Henri-Georges Clouzot fêz apenas dez filmes de ficção de longa-metragem, mas suficientes para colocá-lo entre os diretores mais consagrados do cinema francês.
Ele nasceu em Niort no dia 20 de novembro de 1907, filho de Georges e Suzanne Clouzot. Suzanne transmitiu para seus três filhos (Henri, Jean e Marcel), a paixão familiar pela leitura e pela música. Quando o pai, com dificuldades financeiras, teve que vender sua livraria e sua tipografia, a família se transferiu para Brest, onde Henri, para realizar o desejo da mãe, tentou entrar para a Escola Naval. Entretanto, por causa de uma miopia no olho esquerdo, teve que abandonar o curso. O rapaz começou então fazer o curso de Direito Internacional e Ciências Políticas com a intenção de ser diplomata, mas achou que não tinha dinheiro suficiente para seguir esta carreira.
Para se sustentar, Henri tornou-se secretário do deputado da Lorena, Louis Marin, durante algum tempo. Em 1928, com vinte e um anos de idade, Clouzot deixou de viver com seus pais, que haviam se mudado para Paris, e se instalou no Hotel Proust, rue des Martyrs, com uma jovem marselhesa Mireille Ponsard. Nessa ocasião, seis meses como cronista no jornal Paris-Midi, sob as ordens de Pierre Lazareff, o colocaram em contato com o mundo do espetáculo.
No início dos anos trinta, uma nova companheira, a atriz Oléo, sabendo da pretensão de seu amante de ser escritor, apresentou-o a René Dorin, um dos cançonetistas mais populares da época. Clouzot aprendeu com Dorin as primeiras manhas da dramaturgia, escrevendo canções e esquetes para o teatro de revista. Após dois anos e meio de colaboração com Dorin, Clouzot colocou sua pena a serviço do cançonetista Mauricet. Ao escrever, juntamente com Henri Jeanson, um roteiro de esquete para Mauricet estrear no cinema francês, acabou sendo contratado pelo produtor Adolphe Osso como roteirista de filmes de Carmine Gallone (Un Soir de Rafle / 1931; Ma Cuisine de Varsovie / 1931, Le Roi des Palaces / 1932), Viktor Tourjansky (Le Chanteur Inconnu / 1931) e Jacques de Baroncelli (Le Dernier Choc / 1932). Em 1931, foi roteirista-adaptador de Je serai seule après minuit (Dir: Jacques de Baroncelli) e realizou um curta-metragem de 15 minutos, La Terreur des Batignoles. Na trama, um ladrão covarde se esconde atrás de uma cortina, quando os donos do apartamento, que ele está roubando, retornam inesperadamente. Os proprietários percebem os pés do larápio e lhe confiscam os objetos roubados; o ladrão verifica tardiamente que, apesar de estarem vestidos a rigor, não eram os donos do apartamento, mas um casal de gatunos mais corajoso.
Em 1933, Clouzot partiu para Berlim, onde supervisionou versões francêsas de filmes alemães de Anatole Litvak (Das Lied einer Nacht / La Chanson d’une Nuit / 1932), Karel Lamac (Die Grausame Freundin / Faut-il les marier? / 1932, Géza von Bolváry (Das Schloss im Süden / Château de Rêve / 1933 e Karl Hartl (Ihre Durchlaucht, die Verkäuferin / Caprice de Princesse / 1933. Nesse período de atividade cinematográfica no exterior, Clouzot aprendeu muito do seu ofício e sofreu inclusive a influência do cinema de F. W. Murnau e Fritz Lang: ”O gosto do claro-escuro, eu o devo aos alemães”, reconheceria ele mais tarde.
Em 1934, o cineasta retornou a Paris e começou a visitar com frequência Louis Jouvet, que acabara de se instalar no Théâtre de l’Athenée e de aceitar o cargo de professor do Conservatório. Jouvet ficou impressionado com a aptidão do rapaz para a dramaturgia e o incentivou. No mesmo ano, Clouzot assinou uma opereta, “La Belle Histoire”, na qual os personagens dos contos de Charles Perrault se reencontravam no século XX. O espetáculo não obteve sucesso, mas Clouzot perseverou e, juntamente com Maurive Yvain, o compositor de “La Belle Histoire”, compôs algumas canções para Lys Gauty, Marie Dubas, e um grande êxito “Jeu de Massacre”, para Marianne Oswald.
