Arquivo mensais:abril 2014

FILME NOIR V

Prossigo apontando mais cinco obras-primas do filme noir puro: À Beira do Abismo, Assassinos, Baixeza, A Dama de Shanghai e A Morte num Beijo.

À Beira do Abismo / The Big Sleep / 1946 é um verdadeiro clássico do filme noir, resumindo suas leis essenciais.

Chamado à mansão do general Sternwood (Charles Waldron), o detetive particular Philip Marlowe (Humphrey Bogart) é contratado para livrá-lo de um chantagista chamado Geiger (Theodore Von Eltz) e conhece as duas filhas do general, Carmen (Martha Vickers) e Vivian (Lauren Bacall).

Seguindo as pistas até a residência de Geiger, Marlowe ouve o barulho de tiros e vê dois carros saindo do local. Ao entrar na casa, encontra Geiger morto, Carmen drogada e uma máquina fotográfica escondida dentro de uma estatueta. Antes de a polícia chegar, Marlowe leva Carmen de volta para casa, deixando-a sob os cuidados de Vivian. Esta lhe fala sobre uma possível ligação entre duas pessoas desaparecidas: Mona Mars (Peggy Knudsen), a mulher do gângster Eddie Mars (John Ridgley), dono de um cassino, e o amigo confidente do general, Sean Regan.

Ignorando a sugestão de Vivian para que abandone o caso, Marlowe fica sabendo que um outro homem, tendo uma mulher como cúmplice, tentou chantagear Carmen. Isto leva a uma confrontação entre Marlowe, Vivian e Carmen alcoolizada com um casal de empregados de Geiger, Joe Brody (Louis Jean Heydt) e Agnes (Sonia Darrin), que agora estão de posse dos arquivos do patrão. Marlowe ameaça implicar Brody na morte de Geiger a menos que ele conte tudo o que sabe; porém, antes disso, Brody é morto.

Marlowe procura Eddie e, na visita ao cassino, descobre que Vivian é frequentadora do local. Eddie, que é o proprietário, da casa de Geiger e já havia advertido Marlowe de que deveria parar com a investigação, recusa-se a discutir o assunto delicado do relacionamento entre sua mulher e Sean Regan.

Quando Marlowe parece estar num beco sem saída, recebe a visita de Harry Jones (Elisha Cook, Jr.), o novo namorado de Agnes. Harry diz que Agnes descobriu onde Mona está escondida e quer dinheiro para revelar o endereço. Ao chegar ao local onde marcou encontro com Harry, para lhe entregar a quantia pedida, Marlowe vê que ele está sendo interrogado por um capanga de Eddie, Canino (Bob Steele). Canino dá um copo com veneno para Harry e ele morre, sem trair Agnes.

Marlowe porém consegue falar com Agnes e a informação que esta lhe dá o conduz a um rancho afastado da cidade. Ao estacionar em uma garagem próxima, simulando um defeito no carro, Marlowe é capturado pelos capangas de Eddie e levado ao rancho onde encontra Mona e Vivian. Percebendo que seus esforços para defender a irmã podem causar a morte de Marlowe, Vivian liberta o detetive. Marlowe pega uma arma no carro e mata Canino. Depois, ele e Vivian marcam um encontro com Eddie na casa de Geiger.

Pensando que Marlowe e Vivian telefonaram do seu rancho, Eddie vai para lá a fim de armar uma emboscada, mas encontra Marlowe esperando por ele. Após Eddie confessar que Carmen matou Regan por ciúmes e que ele era o chefe de Geiger, Marlowe dá alguns tiros e o obriga a sair pela porta da frente, onde é alvejado pelos seus próprios homens.

O enredo é muito complicado (segundo consta, até o autor do romance, Raymond Chandler, foi incapaz de responder a uma pergunta sobre a trama) e se desenvolve em ritmo veloz, forçando o espectador a assimilar os fatos e avaliar as situações rapidamente, para não ficar confuso. Mesmo depois que o filme termina, ficam faltando algumas peças do quebra-cabeça. Por exemplo, os dois carros que saem em disparada da casa de Geiger após o assassinato deste, eram guiados por Owen Taylor (Dan Wallace), o motorista do general, apaixonado por Carmen e Joe Brody respectivamente? Quem matou Owen? A chantagem dizia respeito também a fotos pornográficas de Carmen? etc.

Algumas explicações suplementares ou um retrospecto teriam sido suficientes para introduzir algumas claridade na intriga, porém o diretor Howard Hawks não se preocupou com isso, porque sua intenção primordial, como ele próprio declarou, era fazer com que cada cena, por si mesma, se tornasse a mais divertida possível.

Muitos momentos atraentes realimente ficam na nossa memória: o primeiro encontro de Marlowe com as irmãs Sternwood, Carmen tentando seduzí-lo … à primeira vista; o assassinato por envenenamento do patético Harry Jones; Vivian cantando “And her tears flowed like wine …”; o climático tiroteio no final; e, melhor do que todas, é claro, a cena da livraria, quando Marlowe sugere um drinque e a atendente (Dorothy Malone) com aparência de intelectual desce as cortinas e fecha a porta, com uma tabuleta do lado de fora que diz Fechado.

Uma das alterações feitas pela adaptação diz respeito à misoginia do herói. Na obra original, Marlowe repele ambas  as irmãs Sternwood, porém no filme fica com Vivian: “O que há com você?”, pergunta ele. “Nada que não possa consertar”, diz ela. A sensualidade emerge em todos os encontros de Marlowe com as mulheres e nos diálogos que a censura deixou passar por causa do emprego das palavras no sentido figurado como estas metáforas turfísticas:

Marlowe – Falando de cavalos … você tem um toque de classe, mas não sei até onde pode chegar.

Vivian – Depende muito de quem monta na sela. Vai em frente Marlowe. Gosto muito do jeito como você trabalha.

O fascínio do espetáculo não está na sua história, mas sim na atmosfera de mistério, no erotismo, nos duelos verbais insolentes e, como pretendeu Hawks, na qualidade de cada cena. Não sabemos quem são os assassinos, quem é aliado de quem, quem fala a verdade e quem mente ou porque certas pessoas estão em determinado lugar em um determinado momento. Cada nome, cada situação é um enigma e a proposta dos roteiristas não é a de solucioná-los, mas incrementar ainda mais o clima de suspeita e incerteza.

Contratado pelo general para acabar com a chantagem, Marlowe não sabe qual o seu verdadeiro motivo. Todo mundo esconde isso dele, inclusive Vivian, que quer proteger a irmã a qualquer preço. Após seu primeiro sucesso, Vivian paga pelo serviço prestado e o despede. Mas o dinheiro não o satisfaz. Ele enfrenta  todos os desafios, ameaças e mortes, chegando até o fim de sua investigação. Por amor? Porque gosta de ação? Ou simplesmente para testar sua incorruptibilidade?

Marlowe continua na sua busca da verdade por três motivos. Porque quer  provar  a si  mesmo que não sente  o odor da corrupção, porque se apaixonou por Vivian e, tal como  os heróis típicos de Hawks, porque é um homem que age, e o que vale é o seu esforço e sua luta.

O preceito de Assassinos / The Killers / 1946 é o de que a ambição pelo dinheiro leva à corrupção e à morte.

Uma dupla de assassinos de aluguel, Max (William Conrad) e Al (Charles McGraw) chegam à pequena cidade de Brentwood, New Jersey, à procura de Pete Lund cujo nome verdadeiro é Ole Andreson. Conhecido como Sueco (Burt Lancaster), ele trabalha em um posto de gasolina. Eles o encontram aguardando-os silenciosamente em um quarto escuro, e não oferece resistência.

Ao saber das circunstâncias em que o crime foi cometido, Jim Riordan (Edmond O’Brien), investigador da companhia de seguros responsável pelo pagamento da indenização à beneficária do falecido – a arrumadeira de um hotel onde o “Sueco” havia se escondido usando o nome de Nelson -, quer descobrir porque a vítima deixou-se matar mansamente pelos dois facínoras.

Sua investigação leva-o ao encontro de várias pessoas que conhecem o passado do Sueco: o detetive Lubinsly (Sam Levene), sua esposa Lilly (Virginia Gilmore) e Charleston (Vince Barnett), um ex-presidiário. Através desses depoimentos, fica sabendo que o Sueco foi obrigado a encerrar a carreira de pugilista por ter quebrado a mão em uma luta e, incitado por uma bela mulher, Kitty Collins (Ava Gardner), se uniu a um bando de ladrões liderados pelo amante dela, Big jim Colfax (Albert Dekker).

