A OBRA DE F. W. MURNAU III

outubro 14, 2016

 

Quando Murnau chegou na América em julho de 1926, para trabalhar na Fox Corporation (depois de recusar convites feitos pelas firmas concorrentes Famous Players e Metro-Goldwyn), ele era conhecido quase que exclusivamente como diretor de A Última Gargalhada, o único dos seus dezessete filmes feitos até então, que havia sido distribuído nos Estados Unidos (Fausto, que acabara de ser completado, estreou em Nova York em dezembro de 1926; Tartufo, realizado entre os dois filmes citados, foi lançado em julho de 1927;  O Lobisomem, de 1921, somente chegou  ao público em junho de 1929). A Última Gargalhada, e depois Fausto, conferiram uma grande reputação artística ao diretor germânico e ao ator Emil Jannings, que também seria acolhido por Hollywood.

F. W. Murnau

F. W. Murnau

Em um encontro com Winfield R. Sheehan, gerente geral da Fox, ocorrido em Berlim, ficou ajustado que o primeiro filme de Murnau na companhia seria baseado em uma novela curta de Hermann Sudermann, “Die Reise nach Tilsit” (Viagem a Tilsit), incluída no volume “Litauische Geschichten”(Histórias Lituanas). Murnau obteve o controle criativo completo da produção bem como permissão para trazer Carl Mayer como roteirista, Rochus Gliese como diretor de arte, e Herman Bing (que no futuro seria o engraçadíssimo Zizipoff de A Viúva Alegre / The Merry Widow / 1934 de Ernst Lubitsch) como assistente de direção.

Carl Mayer preferiu voltar para o seu país, enviando depois um roteiro em alemão, traduzido por Hermann Bing para o inglês com o título de The Song of Two Humans, que acabou se convertendo no subtítulo do filme, porque Murnau preferiu dar à sua obra o título de Sunrise, e fazer alterações na história original (v. g. no livro o marido morria afogado na volta para a casa e a esposa sobrevivia, para dar à luz ao filho concebido durante a reconciliação).

Carl Mayer e Murnau

Carl Mayer e Murnau

A decisão de William Fox de contratar Murnau, dando-lhe carta branca para a realização de Aurora / Sunrise / 1927, fazia parte de um plano cuidadosamente armado para elevar o status de seu estúdio no meio da indústria de cinema, pois os filmes  dos diretores alemães eram encarados como expressões de uma visão artística em vez de meros produtos industriais. Aurora foi um dos raros filmes planejados matematicamente para ser uma produção de prestígio e de arte, e resultou em  uma obra de grande calor humano e espontaneidade, um estudo pungente da alma humana.

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Murnau quís dar ao seu relato um valor universal, como ele anuncia no começo do filme: “Esta é a história de dois seres humanos. Este canto de um homem e uma mulher é de nenhuma parte e de toda a parte, podemos ouví-lo em todas as épocas e em todo lugar”.  A ação se inicia durante as férias de verão.  Os turistas chegam a um vilarejo bucólico situado às margens de um lago. Uma mulher da cidade, decide estender sua permanência no local, para seduzir um fazendeiro casado. Ela passa diante de sua janela e faz sinal para se encontrarem. O fazendeiro, impaciente e com a consciência pesada, sai de casa furtivamente, deixando sua esposa honesta e leal com seu bebê. Ele caminha através do pântano, a fim de se reunir com a mulher da cidade e, enquanto os dois trocam beijos sob o luar, a esposa, chorando, consola seu bebê. A sedutora urbana pede que o fazendeiro venda sua propriedade  e vá com ela para a cidade. Quando sugere que ele afogue sua esposa, o fazendeiro fica injuriado, e tenta estrangulá-la. Sua fúria termina em um abraço lascivo, após o qual a mulher fatal o instiga com imagens deslumbrantes da cidade.  Eles então tramam matar a esposa dele, simulando um acidente. Na manhã seguinte o fazendeiro convida sua esposa para um passeio de barco. Durante a travessia, ele para de remar, e parte ameaçadoramente em direção a ela. Percebendo a intenção de seu marido, a esposa cruza suas mãos para rezar. Ele então desiste de matá-la, e rema até a margem. Em terra, a esposa foge, e entra em um bonde, seguida pelo marido. Chegam à cidade e, depois de irem a um restaurante,  entram em uma igreja, onde está sendo celebrada uma cerimônia de casamento. As palavras do padre parecem dirigidas a eles, o que os leva à reconciliação. Eles saem para passear. Primeiro, chegam a um salão de beleza, depois tiram uma fotografia e, por fim, entram em um parque de diversões. Vivem uma espécie de segunda lua-de-mel. Na viagem de volta para casa de barco, cai uma tempestade, e agita as águas do lago. Quando o barco começa a balançar, o marido amarra no corpo de sua esposa dois feixes de bambús para que, no caso dela ser lançada na água, possa usá-los como bóia. A tempestade aumenta, e o barco vira. Ao cessar a chuva, o marido consegue atingir a terra firme, mas não encontra a esposa. Todos no vilarejo saem em seus barcos com lanternas, para auxiliar o fazendeiro desesperado na busca pela esposa; porém tudo o que encontram são os bambús espalhados, boiando sozinhos na superfície do lago. A mulher da cidade vem procurar o fazendeiro, e este começa a estrangulá-la; mas é interrompido pelos gritos de uma empregada que lhe avisa que sua esposa fôra encontrada viva, boiando agarrada a um dos feixes de bambús. Na aurora do dia seguinte, a mulher da cidade vai embora, o marido assiste o despertar de sua esposa, e os dois se abraçam apaixonadamente.

