Joan Harrison estudou em Oxford e na Sorbonne. Após um início de carreira no jornalismo, foi durante muito tempo secretária particular de Alfred Hitchcock e ascendeu finalmente à posição de roteirista na véspera da ida de “Hitch” para os Estados Unidos. Ela colaborou assim nos roteiros de Estalagem Maldita / Jamaica Inn / 1939, Rebecca, a Mulher Inesquecível / Rebecca / 1940, Correspondente Estrangeiro / Foreign Correspondent / 1940, Suspeita / Suspicion / 1941 e – nos estúdios da Universal em 1942 – em Sabotador / Saboteur. Em 1943, separou-se de Hitchcock, para se tornar produtora independente e, enquanto estava em negociação com a Universal para ser produtora associada ao estúdio, conheceu R. Siodmak, nascendo daí a primeira colaboração entre os dois. Joan acabara de adquirir os direitos de “Phantom Lady”, romance policial de Cornell Woolrich, o escritor que, juntamente com Dashiel Hammett, Raymond Chandler e James M. Cain, inspirou alguns dos melhores filmes noirs do período clássico, e a história de Woolrich, caiu nas mãos do diretor.
A Dama Fantasma / Phantom Lady / 1943 começa por um primeiro plano de Ann Terry, a “dama fantasma” (Fay Helm), de costas para a objetiva, com um daqueles chapéus extravagantes que faziam furor nos anos 40. O cenário é um bar subterrâneo em Nova York. Entra Scott Henderson (Alan Curtis), um jovem engenheiro, que acabou de ter uma discussão com a esposa e convida a desconhecida para ir ao teatro de revista com ele, mostrando-lhe dois tíquetes. Ela aceita com uma condição: nada de nomes, nem endereços. Scott leva-a ao musical, cuja estrela é uma cantora latino-americana (Aurora Miranda) e depois a reconduz ao bar, para nunca mais vê-la. Quando Scott acende a luz ao chegar em casa, vê-se diante de três policiais; sua mulher foi estrangulada com uma gravata. Todas as supeitas recaem sobre ele: somente a desconhecida, seu único álibi, poderia inocentá-lo – mas como encontrá-la? Estranhamente as testemunhas negam a existência da tal mulher e Scott é condenado. Sua secretária, Carol “Kansas” Richman (Ella Raines), secretamente enamorada do patrão, procura descobrir o verdadeiro culpado com o auxílio do inspector Burgess (Thomaz Gomez), também convencido da inocência do engenheiro. Ao visitar Scott na prisão, Kansas conhece um de seus amigos, o artista plástico Jack Marlowe (Franchot Tone) que se oferece para ajudá-la a encontrar a “dama misteriosa”. Eles conseguem localizar Ann Terry; mas esta não poderá depor no tribunal, porque a morte súbita do noivo perturbou-lhe o juízo; todavia, o chapéu é uma prova suficiente para a defesa de Scott. Para festejar a vitória e esperar Burgess, vão para o apartamento de Marlowe, onde Kansas vê sua bolsa roubada e percebe que ele é o assassino. Marlowe confessa que matou a mulher de Scott, porque ela zombara dele. No momento em que vai estrangular Kansas, Burgess chega e o criminoso se atira pela janela.
O enredo contém elementos essenciais para um filme noir: o inocente enroscado pelas teias do destino; o ambiente noturno com os detalhes de sombras ameaçadoras; o criminoso paranóico; e, de certa forma, a presença de uma mulher fatal (que é ao mesmo tempo a investigadora), pelo menos durante algum tempo da ação. Na sua busca para salvar o patrão da cadeira elétrica, Kansas, usando seus encantos, persegue o garçom (Andrew Tombes, Jr.) e o baterista Cliff Milburn (Elisha Cook, Jr.), e causa a morte dos dois. Entretanto, nos derradeiros instantes da narrativa, volta a ser a fêmea indefesa, sujeita às forças patriarcais: Marlowe, o assassino, que a ameaça; Burgess, o policial que a protege paternalmente; e Scott, o patrão que vai se casar com ela, recolocando-a no papel passivo e convencional de secretária e esposa.
