar do lado do Bem e da Verdade, sacrificando a Amizade pela Coletividade.

Trevor Howard e Alida Valli em O Terceiro Homem

Joseph Cotten em O Terceiro Homem

Joseph Cotten e Orson Welles em O Terceiro Homem

Visualmente, a instabilidade histórica e moral é expressa por uma escuridão frequente, sombras imensas e planos inclinados, providenciados pela admirável fotografia expressionista de Robert Krasker, notando-se outrossim a influência do formalismo russo, no que se refere aos primeiros planos, tudo isto reforçado pela música inquietante oriunda de um único instrumento, a cítara de Anton Karas, que adquire uma força de expressão maior do que uma orquestra.

Orson Welles em O Terceiro Homem

O filme está repleto de ótimas sequências, destacando-se a primeira aparição de Harry Lime na entrada escura de um prédio, quando um gato se acomoda nos seus pés; o encontro de Holly e Harry no parque de diversões; a perseguição do criminoso pelos esgôtos onde avulta a admirável montagem visual sonora e simbólica de Oswald Hafenrichter (que depois iria prestar serviço nas produções da nossa Vera Cruz); e o desenlace da trama, quando Holly aguarda por Anna na longa alameda do cemitério, coberta pelas fôlhas das árvores ressecadas. Ela é uma pequena figura que vai crescendo progressivamente enquanto algumas folhas caem e se ouve uma música suave. Anna passa lentamente por Holly, sem olhar para ele, e sai do quadro, neste que é um dos finais mais melancólicos da História do Cinema.

Cena final de O Terceiro Homem

O sucesso de O Terceiro Homem impulsionou Reed para o pico de sua carreira, tornando-o um diretor de importância internacional e, entre vários compromissos possíveis, ele escolheu a adaptação do segundo romance de Joseph Conrad, “An Outcast of the Islands”, uma obra que Korda o estava pressionando para filmar.

No relato de O Pária das Ilhas / 1952, Peter Willems (Trevor Howard, depois de cogitado Stewart Granger) é um vagabundo que, graças à bondade do Capitão Lingard (Ralph Richardson), consegue atingir boa posição na firma Hudig em Singapura, mas um dia trai a confiança de seus patrões, rouba, é demitido, e volta à antiga condição de pária. Seu protetor resolve dar-lhe mais uma oportunidade, e o leva para Sambir, uma ilha remota onde tem um entreposto comercial, que opera sem concorrência, por ser o único a conhecer a rota marítima perigosa ao local. Sua presença desperta o receio de Almayer (Robert Morley) encarregado dos negócios do capitão, casado com a filha adotiva deste (Wendy Hiller), e espicaça o interesse de Babalatchi (George Colouris), líder dos nativos. Este induz Peter a revelar o caminho marítimo. Ele se recusa até o dia em que, para assegurar o amor de Aissa (Kerima), uma nativa por quem se apaixonara tremendamente, trai seu benfeitor, ensinando a um mercador amigo de Babalatchi o segredo da rota, que apenas ele e o capitão conheciam. Peter participa ainda da pilhagem das instalações de Lingard. Afinal, com a chegada do capitão, a ordem se restabelece. Lingard pensa em matar Peter, porém depois muda de idéia, e o deixa em exílio permanente na selva com Aissa.

Trevor Howard e Ralph Richardson em O Pária das Ilhas

Trebvor Howard em O Pária das Ilhas

Conservando a história básica de Conrad, Reed registra a degradação do protagonista, sem sentimentalizar a narrativa, mantendo-se fiel ao ceticismo do autor sobre a natureza humana. Desde a primeira visão de Willems da sensual e orgulhosa Aissa até a sua compreensão final de que ela é a sua perdição, a câmera segue o curso de sua crescente paixão com uma eloquência silenciosa, quase sem diálogo. Animada somente pela atração física, essa relação é vista como uma maldição, que vai destruir aquele homem degenerado moralmente, e também tudo que o cerca. Ele será condenado a errar no caos que provocou e, daí em diante, ser desprezado (por não ter tido a coragem de matar Lingard) por aquela que ele tanto perseguiu.