Cena de Aurora

Cena de Aurora

Cena de Aurora

Cena de Aurora

Cena de Aurora

Cena de Aurora

Apesar de seu virtuosismo visual (a cargo de dois excelentes fotógrafos, Charles Rosher e Karl Struss), Aurora é essencialmente um filme simples. O roteiro é lírico e poético, mas descomplicado. A estrutura do filme é baseada em oposições muito claras: campo e cidade, dia e noite, consciência humana e forças da natureza. E há uma variedade de tons: temos aquela pintura cômica da felicidade reconquistada do casal naquele paraíso irreal, lúdico e exótico da cidade (os dois no cabelereiro, no fotógrafo, o parque de diversões, a dansa campesina etc.) e o tom triste das cenas do campo. Em ambos os contextos o expressionismo é bem visível. O vento, a tempestade, a serenidade da água ou do céu fazem parte do drama assim como os pensamentos e os atos dos personagens.

Cena de Aurora

Cena de Aurora

Cena de Aurora

Cena de Aurora

As transições são muito cuidadas: a mais célebre é a viagem de bonde das margens do lago até a cidade (construída por meio de uma combinação complexa entre locações naturais e trucagens) em um movimento ininterrupto, que une o campo e a cidade e providencia tanto uma pausa como uma ponte entre a paixão destrutiva da primeira metade do filme e a reconciliação construtiva que se seguirá. Outros pontos importantes do espetáculo são a mobilidade da câmera (v. g.  o fazendeiro indo se encontrar com sua amante no pântano, sendo seguido por uma câmera alucinante, que depois se torna subjetiva, e nos faz descobrir a mulher vestida de preto sob o brilho da lua cheia); o uso dos letreiros como elemento dramático (quando a mulher da cidade insinua o assassinato dizendo “Ela não poderia ser afogada?”- a palavra “afogada” vai escorrendo devagar para a parte mais baixa da tela, como se ela própria estivesse se afogando); o emprego da superposição, do desfoque ou da dissolvência (v. g. a visão das delícias da cidade e a mulher dançando frenéticamente na margem do pântano); o paralelismo (o fazendeiro e a mulher da cidade se beijando e a esposa beijando seu filhinho); o cuidado extraordinário com o jogo de luzes e dos reflexos que tem para Murnau uma significação quase mística.

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Cena de Aurora

Cena de Aurora

Cenas de Aurora

A humanidade de algumas sequências é comovente (v. g. o marido tentando acalmar os temores da esposa e reconquistar sua confiança, levando-a a um restaurante e pedindo um bolo, que nenhum dos dois quer ou consegue comer; os dois testemunhando uma cerimônia de casamento, na qual o marido se vê repetindo ou talvez compreendendo pela primeira vez os votos do matrimônio, para cair nos braços da esposa, e ser confortado por ela). O título mesmo do filme, tem um significado muito simbólico e resume em si mesmo a sua história: representa ao mesmo tempo o nascimento de um novo dia e de um amor quase-perdido pelo adultério.