Riordan localiza os outros componentes da quadrilha, Blanky (Jeff Corey) e Dum Dum (Jack Lambert) e, finalmente, chega à Colfax e Kitty, desvendando todo o mistério: como Kitty fez o Sueco passar por traidor do grupo após um assalto enquanto ela e o amante fugiram com o dinheiro roubado, e como, anos depois, Kitty e Colfax contrataram os pistoleiros para matar o Sueco por medida de segurança.

Desenvolvendo o conto de Ernst Hemingway (publicado em 1927 em uma coletânea intitulada Men Without Women), o filme  procura decifrar o enigma da resignação existencial do Sueco, como ele perdeu a vontade de viver. Por intermédio de onze retrospectos acronológicos e com uma obsessão pessoal que excede os interesses da companhia de seguros, Riordan vai descobrindo porque aquele homem  abraçou a morte com indiferença. Os testemunhos das pessoas que o conheceram no passado se completam uns aos outros e o obstinado investigador vai reconstituindo, como um mosaico, o seu destino trágico.

O prólogo – que corresponde exatamente ao conto – é conduzido, com admirável precisão cinematográfica, em um clima sombrio e de violência fria criado pela interpretação seca dos atores que formam a dupla de assassinos, pelos diálogos curtos e diretos e pela iluminação claro-escuro combinada com a profundidade de campo, angulações em câmera alta e baixa e um fundo musical de alta tensão. Deitado na cama no quarto escuro, o condenado aguarda impassível a chegada dos assassinos. Até que ouve o barulho de passos na escada e percebe um raio de luz infiltrando-se por debaixo da porta. Após alguns segundos de silêncio, a porta se abre brutalmente, iluminando o rosto angustiado do Sueco, e os dois algozes descarregam suas armas sobre ele.

No primeiro retrospecto, Nick (Phil Brown), um rapaz que trabalhava na lanchonete, conta a Riordan que, uma semana atrás, o Sueco reconheceu um cliente em um cadillac negro. Depois, disse que estava doente e não voltou mais ao trabalho. No segundo, Riordan procura a beneficiária do seguro, Mary Ellen Daugherty (Queenie Smith) em Atlantic City e esta lhe conta que, uma tarde, ouviu o Sueco gritando, “Ela foi embora! Ela foi embora! Charleston tinha razão!”. Mary entrou no quarto onde ele, como um louco, estava quebrando os móveis, e o impediu de se atirar pela janela.

Em Filadélfia, o detetive Lubinsky explica para Riordan – terceiro retrospecto –  porque o Sueco abandonou sua carreira promissora de boxeador depois de levar uma surra do adversário, e ter quebrado todos ossos de sua mão direita. A esposa de Lubinsky, Lilly, antiga namorada do Sueco, revela, em um quarto retrospecto, o encontro fatal do ex-pugilista com Kitty em uma festa no luxuoso apartamento de seu amante. Quando o Sueco entra, Kitty está apoiada no piano com um copo na mão; o vestido longo de cetim preto, os ombros cobertos por sua cabeleira negra, as luvas pretas cobrindo seus antebraços, toda a sua aparência de um erotismo refinado, é a própria imagem da sedução. Enquanto ela canta “The More I Know Of Love”, uma lâmpada em forma de vela (espécie de símbolo fálico inflamado), os separa, criando uma composição visual muito evocativa da paixão devastadora que arrastará o Sueco para a morte.

Em um quinto retrospecto, Lubinsky lembra um dos últimos encontros com o Sueco em um restaurante, quando ele se preparava para prender Kitty, suspeita de ter roubado uma jóia de grande valor. Aí aparece o Sueco, assume a culpa por Kitty, e Lubinsky é obrigado a prendê-lo. No enterro do Sueco, comparece seu antigo companheiro de cela, Charleston, e vem um sexto retrospecto, um tanto lírico. Charleston dá uma lição de astronomia para o Sueco, mostrando as estrelas que ele observa através das grades enquanto seu companheiro, tendo na mão o lenço de Kitty com desenhos de harpas, recorda-se de sua amada. No decorrer do sétimo retrospecto, Charleston descreve a reunião para preparar o assalto. O Sueco concorda em participar. Charleston se retira e o aconselha a não “ouvir o som das harpas”.

Riordan prossegue sua investigação na biblioteca municipal, onde examina velhos jornais, Durante a leitura da matéria, aparecem – oitavo retrospecto – as peripécias do audacioso assalto a uma fábrica de chapéus em New Jersey. Para acentuar o caráter jornalístico desta sequência, o diretor Robert Siodmak filmou-a sem cortes, em um só movimento de grua apanhando em câmera alta os mínimos detalhes do roubo.

O nono e o décimo restrospectos dizem respeito às lembranças de Blanky, que Riordan encontra moribundo em um hospital. No seu delírio, Blanky se reporta a uma desavença entre o Sueco e Colfax durante um jogo de pôquer e à partilha do roubo, quando o  Sueco rende todo mundo e foge com o dinheiro.

Riordan compreende que Blanky foi morto por um outro membro da quadrilha, Dum Dum, e o surpreende no quarto do Sueco em Brentwood. Graças às suas informações, localiza Colfax, que se tornou um cidadão respeitável em Pittsburg, e finalmente Kitty, que lhe revela, no décimo primeiro e último retrospecto, como persuadiu o  Sueco a fugir com ela.

Kitty está casada com Colfax; o  Sueco foi apenas um instrumento para iludir o resto do bando; porém Dum Dum também descobriu o logro; Riordan chega na casa de Colfax, acompanhado por Lubinsly e outros policiais, no momento em que ocorre o tiroteio entre Dum Dum e Colfax.

Um travelling lateral da direita do patamar da escada mostra, atrás de um balaústre iluminado na melhor tradição expressionista, o cadáver de Dum Dum e depois, estendido sobre alguns degraus, Colfax agonizando. Kitty agarra-se ao pescoço de Colfax e suplica histérica : “Diga a eles que eu não sabia de nada”, mas Colfax finge que não ouve, e morre com um cigarro nos lábios contraídos pela dor.

Todo o filme é marcado por lances de violência e sadismo (a luta de boxe, o primeiro plano da mão deformada; as balas  dos assassinos que “rasgam o corpo do Sueco; Blanky, um “morto que ainda respira”; o banho de sangue no confronto final entre Dum Dum e Colfax etc.) e pela tendência do herói para a autodestruição, em uma mistura de ingenuidade e masoquismo.

E há também o caráter fetichista do amor do Sueco por Kitty, não só na sua idealização romântica desta mulher, como na maneira pela qual ele acariciava o lenço de seda que ela lhe deu – a única coisa que ainda possuía, quando se entregou passivamente aos seus executores.

Baixeza / Criss Cross / 1949, é um drama criminal com um estudo psicológico magistral sobre o aviltamento de um homem fraco e apaixonado e, sem dúvida, o filme noir mais trágico de todos.

Steve Thompson (Burt Lancaster) retorna a Los Angeles apos ter viajado por todo o país, para esquecer Anna (Yvonne De Carlo), sua ex-mulher. Ainda obcecado por ela, Steve vai à boate que costumavam frequentar. Fica surpreso ao vê-la na pista de dança e percebe seu relacionamento com Slim Dundee (Dan Duryea), um gângster. Encorajado por Anna, e apesar das advertências por parte de seus familiares e do amigo detetive, Pete Ramirez (Stephen MacNally), Steve começa a se aproximar de novo da ex-mulher.

Um dia, Anna desaparece. O garçom da boate informa Steve de que ela está em Yuma e se casou com Dundee. Seis meses mais tarde, Steve avista Anna na estação ferroviária, onde acabara de se despedir de Dundee. Anna diz que se casou com Dundee devido à hostilidade de sua família e porque Ramirez ameaçou prendê-la, se não saísse da cidade. Conta também que Dundee costuma bater nela, mostrando as marcas de ferimentos nas costas.

Dundee surpreende-os na casa de Steve e este improvisa uma explicação: diz que tem planos para roubar a empresa de transporte de valores em que trabalha e pede auxílio de Dundee. Combinam que o dinheiro roubado ficará com Anna, até que possam se encontrar, para repartí-lo. Steve pretende pegar sua parte e fugir com Anna. Dundee planeja matar Steve durante o roubo.

