O lugar de Marcel Carné (Paris, 1909-1996) na história do cinema está assegurado como o principal expoente do realismo poético, especialmente na sua colaboração com o poeta / roteirista Jacques Prévert.
O termo realismo poético, na sua expressão fílmica, nasceu de uma rede de influências literárias, com as variações em torno do naturalismo, do populismo e do fantástico social de Pierre Mac Orlan e Marcel Aymé e influências cinematográficas, com o expressionismo realista, frequentemente chamado de Kammerspielfilm (filme de interiores), do qual tomou emprestado a temática (personagens que representavam a escória da sociedade, abatidos pela fatalidade), a atmosfera (a famosa Stimmung, prezada pelos alemães), a iluminação (utilização expressionista da luz devido a grandes fotógrafos alemães emigrados na França, como Eugen Schufftan) e a representação cênica estilizada (que privilegiava a filmagem em estúdio).
As principais obras do realismo poético tentavam, de uma maneira ou de outra, encontrar uma dimensão trágica na vida dos marginais, dos excluídos, que não tinham outra escolha se não o exílio ou a morte. Transitando por portos banhados de sombras, bares sórdidos, hotéis de terceira categoria ou desertos distantes, esses seres procuravam se evadir para um outro destino pela aventura ou pelo sonho. Alguns comentaristas preferem usar o termo “tragédia populista” ou “populismo trágico” para denominar essa corrente do cinema francês.
Carné foi aprendiz de marceneiro, depois empregado de uma companhia de seguros. Apaixonado pelo cinema, frequentou cursos de fotografia e exerceu a crítica de filmes. O encontro com a atriz Françoise Rosay, esposa do cineasta Jacques Feyder, ajudou-o a começar sua carreira como assistente de câmera em Les Nouveaux Messieurs / 1929 (Dir: Jacques Feyder), e Cagliostro / 1929 (dir: Richard Oswald). No mesmo ano, Carné dirigiu um documentário de curta-metragem, Nogent, Eldorado du Dimanche, e depois se tornou assistente de René Clair (Sob os Tetos de Paris / Sous les Toits de Paris / 1930) e de Feyder (A Última Cartada / Le Grand Jeu / 1934; Pensão Mimosas / Pension Mimosas / 1935; A Quermesse Heróica / La Kermesse Héroique / 1935).
Trabalhando intimamente com Prévert, Carné ascendeu para uma grande proeminência no cinema francês dos anos 30. De sua cumplicidade nasceram sete filmes, dotados de um equilíbrio exemplar entre o lirismo eloquente do dialoguista e a visão moderada do cineasta. Sua colaboração produziu filmes memoráveis como Jenny / Jenny / 1936; Família Exótica / Drôle de Drame / 1937; Cais das Sombras / Quai des Brumes / 1938; e Trágico Amanhecer / Le Jour se Lève / 1939. Essas duas últimas obras foram o ápice do realismo poético, juntamente com Hotel do Norte / Hotel du Nord / 1938, no qual Carné não contou com a participação de Prévert, substituído por Henri Jeanson.Celebrando Prévert, os críticos talvez tenham subestimado atributos distintivos de Carné: seu senso refinado de composição e iluminação, sua capacidade para dar vida ao artifício do estúdio, sua articulação do estado psicológico de seus heróis. Certamente seus filmes do período em questão também devem muito ao decorador Alexandre Trauner, ao compositor Joseph Kosma e a uma grande quantidade de atores notáveis, Como Jean Gabin, Louis Jouvet, Arlette, Michèle Morgan, Simone Signoret etc., porém Carné era o catalisador, o condutores centro de tudo.
Durante a Ocupação houve um êxodo de diretores e artistas (Jean Renoir, René Clair, Julien Duvivier, Jacques Feyder, Max Ophuls, Pierre Chenal, Robert Siodmak, Jean Gabin, Charles Boyer, Louis Jouvet, Michèle Morgan, Françoise Rosay, Marcel Dalio, Victor Francen etc.), porém Marcel Carné e Jacques Prévert continuaram em atividade nos palcos de filmagem, sem se comprometerem com o poder. Carné, em 1940, havia recusado convites da Continental (firma destinada a produzir na França filmes com capital alemão e mão de obra francesa) e sido arrastado para a lama pelos jornais colaboracionistas (Lucien Rebatet: “Os subúrbios leprosos e brumosos que lhes servem de moldura exalam apenas sentimentos sórdidos (…) Seus heróis são assassinos medíocres, candidatos ao suicídio, rufiões, prostitutas, cafetinas (…)”). No contexto reprimido da Ocupação, Carné e Prévert se voltaram mais para o fantástico / poético do que para o real, realizando Os Visitantes da Noite / Les Visiteurs du Soir e O Boulevard do Crime / Les Enfants du Paradis, dois dos filmes mais populares do cinema francês. O primeiro estreou em dezembro de 1942; o segundo, após a Libertação, na primavera de 1945.