Cena de Aurora

Cena de Aurora

A própria ausência de diálogos dá ao filme a universalidade proposta, que seria impossível em um filme sonoro porque, se houvesse diálogo, este estaria automaticamente ligado a uma época  e a um país, e a universalidade desapareceria. Embora seja baseado em uma história européia, o filme é ambíguo quanto ao seu ambiente. Certos aspectos sugerem a Europa, mas ele bem que poderia se passar no Canadá ou nos Estados Unidos. Até a época é controvertida. O vestuário certamente não é dos meados dos anos vinte (1927, data da realização do filme) e se os automóveis são, os cenários da cidade estilizada (construídos em falsa perspectiva e com miniaturas) e o parque de diversões futurista ajudam a complicar as coisas. O filme cria a universalidade não apenas visualmente, mas porque suas emoções são intemporais (de fato elas são eternas) e não se limitam por fronteiras geográficas.

Murnau na filmagem de Aurora

Murnau na filmagem de Aurora

0 score musical de Hugo Riesenfeld é totalmente sincronizado com a ação na tela graças ao sistema de som ótico Fox Movietone, e perdura durante todo o filme assim como os efeitos sonoros adicionais  (v. g. os sinos da igreja), ambos em uma  combinação perfeita  com as imagens notavelmente fotografadas por Charles Rosher e Karl Struss.

Janet Gaynor e seu Oscar

Janet Gaynor e seu Oscar

Entre as promessas que a Fox fez a Murnau, estava a de lhe dar total liberdade na escolha do elenco do filme, mas curiosamente ele selecionou aqueles que a companhia estava querendo promover: o trio de protagonistas, George O’Brien, Janet Gaynor e Margaret Livingston já havia coincindido em A Águia Azul / The Blue Eagle / 1926 de John Ford. George O’Brien se destacara particularmente em Três Homens Maus / 3 Badmen / 1926, também dirigido por Ford. Em Aurora, o ator usa seu corpo de uma maneira tipicamente expressionista, encurvado, como se o seu personagem estivesse literalmente carregando o peso do mundo sobre os ombros, como de fato estava, até fazer as pazes com a esposa (puzeram-lhe sapatos carregados de chumbo para a cena da intenção de afogamento). Janet Gaynor foi elevada à posição de grande artista, graças à feliz coincidência de ter atuado em mais dois filmes importantes,  Sétimo Céu / 7th Heaven / 1927 e O Anjo das Ruas / Street Angel / 1928, além de sua interpretação sensível e delicada em Aurora. Pelo seu trabalho nesses três filmes, ela conquistou o primeiro Oscar concedido pela Academia a uma atriz. Charles Rosher e Karl Struss arrebataram o Oscar de Melhor Fotografia e o estúdio da Fox uma estatueta pela alta qualidade de sua produção. Rochus Gliese foi indicado, mas perdeu para William Cameron Menzies.

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Murnau viajou de férias para a Europa em 25 de março de 1927 e, no seu retorno, celebrou um contrato de cincos com a Fox, pois o estúdio havia cumprido sua promessa de não interferir no seu trabalho, e ele acreditava que isso seria para sempre. Quase dois anos mais tarde, Murnau e a Fox dariam fim a esse contrato em virtude de desavenças motivadas principalmente porque a Fox introduziu modificações nos dois filmes seguintes do cineasta, Four Devils e Our Daily Bread. O primeiro filme, exibido no Brasil como Os Quatro Diabos, acabou desaparecendo dos arquivos da Fox, e hoje é considerado um filme perdido. O segundo filme, acabou se convertendo, depois das mudanças, em City Girl (mas quando passou em nosso país, o distribuidor colocou como título em português, a tradução ao pé da letra do título originariamente previsto, O Pão Nosso de Cada Dia).