No decorrer do assalto, o velho Pop (Griff Burnett), companheiro de Steve no carro-forte, é morto. Steve reage e, apesar de ferido, consegue recuperar metade do dinheiro, passando por herói. Dundee manda raptar Steve no hospital, pois quer saber do paradeiro de Anna. Steve consegue subornar seu raptor para que o leve até a cabana perto do mar em Palos Verdes, onde Anna está escondida. Aterrorizada com a presença de Steve, pois sabe que Dundee virá atrás deles, a jovem se prepara para abandoná-lo, ferido e amargurado. Antes que possa partir, levando o dinheiro consigo, Dundee chega. Ele mata Steve e Anna. Ao sair para fora da casa, ouve o som das sirenes dos carros da polícia que se aproximam

O filme começa de uma maneira bastante original. A câmera sobrevoa o aeroporto de Los Angeles todo iluminado, vai descendo como um pássaro, e depois parte em direção a Steve e Anna, que se abraçam entre dois carros na escuridão de um estacionamento. O espectador é introduzido repentinamente no curso da ação, tomando logo conhecimento do triângulo amoroso (“Dei uma fugida, enquanto ele estava dançando”… “É melhor voltar, antes que ele comece a procurar por você”.. “Depois que tudo acabar e nós estivermos seguros, seremos só eu e você. Do jeito que deveria ter sido desde o princípio”), que é a chave de todo o drama. No dia seguinte, Steve dirige o carro-forte para San Raphaelo, onde vai ocorrer o assalto e, durante o percurso de quarenta minutos, recorda o passado.

O diretor Robert Siodmak soube dominar um enredo de estrutura complexa  e criar esplêndida atmosfera e de amargura e fatalismo, complementando muitas vezes a narração na primeira pessoa com uma quantidade  de planos subjetivos que acentuam alguns pontos temáticos muito importantes. Por exemplo, a solidão de Steve é expressa em uma tomada na qual surpreende o irmão beijando a noiva, ambos vistos  do ponto  de vista dele, sentado no sofá da sala de visita.

Mais tarde, Siodmak usa inúmeros planos subjetivos para obrigar a platéia a participar da situação aflitiva e de suspense do protagonista, aguardando a vingança de Dundee. Imobilizado na cama do hospital, Steve percebe, pela porta entreaberta, a presença de um homem no corredor. A enfermeira lhe diz que ele é um visitante, chamado Nelson. Steve manda chamá-lo. Nelson (Robert Osterloh) se apresenta como caixeiro-viajante e diz que sua mulher foi ferida num acidente. Steve pede-lhe que passe a noite com ele. Nelson senta-se  dentro do quarto e parece que vai adormecer. Assim que a enfermeira sai, ele se levanta, vai ao corredor, e volta com uma cadeira de rodas. Aproximando-se do leito, acorda Steve e se identifica como mensageiro de Dundee. Corta as cordas do contrapeso que sustenta o braço engessado de Steve e a imagem sai de foco, sugerindo seu desmaio.

No seu retorno a Los Angeles, Steve tenta enganar aos próximos, e a si mesmo, de que já se libertou da ex-mulher, mas ali está ele, triste e desamparado, procurando por ela na boate, onde sabe que vai acabar a encontrando. Até que o desejo se concretiza em uma sequência notável, que mostra toda a fascinação que Anna exerce sobre ele: Steve entra no Rondo Club. Vemos os pares dançando uma rumba executada pela orquestra de Esy Morales. Esy tocando sua flauta travessa., Anna rodopiando na pista, linda e sensual, outro plano de Esy e, finalmente, Steve, em plano americano –  e depois em primeiríssimo, durante o intercutting -, inteiramente subjugado.

Steve confunde sua própria passividade com as maquinações do destino. “Estava escrito nas cartas ou foi o destino, ou o azar, ou o que você quiser”, diz ele no começo do retrospecto. “Estava nas cartas, e não havia como impedí-lo”, conforma-se, quando recebe a notícia do casamento de Anna. É a convenção noir do homem vítima de um destino inexorável. Porém, na realidade, o destino não teve nada a ver com os problemas de Steve. Podem ter ocorrido certas coincidências, mas significaram muito pouco. Não foi o destino que fez Steve perder sua força de vontade, que está sempre se desintegrando na presença de Anna. Ele simplesmente não consegue se libertar  de seu encanto.

A sequência do assalto é estilizada, deliberadamente irrealista. Uma câmera diretamente do alto mostra o carro-forte dirigindo-se para o seu destino. Quando Steve e Pop  saltam com as sacolas de dinheiro, as bombas de gás lacrimogêneo explodem. Uma nuvem sufocante invade toda a rua. Dundee e seus homens  colocam suas máscaras contra gases. Soa o alarme, que não vai parar de tocar durante toda a sequência. Dundee surge no meio  da fumaça e dispara vários tiros conta Pop. Steve vê Dundee matar seu amigo e muda de idéia. Ele alveja um bandido e tenta pôr as sacolas em  segurança dentro do carro-forte. Dundee atira nele. Os dois entram em luta corporal. Steve fere Dundee na perna e depois recebe um tiro no ombro. Ouvem-se as sirenes dos carros de polícia. Os bandidos fogem. Toda essa movimentação, com os homens meio perdidos no nevoeiro de gás, alguns com as estranhas máscaras contra gases, parece um sonho febril, um estranho balé, encenado com muita noção de cinema.

Siodmak esmera-se na última cena, que é uma das mais românticas de toda a sua carreira. Nelson aceita o suborno e leva Steve até a cabana em Palos Verdes, onde Anna está escondida com parte do dinheiro roubado. Steve pede a Anna que entregue dez mil dólares a Nelson. Depois que este vai embora, e Steve explica quem ele é, Anna grita enraivecida: “Você não sabe o que vai acontecer?. Neste exato momento ele já deve ter dito ao Slim onde eu estou”. E começa a fazer as malas. “Você vai partir? Você vai me deixar? Aqui?”, diz Steve, desapontado. “Todas aquelas coisas que você me disse … Eu sei que você disse a verdade … Você me ama”, continua ele. E ela: “Amor, amor … Você simplesmente não sabe que espécie de mundo é este”. Steve responde, entorpecido: “Nunca quís o dinheiro. Só queria você”. Anna sai e a câmera fica focalizando Steve lá dentro, arriado no sofá, de frente para a câmera.

Passam-se alguns segundos. Ouve-se o barulho de um carro chegando. De repente, Anna volta correndo, aterrorizada. A câmera apanha os dois, ela de pé e ele sentado. Fica mais alguns segundos mostrando a porta aberta e a escuridão lá fora, até que do escuro surge Dundee, apoiado em uma bengala. Ele contempla os dois amantes e diz: “Você sempre a desejou, não foi Thompson? Você realmente a amou. Eu também. Mas você venceu, Thompson. Ela é toda sua”. Anna dá um grito, pronunciando o nome de Steve e cai no colo deste, escondendo o rosto. “Aperte-a nos seus braços. Aperte-a bem forte”, prossegue Dundee. Anna grita novamente o nome de Steve. Dundee desfere três tiros e fica em primeiro plano, diante da porta. Ouve-se o som das sirenes, que vai aumentando cada vez mais. Dundee sai do quadro e vemos o casal morto, enquanto a música berrante de Miklos Rosza faz um resumo dos ásperos conflitos da trama.

A Dama de Shanghai / The Lady from Shanghai / 1948 é um filme noir no sentido mais completo do termo, porém as concepções arrojadas e a personalidade exuberante do diretor se impuseram e ele se transformou em um filme de Orson Welles.

Andando pelo Central Park à noite, o marinheiro irlandês Michael O’Hara (Orson Welles) socorre uma mulher misteriosa, Elsa Bannister (Rita Hayworth), que está sendo assaltada. Elsa convence o marido, Arthur Bannister (Everett Sloane), um famoso advogado criminal aleijado, a contratar O’Hara  como contramestre do seu iate para um cruzeiro de Nova York até San Francisco, passando por Acapulco no México. O’Hara aceita, esperando rever Elsa.



Durante a viagem, os dois se apaixonam e O’Hara conhece George Grisby (Glenn Anders), sócio de Bannister. Grisby faz uma estranha proposta ao marinheiro: ele dará cinco mil dólares a O’Hara para simular sua morte. O’Hara assinará uma confissão de que o matou, a fim de que possa desaparecer. Como não existirá um cadáver, O’Hara não poderá ser condenado. Grisby receberá uma indenização do seguro e então poderá passar seus últimos anos em um lugar bem longe do holocausto nuclear que tanto o atormenta.

O’Hara prossegue com o plano, achando que os cinco mil dólares poderão ajudá-lo a fugir com Elsa. Na noite do falso assassinato, Grisby mata Sidney Broom (Ted De Corsia), um detetive especializado em flagrantes de divórcio a serviço de Bannister, que havia descoberto a verdade sobre a trama. Antes de morrer, o detetive diz a O’Hara que ele caiu em uma armadilha. Grisby só queria um álibi e, com a cumplicidade de Elsa, vai matar Bannister. O’Hara corre para o escritório de Bannister, porém é recebido por um grupo de policiais e fica sabendo que Grisby foi morto.

