O CINEMA FRANCÊS DURANTE A OCUPAÇÃO
janeiro 10, 2015Em 14 de junho de 1940, os alemães ocuparam Paris. O território nacional foi dividido em duas zonas, uma no norte, ocupada pelo exército alemão, que ali exercia um controle administrativo rígido; outra, no sul, chamada “livre’, colocada sob a autoridade de um poder de fato instalado em Vichy, cuja margem de decisão era reduzida. Todos os cinemas foram fechados.
No dia 25 de junho, assinado o armistício, sessenta cinemas reabriram suas portas em Paris, dos quais quatro ficaram reservados às tropas alemãs (Soldaten Kino): Rex, Marignan, Empire e a sala do Palais de Chaillot. A partir de julho, foram reabrindo outros cinemas. Os três grandes centros de atividade cinematográfica durante a Ocupação eram Paris, Marselha (estúdios de Marcel Pagnol) e Nice (estúdios de La Victorine).
A zona ocupada, na qual se incluía a capital, estava submetida ao Propaganda-Abteilung (Serviço de Propaganda) subordinado ao escritório berlinense de Joseph Goebbels e, mais particularmente, à Referat Film (Serviço de Cinema), dirigida pelo dr. Otto Dietrich, chefe de imprensa do Terceiro Reich e depois integrante da SS (após ter sido julgado em Nuremberg e condenado a sete anos de prisão, Dietrich escreveu um livro de memórias, publicado nos Estados Unidos como “The Hitler I Knew”). A zona livre, à qual estavam ligados os estúdios de Marselha e Nice, era diretamente administrada pelo governo de Vichy, tendo sido organizado, no quadro do Ministério de Informação e Propaganda, um Service du Cinéma, colocado sob a direção de Guy de Carmoy e a responsabilidade provisória de Jean-Louis Tixier-Vignancour, para gerir as questões do cinema.
Os alemães tinham como objetivo criar condições favoráveis à expansão de um mercado do filme alemão em todo o país, por meio de uma legislação que propiciasse o controle da indústria de cinema em todos os domínios: pessoal, produção, distribuição e exibição. Assim, uma lei instituiu um estatuto dos judeus, proibindo-os de exercer uma série de profissões como, por exemplo, a de diretor, administrador ou gerente de empresas que tivessem por finalidade a fabricação, distribuição e exibição de filmes cinematográficos; gerente de cinemas, diretor ou cinegrafista, artista dramático, cinematográfico ou lirico. Não obstante, houve exceções: Jean-Paul le Chanois (cujo verdadeiro sobrenome era Dreyfus) conseguiu trabalhar como roteirista e diretor sem ser perturbado.
Foram também proibidas a projeção de filmes anglo-saxões (deixando o mercado livre para a produção alemã, alguns filmes italianos difundidos pela firma Scalera e para os filmes franceses); o programa duplo (para abrir mais espaço para os documentários); o formato reduzido de 17,5 mm (permitindo-se apenas o de 16mm para favorecer a Degeto, filial da Tobis, que fabricava esse material); os filmes cujo lançamento na França havia sido anterior a 1 de outubro de 1937 (visando a uma melhor exibição de filmes alemães).
Os outros decretos concerniam às empresas. A reabertura dos cinemas, firmas de distribuição, fábricas e laboratórios só poderia ocorrer com o consentimento do ocupante. Para obter a autorização, era preciso satisfazer condições específicas: aceitar as encomendas vindas da indústria alemã e/ou fabricar material de guerra e/ou permitir participações acionárias. Correndo o risco de não reabrir e de ter de despedir seus empregados, os patrões concordaram.