Murnau e seus artistas infantís de Os Quatro Diabos

Murnau e seus artistas infantís de Os Quatro Diabos

Os Quatro Diabos, baseado no romance “De Fire Djaevle” de Herman Bang, adaptado por Carl Meyer, Marion Orth e Berthold Viertel (embora apenas este último tivesse sido creditado), com fotografia de Ernest Palmer (indicado para o Oscar), direção de arte de William S. Darling (após esboços de Robert Herlth), tinha o seguinte enredo. No circo Cecchi, um palhaço (J. Farrell MacDonald) cuida de duas meninas orfãs, Marion (quando adulta, Janet Gaynor) e Louise (quando adulta, Nancy Drextel), como se fossem suas filhas. Durante uma temporada, uma mulher entrega ao diretor do circo (Anders Randolf) os garotos Adolf (quando adulto, Barry Norton) e Charles (quando adulto, Charles Morton), filhos dos famosos trapezistas Rossy, que haviam perdido a vida executando um salto mortal. As quatro crianças crescem unidas por uma grande amizade, ao mesmo tempo em que sofrem sob a severa disciplina exercida por Cecchi. Um dia, o palhaço abandona o circo com os quatro gurís, depois de uma briga com Cecchi que, embriagado, os havia ameaçado. O palhaço consegue emprego em outros circos, o tempo passa, e os meninos e as meninas crescem. Já muito velho, o palhaço sente-se mal durante uma apresentação, deixa de atuar, mas continua a treinar o quarteto. Eles se tornam célebres como acrobatas do trapézio chamados “Os Quatro Diabos”, que aparecem em seus números montados, cada um em dois cavalos brancos. Marion ama Charles há muito tempo, porém eis que surge uma mulher fatal, e Charles não resiste aos seus encantos. Uma dama (Mary Duncan) passa a comparecer em todas as apresentações dos Quatro Diabos e sempre lança uma rosa para Charles, que na verdade é um bilhete convidando-o a se encontrar com ela. Antes de um desses encontros, Adolf tenta impedí-lo de sair, dizendo que ele iria destruir o grupo. Charles passa a ficar dispersivo nos ensaios e, em um deles, cai do trapézio durante um salto mortal, sendo todavia salvo pela rede de segurança. Ele continua frequentando a casa da amante, o que é motivo de preocupação para Marion, Alfred e o palhaço, que o alertam para o salto mortal que será executado na noite seguinte sem qualquer proteção. Após uma discussão, Charles sai para encontrar-se com a dama, pedindo que o deixem em paz.

Os Quatros Diabos

Os Quatros Diabos (Janet Gaynor, Nancy Drextel, Charles Morton, Barry Norton)

Marion o segue e, depois de esperá- lo durante toda uma noite gélida, chegam a se falar. Charles abraça-a e pede seu perdão. Abandonada, a dama não se conforma e, no dia seguinte, vai ao circo, e convida Charles a ir até sua casa após o ensaio. A dama pede que ele não lhe negue uma última taça de vinho e um último beijo. Charles bebe um pouco demais e não percebe que ela atrasou o relógio em uma hora e meia. Só se dá conta da hora ao verificar o relógio da cidade, olhando pela janela. Charles corre até o circo, e consegue chegar no último instante da apresentação do trapézio perigoso.

Cena de Os Quatro Diabos

Cena de Os Quatro Diabos

Cena de Os Quatro Diabos

Cena de Os Quatro Diabos

Cena de Os Quatro Diabos

Cena de Os Quatro Diabos

A partir daí, em uma primeira versão, Marion lança o trapézio para Charles e este, embriagado, não consegue agarrar a barra, e cai; mas consegue sobreviver milagrosamente. Em outro final, preferido por Murnau, Marion crê que ela e Charles devem morrer. Na conclusão do salto mortal, Charles deveria receber o trapézio, que lhe é lançado por Marion. Ela entretanto, salta junto com o trapézio, e Charles, sem ter onde se agarrar senão ao corpo de Marion, acaba abraçando-a e assim, os dois vão ao solo. Mais tarde, os dois diabos sobreviventes se casam e levam o palhaço consigo. Este final encantou a muitos espectadores das pré-estréias que se fizeram em Fresno e San José na Califórnia em julho de 1928, por ser mais lógico que o final feliz forçado da primeira versão. Entretanto, a companhia produtora não pensou assim, e ordenou outro desenlace (que Murnau filmou com relutância) no qual Marion, sentindo-se desprezada, cai deliberadamente do trapézio. É dada como morta, mas sobrevive, e confessa seu amor a Charles. Esta versão foi apresentada na estréia que ocorreu em 3 de outubro de 1928 em Nova York.  Mais uma versão, esta fora do alcance de Murnau, reestreou em Los Angeles em 10 de junho de 1929 com som e diálogos incorporados, e novos créditos, nos quais apareciam John Hunter Booth como autor dos diálogos, L. W. Connell como fotógrafo, A. H. Van Buren e A. F. Erickson como encenadores. Nesta derradeira versão, não foi modificado o final, mas as cenas que o antecediam. Charles rompe definitivamente com a amante, e chega a tempo no circo para fazer o número do salto mortal, não após ter se embriagado na companhia dela, mas depois de ter ficado horas inconsciente por ter sido atropelado.