Cena de O Pária das Ilhas

Trevor Howard em O Päria das Ilhas

Trevor Howard e Kerima no clímax de O Pária das Ilhas

O virtuosismo pictórico do diretor é visível em todo o desenrolar da ação, ajudado pela arte fotográfica de John Wilcox e Edward Scaife, orientada para um preto-e-branco de alta qualidade. A sequência mais dramática do filme ocorre no final: chove torrencialmente, e quando Lingard, depois de um confronto físico com o traidor (O velho homem do mar esbofeteia Willems várias vêzes) e verbal (“… Você não é um ser humano para ser perdoado ou destruído … Você é minha vergonha”), se retira altivo, e Aissa, que entregara um revólver para Willems, a fim de que ele se vingasse da afronta, amarga desiludida a covardia do homem que ama.

Em junho de 1952, a nova Rainha da Inglaterra concedeu o título de Sir a Carol Reed, o primeiro diretor a receber tal honraria. A partir de 1953, Reed fez mais dez filmes: O Outro Homem / The Man Between / 1953, A Rua da Esperanca / A Kid for Two Farthings / 1955, Trapézio / Trapeze / 1956, A Chave / The Key / 1958, Nosso Homem em Havana / Our Man in Havana / 1959 e, depois de ter sido despedido da filmagem de O Grande Motim / Mutiny on the Bounty / 1960, A Sombra de uma Fraude / The Running Man / 1963, Agonia e Êxtase / The Agony and the Ecstasy / 1965, Oliver! / Oliver! / 1968, Fúria Audaciosa / The Last Warrior / 1970 e De Olho na Esposa / Follow Me / 1971. Nenhum deles atingiu o mesmo nível artístico das suas quatro últimas realizações, que marcaram o período áureo de sua carreira.

O mais aceitável desse grupo foi O Outro Homem, produzido pelo próprio Reed para a London Films. Quatro anos depois de O Terceiro Homem, que lhe valeu o Grand Prix do Festival de Cannes e um imenso sucesso mundial, ele retorna ao ambiente de uma cidade semi-destruída e ocupada, para contar a história de um personagem dilacerado entre (o “entre” do título original) as duas Zonas, ocidental (soviética) e oriental, em que está dividida Berlim.

Cena de O Outro Homem

Cena de O Outro Homem

A narrativa tem início quando Suzanne Mallison (Claire Bloom) chega de Londres para passar alguns dias com o irmão, Martin (Geoffrey Toone), médico militar da guarnição inglêsa e sua mulher alemã Bettina (Hildegarde Neff). Por ocasião de uma visita à Zona Russa, Suzanne conhece Ivo Kern (James Mason), antigo marido de Bettina, que está a serviço dos comunistas e procura valer-se de sua ex-esposa para sequestrar Kaster (Ernest Schroeder), agente aliado que estava ajudando refugiados a escaparem da Berlim Ocidental. Entretanto, a tentativa falha, devido ao alerta dado por Bettina, ela própria espiã. Os agentes soviéticos então planejam raptar Bettina mas, por engano, capturam Suzanne. A esta altura, Ivo já envolvido sentimentalmente com Suzanne, ajuda-a a fugir e, durante a fuga, lhe revela que, sendo um antigo advogado brutalmente colhido pelos acontecimentos da guerra e do pós-guerra, se vê obrigado a trabalhar para a polícia popular da zona russa, ajudando-a a fazer contrabando humano de um setor para outro, porque esta possui documentos comprometedores de suas negociatas no mercado negro na zona ocidental. Na fronteira entre as duas zonas, quando Ivo é surpreendido pelos guardas no fundo de uma camionete, ele se lança em uma desabalada carreira, é abatido, e rola sob a neve sob o olhar angustiado de Suzanne dentro do carro.