Em 1946, a dupla de cineastas fez Portas da Noite / Les Portes de la Nuit. Depois disso então se separaram e os críticos começaram a achar que, sem o concurso do seu parceiro poeta, os filmes de Carné não eram tão eficientes. Na realidade, o declínio de Carné coincidiu com o rompimento com Prévert, porém teve mais a ver com as mudanças do panorama social e do gosto do público. Carné passou a simbolizar a “estagnação” do cinema francês tradicional aos olhos dos jovens críticos da Nouvelle Vague, que o julgaram fora de moda, apesar de ele ter feito vários filmes interessantes: Paixão Abrasadora / La Marie du Port / 1950; Juliette ou la Clef des Songes / 1951; Teresa Raquin / Thérèse Raquin / 1953; L’Air de Paris / 1954; Os Trapaceiros / Les Tricheurs / 1958 e Ele, Ela … e o Outro / Le Pays d’ou Je Viens / 1956.
Dos derradeiros filmes de ficcão de Carné, realizados nos anos 60 e 70, apenas um passou no Brasil, o razoável As Testemunhas do Medo / Les Assassins de l’Ordre / 1971. Como não ví os outros, passo a palavra a Jacques Siclier, renomado crítico francês. Segundo JS, após Os Trapaceiros, o cinema de Marcel Carné declinou. O realismo social de Terrain Vague / 1960 não o instigou mais do que o populismo um tanto impudico da comédia de costumes Du Mouron pour les Petits Oiseaux / 1963. Com Trois Chambres à Manhattan / 1965, Carné mostrou-se hábil ao lidar com o realismo psicológico, mas não logrou recriar a atmosfera específica do romance de Georges Simenon. A mediocridade de Les Jeunes Loups / 1968 não derivou dos embaraços que o filme teve com a censura. Quanto a La Merveilleuse Visite / 1974, recolhí de outro excelente comentarista francês, Pierre Murat, mais esta constatação da decadência do diretor: “Em nome de tantas alegrias experimentadas diante de tantos filmes (Família Exótica, Trágico Amanhecer, O Boulevard do Crime…), esqueçamos esta “bomba” colossal de Marcel Carné: a história de um anjo louro e nú que encalha em uma praia da Bretanha … Horroroso”.
Neste artigo presto uma homenagem ao grande cineasta, relembrando alguns de seus melhores filmes.
BOULEVARD DO CRIME, O / LES ENFANTS DU PARADIS.
No meio da multidão que passeia pelo Boulevard du Temple, surge Garance (Arletty), que vai ser amada por quatro homens: Lacenaire (Marcel Herrand), o assassino-poeta, Frédérick Lemaître (Pierre Brasseur), o ator exuberante; Baptiste Debureau (Jean-Louis Barrault), o mímico, e o conde Edouard de Montray (Louis Salou). Apesar de seu relacionamento com Lacenaire, Lemaître e Montray, Garance nunca deixa de amar profunda e incessantemente o tímido Baptiste, mesmo depois de ele ter se casado com sua colega do Teatro dos Funâmbulos, Nathalie (Maria Casarès), e ela, com o conde. No entanto, compreende a impossibilidade do seu amor e foge. Baptiste, desesperado, procura-a em vão no tumulto dos folguedos do Carnaval.
Produzido em circunstâncias difíceis durante a Ocupação, o filme focaliza os infortúnios do amor e a Paris romântica e misteriosa do tempo de Louis-Philippe, mostrando as relações entre a vida e a arte. Por exemplo, no quadro “O namorado da lua”, no meio do qual Baptiste vê nos bastidores Lemaître beijando Garance e ele para repentinamente. A realidade se confunde com a representação, o palco com a vida e a vida repete os dramas vividos no palco, segundo o conceito shakespereano (em Como Gostais, ato II, cena VII). Alguns críticos acharam o filme muito literário, mas todos reconhecem a sua concepção arrojada, o brilhantismo da reconstituição histórica, as atuações magistrais de um elenco homogêneo e os diálogos poéticos e elegantes, como aquele dito no interrogatório de Garance: “Garance é uma flor. Meu nome verdadeiro, meu nome de moça solteira é Clara”. “Clara de quê?”, pergunta o policial. Ela responde com um sorriso: “Clara como o dia, como a água da fonte …”
CAIS DAS SOMBRAS / QUAI DES BRUMES.