Ainda em 1934, o nome de Clouzot apareceu nos créditos do filme Itto, longa-metragem de Jean Benoit-Lévy, produzido por Pierre Lazareff. Este seu velho amigo lhe pediu para escrever as letras das canções, que deveriam acompanhar uma evocação da vida dos Berberes no Atlas marroquino. Depois de passar quatro anos em um sanatório, vitimado por uma tuberculose pulmonar, Clouzot escreveu duas peças para Pierre Fresnay (“On prend les mêmes” e “Comédie en trois actes”) e retornou ao cinema como roteirista de: La Revolté / 1938 (Dir: Léon Mathot), durante a preparação do qual ele conheceu Suzy Delair, com quem viveu por doze anos e que seria a estrela de dois de seus filmes; Le Duel / 1939 (Dir: Pierre Fresnay); O Mundo Tremerá / Le Monde Tremblera / 1940 (Dir: Richard Pottier); Le Dernier des Six / 1941 (Dir: Georges Lacombe); e Le Inconnus dans la Maison / 1942 (Dir: Henri Decoin), os dois últimos produzidos pela Continental, companhia destinada a produzir na França filmes com capital alemão e mão de obra francesa.
Após o êxito de Le Dernier des Six, o diretor da Continental, Alfred Greven, resolveu produzir uma série de aventuras policiais com seus personagens centrais, o Comissário Wens (Pierre Fresnay) e sua companheira Mila-Malou (Suzy Delair), e confiou a realização a Clouzot.
O ASSASSINO MORA NO 21 / L’ASSASSIN HABITE AU 21 / 1942.
Um misterioso assassino começa uma série de crimes e deixa sobre cada cadáver um cartão de visitas com o nome de M. Durand. O comissário Wens (Pierre Fresnay) encarregado da investigação, encontra uma pista que conduz a uma pensão de família em Montmartre. Ele se introduz ali como hóspede disfarçado de pastor. Wens prende sucessivamente um fabricante de marionetes, Colin (Pierre Larquey); um médico colonial, Linz (Nöel Roquevert); e um faquir de music-hall, Lalah Poor (Jean Tissier). Mas, cada vez, um novo crime vem inocentar aquele que parecia culpado. Quem é M. Durand?
Policial com toques de humor, semeado de tipos excêntricos e de mortes., no qual a solução do mistério repousa em uma daquelas astúcias de autor de romances de detetives, que agradam sempre aos fãs desse tipo de literatura. No ambiente da pensão evolui uma humanidade sórdida da qual cada representante poderia ser um criminoso em potencial, o que complica o trabalho do comissário e torna o espetáculo mais inquietante. Pierre Fresnay interpreta o comissário Wens como o fleuma de um policial britânico e Suzy Delair diverte como Mila Malou, a amante turbulenta de Wens que também quer brincar de detetive, formando uma dupla parecida com aqueles casais das comédias americanas dos anos 1930. Neste exercício de estilo do cineasta já estava presente o universo sombrio e pessimista de seus filmes posteriores bem como amostras de seu talento fílmico, por exemplo, a sequência inicial, quando a câmera toma o lugar do assassino e sai no encalço de sua vítima.
SOMBRA DO PAVOR / LE CORBEAU / 1943
O doutor Germain (Pierre Fresnay), médico do hospital de Saint-Robin, é acusado por cartas anônimas de ser amante de Laura (Micheline Francey), mulher do psiquiatra Vorzet (Pierre Larquey), e de praticar abortos. O autor das cartas, que assina O Corvo, inunda Saint-Robin de suas missivas. Um canceroso (Roger Blin) é advertido pelo Corvo da gravidade de seu estado de saúde e corta a garganta com uma navalha. As suspeitas recaem sobre falsas culpadas: Rolande (Liliane Maigné), uma adolescente chantagista; Denise (Ginette Leclerc), a amante de Germain; Marie Corbin (Hélèna Manson), uma enfermeira empedernida; e Laura. Germain descobre o autor das cartas, mas a mãe do canceroso (Sylvie) já havia feito justiça.