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O Pão Nosso de cada Dia, baseado na peça teatral “The Mud Turtle” de Elliott Lester, adaptada por Berthold Viertel e Marion Orth, com fotografia de Ernest Palmer, direção de arte de Harry Oliver, contava a seguinte história. Em  1929, Lem Tustine (Charles Farrell), vai a Chicago, a pedido do pai, para vender a última colheita de trigo de sua fazenda no Minnesota. Em uma lanchonete, ele conhece Kate (Mary Duncan), jovem garçonete que não se sente feliz no seu trabalho e na sua cidade. Eles se casam, e Lem a leva para viver na propriedade de sua família. Se a mãe (Edith Yorke) a acolhe calorosamente, o mesmo não acontece com o pai ríspido e autoritário (David Torrence), que implica imediatamente com a moça, culpando-a pela má venda efetuada pelo seu filho (quando na verdade esta foi causada pela crise financeira) e desconfiando de suas intenções ao se casar com Lem. Ele chega mesmo a bater em Kate quando ela o enfrenta e, como Lem não ousa se opor ao seu pai e reprovar sua atitude, ela lhe fecha a porta de seu quarto. Não obstante, no dia seguinte, Kate vai ajudar na nova colheita do trigo, preparando as refeições dos empregados da fazenda. Ela logo verifica que eles não são menos vulgares e dissolutos do que os citadinos que ela costumava servir na lanchonete. Uma tempestade de granizo se aproxima, ameaçando destruir toda a colheita, e o velho Tustine oferece pagamento em dobro aos seus empregados, para eles trabalharem de noite. O capataz, Mac (Richard Alexander), que já vinha se aproximando de Kate, chega com a mão cortada por uma debulhadeira e, enquanto ela o ajuda a enfaixá-la, ele aproveita a oportunidade para tentar convencê-la a fugir com ele. Kate se recusa, porém o velho Tustine surge nesse momento e anuncia que vai procurar Lem, e lhe dizer que espécie de esposa ele tem. Furioso, ao saber da notícia, Lem vence Mac em uma briga, e depois quase é atingido pela arma de seu pai quando este atira contra empregados desertores. Percebendo que quase matou seu filho, confundindo-o com um dos fugitivos, o velho arrepende-se, e Lem traz de volta sua esposa, apresentando-a novamente para um pai mais submisso e tolerante.

Charles Farrell e Mary Duncan em O Pão Nosso de Cada Dia

Charles Farrell e Mary Duncan em O Pão Nosso de Cada Dia

Cena de O Pão Nosso de Cada Dia

Cena de O Pão Nosso de Cada Dia

Mary Duncan em O Pão Nosso de Cada Dia

Mary Duncan em O Pão Nosso de Cada Dia

A interferência do estúdio que já havia afetado Os Quatro Diabos, causou impacto ainda maior sobre o filme seguinte de Murnau, um projeto sugerido por ele, chamado Our Daily Bread, que foi abreviado, remontado e parcialmente refilmado pela Fox, antes de ser lançado com o novo título de City Girl. Felizmente, a versão restaurada que podemos ver hoje, é a silenciosa, que Murnau pretendeu fazer; mas o público de 1930 viu uma versão bastarda parcialmente falada com mudança de ênfase e/ou extirpação de determinadas cenas (com diálogos de Elliott Lexter, e encenada por A. H. Van Buren e A. D. Erickson, pois o cineasta se recusou a fazer quaisquer mudanças na sua criação muda), e ainda inserção de cenas de alívio cômico.