Jean (Jean Gabin), um desertor, chega ao Havre e procura um abrigo. Trazido por um mendigo, Quart-Vittel (Aimos), ele é hospedado na taverna do velho Panama (Edouard Delmont), onde conhece um pintor alucinado, Michel Krauss (Robert Le Vigan), e uma bela jovem triste, Nelly (Michèle Morgan). Ela é assediada por seu tutor, Zabel (Michel Simon), um traficante que vem sendo espreitado por um bando de malandros, cujo chefe é Lucien (Pierre Brasseur). Uma manhã, quando Lucien importunava Nelly, Jean o esbofeteia. Michel se suicida, deixando para Jean suas roupas civís e seu passaporte, e o desertor decide embarcar para a Venezuela. Jean encontra Zabel querendo abusar de Nelly e o mata. Ao se dirigir para o porto, é abatido a tiros por Lucien enquanto o navio parte.
A beleza do filme reside primeiramente nas sua atmosfera, as docas inundadas de brumas e as ruas de calçadas reluzentes, onde os personagens passeiam ao rítmo de uma música extraída de uma velha canção dos marinheiros. Essa estética foi fruto da composição visual de Marcel Carné; da pena de Jacques Prévert inspirada nos mitos da evasão e do destino, já articulados no livro de Mac Orlan, no qual o filme foi baseado; da iluminação de um fotógrafo veterano do expressionismo alemão (Eugen Schüfftan); e das geniais reconstituições de um esplêndido cenógrafo (Alexander Trauner), que refez em estúdio as ruas do Havre, o parque de diversões e a loja de Zabel. Obra-prima plástica, uma das mais representativas do realismo poético, o espetáculo apoia-se também nos atores, perfeitamente encaixados em um pessimismo lírico, que muitos viram como um eco de certo fatalismo que sucedeu ao fracasso da Frente Popular.
HOTEL DO NORTE / HOTEL DU NORD.
Um casal de jovens amantes hospeda-se no modesto Hôtel du Nord na margem do canal Saint-Martin. Pierre (Jean-Pierre Aumont) e Renée (Annabella) fizeram um pacto de morte. Pierre atira em Renée, mas não tem coragem de se matar. Ao ouvir o barulho do disparo, seu vizinho, Sr. Edmond (Louis Jouvet), arromba a porta e deixa Pierre fugir ma ele, pela manhã, se entrega à polícia. Renée, transportada para o hospital, é salva e vai trabalhar no hotel. Edmond vive ali com Raymonde (Arletty), uma prostituta que “trabalha” para ele. Ele se apaixona por Renée e tenta levar a jovem consigo para Marselha.
Esse melodrama populista, com os ingredientes do realismo poético, como observou Jacques Lourcelles, conta a história de um contágio. Contágio do suicídio, passando de dois personagens (Pierre e Renée) para um terceiro (Edmond), que conseguirá o que os outros dois não conseguiram utilizando a mesma arma (Edmond a havia resgatado de um garoto, que a encontrara em uma mata onde Pierre a havia jogado). Um diálogo entre Jouvet e Arletty tornou-se célebre. Depois de uma briga, Edmond diz para Raymonde: “Preciso mudar de atmosfera e minha atmosfera é você”. Incapaz de compreender o que ele quis dizer, Raymonde toma a palavra atmosfera como um insulto e responde, exagerando nas vogais abertas com seu estridente sotaque parisiense: “Atmosfera! Atmosfera! Eu tenho cara de atmosfera? Carné diria, com toda razão, que Arletty foi a “alma” de Hotel do Norte.
TERESA RAQUIN / THÉRÈSE RAQUIN.
Casada com seu primo Camille Raquin (Jacques Duby), de saúde frágil, Thérèse (Simone Signoret) não é feliz. Uma noite, Camille, bêbado, é reconduzido para a sua casa por um caminhoneiro italiano, Laurent (Raf Vallone). Este torna-se amante de Thérese. No curso de uma viagem de trem, após uma discussão violenta, Camille é morto por Laurent. O inquérito policial conclui que a morte de Camille foi um acidente, mas o destino intervém na pessoa de Riton (Roland Lesaffre), um marinheiro que testemunhara o crime e começa a chantagear o casal de amantes.