O engenheiro assassino “normal”do livro foi transformado em um personagem estereotipado: o artista louco, com mania de grandeza, dores de cabeça, tontura, tique nervoso no olho direito e atelier decorado com esculturas estranhas. Há um momento em que, sentado em uma cadeira, recita um monólogo sobre as mãos e depois se levanta para estrangular o baterista. Neste momento, o seu corpo encobre aos poucos o da vítima e toma conta de toda a tela.
O filme é, sobretudo, um admirável exercício de estilo. Com seu especial temperamento germânico e ajuda do fotógrafo Ellwood “Woody” Bredell, R. Siodmak recriou o universo de Woolrich quase que inteiramente através de uma direção dinâmica e inventiva. Para se ter uma idéia da mise-en-scène, no momento em que a heroína segue o garçom suspeito pelas ruas escuras e molhadas pela chuva até a estação elevada do metrô, ouve-se somente o ruído dos saltos dos sapatos de ambos. Na plataforma deserta, ele se coloca atrás dela, dando a impressão de que vai empurrá-la para a linha férrea mas, subitamente, aparece uma mulher negra e irrompe o som do trem que está chegando. A perseguição continua silenciosa pelas ruas e quando finalmente Kansas se aproxima do homem para interrogá-lo, ele se volta contra ela raivoso. Alguns transeuntes oferecem-se para defendê-la, seguram o fugitivo, porém ele se esquiva e sai bruscamente de cena. Rangido de freios, gritos e um chapéu rola para o bueiro. Ou seja, os sentimentos de perigo e de tensão são transmitidos para a platéia exclusivamente através do som, luz, montagem e movimentos de câmera – puro cinema.
Entretanto, a sequência antolológica é a do encontro de Kansas com o baterista. Sentada na primeira fila do teatro, com um vestido de cetim preto e mascando chicletes, ela flerta com o músico. Depois, os dois vão a uma sessão de swing noturna. Para ilustrar a música ensurdecedora, a câmera mostra Kansas maquilando-se diante de um espelho que balança. O clima é de delírio, com os músicos tocando ao lado de muitas garrafas de cerveja. Diante de Kansas sensual e provocante, Cliff executa um solo de bateria frenético, arrebatado até o limite do orgasmo; nestas cenas a angulação, a montagem e a iluminação traduzem tudo visualmente.
Quando Joan Harrison se associou temporariamente à United Artists, R. Siodmak recebeu como encargo da Universal a direção de Férias de Natal / Christmas Holiday / 1944, melodrama reunindo dois astros comumente ligados ao filme musical, Deanna Durbin e Gene Kelly, escolhidos para papéis atípicos. No enredo, baseado em um romance de W. Somerset Maugham (bastante modificado pelo roteirista Herman Mankiewicz), um militar (Dean Harens) recebe carta de sua noiva, dizendo que se casou com outro. Na noite de Natal, seu avião pousa em New Orleans devido a uma tempestade, e o rapaz, muito deprimido, conhece um repórter (Richard Whorf), que o convida para o bordel clandestino de Mme. Valerie (Gladys George), onde ele encontra uma cantora (Deanna Durbin). Depois de terminar seu número, ela convida o militar para acompanhá-la até uma igreja e alí, cai em prantos. Ele a leva para jantar e ouve sua história. Retrospectos revelam que a jovem foi feliz durante algum tempo do seu casamento até que descobriu que seu marido (Gene Kelly), um jogador inveterado, matara o seu bookmaker para roubá-lo, tendo sido condenado à prisão perpétua. Ela diz a seu ouvinte que se degradou voluntariamente. Por ciúme, o marido foge da prisão, com a intenção de matar sua esposa, que, mesmo sabendo disso, o aguarda ainda com uma devoção cega. Ele está prestes a cometer o ato criminoso, quando é abatido pela polícia
A filmagem de Férias de Natal foi caótica. Deanna Durbin, brigava violentamente com o produtor Felix Jackson, seu marido e com o diretor, que ela odiava. R. Siodmak procurou em vão ”desglamourizar” a atriz, porém Deanna se obstinou em permanecer ela mesma, recusou maquilagem e vestidos demasiadamente “aviltantes” e acabou por dirigir uma parte de suas próprias cenas sózinha. R. Siodmak só retomou o filme na fase de montagem, para salvar o que era possível salvar. Graças ao seu domínio completo da linguagem cinematográfica, ele tornou o filme razoavelmente atraente, deixando sua marca estilística no conjunto do espetáculo.