Bannister defende O’Hara, mas com a intenção de vê-lo condenado. Pouco antes de ser proferida a decisão, O’Hara consegue fugir do tribunal, fingindo uma tentativa de suicídio pela ingerência de barbitúricos. Ele se esconde em um teatro de Chinatown, seguido por Elsa. Enquanto os policiais vasculham o local à sua procura, O’Hara encontra a arma que matou Grisby na bolsa de Elsa e, após acusá-la do crime, perde os sentidos.

O’Hara desperta em um parque de diversões vazio. Depois de passar por várias rampas e obstáculos, vai cair em um quarto de espelhos. Elsa aparece e, logo depois, Bannister. Bannister diz a ela que já explicou tudo em um bilhete para o promotor público: Elsa e Grisby iam matá-lo e dividir a indenização do seguro. Elsa eliminou Grisby, porque ele matou o detetive e ela ficou com receio de que este tivesse contado tudo à polícia. Marido e mulher disparam suas armas um contra o outro. Bannister morre. Elsa se arrasta agonizante para fora do quarto. O’Hara deixa-a morrer e sai daquele lugar, pensando no futuro.

Várias situações não são explicadas (qual era a conexão entre Elsa e os chineses?), as motivações dos personagens permanecem bastante obscuras (depois de se desembaraçar do marido, com a ajuda de Grisby, Elsa queria igualmente livrar-se do seu cúmplice e fugir com O’Hara?), algumas passagens parecem inverossímeis (a proposta de Grisby) – mas isso não tem muita importância, porque o filme vale, sobretudo, pela sua inventividade formal.

A nota dominante desta história confusa e incoerente é a atmosfera tipicamente noire de mal-estar e ambiguidade. Os advogados Grisby e Bannister têm alguma coisa de viscoso e doentio. Grisby está sempre limpando o suor do rosto no calor dos trópicos e Bannister não anda, arrastando-se com a ajuda de duas muletas, ambos parecendo aqueles répteis que infestam os pântanos. Quando O’Hara leva Bannister bêbado para o barco, ouve-se sua voz dizendo: “Está tão indefeso quanto uma cascavel adormecida”.

Elsa é uma mulher perfeitamente enigmática, de rosto sempre sereno. Qual é o jogo dela? Quais são as verdadeiras intenções de cada um? Quem vai matar? Quem será morto? E por quê?

O’Hara não é um tough guy com pleno domínio de si mesmo, mas sim um inocente romântico, mero instrumento de Elsa (Talvez por isso não tivesse percebido o seu sorriso de desprezo quando lhe pediu para fugir com ele e ele lhe disse que, “para começar”, dispunha da quantia de … cinco mil dólares). Compelido por sua ingenuidade (“Quando começo a fazer papel de tolo, pouca coisa me detém”; “Porque sou um tolo por escolha própria. É o pior tipo, não sabe?”), envolve-se nas maquinações sórdidas daquele grupo de pessoas, que ele compara aos tubarões das costas brasileiras, entredevorando-se, inebriados de sangue.

Com seu gênio artístico, Welles fez de um enredo policial comum algo de sabor especial, integrando-o nas suas reflexões sobre aparência e verdade, sobre a busca desesperada de poder / riqueza, temas abordados também nas suas obras-primas, Cidadão Kane / Citizen Kane / 1941 e A Marca da Maldade / Touch of Evil / 1958, e lhe dando um ritmo e uma plástica esteticamente ricos.

A Dama de Shanghai se compõe essencialmente de trechos de antologia com a marca do diretor: um piquenique nos pântanos infestados de crocodilos, os mexicanos passando ao fundo com as tochas acesas e O’Hara contando seu relato alegórico para os patrões deitados nas redes; uma cena de amor em um aquário, Elsa e O’Hara vistos na frente de criaturas aquáticas predadoras, uma metáfora para a armadilha humana em que ele pode cair; um crime falso proposto no alto dos penhascos de Acapulco por um sujeito aparentemente neurótico e gaiato; uma representação de teatro chinês, o auditório invadido silenciosamente pela policia e a reação dos atores entre o barulho dos címbalos e gongos; um acerto de contas final no quarto de espelhos de um parque de diversões, O’Hara despertando no meio de tobogãs e sombras barrocas e as imagens de Bannister e Elsa se multiplicando infinitamente nos espelhos, até que um tiroteio revela quem matou quem no meio dos estilhaços de vidro.

São esses elementos de cinema puro que, apesar de seu indisfarçado artificialismo, dão ao filme todo o seu encanto.

Para Borde e Chaumeton, A Morte num Beijo / Kiss me Deadly / 1955 é o reverso desesperado de Relíquia Macabra, que inaugurara o filme noir 14 anos atrás.

O herói, o tema e a estrutura narrativa são os mesmos: um detetive particular, a busca de um objeto misterioso (a estátua, a caixa) e a exposição linear dos acontecimentos na terceira pessoa. Mas como de 1941 a 1955 a sociedade mudou, a solução para o desregramento e a brutalidade nela existentes tinha que ser mais radical: o apocalipse nuclear.

O detetive Mike Hammer (Ralph Meeker) dá uma carona para Christina Bailey (Cloris Leachman), uma mulher apavorada que se colocou na frente de seu carro, forçando-o a parar na estrada à noite. Ao passar por um bloqueio policial, Hammer ouve os guardas falando de uma mulher que fugiu de um sanatório. Quando param para abastecer, Christina entrega uma carta ao empregado do posto de gasolina, pedindo-lhe que a ponha no correio. A Hammer diz que, “se algo nos acontecer, lembre-se de mim”.

Mais adiante, o carro de Hammer é empurrado para fora da rodovia. Hammer fica meio inconsciente enquanto Christina é torturada. Os dois são colocados dentro do carro e este é jogado em um despenhadeiro. Hammer recobra os sentidos num hospital, onde sua secretária Velda Wakeman (Maxine Cooper) e um policial conhecido, Pat Murphy (Wesley Addy), o informam de que o F.B.I. deseja interrogá-lo.

Ignorando o aviso deles para não se meter no caso, o detetive decide investigar por conta própria. Ao saber que o editor da seção de ciências do jornal local, Ray Diker (Mort Marshall), também havia sido interrogado, ele o obriga a fornecer-lhe o endereço de Christina. Hammer vai até lá e encontra um livro de poesia que contém um soneto intitulado “Lembre-se de mim”. As palavras que Christina havia lhe dito.

Hammer descobre o paradeiro da companheira de quarto de Christina, Lily Carver (Gaby Rodgers), e esta lhe diz que está se escondendo de uns gângsteres. Uma voz no telefone tenta subornar Hammer, oferecendo-lhe um carro novo de presente. No dia seguinte, Hammer recebe o carro, porém com dois acessórios a mais: uma bomba ligada ao acelerador, pronta para ser detonada quando o motorista virar a chave de ignição e outra, que deverá explodir quando o veículo estiver em alta velocidade. Seu amigo mecânico, Nick (Nick Dennis), consegue removê-las e Hammer lhe pede que descubra quem poderia ter feito este trabalho.

Diker fornece a Velda o nome dos dois homens que foram mortos em acidentes de trânsito misteriosos: o ex-pugilista Leopold Kowalski e o engenheiro-cientista Nicholas Raymond. Hammer vai procurar Harvey Wallace (Strother Martin), o chofer do caminhão que atropelou Kowalski, e este lhe diz que a vítima surgiu repentinamente na sua frente, como se tivesse sido empurrada. Eddie Yeager (Juano Hernandez), o treinador de Kowalski, não quer falar, porque foi ameaçado por Sugar (Jack Lambert) e Charlie Max (Jack Elam) para ficar calado.

Pat diz a Hammer que estes dois homens trabalham para o gângster Carl Evello (Paul Stewart). Chegando à mansão de Evello, Hammer é seduzido pela meia irmã deste, Friday (Marian Carr). Evello tenta em vão suborná-lo e ele percebe que o gângster recebe ordens de outra pessoa.

Hammer visita um amigo de Raymond, o cantor de ópera desempregado, Carmen Trivago (Fortunio  Bonanova). Trivago conta que Raymond lhe dissera que tinha um segredo, uma coisa muito pequena que certas pessoas queriam. Nick é morto. Por intermédio de Diker, Velda conhece William Mist (Allen Lee), um mercador de arte abstrata, que lhe dá uma pista sobre  um tal Dr. Soberin (Albert Dekker). Sem pensar no risco que ela pode correr, Hammer pede a Velda que vá se encontrar com Mist para obter mais informações. Velda é seqüestrada.