A censura operava em dois níveis. De uma parte, o Conselho de Controle, que dependia de Vichy. Constituido de representantes dos diversos ministérios (Família, Interior, etc), ele favorecia evidentemente os filmes que exaltavam as virtudes morais saudáveis e redentoras da revolução nacional (vida ao ar livre, retorno à terra, esporte). De outra parte, os censores alemães tinham como missão descartar todo assunto que fosse hostil ao III Reich. Em vista disso, os realizadores procuraram a evasão: o fantástico, a lenda, o passado e o que Jean-Pierre Jeancolas (Histoire du Cinéma Français, 1995) chamou de “o contemporâneo vago”, um presente sem asperezas do qual desapareceu todo traço especifico da época.
Em novembro de 1940, por iniciativa de Tixier-Vignancour, foi retomada a produção e exibição de jornais cinematográficos, interrompida desde junho. Um único jornal filmado substituiu os cinco difundidos anteriormente: France-Actualités-Pathé-Gaumont, editado em Marselha e resultante da fusão do Pathé-Journal e do France-Actualités (que nascera em 1932 do Gaumont-Actualités). O terceiro jornal filmado francês (Éclair-Journal) e os dois jornais americanos (Actualités Fox-Movietone e Actualités Paramount) foram suprimidos. Mas a liberdade que o France-Actualités-Pathé-Gaumont desfrutava era relativa: uma parte do material filmado utilizado era de origem alemã (40% da ações da Societé France-Actualités estava nas mãos do jornal cinematográfico alemão Deutsche Wochenschau); imagens e comentários estavam submetidos à dupla vigilância dos serviços de informação de Vichy e das autoridades de Ocupação, cujo visto continuava indispensável.
Ao mesmo tempo, alguns colaboracionistas especializaram-se na produção de filmes de propaganda alemã. Foi o caso de Robert Muzard, que estudou na Universidade de Berlim e depois trabalhou como figurante na UFA, onde conheceu o dr. Dietrich. A partir de 1937, tornou-se produtor de cinema na Tchecoslováquia e na Hungria. Em 1939, Muzard voltou para a França. Mobilizado, foi aprisionado pelos alemães, mas se valeu de suas relações com Diedrich para ser libertado e abrir a produtora Nova-Films. Os alemães lhe impuseram a realização de filmes acusando os judeus (Les Corrupteurs) e franco-maçons (Forces Ocultes) de terem grangrenado o corpo social francês. Outro colaboracionista, conhecido como M. Badal, de origem armênia e nacionalidade iraniana, frequentou igualmente o meio cinematográfico alemão nos anos 1930. Em 1942, os alemães deram-lhe permissão para instalar a sua produtora Busdac em Paris e o encarregaram de realizar filmes que atacavam os maquis (Résistance) e os comunistas (Patriotisme) ou tentavam mostrar que o desemprego acabara graças aos alemães, que haviam aberto aos operários franceses as portas de suas fábricas (Français, Souvenez-Vous).
Durante a exibição dos filmes de propaganda ou do jornal cinematográfico alemão – que passava em versão francesa com o título de Actualités Mondiales – os espectadores vaiavam e a projeção continuava com a sala semi-iluminada, a fim de que a polícia municipal pudesse identificar melhor os manifestantes. Nas salas de espera, os exibidores colocavam cartazes pedindo ao público que não vaiasse, porque o cinema poderia ser fechado caso isso ocorresse.
O desenvolvimento do mercado do filme alemão impunha o estabelecimento de novas estruturas econômicas. Disto se ocupou Alfred Greven, um piloto de caça ferido na guerra de 1914-1918, amigo e protegido de Goering, que exercera as funções de produtor nos estúdios da UFA em Berlim. Funcionário graduado da Cautio-Treuhandgesellschaft, a poderosa empresa através da qual Goebbels controlava toda a indústria de cinema alemã, Greven foi nomeado delegado do cinema na França. Com o apoio financeiro da Cautio e de seu diretor Max Winkler, ele colocou em funcionamento uma verdadeira concentração vertical de empresas. Assim, foram associadas uma firma produtora, a Continental (destinada a produzir na França filmes com capital alemão e mão de obra francesa); uma distribuidora, Alliance Cinématographique Européenne – ACE (filial da UFA que fora criada em Paris em 1926); uma exibidora, a SOGEC (encarregada de adquirir, por meio de testas de ferro, os cinemas explorados por judeus como Léon Siritzky); e um estúdio, Paris-Studio-Cinéma. Havia ainda uma segunda distribuidora de filmes alemães, Tobis-Film, e sua filial Degeto.