As quatro próximas realizações de R. Siodmak, as duas primeiras para a Universal (Dúvida / The Suspect / 1944; Caprichos do Destino / The Strange Affair of Uncle Harry / 1945); a terceira para a RKO (Silêncio nas Trevas / Spiral Staircase / 1945); e a quarta para a Universal-International (Espelho d’Alma / Dark Mirror / 1946) foram dramas de suspense e de mistério, com os quais R. Siodmak alcançou definitivamente uma posição de destaque entre os diretores de cinema de Hollywood.
Em Dúvida, um homem íntegro (Charles Laughton), gerente sexagenário de uma tabacaria em um subúrbio de Londres no comêço do século, é levado ao assassinato de sua esposa rabugenta e vingativa (Rosalind Ivan), quando se apaixona por uma jovem datilógrafa (Ella Raines). Ele é assediado por um detetive da Scotland Yard (Stanley Ridges) e um vizinho chantagista (Henry Daniell), o qual acaba matando. O detetive arma um plano para fazer com que o gerente confesse seus crimes;
em Caprichos dos Destino, um desenhista solteirão (George Sanders) de uma cidade provinciana de New Hampshire, vive na companhia de suas duas irmãs. Uma, (Moyna MacGill), é viúva e dominada pela outra (Geraldine Fitzgerald), mais jovem e bela, que tem uma paixão incestuosa pelo irmão, A vida deles é perturbada quando o irmão se apaixona por uma jovem (Ella Raines) que trabalha com ele em uma fábrica de tecidos. A irmã viúva acolhe a jovem com resignação, mas a outra, faz tudo para destruir a felicidade de seu irmão. Este finalmente tenta envenenar a irmã dominadora, mas o destino intervém, e o final do filme reserva uma surpresa para os espectadores;
em Silêncio nas Trevas, na mansão habitada por uma velha senhora viúva e cardíaca, que vive presa ao leito (Ethel Barrymore), seu filho (Gordon Oliver), jovem cínico e volúvel, seu enteado (George Brent), um professor de química, a amante do primeiro e secretária do segundo (Rhonda Fleming), o jardineiro (Rhys Williams) e sua esposa alcoólatra (Elsa Lanchester), a jovem muda (Dorothy MacGuire), que cuida da idosa, é advertida por sua patroa de que deve deixar a casa o mais breve possível, pois um psicopata que mata jovens com alguma enfermidade está agindo nas imediações. A moça aguarda a chegada de um médico (Kent Smith) que, apaixonado por ela, se dispusera a levá-la embora dali. Enquanto ele não chega, ela é atacada pelo homicida, que vem a ser o enteado da velha senhora. Ele vai estrangular a jovem muda, perto de uma escada em espiral, quando sua madrasta o abate a tiros. O choque deste momento faz com que a moça recupere a fala;
em Espelho d’Alma, uma mulher suspeita de matar um médico seu namorado, tem uma irmã gêmea idêntica. Quando ambas as gêmeas (Olivia de Havilland) oferecem um álibi para a noite do crime, um psiquiatra (Lew Ayres) é convocado para ajudar um policial (Thomas Mitchell) a solucionar o caso. Através de uma série de testes, o psiquiatra descobre, que uma delas é demente e, no decorrer de sua investigação, apaixona-se pela gêmea inocente. Graças a um estratagema muito bem calculado pelo psiquiatra e pelo policial, a verdadeira culpada se desmascara.
Em todos esses filmes, R. Siodmak demonstrou a sua capacidade de narrar uma história de maneira essencialmente cinematográfica, o seu gôsto pela criação de uma atmosfera inquietante ou sombria em espaços fechados e o seu domínio absoluto dos movimentos de câmera e da iluminação, pois ele era um dos raros diretores que conhecia também os aspectos técnicos de sua profissão a fundo. Sua aptidão fílmica consagrou-o internacionalmente, quando o cineasta realizou o seu segundo filme noir, Assassinos / The Killers / 1946, produzido por Mark Hellinger para a Universal.