Lembrando-se de que Christina entregou uma carta para o empregado do posto de gasolina, Hammer vai falar como homem e este lhe informa que a carta foi endereçada a um tal de Mike. Hammer encontra-a aberta no seu escritório e os dois capangas de Evello aguardando por ele. A mensagem diz simplesmente “Lembre-se de mim”.

Hammer é levado para uma casa de praia, onde reconhece a voz do assassino de Christina, o Dr. Soberin, que lhe aplica um soro da verdade. Superando os efeitos da droga, Hammer domina Evello e o coloca amarrado em seu lugar, fazendo com que Sugar o mate, pensando que era ele. Depois liquida Sugar e foge.

Imaginando o que “Lembre-se de mim” significa, Hammer e Lily vão ao necrotério, onde Hammer força o médico legista (Percy Helton) a lhe entregar a chave do armário de Raymond no Clube Atlético de Hollywood, que Christina engolira. Hammer acha uma caixa dentro do armário, mas quando abre a tampa um pouquinho, algo queima suas mãos e ele acha melhor colocá-la de novo no lugar. Enquanto isso, Lily desaparece.

Pat revela que a caixa contém material radioativo cobiçado por agentes estrangeiros. Diz ainda que a verdadeira Lily Carver morreu afogada duas semanas atrás. Gabrielle, que estava se fazendo passar por Lily, levou a caixa. Hammer descobre que Soberin é o dono da casa de praia e se dirige para lá na esperança de encontrar  Velda.

Soberin e Gabrielle pretendem ganhar uma fortuna vendendo o material radioativo. Gabrielle insiste para ver o que tem dentro da caixa. Adevertindo-a do perigo, Soberin se recusa a abrí-la. Desejando a caixa só para si, Gabrielle mata Soberin. Hammer entra na casa justamente quando ela vai abrir a caixa. De dentro dela sai uma luz intensa. Gabriella grita e seu corpo se incendeia. A casa toda treme  e tem início uma reação em cadeia. Hammer se arrasta até uma porta fechada no corredor e liberta Velda. Eles saem da casa e entram cambaleando no mar enquanto um cogumelo atômico  se forma no céu.

Nos meados dos anos 50, as fontes literárias dos filmes noirs estavam secando e os enredos tornando-se clichês. Como escreveu Claude Chabrol na Cahiers du Cinéma (L’Évolution du Film Policier / 1955), Robert Aldrich e seu roteirista A. I. Bezzerides “escolheram o pior material disponível, o produto mais lamentável, o mais enjoativo de um gênero em putrefação: um romance de Mickey Spilane”. Apesar de sua enorme popularidade e sucesso comercial, Spillane era considerado um autor de romances policiais muito vulgar, que só pensava em ganhar dinheiro explorando o sexo e a violência com sensacionalismo. Recentemente, alguns críticos reconheceram a habilidade de Mickey como contador de histórias, mas a maioria dos analistas não encontra nenhum valor estético na sua obra, qualificando-a como o ponto mais baixo da escola hard boiled.

Seu personagem, o detetive particular Mike Hammer, não tem a sutileza e a integridade de Philip Marlowe ou Sam Spade. É um sujeito grosseiro e sádico, reacionário e “fascista”, particularmente influenciado pelo seu papel de cruzado anticomunista, um produto típico da era McCarthy.

Escapando do universo terra-a-terra de Spillane, Aldrich e Bezzerides acompanham a descrição dos atos de seu herói de uma meditação sobre a angústia atômica.

Além de valorizar o tema com uma conclusão alegórica, eles se distanciam de Spillane, enchendo o filme com códigos de arte e estabelecendo assim um contraponto para a rudeza de Hammer e as brutalidades que ocorrem a todo instante. Por exemplo, uma pista importante para o desvendamento do mistério é um soneto de um poema de Christina Georgina Rossetti, irmã do também poeta Dante Gabriel Rossetti, ambos figuras de prestígio no meio literário da segunda metade do século XIX. Em outros momentos, há alusões às figuras mitológicas de Cérbero, Pandora e Medusa e ao episódio Bíblico da transformação da mulher de Lot em uma estátua de sal, fragmentos da música clássica, pinturas abstratas etc.

A violência, contudo, está no âmago do filme, apresentada com os efeitos paroxísticos que caracterizam o estilo do diretor. Christina é torturada até a  morte (Só vemos suas pernas contraindo-se freneticamente em face da dor causada por um par de alicates); Hammer bate várias vees a cabeça do homem que o seguia na parede e depois o empurra mortalmente para uma longa escadaria íngreme; Nick morre esmagado quando Soberin remove o macaco do carro; Evello é esfaqueado pelas costas; Hammer esmaga os dedos do médico legista em uma gaveta; Gabrielle abre a caixa e vira uma tocha humana.

Cruel e insensível, Hammer ri quando quebra o disco raro de Enrico Caruso na frente do pobre Trivago e não tem o menor escrúpulo em mandar Velda – a secretária que o ama sinceramente – usar sua atração sexual para forjar flagrantes de divórcio ou obter informações, inclusive com risco de vida.

A morte de Nick e o seqüestro de Velda lhe servem de lição – aprendida tarde demais  – de que seu modo anti-social e egoísta de vida iria eventualemtne trazer o mal para aqueles que lhe são leais.

O estilo visual extravagante do filme sugere esse contexto apocalíptico, o sentimento de paranóia e de perigo nuclear que obcecou a década de 1950, refletindo os problemas contemporâneos do McCarthismo e da Guerra Fria.

Embora a maioria das cenas tivesse sido rodada em locações naturais, o filme tem um aspecto surreal: o mundo é cuidadosa e obstinadamente distorcido. A gente sente isso desde a apresentação dos créditos, que passam em ordem invertida na tela. Os ângulos chocantes, a fascinante geometria das composições, a narrativa elíptica, a iluminação dramática, o uso excêntrico do som, são um desafio para a percepção e compreensão do espectador. Aldrich e o fotógrafo Ernest Laszlo parecem determinados a colocar a câmera em lugares onde ela jamais esteve, por exemplo, naquele enquadramento do corrimão da escada do Hotel Jalisco no qual vemos em profundidade de campo pela câmera alta Hammer sozinho. e depois Lily, como se estivessem presos em uma armadilha.

A Morte num Beijo foi o último dos grandes filmes noir puros, conseguindo – dentro dos limites da produção  classe “B” – transformar um thriller qualquer em uma fábula cinematográfica, estranha e profunda, sobre a violência e decadência moral ligadas às sociedades hipercivilizadas da era atômica.

FILME NOIR IV

Como exemplo de filmes noirs puros, escolhi cinco obras-primas: Relíquia Macabra, Pacto de Sangue, Até à Vista, Querida, Fuga ao Passado e O Destino Bate à Porta.

A realização que marcou definitivamente a emergência do filme noir foi Relíquia Macabra / The Maltese Falcon / 1941. Estreando na direção, John Huston adaptou para a tela com a maior fidelidade o romance de Dashiell Hammett, estabelecendo várias convenções temáticas (o cinismo e a corrupção, o detetive hard-boiled envolvido pela mulher fatal, os tipos estranhos com os quais se defronta etc.) e visuais (o ambiente de trevas e opressão).

Depois que seu sócio Miles Archer (Jerome Cowan) foi morto quando seguia um homem chamado Thursby contratado por uma misteriosa Mrs. Wonderly (Mary Astor), o detetive particular Sam Spade (Humphrey Bogart) toma a firme decisão de encontrar o assassino. Ele interroga Mrs. Wonderly e esta admite que seu verdadeiro nome Brigid O’Shaughnessy e está sendo ameaçada pela mesma pessoa que matou Miles. Atraído por Brigid, Spade concorda em ajudá-la. A investigação conduz a uma trinca curiosa: o efeminado Joel Cairo (Peter Lorre), o “homem gordo”, Kaspar Gutman (Sydney Greenstreet) e o incompetente capanga de Gutman, Wilmer (Elisha Cook, Jr.). Spade fica sabendo que os três estão à procura de uma escultura coberta de pedras preciosas, o Falcão Maltês. Gutman e seus associados acreditam que Spade possui o Falcão por causa de seu relacionamento com Brigid. Finalmente, Spade descobre que Brigid é uma mentirosa contumaz e está tão envolvida na busca do Falcão quanto os outros; e, quando a escultura chega às suas mãos por meio de um capitão de navio moribundo (Walter Huston), Spade reúne a turma para conhecer toda a história. Sabendo que Wilmer, a mando de Gutman, foi responsável pela morte de Thursby e do capitão, Spade mostra-lhes o Falcão que, afinal, não tem valor algum. Desapontados,  Gutman, Cairo e Wilmer fogem. Spade manda a polícia atrás deles e extrai a confissão de Brigid. Ela matou Miles, esperando se livrar de seu parceiro Thursby, colocando a culpa do assassinato sobre ele. Contando com o amor do detetive, Brigid implora-lhe que não a denuncie, mas Spade mantém-se inflexível.