Concomitantemente com a Continental e a Tobis, funcionavam as companhias produtoras francesas Gaumont, Synops-Minerva Films, C.C.F.C., Régina, Roger Richebé, Films Raoul Ploquin, e outras. Em suma, a produção continuou a ser relativamente fragmentada. Em 1941, os 47 filmes anuais (excluídos os da Continental) foram produzidos por 31 firmas; em 1942, 70 filmes foram produzidos por 41 firmas: em 1943, 49 filmes por 34 firmas. Somente 19 das 61 firmas desse período tiveram uma existência ativa contínua por mais de três anos.
Na mente de Greven, a implantação da Continental era um símbolo da tradição da colaboração franco-alemã em matéria de cinema. Consciente da mediocridade do cinema do Reich e fã incondicional do cinema francês, ele tinha a intenção de fazer um cinema desembaraçado de todo cunho político e desejava contratar os melhores profissionais. Em 1 de novembro , o jornal corporativo Film publicou a lista dos primeiros contratados: Maurice Tourneur, Marcel Carné, Christian-Jaque, Georges Lacombe e Léo Joannon como diretores; Pierre Fresnay e Louis Jouvet como atores. Carné e Jouvet não chegaram a cumprir seus contratos.
Harry Baur, protagonista da primeira produção da Continental, O Assassinato de Papai Noel (na TV) / L’Assassinat du Père Nöel / 1941, dirigida por Christian-Jaque, teve um fim trágico. Acusado de “neoariano”, Baur mandou publicar uma retificação, atestando que não era judeu. Os alemães então pressionaram-no para que partisse em excursão pelas cidades alemãs e que aceitasse o papel principal em Symphonie eines Lebens, 1942, um filme musical de Hans Bertram. Desde o fim da filmagem, as suspeitas recaíram sobre Baur. De retorno à França, ele foi encarcerado na prisão de Cherche-Midi, onde o acusaram de ser um agente inglês e de ter favorecido a evasão de vários prisioneiros. Em abril de 1943, esgotado pelas torturas físicas e morais às quais foi submetido, o grande ator faleceu.
Algumas atrizes tiveram relacionamentos amorosos com oficiais alemães. Arletty tornou-se amante de um oficial da Luftwaffe, Hans Jürgen Soehring. Mireille Ballin apaixonou-se por um oficial da Wermacht, Birl Desbok. Corinne Luchaire, filha do editor de jornais Jean Luchaire, teve um filho com o capitão da Luftwaffe, Woldar Gelrach. Após a Libertação, Ginette Leclerc, Danielle Darrieux, Viviane Romance, Suzy Delair, Josseline Gael, Yvonne Printemps foram repreendidas ou punidas por confraternização com o inimigo ou pela prestação de serviços para Continental. Atores (Pierre Fresnay, Maurice Chevalier, Albert Préjean, Fernandel, Raimu, Charles Vanel, Jean Servais, Roger Duchesne), diretores (Sacha Guitry, Marc Allégret, Claude Autant-Lara, Marcel Carné, André Cayatte, Maurice Tourneur, Henri Decoin, Henri-Geroges Clouzot, leo Joannon, Alberto valentin)e roteiristas (Louis Chavance, Henri Jeanson, Marcel Aymé, Pierre Véry, Jacques Viot, Jean Anouilh, Jean Cocteau, Pierre Bost) e outros trabalhadores ou empresários da indústria cinematográfica passaram pelos mesmos dissabores. As penas mais graves impostas pela Corte de Justiça de Paris recaíram sobre Jeam Mamy (pseudônimo de Jean Riche), diretor do filme de propaganda antimaçônica Forces Ocultes, fuzilado por ter denunciado e enviado para a morte alguns membros da Resistência, e Robert Le Vigan, cujo antissemitismo lhe valeu uma condenação de dez anos de trabalhos forçados. Mas Le Vigan obteve liberdade condicional em 1948, fugiu para a Espanha e daí para a Argentina, onde morreu.