O preceito de Assassinos é o de que a ambição pelo dinheiro leva à corrupção e à morte. Uma dupla de assassinos de aluguel, Max (William Conrad) e Al (Charles McGraw) chegam à pequena cidade de Brentwood, New Jersey, à procura de Ole Anderson. Conhecido como sueco (Burt Lancaster), ele trabalha em um posto de gasolina. Eles o encontram aguardando-os silenciosamente em um quarto escuro; e não oferece resistência. Ao saber das circunstâncias em que o crime foi cometido, Jim Riordan (Edmond O’Brien), investigador da companhia de seguros responsável pelo pagamento da indenização à beneficiária do falecido – a arrumadeira de um hotel onde o Sueco havia se escondido usando nome falso -, quer descobrir porque a vítima deixou-se matar mansamente pelos dois facínoras.
Sua investigação leva-o ao encontro de várias pessoas que conhecem o passado do Sueco: o detetive Sam Lubinsky (Sam Levene), sua esposa Lilly (Virginia Gilmore) e Charleston (Vince Barnett), um ex-presidiário. Através desses depoimentos, fica sabendo que o Sueco foi obrigado a encerrar a carreira de pugilista por ter quebrado a mão em uma luta e, incitado por uma bela mulher, Kitty Collins (Ava Gardner), se uniu a um bando de ladrões liderados pelo amante dela, Big Jim Colfax (Albert Dekker). Riordan localiza os outros components da quadrilha, Blanky (Jeff Corey) e Dum Dum (Jack Lambert) e, finalmente, chega Colfax e Kitty, desvendando todo o mistério: como Kitty fez o Sueco passar por traidor do grupo após um assalto, enquanto ela e o amante fugiram com o dinheiro roubado, e como, anos depois, Kity e Colfax contrataram dois pistoleiros para matar o Sueco por medida de segurança.
Desenvolvendo o conto de Ernest Hemingway, o filme procura decifrar o enigma da resignação existencial do Sueco, como ele perdeu a vontade de viver. Por intermédio de onze retrospectos acronológicos e com uma obsessão pessoal que excede os interessses da companhia de seguros, Riordan vai descobrindo porque aquele homem abraçou a morte com indifrença. O testemunho das pessoas que o conheceram no passado se completam uns aos outros e o obstinado investigador vai reconstituindo , como um mosaico, o seu destino trágico.
O prólogo – que corresponde exatamente ao conto – é conduzido com admirável precisão cinematográfica, em um clima sombrio e de violência fria criado pela interpretação seca dos atores que forma a dupla de assassinos, pelos diálogos curtos e diretos e pela iluminação claro-escuro (Elwood Bredell) combinada com a profundidade de campo, angulações em câmera alta e baixa e um fundo musical (Miklos Rosza) de alta tensão. Deitado na cama do quarto escuro, o condenado aguenta impassível a chegada dos assassinos. Até que ouve o barulho de passos na escada e percebe um raio de luz infiltrando-se por debaixo da porta. Após alguns segundos de silêncio, a porta se abre brutalmente iluminando o rosto angustiado do Sueco e os dois algozes descarregam suas armas sobre ele.
No primeiro retrospecto, Nick conta a Riordan que, uma semana atrás, o Sueco reconheceu um cliente em um cadillac negro. Depois, disse que estava doente e não voltou mais ao trabalho. No segundo, Riordan procura a beneficiária do seguro, Mary Ellen Daugherty, em Atlantic City e ela lhe revela que, uma tarde, ouviu o Sueco gritando : “Ela foi embora! Ela foi embora!. Charleston tinha razão!”. Mary entrou no quarto onde ele, como um louco, estava quebrando os móveis e o impediu de se atirar pela janela. Em Filadéflia, o detetive Lubinsky explica para Riordan porque o sueco abandonou sua carreira promissora de boxeador – terceiro retrospecto – depois de levar uma surra do adversário por ter quebrado todos os ossos de sua mão direita.