No romance de Émile Zola, após a morte de Camille não há mais “ação”, somente uma longa exposição do comportamento dos dois amantes, obcecados pelo remorso. No filme, Carné preocupou-se mais em precipitar o drama por meio de uma testemunha que aparece para exigir sua parte no crime. O diretor deu ao assunto uma força trágica, cuja cena mais característica é o confronto entre Thérèse e Mme. Raquin paralítica (Sylvie), mas que sabe tudo o que se passou. Simone Signoret dá conta de uma composição difícil. Ela consegue passar da frustração resignada ao êxtase do amor, depois à tristeza, ao ódio e ao medo.
TRÁGICO AMANHECER / LE JOUR SE LÈVE.
Nas escadas de uma casa no subúrbio ouve-se o barulho de uma discussão acalorada. Um tiro é disparado. Uma porta se abre, um homem rola pelos degraus e morre. O assassino, François (Jean Gabin), se refugia em seu quarto. A polícia chega, mas ele se recusa a sair e o imóvel é cercado. Durante a noite, François, sabendo que não poderá escapar, relembra sua história de amor com Françoise (Jacqueline Laurent), uma jovem florista, seu encontro com Valentin (Jules Berry), o adestrador de cães, e com Clara (Arletty), a companheira deste último.
A fatalidade social não dá nenhuma chance ao protagonista. Seus atos são, por assim dizer, programados por todo o seu passado e as circunstâncias de sua existência quotidiana, elementos de uma engrenagem que vai acabar com sua vida. O primeiro plano do filme já revela o fim trágico, o que nos leva a acompanhar a história em estado de imensa compaixão. Carné usa com muita perfeição o retrospecto, para integrar o passado no presente e observar o mundo interior e o comportamento de François. A sua tragédia é explicitamente formulada na cena em que Gabin grita da janela para a turba reunida lá embaixo, manifestando a sua infelicidade e a sua cólera. Nesta cena Gabin está falando também para os espectadores, para cada um de nós que somos testemunhas de seu drama.
VISITANTES DA NOITE , OS / LES VISITEURS DU SOIR.
Em 1485, Gilles (Alain Cuny) e Dominque (Arletty), dois menestréis enviados pelo diabo, dirigem-se ao castelo do barão Hugues (Fernand Ledoux), onde está sendo festejado o noivado de sua filha Anne (Marie Déa) com o cavaleiro Renaud (Marcel Herrand). Dominque, que é na realidade uma mulher, seduz o velho barão e depois Renaud, enquanto Gilles se apaixona por Anne. Furioso, o diabo (Jules Berry), fingindo-se de viajante, chega para restabelecer a ordem. Renaud é morto pelo barão em um torneio. O diabo transforma os dois amantes em estátuas de pedra, mas não consegue impedir que seus corações continuem a bater em uníssono, indefinidamente.
Este final foi muito discutido. Ele tem uma significação mística (o amor é mais forte do que a morte)? Ou é uma alusão política disfarçada (o coração da França continua a bater apesar dos esforços diabólicos dos ocupantes)? Seja qual for a interpretação – aliás, elas não se excluem -, as qualidades desse filme são poéticas. O ambiente estranho do castelo todo branco, o aparecimento dos dois visitantes em uma paisagem desolada, os pequenos bufões monstruosos, o baile e a dança que se imobiliza parando magicamente o tempo, o rítmo voluntariamente lento como se tudo fosse um sonho, nos transportam para um universo fantástico, criado com amplos recursos materiais.
FILMOGRAFIA
1929 – Nogent, Eldorado du Dimanche (Documentário). 1936 – Jenny. 1937 – Família Exótica / Drôle de Drame. 1938 – Hotel do Norte / Hôtel Du Nord; Cais das Sombras / Quai des Brumes. 1939 – Trágico Amanhecer / Le Jour se Lève. 1942 – Os Visitantes da Noite / Les Visiteurs du Soir. 1945 – O Boulevard do Crime / Les Enfants du Paradis. 1946 – Portas da Noite/ Les Portes de La Nuit. 1947 – La Fleur de L’Age (não completado). 1950 – Paixão Abrasadora / La Marie du Port. 1951 – Juliette ou la Clef des Songes. 1953 – Teresa Raquin / Thérèse Raquin. 1954 – L’Air de Paris. 1956 – Eu, Ela … e o Outro / Le Pays d ‘ou Je Viens. 1958 – Os Trapaceiros / Les Tricheurs. 1960 – Terrain Vague. 1963 – Du Mouron pour le Petis Oiseaux. 1965 – Trois Chambres à Manhattan. 1968 – Les Jeunes Loups. 1971 – As Testemunhas do Medo / Les Assassins de l ‘Orde. 1974 – La Merveilleuse Visite. 1977 – La Bible (Documentário).