Huston praticamente pôs o livro em imagens e conseguiu o mesmo que Hammett na ficção impressa: fazer com que ficássemos mais interessados nos personagens. Ele parece se divertir com a ganância, descrevendo com escárnio o trio de criminosos excêntricos: o pequeno escroque perfumado e histérico, o gigolô pateta metido a durão e o pançudo e pomposo homossexual, que não hesita  em sacrificar  o parceiro, para satisfazer sua ambição (“Sinceramente Wilmer, sinto muito perdê-lo … Quero que saiba que eu não poderia gostar mais de você se fosse meu próprio filho. Quando a gente perde um filho, pode conseguir outro, mas só existe  um Falcão Maltês”).

Entretanto, com relação à Brigid, ninguém pode esquecer do seu rosto quando as grades do elevador se fecham, afastando-a para sempre do mundo – é um momento quase isolado de tristeza em um filme de um consistente humor cínico. Já Spade  é um herói empedernido e autoconfiante, procurando testar a si mesmo e se definir, pela capacidade de superar os desafios à sua vida e à sua integridade.

No final do filme, triunfante, sentindo-se superior aos outros e invulnerável, filosofando sobre a ambição e o fracasso, com a estatueta na mão,  Spade faz o comentário Shakespereano: “Esta é a matéria da qual os sonhos são feitos”. Quando imaginamos  este personagem, não o vemos como Hammett o descreveu: “O maxilar de Samuel Spade era comprido e ossudo, o queixo, um V saliente debaixo de um V mais flexível da boca (…) Seus olhos, amarelo-cinzentos, eram horizontais (…) Ele tinha uma aparência bastante divertida, como um Satã louro”. Nós vemos Humphrey Bogart. Relíquia Macabra foi o filme em que ele criou a persona que o tornou um mito. Spade, Brigid, Cairo, Gutman e Wilmer encontraram em Bogart, Astor, Lorre, Greenstreet e Cook, Jr os intérpretes ideais que, em primoroso trabalho de atuação em conjunto, compuseram com absoluta perfeição aqueles tipos tão interessantes.

A direção de Huston é toda certinha, com sugestivas colocações de câmera (por exemplo, quando Spade se inclina para beijar Brigid, que está deitada em uma poltrona, e olha para a janela, vendo-se lá embaixo na rua – após um breve deslocamento da objetiva – a figura de Wilmer iluminada pelo lampião) e composições com os atores em planos fechados. Os ambientes, quase todos em interiores restritos e com os tetos à vista, suscitam a impressão de confinamento e aumentam a tensão.

Pacto de Sangue / Double Indemnity / 1944, dirigido por Billy Wilder, é um influente modelo de filme noir com todos os ingredientes típicos: o sujeito de caráter fraco arrastado para o crime por uma mulher ambiciosa e calculista; a narração na primeira pessoa; a iluminação contrastada; o investigador persistente e perspicaz; as pessoas mentindo ou se enganado umas às outras o tempo todo etc.

É o protagonista, Walter Neff  (Fred MacMurray), corretor de seguros (“Vinte e cinco anos, solteiro, sem cicatrizes visíveis … isto é, a não ser até há pouco tempo”) quem conta a história em retrospecto. Seduzido por Phyllis Dietrichson (Barbara Stanwyck), mulher de um segurado (Tom Powers), os dois armam um plano para assassinarem o marido dela e receberem a indenização dupla da apólice. Entretanto, depois que o crime é cometido, as coisas de complicam. Barton Keyes (Edward G.Robinson), o astuto investigador de sinistros, amigo de Neff, suspeita de que não houve acidente. Ao ouvir uma gravação, na qual Keyes diz para o dono da companhia de seguros que foi Phyllis quem matou o marido com a ajuda de Nino Zachette (Byron Barr), namorado de sua enteada, Lola (Jean Heather), Neff pensa em matar a parceira e se livrar da enrascada. Phyllis antecipa-se a Neff e, ao atirarem um contra o outro, ela morre, proclamando seu amor por ele. Mortalmente ferido, Neff faz um registro dos fatos pelo ditafone do escritório da companhia, onde Keyes o encontra moribundo. Dizendo que vai conseguir escapar para o México, Neff cai, antes de chegar ao elevador.

Baseado no romance de James M. Cain, o roteiro manteve o clima e os detalhes da intriga e absorveu os toques pessoais de seus autores, Billy Wilder e Raymond Chandler. As descrições um tanto literárias e os diálogos hard-boiled foram certamente influenciados por Chandler; a amargura e o irônico desencanto, sem dúvida, são de Wilder. Desde a apresentação dos letreiros, com a figura de um homem de muletas em contra luz aproximando-se cada vez mais da objetiva até o último instante do filme, os espectadores ficam em permanente suspense, participando intensamente do planejamento e da execução do crime, dos sobressaltos do casal de amantes malditos e de seu fim trágico.

Na filmagem original, Pacto de Sangue terminava com Walter Neff morrendo na câmara de gás, porém Wilder achou a cena muito forte e anti-climática e resolveu escrever outra mais tranquila. Ferido e sangrando muito, Neff pede a Keyes algumas horas para poder alcançar a fronteira mexicana. “Você não vai chegar nem no elevador”, diz Keyes. Neff caminha em direção ao corredor, não aguenta e cai. Keyes ajoelha-se perto dele e pergunta: “Como está Walter?”. Sorrindo, Neff olha para ele e diz: “Sabe por que não conseguiu desvendar o crime? Porque o cara que procurava estava muito perto, do outro lado da sua mesa”. Keyes responde: “Muito mais perto do que isso”. E, gentilmente, acende o cigarro para o amigo, enquanto a tela vai escurecendo. É o único instante do filme em que encontramos piedade e amor.

No decorrer da trama, às cenas sensuais da aparição de Phyllis no segundo andar da casa enrolada na toalha e depois descendo as escadas com a chamativa corrente de ouro no tornozelo, do seu flerte com Neff usando frases de duplo sentido e da sedução no apartamento de Neff, sucedem os momentos de tensão – a assinatura do contrato de seguro sem que o marido saiba do que se trata; a presença incômoda do passageiro quando Neff se prepara  para saltar do trem; o carro que não quer pegar durante a fuga; o comparecimento da viúva  no escritório da companhia de seguros após o assassinato, mentindo descaradamente e trocando olhares quase imperceptíveis com o amante; os encontros dos criminosos no supermercado, ela implacável e ele nervoso, discutindo entre sussurros atrás das prateleiras; o interrogatório da testemunha diante do criminoso angustiado; a visita inesperada de Keyes pouco antes da chegada de Phyllis – construídos com precisão absoluta.

Bastante inspirado, o diretor de fotografia John F. Seitz elaborou formidáveis contrastes de preto e branco, que atingem o ápice plástico naquelas formas dispersas de luz e sombra, produzidas pelas venezianas fechadas da casa de Phyllis, onde se dá o clímax da história. Outra colaboração importante foi a do compositor Miklos Rozsa, cuja música essencialmente trágica se adaptou ao cinema noir, contribuindo muito para reforçar os efeitos dramáticos do filme.. Por sua presença sempre tão forte na tela, Barbara Stanwyck estava predestinada para ser uma mulher fatal. Ela interpretou  Phyllis Dietrichson com uma sexualidade cerebral e venenosa jamais igualada por qualquer outra atriz. Mostrando uma postura rígida e defensiva, o rosto e a voz tensos e um sorriso inquietante, Barbara tornou-se o arquétipo da assassina fria e calculista, merecendo o título de “grande dama do filme noir”.

Fred MacMurray encarna um rapaz simpático e piadista com a ambição e a luxúria debaixo da pele. Embora atraído pela mulher e pelo dinheiro, ele sente a tentação de desafiar o “sistema” (simbolizado pela companhia de seguros e por Keyes, o encarregado de impedir as fraudes), cometendo o crime perfeito. Mais do que uma confissão, seu relato é uma revelação de tudo o que ele pôde fazer, sem que o investigador descobrisse. MacMurray compreendeu muito bem o papel e teve uma atuação irrepreensível. Em um determinado momento da trama, como Neff, ele evoca em duas frases a atmosfera do verdadeiro filme noir: “Não conseguia ouvir os meus próprios passos … Era o caminhar de um homem morto”. O outro ator principal, Edward G. Robinson, encarna um detetive que usa a intuição e a estatística para chegar aos culpados, já irremediavelmente condenados pelo destino. Seu desempenho deu uma dimensão imprevista ao personagem.