A esposa de Lubinsky, Lilly, antiga namorada do Sueco, revela, em um quarto retrospecto, o encontro fatal do ex-pugilista com Kitty em uma festa no luxuoso apartamento de seu amante. Quando o Sueco entra, Kitty está apoiada no piano com um copo na mão; o vestido longo de cetim preto, os ombros cobertos por sua cabeleira negra, as luvas pretas cobrindo seus antebraços, toda a sua aparência de um erotismo refinado, é a própria imagem da sedução. Enquanto ela canta “The More I Know of Love”, uma lâmpada em forma de vela (espécie de símbolo fálico inflamado), os separa, criando uma composição visual muito evocativa da paixão devastadora que arrastará o Sueco para a morte.
Em um quinto retrospecto, Lubinsky lembra um dos últimos encontros com o Sueco em um restaurante, quando ele se preparava para prender Kitty, suspeita de ter roubado uma jóia de grande valor. Aí aparece o Sueco, assume a culpa de Kitty e Lubinsky é obrigado a prendê-lo. No enterro do Sueco, comparece seu antigo companheiro de cela, Charleston, e vem o sexto retrospecto, um tanto lírico. Charleston dá uma lição de astronomia para o Sueco, mostrando as estrelas que ele observa através das grades enquanto seu companheiro, tendo a mão o lenço de Kitty com desenhos de harpas, recorda-se de sua amada. No decorrer do sétimo retrospecto, Charleston descreve a reunião para preparar o assalto. O Sueco concorda em participar. Charleston se retira e o aconselha a não “ouvir o som das harpas”.
Riordan prossegue sua investigação na biblioteca municipal, onde examina velhos jornais. Durante a leitura do material, aparecem – oitavo retrospecto – as peripécias do audacioso assalto a uma fábrica de chapéus de New Jersey. Para acentuar o caráter jornalístico desta sequência, Siodmak filmou-a sem cortes, em um só movimento de grua apanhando em câmera alta os mínimos detalhes do roubo.
O nono e o décimo restrospecto dizem respeito às lembranças de Blanky, que Riordan encontra moribundo em um hospital. No seu delirio, Blanky se reporta a uma desavença entre o Sueco e Colfax durante um jôgo de pôquer e à partilha do roubo, quando o Sueco rende todo o bando e foge com o dinheiro. Riordan compreende que Blanky foi morto por um outro membro da quadrilha, Dum Dum, e o surpreende no quarto do Sueco em Brentwood.
Graças às informações de Dum Dum, localiza Colfax, que se tornou um cidadão respeitável em Pittsburgh, e finalmente Kitty, que lhe revela, no décimo primeiro e último retrospecto, como persuadiu o Sueco a fugir com ela. Kitty está casada com Colfax: o Sueco foi apenas um instrumento para iludir o resto do bando; porém Dum Dum também descobriu o lôgro; Riordan chega na casa de Colfax, acompanhado por Lubinsky e outros policiais, no momento em que ocorre o tiroteiro entre Dum Dum e Colfax. Um traveling lateral para a direita do patamar da escada mostra, atrás de um balaustre iluminado na melhor tradição expressionista, o cadáver de Dum Dum e depois, estendido sobre alguns degraus, Colfax agonizando. Kitty agarra-se ao pescoço de Colfax e suplica histérica: “Diga para eles que eu não sabia de nada”, mas Colfax finge que não ouve e morre com um cigarro nos lábios contraídos pela dor.
Todo o filme é marcado por lances de violência e sadismo (a luta de boxe; o primeiro plano da mão deformada; as balas dos assassinos que “rasgaram o corpo do Sueco”; Blanky, um “morto que ainda respira”; o banho de sangue no confronto final entre Dum Dum e Colfax etc.) e pela tendência do herói para a autodestruição, em uma mistura de ingenuidade e masoquismo. E há também o caráter fetichista do amor do Sueco por Kitty, não só na sua idealização romântica dessa mulher, como na maneira pela qual ele acariciava o lenço de cetim que ela lhe deu – a única coisa que ainda possuía quando se entregou passivamente aos seus executores.
Siodmak não pôde resistir às pressões de J. Arthur Rank – que mantinha uma colaboração estreita com a Universal-International e desejava introduzir através da firma americana a nova estrela britânica Phyllis Calvert (a heroína de Amor nas Sombras / Fanny by Gaslight / 1944) no mercado americano. Mediante um contrato mirabolante com a U-I – salário triplicado durante dois anos, mais liberdade para os filmes seguintes etc. – o cineasta aceitou não somente dirigir, mas também atuar como produtor de um dramalhão baseado em um romance de Rachel Field.