A Continental levantou o nível do cinema francês, estabelecendo altos padrões de profissionalismo, valores de produção e competência técnica, que seriam mais tarde exaltados como uma “tradição de qualidade”. O fato de essa tradição ter surgido, até certo ponto, dos esforços de um produtor nazista é uma das grandes ironias da história do cinema francês.
O governo de Vichy, por sua vez, preparou a reorganização da indústria cinematográfica, inspirando-se diretamente no relatório sobre reestruturação do cinema que Guy de Carmoy apresentara em julho de 1936. Foi o próprio Carmoy quem elaborou a nova lei de 26 de outubro de 1940. Esta previa, entre outras medidas, a criação do Comité d’Organization de l’Industrie Cinématographique -COIC (depois transformado em Centre d’Organization de l’Industrie Cinématographique, dirigido por Raoul Ploquin (um produtor que havia supervisionado as versões francêsas da UFA de 1917 a 1939) e depois por seu colega Roger Richebé.
Ploquin unificou o mercado, saneou a profissão, protegeu os direitos dos produtores e distribuidores, reestimulou a atividade nos estúdios, eliminou as firmas duvidosas, enquanto Carmoy pôde anunciar, de sua parte, a instituição de um comitê de censura franco-alemão, um crédito orçamentário de 20 milhões para adiantamentos à produção e simplificações fiscais em favor do cinema.
Seu sucessor, Louis-Émile Galey, providenciou a criação do Institut des Hautes Études Cinématographiques – IDHEC, inaugurado em 6 de janeiro de 1944 por seu presidente Marcel L’Herbier, um cineasta que há vinte anos nunca deixara de lutar por uma melhor formação profissional e, desde 1922, abrira sua produtora Cinégraphic para estagiários como Claude Autant-Lara, Jean Dréville, Alberto Cavalcanti etc. Graças à compreensão, para não dizer a cumplicidade, de Galey a Cinemateca Francêsa passou a receber, a partir de 1942, uma subvenção regular.
Enfim, muitas idéias propostas nos diferentes relatórios e enquetes sobre o cinema no período de antes da guerra foram aplicadas sob o governo de Vichy. O que os governos sucessivos dos anos 1930 não conseguiram fazer em oito anos foi feito em menos de um, embora imposto à profissão por um regime autoritário e racista.
Apesar da penúria, das condições difíceis, das interdições profissionais antissemitas (vg. Raymond Bernard teve de ficar escondido na zona sul, depois em Vercors), do êxodo de diretores e artistas (Jean Renoir, René Clair, Julien Duvivier, Jacques Feyder, Max Ophuls, Pierre Chenal, Robert Siodmak, Jean Gabin, Charles Boyer, Louis Jouvet, Michèle Morgan, Françoise Rosay, Marcel Dalio, Victor Francen etc.), o cinema francês teve um grande impulso durante a Ocupação. Graças à ação conjugada de Guy de Carmoy e Raoul Ploquin, a produção, que era de sete filmes de longa-metragem em 1940, passou a ser de 58 filmes em 1941. O filme francês beneficiou-se de condições ideais no mercado, livre da concorrência terrível do cinema americano, que o cinema alemão estava longe de substituir. Outras razões para esse sucesso foram a falta de entretenimento alternativo para o público, o toque de recolher em todos os bares às 22 horas, o aquecimento dos cinemas (que era melhor do que os dos apartamentos), e a necessidade de escapismo.
Vou ler com o maior interesse. Obrigado.