Esta primeira obra-prima do diretor, traduz o clima de angústia e opressão dos anos de Ocupação, a trama policial sendo constantemente completada e sustentada pelo estudo de uma psicose coletiva. Clouzot faz uma análise quase clínica do apodrecimento moral de uma sociedade provinciana, na qual as paixões se desencadeiam em uma atmosfera de mal-estar insuportável. As cartas anônimas produzem o efeito de uma epidemia, durante a qual as obsessões e neuroses dos personagens vêm à tona. Três grandes cenas mostram o discernimento cinematográfico do diretor: a fuga da enfermeira na cidade deserta parecida com uma ave negra enlouquecida; a carta esvoaçando longamente na igreja cheia de falsos beatos; e o instante em que Vorzet faz balançar a lâmpada que desloca a luz e a sombra e diz para Germain: “Você acha que as pessoas são todas boas ou todas más. Você pensa que o Bem seja a luz e a sombra o Mal. Mas onde está a sombra e onde está a luz?
Embora o roteiro tivesse sido redigido em 1937 e inspirado em acontecimentos reais (as cartas anônimas de Tulle), pelo fato de a produção ser da Continental, seus autores foram acusados de terem desejado “aviltar” a França e servir à propaganda hitleriana. Após a Libertação, o filme foi banido temporariamente da exibição, e Clouzot suspenso de qualquer atividade cinematográfica por seis meses, só conseguiria fazer outro em 1947.
CRIME EM PARIS / QUAI DES ORFÈVRES / 1947 (Prêmio de Melhor Direção no Festival de Veneza)
Jenny Lamour (Suzy Delair), cantora de music-hall ambiciosa, é casada com Maurice Martineau (Bernard Blier), que a acompanha ao piano. Jenny aceita jantar com Brignon (Charles Dullin), velho produtor libidinoso que lhe prometera um emprego no mundo do cinema. Ao saber disso, o ciumento Maurice forja um álibi e corre para matá-los. Porém, ele encontra o velho morto e foi Jenny que o matou. Pelo menos é isso que Jenny conta para sua amiga Dora (Simone Renant), uma fotógrafa, que tem por ela um amor sem esperança. O inspetor Antoine (Louis Jouvet) investiga e, naturalmente, as suspeitas recaem sobre Maurice, mas o policial acaba descobrindo o verdadeiro culpado.
Após o período de inatividade que lhe foi imposto pelos organismos encarregados da “purificação”, Clouzot teve um retorno triunfal que lhe rendeu a sua segunda obra-prima, interessando-se mais pelos personagens e o seu meio social do que pela resolução do enigma. Durante o inquérito policial, desfila uma galeria de tipos humanos interessantes, que são observados pelo lúcido inspetor Antoine. Ele educa um menino negro (“única lembrança trazida das colônias além do impaludismo”) e esconde sua humanidade sob uma máscara de frieza e de ironia. É uma das melhores atuações de Louis Jouvet. O diretor coloca essas criaturas em diferentes atmosferas – uma pequena editora musical, um ateliê de fotografia suspeito, os bastidores de um music-hall, os corredores e a sala de interrogatório da Polícia Judiciária – , todas recriadas com incrível veracidade e inspecionadas por uma câmera virtuosa.
ANJO PERVERSO / MANON / 1949
Robert Desgrieux (Michel Auclair) e Manon Lescaut (Cécile Aubry) são descobertos a bordo de um cargueiro que transporta clandestinos judeus para a Palestina. Resistente na Normandia, ele salvou a jovem Manon do furor popular por ter simpatizado com os ocupantes. Eles passam a viver do mercado negro em Paris, graças à ajuda de Léon (Serge Reggiani), irmão de Manon. Atraída pelo luxo, Manon torna-se prostituta ocasional de um bordel, onde Robert a surpreende. Depois, encarrega Léon de reter Robert enquanto ela parte com um americano rico. Robert mata Léon e foge. O par de amantes vai morrer nas areias do deserto durante um ataque dos árabes.
Através de uma história de amor louco, de uma paixão fatal, Clouzot faz uma pintura amarga do mundo conturbado e apodrecido imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, com os acertos de contas, o mercado negro, o amoralismo, um testemunho pavoroso de um tempo no qual todos os valores eram desordenados. O romantismo cruel e audacioso desta modernização bem-sucedida de um romance do século XVIII, assim como a personagem feminina, encarnação perfeita de uma ingênua perversa, chocou o público na época. A imagem final do cadáver de Manon sendo arrastado pelas dunas é de grande beleza plástica.