Em Até à Vista, Querida / Murder My Seet / 1944, adaptação de Farewell, My Lovely, de Raymond Chandler, o noir look aparece completamente realizado.

Na trama um tanto complicada, mas logicamente desenvolvida, o detetive particular Philip Marlowe (Dick Powell) é contratado por Moose Malloy (Mike Mazurki), um brutamontes recentemente libertado da prisão, para encontrar sua namorada , Velma Valento. No escritório, Marlowe encontra Lindsay Marriott (Douglas Walton), sujeito efeminado, que lhe oferece cem dólares para ir com ele até o local onde resgatar o colar de jade de uma amiga, o qual fora roubado. Marriott é assassinado e Marlowe leva uma pancada na cabeça, conseguindo apenas ouvir uma voz feminina. Na delegacia, onde relata o acontecimento, fica sabendo que o morto tem alguma ligação com o psiquiatra Jules Amthor (Otto Kruger). De volta ao escritório, o detetive se depara com Ann Grayle (Anne Shirley) e toma conhecimento, por meio desta, de que o colar roubado pertence à Helen Grayle (Claire Trevor), madrasta de Ann e bem mais moça do que o marido, Mr. Grayle (Miles Mander). Moose leva Marlowe ao apartamento de Amthor, onde o detetive é agredido e depois transportado para a clínica do Dr. Sonderborg (Ralf Harolde) e drogado. Com muito esforço, ainda sob efeito da droga, Marlowe consegue escapar de seus algozes e resolve ter uma nova conversa com Helen. Marlowe entra na casa de praia  dos Grayle e ela tenta incitá-lo a matar Amthor. Explica que este estava lhe chantageando e pediu a jóia, porém o colar foi roubado em um assalto que sofreu, quando saíra para dançar com seu amiguinho Marriott, antes que pudesse entregá-lo para o chantagista. Fingindo que concorda, Marlowe vai ao apartamento de Amthor e o encontra morto, com o pescoço quebrado. Moose, que fora o responsável pela morte de Amthor, procura Marlowe, pressionando-o a encontrar a namorada. Este lhe mostra a foto de Velma e explica ao grandalhão que ela e Helen são a mesma pessoa. Os dois rumam para a casa de praia. Marlowe entra e deixa Moose do lado de fora, aguardando. Helen recebe-o de braços abertos, porém ele a obriga a dizer a verdade. O colar não foi roubado. Ela nunca teve intenção de dá-lo para Amthor, porque só iria aguçar seu apetite. Estava sustentando Marriott, Amthor e uma cúmplice destes, Jesse Florian (Esther Howard), e resolveu se livrar de Marriott e de Marlowe ao mesmo tempo; depois eliminaria Amthor. A chantagem acabaria se Marlowe achasse Velma para Moose e, por isso, Marriott concordou em ajudá-la a matar o detetive., atraindo-o até o local do suposto resgate. Helen matou Marriott e, quando ia fazer o mesmo com Marlowe, Ann chegou e, pensando que era o pai que estava lá, para matar Marriott por ciúme, atrapalhou tudo. Após a confissão, Helen tenta seduzir Marlowe, tal como fizera com Moose no passado Sem conseguir seu intento, aponta uma arma para o detetive, porém Mr. Grayle  e Ann aparecem de repente e o velho mata a esposa traidora. Neste momento instante, Moose entra na casa e Marlowe não consegue impedir que Moose e Mr. Grayle, os dois pobres apaixonados, se matem um ao outro.

Logo no início do filme, a imagem de Marlowe com as ataduras nos olhos sugere o castigo do herói, não apenas por ter chegado muito perto do disparo de uma arma de fogo, mas por ter se imiscuído em um labirinto de mentiras, homicídio, chantagem, charlatanismo e violência física. Como todo detetive noir, ele é  envolvido em uma investigação que põe em foco sua responsabilidade profissional e suas próprias inquietações. A experiência vivida em um submundo cheio de criaturas sórdidas o cegou, mas também o tornou singularmente capaz de “ver” a verdade, encontrar os responsáveis por tantos crimes, e o próprio eu, isto é, a necessidade de ter Ann para sempre a seu lado. A intriga porém contém muitas pistas falsas e reviravoltas, para fazer com que o público fique tão desnorteado quanto o investigador, porém o maior fascínio do filme não está no enredo delirante, mas nos diálogos e na atmosfera.

Captando maravilhosamente o espírito da ficção de Raymond Chandler e conservando uma porção satisfatória de sua prosa excepcional, o diretor Edward Dmytryk e seu roteirista John Paxton escolheram a melhor construção narrativa (narração na primeira pessoa, voz over, retrospecto) e forma visual (expressionista) para acentuar a intensa subjetividade do protagonista e criar o clima mais adequado à história, obtendo uma mistura perfeita da tradição hard-boiled com o estilo germânico.

Chandler considerava Dick Powell o equivalente cinematográfico mais próximo de sua concepção de Philip Marlowe. O ator está surpreendentemente bem no papel, abandonando sua personalidade jovial e alegre dos musicais, para se transformar em um detetive tough guy clássico. Na pele de Marlowe, ele faz comentários sobre personagens, ambientes e acontecimentos, expressando sua visão dark por meio de piadas sarcásticas e descrições hiperbólicas de muito sabor.

Quando Marlowe acompanha Marriott e leva uma pancada na cabeça, a voz over do detetive recorda como “um poço negro se abriu  diante de meus pés. Cai nele. Não tinha fundo” e, ao mesmo tempo, uma mancha preta inunda a tela, escurecendo a cena. Em outro instante, ao acordar do torpor provocado pela droga, ele fala de uma fumaça e de uma “teia tecida por mil aranhas”, que obscurecem sua visão enquanto o observamos através de um vidro embaciado

Um pouco adiante, estica as mãos em direção à câmera e vemos seus dedos deformados, parecendo uma penca de bananas com jeito de dedos”. Nessa tomadas, o diretor emprega todo o vocabulário fílmico – montagem rápida, sobreimpressões, cortinas giratórias, lente grande angular, filtro fosco, primeiríssimo plano (vg. a seringa do doutor), justaposição de personagens em escalas diferentes – para expressar o estado mental confuso e paranóico do protagonista. A atmosfera de pesadelo, as sombras ameaçadoras e os fortes contrastes de iluminação dão a Até à Vista, Querida uma qualidade visual, que se tornou caracteristica nos filmes noirs do período áureo.

E não falta a mulher fatal, Velma, que se tornou Mrs. Grayle, interpretada por Clare Trevor. Casada, ela comete um crime para evitar uma chantagem relativa ao seu passado, que se presume agitado. Depois, se joga resolutamente nos braços de Marlowe, para fazê-lo seu cúmplice em um novo empreendimento homicida. Maquilada e cheirosa, é uma mulher que se produziu e desempenha este papel com muita classe

Fuga ao Passado é um verdadeiro manancial de elementos noirs: a mulher fatal mentirosa e camaleônica, o herói moralmente ambíguo, a intriga complicada movendo os personagens inexoravelmente para a sua destruição e o estilo visual expressionista.

Jeff Markham (Robert Mitchum), um detetive particular de Nova York, e seu sócio, Jack Fisher (Steve Brodie), são contratados por um gângster, Whit Sterling (Kirk Douglas), para  encontrar a amante deste, Kathie Moffett (Jane Greer), que fugiu com quarenta mil dólares, após ter tentado matá-lo.

Jeff segue a pista de Kathie até Acapulco e se apaixona  por ela, acreditando na sua palavra de que não roubou o dinheiro. Em consequência, o detetive não informa Whit sobre o seu paradeiro e os dois partem para San Francisco, onde vivem temporariamente em segurança.

Até que são reconhecidos por Fisher, que Whit convocara para procurar Jeff. Tentando chantageá-los, Fisher é morto friamente por Kathie. Jeff fica perplexo com a violência de Kathie. Quando se volta para ela, após ter examinado o corpo de Fisher, Kathie não está mais ali; mas deixara seu talão de cheques, que acusa um depósito de quarenta mil dólares.

Jeff então procura esquecer o passado, mudando o sobrenome para Bailey e se estabelecendo em Bridgeport, pequena cidade da Califórnia, como proprietário de um posto de gasolina, que ele administra com o auxílio de um rapaz mudo (Dickie Moore).