Brumas do Passado / Time Out of Mind / 1947, conta a história de um rapaz (Robert Hutton), filho de um armador rico do Maine (Leo G. Carroll), que quer seguir a carreira de músico, contrariando o desejo do pai de torná-lo um capitão de navio. Sua irmã (Ella Raines) lhe devota um amor excessive, mas é da filha da governanta (Phillys Calvert), educada junto com os dois irmãos, que ele recebe uma ajuda concreta. Ela lhe entrega suas economias, a fim de que ele possa sair do domicílio familiar e estudar no Conservatório de Paris. O pai não sobrevive a essa “deserção”. O rapaz retorna da Europa coberto de glória e casado com a filha (Helena Carter) de um banqueiro; porém depois perde a fé no seu talento, quando descobre que sua esposa organizava seus concertos às suas próprias custas, enchendo as salas com seus conhecidos. O rapaz começa a beber, a esposa o abandona, e é a filha da empregada que cuida de seu artista deprimido que, para coroar seu amor enfim assumido, compõe uma sinfonia, cujo triunfo é festejado em Nova York. O diretor verteu para a tela o argumento que lhe deram, assegurando somente a qualidade técnica do espetáculo
Em 1948, Darry F. Zanuck contratou R. Siodmak para fazer um drama criminal no estilo neo-realista proposto por Louis de Rochemont na 20thCentury-Fox, Uma Vida Marcada / Cry of the City. No enredo, Martin Rome (Richard Conte), gravemente ferido, recebe a extrema-unção em um hospital de Nova York. O tenente Vittorio Candella (Victor Mature), seu amigo de infância, suspeita de que Martin esteja envolvido em um roubo de jóias. Martin consegue fugir da prisão e vai ao escritório de Niles (Berry Kroeger), um advogado inescrupuloso, em cujo cofre encontra as jóias. Niles revela o nome de sua cúmplice, uma massagista corpulenta chamada Rose Given (Hope Emerson). Martin procura Rose e lhe pede dinheiro e duas passagens para a América do Sul em troca das jóias que escondeu no armário de uma estação do metrô; mas Rose é presa. Candella descobre que Martin vai se encontrar com sua noiva Teena (Debra Paget) em uma igreja e perto dali os dois se confrontam.
Siodmak trabalhou com o tema muito usado do bom e do mau rapaz oriundos do mesmo meio social, cujos caminhos na vida divergem diametralmente. Rome tornou-se um gangster irrecuperável (seu último gesto empunhando o canivete aberto, parece ser um símbolo disso) e Candella, um incorruptível defensor da lei (“Só ganho 94 dólares e 43 centavos por semana, mas durmo bem”).
Dotado de um charme irresistível, o criminoso manipula os sentimentos daqueles com os quais entra em contato: a enfermeira solteirona que consente em esconder Teena, o condenado com bom comportamento que o ajuda a fugir, a ex-amante que lhe dá abrigo, o médico em situação ilegal que lhe faz os curativos clandestinamente. Cada qual vem a ser colhido pela lei na pessoa de Candella, e devidamente punido. Porém, ao mesmo tempo, o bandido tem que lidar com criaturas mais diabólicas do que ele, como o advogado escroque e a massagista de ameaçadora presença física, cuja especialidade é torturar senhoras ricas para se apoderar de suas jóias.
Os personagens grotescos, a alienação e a predestinação do criminoso para um fim trágico (pressagiado desde a cena de abertura na sala austera e escura do hospital) e o expressionismo fotográfico – que o diretor consegue conciliar com o naturalismo de algumas tomadas em locação – dão um toque noir ao filme, que classifico -segundo a distinção que criei em “O Outro Lado da Noite: Filme Noir”, como um filme noir impuro, ou seja, com uma negritude mínima. Quem não teve oportunidade de ler o meu livro, que escreví há 15 anos e que se encontra esgotado, encontrará meu conceito de film noir, justificado com mais precisão, nos quatro artigos sobre filme noir que escreví recentemente neste blogue.