LE RETOUR DE JEAN (QUINTO ESQUETE DE RETOUR À LA VIE) / 1949
Cinco prisioneiros de guerra retornam aos seus lares: tia Emma (Mme. De Revinsky) volta em um estado lamentável de Dachau e assiste, indiferente, à cupidez de sua família; Antoine (François Périer) arruma um emprego de garçom em um hotel e é assediado pelas militares americanas; Jean (Louis Jouvet), ferido na perna após uma tentativa de evasão, encontra no seu quarto de pensão um torturador nazista (Jo Dest) e faz justiça; René (Nöel-Nöel) fica sabendo que sua mulher partiu com outro e que seu apartamento está ocupado; Louis (Serge Reggiani) traz para a sua aldeia natal uma jovem alemã (Anne Campionj) e é rejeitado pela população.
Cinco histórias curtas, sentimentais ou dramáticas, contando o retorno à vida normal de prisioneiros de guerra ou deportados. Embora realizado por quatro diretores diferentes, o filme mantém uma espantosa homogeneidade e é hoje um testemunho precioso do pós-guerra. Os melhores esquetes são os de Clouzot e André Cayatte. O de Clouzot é de uma ferocidade impressionante, principalmente nas cenas em que Louis Jouvet – pungente e explosivo – interroga (querendo saber como um ser humano pôde agir daquela forma) e depois executa o alemão. O de Cayatte trata de uma maneira seca e cruel as mesquinharias em torno da posse dos bens da mulher que se encontra imobilizada em uma cama, terminando de forma original com o escurecimento do seu rosto em primeiro plano, após ter assinado o documento almejado pelos seus parentes.
MIQUETTE ET SA MÈRE / 1950
Na Belle Époque, em uma pequena cidade da província, Miquette (Danièle Delorme), uma jovem ingênua, trabalha na tabacaria de sua mãe, a viúva Grandier (Mireille Perrey), mas sonhando em fazer teatro. Urbain de la Tour Mirande (Bourvil), sobrinho do marquês do lugar, rapaz tímido e ridículo, apaixona-se por ela, porém o marquês (Saturnin Fabre) não quer que seu herdeiro se case com Miquette. Graças a uma sucessão de ardís e embustes, o bizarro marquês consegue raptar Miquette e depois a acompanha em uma tournée teatral, que ela empreende através da França sob a proteção de um ator necessitado e simpático, Monchablon (Louis Jouvet). A mãe de Miquette e depois Urbain se juntam a eles em Évian. Tudo acaba bem: o velho senhor fidalgo esposa a mãe de Miquette e esta aceita fazer a felicidade de Urbain.
Adaptação cinematográfica de uma comédia de boulevard de Flers e Caillavet, exagerando deliberadamente a teatralidade da peça, com situações e diálogos muito divertidos. Os personagens interpelam diretamente os espectadores e os intertítulos lembram os das comédias mudas. O espetáculo repousa sobretudo no elenco afiado, sobressaindo as composições admiráveis e adoravelmente desmedidas de Louis Jouvet e Saturnin Fabre. Os apartes para a câmera de Saturnin são formidáveis. No final, Flers e Caillavet são apresentados como personagens, anunciando que irão escrever uma peça sobre Miquette.
Foi durante a produção desse filme bem distante de seu universo habitual, que Clouzot conheceu a nova mulher de sua vida, integrante da equipe de filmagem como assistente da continuísta Andrée Ruze. Filha do diplomata brasileiro Gilberto Amado, Vera Gibson Amado havia se casado em 1938 com o ator Léo Lapara, porém, na primavera de 1949, depois de treze anos de matrimônio, ela deixou Léo, que passara a integrar a trupe de Jouvet, e se tornara seu amigo íntimo, confidente e secretário. Vera seria futura atriz de três filmes de Clouzot, com quem se casaria em 15 de janeiro de 1950.