Cena de O Outro Homem

Cena de O Outro Homem

Hildegarde Neff e James Mason em O Outro Homem

James mason e Claire Bloom em O Outro Homem

O filme tem pontos de contato com Condenado (a longa sequência de fuga e o desenlace na neve, especialmente quando um cachorro corre em direção ao corpo de Ivo), O Ídolo Caído (o garoto na bicicleta que percorre doidamente o filme de um extremo a outro, espionando por conta de Ivo e assistindo impotente à dramática execução do amigo) e O Terceiro Homem (o personagem de James Mason, Ivo Kern, reminiscente do Harry Lime de Orson Welles), mas esta repetição não significa um sinal de exaustão, e sim de inspiração para a uma nova obra que, apesar de não ter o mesmo brilho das suas realizações precedentes citadas, é narrada com o vigor comum do diretor e permanece como um interessante exercício de suspense. A melhor sequência do filme, é a do rapto de Suzanne em um automóvel inteiramente coberto de neve, tal como uma fera aterrorizante que se aproxima silenciosamente da caça, e finalmente a engole.

Cena de A Rua da Esperança

Em Rua da Esperança, fábula excêntrica e poética com um revestimento de folclore judaico, um menino, filho de pai ausente, sob a influência de um alfaiate filósofo, imagina que sua cabra é um unicórnio, que pode satisfazer qualquer desejo.

Burt Lancaster, Gina Lollobrigida e Tony Curtis em Trapézio

Em Trapézio, desenvolve-se um drama envolvendo um trîangulo amoroso e acrobático, composto por um astro do trapézio aleijado por uma queda, seu aluno talentoso, e uma bela italiana arrivista e arrogante.

Sophia Loren e William Holden em A Chave

Em A Chave, filme de guerra e ao mesmo tempo drama de amor de caráter psicológico, uma mulher traumatizada com a morte do noivo, comandante de rebocador na Segunda Guerra Mundial, passa a vê-lo em todos os seus colegas que se sucedem na posse da chave de seu apartamento.

Alec Guiness e Maureen O’hara em Nosso Homem em Havana

Em Nosso Homem em Havana, sátira do serviço de espionagem britânico, um vendedor de aspirador de pó é convocado para ser espião em Havana – missão para a qual não possui o menor perfil – e então ele inventa informações para servir aos seus superiores.

Lee Remick e Alan Bates em A Sombra de uma Fraude

Em A Sombra de uma Fraude, um homem, com a colaboração forçada de sua esposa, costuma fraudar algumas seguradoras, assinando apólices sob nome falso e forjando sua própria morte, até que a intervenção do investigador de uma das companhias seguradoras, provoca uma tragédia.

Em Agonia e Êxtase, biografia histórica, expõem-se os conflitos artísticos entre o pintor Miguelangelo e o Papa Júlio II durante a construção da Capela Sistina.

Carol Reed e seu Oscar

Em Oliver! repetem-se os dissabores do Oliver Twist de Charles Dickens em chave de musical.

Anthony Quinn em Fúria Audaciosa

Em Fúria Audaciosa, comédia dramática sobre um índio beberrão e rebelde inconformado com a opressão social de seu povo na reserva onde foram confinados, acaba se tornando um mártir.

Mia Farrow, Michael Jayston e Topol em De Olho na Esposa

Em De Olho na Esposa, um banqueiro inglês pudico contrata detetive particular para seguir sua esposa independente, que ele suspeita de o estar traindo, mas o investigador verifica que ela simplesmente necessita de mais afeto e diversão na sua vida.

Com exceção de A Sombra de uma Fraude e Oliver!, que tinham certas sequências sôltas no conjunto, onde se espelhava a fina concepção cinematográfica de Reed (Oliver! lhe ensejou até o Oscar de Melhor Direção), os filmes restantes evidenciaram uma perda de rendimento do rigor artístico do cineasta, tornando-se em consequência espetáculos entediantes.

AC

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