Cena de O Pão Nosso de Cada Dia

Cena de O Pão Nosso de Cada Dia

Cena de City Girl

Cena d O Pão Nosso de cada Dia

Cena de O Pão Nosso de Cada Dia

Cena de O Pão Nosso de Cada Dia

Cena de O Pão Nosso de Cada Dia

Cena de O Pão Nosso de Cada Dia

Mary Duncan e David Torrence em Pão Nosso de Cada Dia

Mary Duncan e David Torrence em Pão Nosso de Cada Dia

Mary Duncan e Richard Alexander em O Pão Nosso de Cada Dia

Mary Duncan e Richard Alexander em O Pão Nosso de Cada Dia

O filme tem como tema a falsidade do mítico retorno ao campo dominado pela mesma lógica do lucro e intolerância que vigora no ambiente citadino, e apresenta uma espécie de inversão dos valores e das situações apresentados em Aurora. Diferentemente do que ocorre na primeira realização de Murnau nos Estados Unidos, a desavença entre o jovem casal não resulta de uma tentação externa, mas da fraqueza moral do rapaz e sua total subordinação ao pai autocrático, que ameaça sua pequena filha de punição, por se atrever a brincar com talos de milho. Outrossim, enquanto que em Aurora  é a mulher que parece ser a pessoa mais frágil do casal, não ousando fazer nada, quando ela percebe que seu esposo está prestes a afogá-la, em O Pão Nosso de Cada Dia, ao contrario, é ela que representa a modernidade e a força de caráter, aquela que enfrenta os conflitos para salvaguardar sua felicidade. Quanto a Lem, em oposição ao homem de Aurora, ele é um ser ingênuo, sempre sob a tutela de seus pais, oprimido pelas tradições e pelos resquícios de uma educação rígida lembro o riso das garçonetes quando, na lanchonete, elas vêm o rapaz fazer sua oração antes de comer o sanduíche.

Ernest Palmer e Murnau

Ernest Palmer e Murnau

Sob o ponto de vista visual, também surgem divergências entre os dois filmes. Aurora parecia mais um filme alemão e se aproximava do expressionismo; O Pão Nosso de Cada Dia, assemelha-se mais a um filme americano naturalista, embora se encontrem vestígios da primeira escola estética do cineasta. No último filme citado, sua mise-en-scène apurada e seu sopro lírico manifestam-se notadamente na chegada de Kate e Lem na granja, no instante em que correm felizes acompanhados por um traveling através do trigal, abraçando-se e se beijando, até se depararem diante da morada inquietante dos Tustine. Pouco antes, eles param diante de uma cerca, Lem mostra a imensidão da plantação para Kate, e ela diz: “Oh, Lam, é maravilhoso ter um lar … e uma mãe e um pai … e um homem forte e vigoroso para cuidar de mim!”, mal sabendo ela o que a esperava. A cumplicidade entre os dois atores, a suntuosidade da fotografia, a perfeição dos enquadramentos, e a utilização da luz constroem uma sequência admirável e tocante.

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Durante a filmagem de Os Quatro Diabos, Murnau conheceu o documentarista Robert J. Flaherty, que se tornara famoso através de dois filmes Nanook do Norte / Nanook of the North / 1922 e Moana / Moana / 1926. Seu desapontamento mútuo sobre as condições de trabalho em Hollywood aproximou-os. Juntos, eles desenvolveram um plano para realizar um filme nos Mares do Sul, baseado inteiramente em suas próprias concepções. Há algum tempo, Murnau havia pensado em partir para Bali, onde seu amigo, o pintor Walter Spies, vivia. Flaherty conhecia os Mares do Sul desde a produção de Moana e do filme Deus Branco / White Shadows of the South Seas / 1928, rodado no Tahiti, no qual ele esteve inicialmente envolvido.

 Robert Flaherty na filmagem de Tabu (em baixo , à direita)

Robert Flaherty na filmagem de Tabu (em baixo , à direita, de camisa branca)

Floyd Crosby (à esq.) e Murnau (à direita) em um intervalo da filmagem de Tabu

Floyd Crosby (à esq.) e Murnau (à direita) em um intervalo da filmagem de Tabu

Em março de 1928 eles formaram a Murnau-Flaherty Productions que, logo depois, se associou a Colorart Productions Ltd., uma produtora disposta a financiar o projeto dos dois cineastas, comprometendo-se a mandar material para uma filmagem em cores e com som, técnicos de apoio, e dinheiro para cobrir todos os gastos. O título provisório do filme planejado em Technicolor era Turia e seu enredo baseado em uma idéia de Flaherty.