Em 22 de abril de 1950, o casal chegou ao Brasil a bordo do navio “Campana”, acompanhado pelo produtor Raymond Borderie, o fotógrafo Armand Thirard e outros técnicos, com o propósito de realizar Brésil – Journal d’un Voyage. Infelizmente, essa iniciativa não teve desenvolvimento, porque o cineasta – conforme declarou à imprensa – não se deu conta das dificuldades técnicas e financeiras da filmagem devido às enormes distâncias do território brasileiro, da burocracia local e da censura que, embora sem formular interdições, lhe fêz algumas advertências desestimuladoras. Clouzot registrou sua experiência em nosso país em um livro, Le Chevaux des Dieux (1951), que desencadeou uma polêmica que mobilizou intelectuais como Roger Bastide, Edson Carneiro e Alberto Cavalcanti, e enfureceu a comunidade afro-brasileira, porque a revista Paris-Match, em uma reportagem sensacionalista, intitulada “As Possuidas da Bahia”, utilizou as fotos de Clouzot sobre o ritual de iniciação no candomblé, mostrando as “possuídas” sendo banhadas com sangue de animais, como se isto não fosse apenas um pequeno aspecto da verdadeira fisionomia do Brasil.
O SALÁRIO DO MEDO / LE SALAIRE DE LA PEUR / 1953 (Palma de Ouro em Cannes)
Em Las Piedras, pequena cidade da América Central, perambulam pelas ruas os párias que sonham em voltar para seu país de origem. Uma soma considerável é oferecida por uma companhia petrolífera americana para quem transportar dois caminhões com a nitroglicerina que vai ajudar a apagar o incêndio de um dos poços da firma. Quatro homens são escolhidos: dois franceses, Mario (Yves Montand) e Jo (Charles Vanel), um italiano, Luigi (Folco Lulli), e um alemão Bimba (Peter Van Eyck). Nenhum deles sobrevive à longa viagem cheia de perigo
Drama angustiante e fatalista que se inicia com uma descrição quase documentária do ambiente miserável dominado por um poderoso e onipresente truste americano. Essa primeira parte do filme serve de introdução para a perigosa jornada, durante a qual os personagens vão revelar as suas fraquezas ou a sua coragem. No trajeto inicia-se um suspense e uma brutalidade ininterruptos, criados por Clouzot com toda a força de sua competência técnica. Esta se torna mais nítida em duas sequências: a da explosão do caminhão do com o italiano e o alemão, apenas sugerida, e o mergulho do caminhão dos dois franceses no atoleiro de petróleo. Na segunda parte da obra, o realizador faz um estudo admirável da psicologia do medo. Um medo tão subjugante que a libertação dele gerou a imprudência fatal para o último remanescente da aventura.
AS DIABÓLICAS / LES DIABOLIQUES / 1954 (Prêmio Louis Delluc)
Michel Delasalle (Paul Meurisse) dirige um colégio em Saint-Cloud. Ele maltrata sua esposa Christina ( Vera Clouzot) e sua amante Nicole (Simone Signoret), ambas professoras no estabelecimento. Um pacto diabólico une as duas mulheres: elas decidem matá-lo, atraindo-o para Niort, onde Nicole tem uma casa. Christina faz o marido tomar um sonífero e ajuda Nicole a afogá-lo na banheira. Depois, levam o corpo para Saint-Cloud e o jogam na piscina. Então ocorrem no educandário vários fatos estranhos que deixam crer que Michel sobreviveu. Quando esvaziam a piscina, o corpo havia desaparecido. Um comissário aposentado, Fichet (Charles Vanel), se oferece para investigar.
Clouzot soube aproveitar todos os efeitos a que se prestava a história de Boileau-Narcejac para atingir o fim que tinha em vista: realizar um filme de alta tensão. Ele aproveitou muito bem as cenas de envenenamento, do afogamento na banheira, da visita ao necrotério, das mãos enluvadas e passos misteriosos em uma casa escura, do cadáver com os olhos esbugalhados e outros acessórios de um estilo policial, para dar choques sucessivos de voltagem crescente na emotividade do espectador. Quando o suposto assassinado se ergue e retira as lentes de contato brancas, chegamos ao auge do medo, a um clímax alucinante, que foi escondido cuidadosamente do público para a maior eficácia do suspense.