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Em maio de 1928, Murnau visitou o Taiti, e se reuniu com Flaherty um mês depois para escolher locações na ilha de Bora-Bora. Em agosto, chegaram cinco mil dólares, quantidade muito pequena em relação ao que haviam combinado, e então Murnau, depois de um ultimato para que a Colorart cumprisse o prometido, resolveu rescindir o contrato, e assumir ele mesmo as despesas. Para cortar os custos do empreendimento, mandou os componentes da equipe de Hollywood de volta, e treinou os nativos para trabalhar no lugar deles. Murnau optou para filmar em preto e branco. O roteiro foi reescrito e o título modificado para Tabu / Tabu, a Story of the South Seas, a fim de evitar questões legais com a Colorart.

Reri (Anne Chevalier)

Reri (Anne Chevalier)

A produção começou em janeiro de 1930 com Flaherty dirigindo a cena de abertura. Foi a única que ele dirigiu. Como agora era Murnau quem financiava a produção, ele se tornou o único diretor, deixando Flaherty encarregado apenas da fotografia e do trabalho em laboratório. Flaherty começou a ter problemas técnicos com a sua câmera e chamou o fotógrafo Floyd Crosby para ajudá-lo. O grande documentarista americano não tardou a ser afastado da fotografia, encarregando-se do trabalho de laboratório, recebendo um salário muito inferior ao de outros colaboradores, especialmente em relação a Crosby (que acabou ganhando  o Oscar de Melhor Fotografia).

A produção terminou em outubro de 1930. Flaherty, que vinha se sustentando com apenas 40 dólares mensais, ficou em péssima situação financeira antes da filmagem terminar. Ele vendeu sua participação acionária no filme para Murnau por 25 mil dólares. Retornando a Los Angeles, Murnau montou o filme, e gastou o resto de sua verba, para contratar Hugo Riesenfeld, autor do score musical. Os direitos de distribuição foram vendidos para a Paramount por cinco anos por 75 mil dólares, que serviram para Murnau pagar Flaherty. O filme estreou em 18 de marco de 1931, e foi quando Floyd Crosby ganhou o Oscar de Melhor Fotografia.

Cena de Tabu

Cena de Tabu

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Tabu é dividido em dois capítulos. No primeiro, intitulado “Paraiso”, Matahi e Reri (Anne Chevalier) são dois jovens nativos de Bora-Bora apaixonados, mas suas vidas são destruídas quando o chefe da ilha recebe uma mensagem do velho Hitu, emissário do chefe da ilha vizinha de Fanuma, senhor de todas as ilhas. Ele anuncia que a virgem consagrada aos deuses de Fanuma morreu e Reri foi escolhida para substituí-la. A partir desse momento, nenhum homem poderá tocá-la, pois ela é tabu. Hitu recebeu a missão de conduzí-la à presença do chefe de Fanuma e de proteger a sua castidade. Matahi fica inconsolável porém, durante a festa em homenagem à visita de Hitu, os dois amantes se entregam a uma dança agitada, que o velho interrompe brutalmente. Na segunda parte, intitulada “Paraíso Perdido”, Matahi e Reri fogem em uma pequena embarcação e procuram uma ilha, onde reina o homem branco e os deuses antigos são esquecidos. Eles encontram essa ilha, onde Matahi se revela um excelente mergulhador, e consegue achar uma pérola. Pouco familiarizado com o conceito de dinheiro, ele não compreende as contas que assina pelas bebidas oferecidas para todos durante uma festa, a qual é interrompida pela chegada de um veleiro, que traz uma comunicação do governo francês, oferecendo  recompensa pela sua prisão. Matahi suborna o policial. Pouco depois, um rapaz, tendo mergulhado em um lugar considerado perigoso pelos nativos supersticiosos, é devorado por um tubarão. O policial então manda colocar um cartaz nesse local com a inscrição: tabu, proibindo o mergulho. Reri recebe uma mensagem de Hitu: se ela não voltar dentro de três dias, Matahi vai morrer. A moça vai a uma agência de viagens, para saber o preço de dois bilhetes para Papeete. Matahi quer comprar as passagens, porém sob o pretexto de que ele tem dívidas assumidas com a festa que bancou, os credores recolhem seu dinheiro. De noite, ele sonha que pagou suas dívidas com uma pérola. Hitu, armado com uma lança quer matá-lo enquanto está dormindo. Reri se joga aos seus pés e jura obedecê-lo. Enquanto Mitahi partiu para mergulhar no lugar proibido, Reri lhe escreve uma palavra de adeus. Ao chegar à sua cabana, depois de escapar de um tubarão e de encontrar uma pérola negra valiosísima, Mitahi lê o bilhete, e corre para tentar alcançar o barco de Hitu, que leva Reri. Ele nada velozmente, e até consegue se aproximar da embarcação, todavia, a corda que o levaria a bordo, é cortada por Hitu. Enquanto o barco segue viagem, Matahi continua nadando em sua direção até que a exaustão o faz desaparecer no mar.

Cena de Tabu

Cena de Tabu

Cena de Tabu

Cena de Tabu

Cenas de Tabu

O filme se afasta do olhar documentarista de Flaherty, interessado em captar a autenticidade da vida dos pescadores de pérolas, aproximando-se da visão  idealizada e mais atraente de Murnau, que se concentrou no tema do tabu, fornecendo um entrecho dramático – o itinerário sem esperança  de um casal perseguido pelas regras da tradição e traído pelas esperanças que a civilização prometia – , no qual se manifesta o seu pessimismo e o seu romantismo.

Cena de Tabu

Cena de Tabu

Cena de Tabu

 

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Cena de Tabu

A realização se divide em dois capítulos intitulados respectivamente Paraiso” e “Paraiso Perdido”. O primeiro  tem um ar jovial, com o par de jovens enamorados, conhecendo-se e se divertindo nas cascatas e na festa de Bora-Bora. O segundo capítulo tem um tom mais sombrio, mostrando a fuga dos dois amantes e sua perseguição até ocorrer a tragédia. Todo o primeiro capítulo é plástica e ritmicamente admirável. Em um movimento incessante, vemos Matahi e seus companheiros pescando com o arpão e deslizando por uma cascata, a grinalda de flores levada pelas águas correntes, as jovens banhando-se ali perto, a aparição de Reri por entre uma folhagem exuberante, Matahi separando a briga entre Reri e outra jovem e colocando uma grinalda em sua cabeça, um nativo subindo pelo tronco de uma palmeira e avistando uma embarcação que se aproxima, a população correndo em suas canoas em direção ao veleiro e depois empoleirando-se alegremente no cordame.

Muran e os nativos que apareceram em Tabu

Murnau e os nativos que apareceram em Tabu

Tabu é a obra que mais do que qualquer outra acentua o caráter autobiográfico e intimista do cineasta, aquela que, de certo modo, amplifica a componente homo-erótica contida em muitos de seus filmes. Murnau parece se deliciar com os corpos atléticos e esbeltos dos rapazes com uma espécie de ardor encantado que em Hollywood estivera reservado para a figura feminina.

Murnau entre Reri e Hatahi

Murnau entre Reri e Hatahi

No segundo capítulo, o ambiente natural idílico e puro cede lugar para o meio explorado e corrompido pelo homem branco europeu, não há mais alegria, só tristeza, tensão, terror. O amor inocente de Matahi e Reri está condenado desde o príncipio, eles estão encurralados entre dois mundos.

A estréia de Tabu ocorreu no dia 18 de marco de 1931, uma semana após a morte de Murnau em um acidente automobilístico em uma estrada de Santa Barbara, Califórnia.

Viajando em um Packard, dirigido por um chofer de 26 anos chamado John Freeland, Murnau, atendendo ao pedido de seu mordomo filipino, Eliazar Garcia Stevenson, permitiu que ele assumisse a direção do volante. O cineasta viajava no banco de trás ao lado de seu cão pastor alemão, Pal. Um caminhão surgiu na contra-mão e Stevenson se desviou para evitar um colisão; mas o carro bateu em um aterro e virou, jogando todos os passageiros para fora do veículo. Stevenson escapou com ferimentos leves, Freeland sofreu cortes no rosto, e Murnau foi lançado em uma vala. Ele faleceu no dia seguinte em virtude de uma fratura no crânio e outras lesões de natureza interna no Santa Barbara Cottage Hospital.

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