LE MYSTÈRE PICASSO / 1956 (Prêmio do Júri no Festival de Cannes)
Clouzot descobriu que podia filmar uma tela à avessas e assistir, assim, secretamente, ao mistério da criação artística. Com a ajuda do fotógrafo Claude Renoir ele utilizou todos os recursos da técnica cinematográfica: o preto e branco a cor, a tela normal e o CinemaScope. Nos estúdios de La Victorine em Nice, o pintor, com 72 anos de idade, se colocou diante de seu cavalete e, graças a tintas especiais vindas dos Estados Unidos, os desenhos do mestre espanhol aparecem diretamente na tela mas se modificam, evoluem, os galos se metamorfoseando por vezes em peixes ou em flores. Picasso pinta as corridas, os toureiros, e aceita realizar uma obra em cinco minutos para o diretor. Assim esse filme de arte, torna-se um documento bastante atraente e ambicioso sobre um dos maiores artistas do século vinte e seu diálogo com um cineasta brilhante. Ele dura cerca de 75 minutos, nos quais são mostrados a criação de 21 obras.
OS ESPIÕES / LES ESPIONS / 1957
Em Maisons-Laffitte, o doutor Malic (Gerard Séty) dirige uma pequena clínica psiquiátrica à beira da falência. Ele é abordado por um homem misterioso, Howard (Paul Carpentier), que se diz pertencer a um instituto de guerra psicológica dos Estados Unidos e que lhe oferece uma alta quantia de dinheiro para hospedar durante alguns dias Alex (Curd Jurgens), um agente secreto,. O médico só tem dois pacientes, Valette (Louis Seigner), um toxicômano e Lucie (Vera Clouzot), mas logo vários personagens estranhos rondam pelos arredores e a porta da clínica é arrombada por Sam Cooper (Sam Jaffe), um velho americano excêntrico e pelo lituano Michel Kaminski (Peter Ustinov). A fiel enfermeira de Malic, Mme. Andrée (Gabrielle Dorziat) é substituída por Connie Harper (Martita Hunt), espiã aterrorizante americana, que chega acompanhada por dois capangas, Léon (Sacha Pitoëff) e Pierre (Fernand Sardou). Malic descobre que espiões russos e americanos se confrontam para capturar o professor Hugo Vogel (O.E. Hasse), cientista atômico célebre. Malic suspeita de que Alex é Vogel, porém ele não passa de um duplo. Malic decide salvar o verdadeiro Vogel, e sua intervenção provoca a morte do sábio. Ele então se torna parte integrante do jogo terrível e absurdo, ao qual se entregam os espiões.
Nessa visão Kafkiana da espionagem e contra-espionagem, que oscila entre o drama e a sátira, Clouzot faz um estudo da paranóia e do relativismo moral presente no meio cínico dos espiões, cada um dos personagens acabando mesmo por vezes a se perguntar por quem ele foi realmente enviado. O diretor cria, com uma precisão impecável um ambiente cada vez mais pesado, uma sensação de angústia, que vai crescendo até o final sem conclusão, com o telefone tocando sem parar na clínica, refletindo em microcosmo a que ponto a loucura tomou conta do mundo.
A VERDADE / LA VERITÉ / 1960 (Grand Prix do Cinema Francês e Oscar de Melhor Filme Estrangeiro)
Dominique Marceau (Btigiette Bardot), é acusada do assassinato de seu amante, o jovem aspirante a maestro, Gilbert Tellier (Samy Frey). A moça não nega os fatos e se esforça para explicar, por vezes desastradamente, as razões e as circunstâncias do crime. Porém ninguém acredita nela, nem o presidente da Côrte (Louis Seigner nem os outros juízes, nem os jurados, nem o representante do Ministério Público (René Blancard), e tampouco o furioso advogado encarregado da parte civil, Épervier (Paul Meurisse). Graças à sua conduta libertina (dançando nua sob os lençóis um cha-cha-cha sensual), Dominque seduz Gilberto, noivo e colega de sua irmã Annie (Marie-José Nat) no Conservatório. Volúvel e frívola, trata-se para Dominique de uma aventura sem futuro, mas ela descobre, tarde demais, que ama Gilbert verdadeiramente. Gilbert volta para os braços de Annie, e Dominique, louca de desespero, o mata. Enquanto seu advogado, Guérin (Charles Vanel), tenta manchar a reputação de Gilbert para salvá-la, o advogado encarregado da parte civil retrata-a como um monstro de perversidade. Sem poder fazer escutar sua “verdade” ou as verdadeiras razões pelas quais matou o homem que amava, Dominique abre suas veias em sua cela.
Em pleno apogeu da Nouvelle Vague, Clouzot permaneceu fiel ao cinema clássico, narrativo, disciplinado; porém escolheu para este filme de tribunal, para esta verdadeira autópsia de um processo criminal, um tema moderno: o clima de permissividade nos anos sessenta, que lhe permitiu manifestar mais uma vez seu desprezo absoluto pelas instituições e pela burguesia. Ele deve ter ficado muito satisfeito de filmar a cena de bravura em que a acusada grita para aqueles que a julgam pela morte de seu amante: “Vocês estão aí, fingidos, ridículos. Vocês querem julgar, vocês nunca viveram, nunca amaram. É por isso que vocês me detestam. Vocês estão todos mortos. Mortos … “, um momento brilhante da atriz. A história começa em uma prisão de mulheres, sob a vigilância de freiras, onde encontramos Dominique fumando desafiadoramente em sua cela e contemplando seu rosto em um espelho partido. O resto da narrativa ocorre na sala de audiências no presente e no passado recente. São os retrospectos que, pouco a pouco, nos farão conhecer as peripécias do drama e o retrato psicológico notável que o cineasta fêz de um tipo de mulher jovem moderna, utilizando à sua maneira o mito Bardot.
A filmagem foi tempestuosa: clima tenso entre Clouzot e alguns atores, troca de bofetadas dele com BB; idílio desta com Samy Frey, vias de fato entre Charrier e Frey, internação de Jaques Charrier, e fim do seu casamento com BB; hospitalização de Clouzot e do fotógrafo Armand Thirard; pouco depois do término dos trabalhos, tentativa de suícidio de BB em depressão, cortando os pulsos com uma navalha; após a estréia do filme, falecimento de Vera Clouzot, encontrada morta no seu quarto do Hotel George V no dia 15 de dezembro de 1960. Tal como a sua personagem de As Diabólicas, ela sucumbiu em virtude de uma crise cardíaca. Em 28 de dezembro de 1963, Clouzot casou-se com Inès de Gonzalèz (patronímico argentino de Inès Arnaud), com quem viveu até o fim de sua vida.
A PRISIONEIRA / LA PRISIONNIÈRE / 1968
Josée (Elizabeth Wiener), montadora da televisão, é companheira de Gilbert (Bernard Freson), artista plástico especializado na arte cinética. Ele expõe na galeria de arte moderna de Stanislas Hassler (Laurent Terzieff). No decorrer de uma grande vernissage parisiense, Josée avista seu marido beijando outra mulher, conhece Stan, e o acompanha até sua residência. Este se revela como um homem impotente e perverso, que satisfaz seu voyeurismo, fotografando mulheres despidas em poses sugestivas ou ultrajantes. Pouco a pouco testemunha e depois atriz dessas pequenas encenações, Josée se presta de bom grado a esses jogos de humilhação, de dominação e de sujeição. Por fim, ela se afasta de Gilbert, e descobre o amor total e compartilhado ao lado de Stan. Mas, depois de um passeio idílico na costa da Bretanha, ele foge dela. Desorientada, Josée fica gravemente ferida, quando seu carro se choca contra um trem. No hospital, ela tem uma série de visões e chama por Stan no seu delírio enquanto Gilbert a contempla ao lado de sua cama.
Canto de cisne do cineasta, A Prisioneira é uma excursão estética pela op-art, esboçada no projeto irrealizado, L’Enfer / 1964, adicionando desta vez o voyeurismo e o sado-erotismo. Visualmente fascinante nas primeiras sequências, principalmente no que concerne à cenografia, o filme transcorre estaticamente e em uma narrativa elíptica até o desenlace psicodélico gratuito e irritante. Entretanto, são interessantes a sequência na qual Stan projeta slides com letras da caligrafia de Paul Valéry, Flaubert, Baudelaire, François Mauriac, Sacha Guitry, Madame Récamier, Napoleão etc. e a da performance da modelo profissional (Dany Carrell), mostrando seus seios magníficos na mise-en-scène imaginada por Stan, despertando em Elizabeth a mesma desordem sexual praticada pelo fotógrafo.
Antes de A Prisioneira, Clouzot havia realizado para a televisão cinco filmes sobre as representações orquestrais dirigidas por Herbert von Karajan. No dia 12 de janeiro de 1977, em Paris, Inès encontrou-o estirado no chão, vitimado por um ataque cardíaco, com a partitura da “Danação de Fausto” de Berlioz nas mãos.