Por acaso, Joe Stefanos (Paul Valentine), capanga de Whit, passa por Bridgeport e vê o cartaz com o nome de Jeff no posto de gasolina. Sua intuição lhe diz que Jeff Bailey pode ser Jeff Markham. Ele intima Jeff a comparecer à casa do gângster em Lake Tahoe.

Jeff fica surpreso ao ver Kathy na companhia de Whit. Ela diz a Jeff que ainda o ama, mas voltou para Whit, porque tinha medo.  Whit diz a Jeff que vai perdoá-lo se fizer outro trabalho para ele: recuperar documentos fiscais comprometedores que estão com o advogado, Leonard Eels (Ken Niles).

Jeff aceita a proposta, esperando ajustar contas com  Whit, e depois casar-se com Ann (Virginia Huston), sua namorada de Bridgeport, a quem ele resolveu contar toda a história, quando foi chamado para a segunda missão.

O novo serviço não passa de uma trama para incriminá-lo como responsável pelo assassinato de Eels, na verdade cometido por Stefanos, depois que Meta Carson (Rhonda Fleming), a secretária de Eels a serviço de Whit, levara os documentos. Jeff também fica sabendo, por intermédio de Kathie, que Whit obrigou-a a assinar uma declaração, dizendo que ele matou Fisher.

Jeff recupera os documentos e vai para a casa de Whit. Ele propõe que Whit lhe devolva a declaração, ajude-o a fugir do país, e denuncie  Kathie à polícia como culpada pelo assassinato de Fisher.

Kathie mata Whit e obriga Jeff a fugir com ela para o México, mas antes ele avisa a policia. Percebendo que Jeff a traíra, Kathie tira uma arma da bolsa e o mata, sendo depois morta pelos guardas, ao tentar ultrapassar uma barreira na estrada.

A história de Geoffrey Homes (pseudônimo de Daniel Mainwaring), reminiscente da escola hard-boiled de ficção policial, é parcialmente contada em um retrospecto e se passa em diversos locais (Nova York, Acapulco, San Francisco, Bridgeport). O detetive particular Jeff Markham, interpretado por Robert Mitchum, com sua capa de chuva e seu chapéu de feltro, é um equivalente iconográfico do Sam Spade de Humphrey Bogart  e a “viúva negra” Kathie Moffett, embora não seja tão ‘’distinta” como Brigid O’Shaughnessy, demonstra  a mesma capacidade  de dissimulação.

Entretanto, no momento em que surge vestida de branco em uma rua ensolarada de Acapulco, Kathie não parece a mulher insidiosa que realmente é, mas sim uma criatura  do sonho de Jeff, que se materializou ao entrar no Cafe La Mar Azul.

Jeff fica deslumbrado e joga para o alto o seu código de honra. Quando Kathie tenta convencê-lo de que não roubou o dinheiro de Whit, ele a interrompe, dizendo: “Baby, pouco me importa”. Contrariando  os interesses do cliente, transigindo  com a ética profissional, Jeff não comunica a Whit que a encontrou e foge com ela para San Francisco.

Ao contrário do Sam Spade de Relíquia Macabra, Jeff Markham não consegue superar sua obsessão sexual. Sua voz over descreve Kathie de uma maneira cada vez mais romântica, representando-a como uma imagem luminosa: “E então eu a ví, saindo do sol”; “E então ela entrou, vinda do luar, sorrindo”;  “E então eu a vi andando pela estrada sob a luz dos faróis”.

Porém no dia em que Kathie mata Fisher, deixando-o com o cadáver para sofrer as consequências, e ele descobre que ela havia depositado os quarenta mil dólares  na sua conta bancária, Jeff fica arrasado. Ele lembra para Ann: “Eu não sentia pena dele, não estava zangado com ela, não estava nada”. Ao revê-la, junto de Whit, exclama indiferente: “Você é como uma folha que o vento carrega de uma sarjeta para outra”.

Todavia, mesmo depois desta cena, ainda ficamos sem saber se Jeff realmente ficou livre de sua paixão por Kathie, pois um grau de ambivalência permanece até o final do filme.

O diretor Jacques Tourneur e o diretor de fotografia Nicholas Musuraca, ex-colaboradores da série de horror de Val Lewton, eram especialmente capacitados para criar o jogo lírico e sensual de sombras que caracteriza o filme noir.

Em um entrosamento perfeito, Tourneur e Musuraca produziram imagens esplêndidas de interiores escuros dramaticamente iluminados, planos filmados de dia como se fossem de noite das praias do México e exteriores claros e meticulosos, muito bem integradas no todo atmosférico.

Tourneur teve ainda o mérito de fazer com que uma jovem inexperiente de 22 anos, Jane Greer, se transformasse em uma das mulheres fatais mais inesquecíveis, frágil e ameaçadora ao mesmo tempo, sensual e demoníaca.

No filme de Tay Garnett, O Destino Bate à Porta, tal como acontece em Pacto de Sangue, também baseado em um romance de James M. Cain, uma paixão adúltera leva ao assassinato do marido.

Andando ao acaso pelas estradas da Califórnia, Frank Chambers (John Garfield) chega a um pequeno restaurante à beira da rodovia e é imediatamente atraído por Cora (Lana Turner), a bela mulher de Nick Smith (Cecil Kellaway), um grego de meia díade, dono do estabelecimento.

Frank permanece no local como empregado e começa a namorar a jovem patroa. Cora convence Frank de que a única maneira de ficarem juntos é matar Nick e dar a impressão de acidente.

A primeira tentativa fracassa. Finalmente, em uma viagem a Santa Barbara, o crime é cometido. Porém Frank não consegue sair rapidamente do carro e mergulha no precipício com o marido morto, ferindo-se gravemente.

Enquanto se recupera no hospital, Frank é informado pelo promotor público (Leon Ames) de que Cora vai ser indiciada como autora do assassinato do marido, e é obrigado a assinar a queixa contra ela.

O caso não vai adiante por falta de provas. Frank e Cora casam-se. Seu relacionamento é complicado pela chantagem de um advogado inescrupuloso e por outros problemas, mas os dois se reconciliam.

Então, Cora morre em um acidente de carro e Frank é condenado à cadeira elétrica, pois o promotor encontrou uma carta que Cora havia escrito para ele antes de reconciliarem, contendo uma confissão do crime que ambos cometeram.

Durante o desenrolar da trama, o narrador / protagonista se descreve como uma vítima do poder sexual que Cora exercia sobre ele; porém, no final do filme, conclui que seus problemas surgiram por obra de um destino maligno e que sua condenação foi um castigo divino.

Frank, um rapaz “Cujos pés ficam coçando para ir a outros lugares”, vê-se um dia frente a frente com aquela mulher sensual e logo se atiram um nos braços do outro. Frank sugere que os dois fujam juntos; no entanto, Cora é ambiciosa. “Você me ama?”, ela pergunta. “Há uma coisa que podemos fazer, que resolveria tudo”. “Tal como rezar para que algo aconteça com o seu marido?”, diz ele. “Algo parecido”, responde Cora. “Naquele instante”, Frank recordaria depois, “eu deveria ter ido embora daquele lugar”.

Frank sente o nervosismo do ato de matar por duas vezes, porque a primeira tentativa foi malsucedida. Continua tenso durante o julgamento e mesmo depois da absolvição, pois o promotor, que sempre suspeitou dele, está sempre por perto, aguardando um descuido seu.

O relacionamento entre os amantes fica difícil, mas talvez possam ser felizes novamente. Cora e Frank vão à praia onde costumavam ir no tempo em que estavam apaixonados. Eles entram no mar e nadam além da rebentação, em direção ao horizonte. O oceano escuro sugere o perigo que os ameaça. “Já estamos muito longe”, diz um deles. O rancor e o espírito vingativo não existem mais em seus corações. Cora diz a Frank que, se ele não confia nela, pode voltar para a praia sem ela, porque esta cansada e não conseguirá chegar lá sozinha. Frank segura-a nos braços e voltam juntos. “Você tem certeza agora?”. “Tenho”. Eles entram no carro. “Quando  chegarmos em casa, nosso beijos serão de vida e não de morte”, diz ela.

Como mulher fatal, Cora Smith não é tão pérfida como a Phyllis Dietrichson de Pacto de Sangue, outra personagem de James M. Cain. É mais uma infeliz que, para fugir da pobreza, criou uma armadilha para si mesma, mas caiu em uma armadilha ainda maior. O casamento com Nick deixou-a entediada e carente: o romance com Frank causou a morte de ambos.

No momento  em que Frank vê o cartaz de oferta de emprego, já percebemos o risco que ele está correndo. E quando a câmera faz uma panorâmica vertical das pernas desnudas de Cora até o seu rosto angelical, ficamos sabendo que está perdido.

O diretor Tay Garnett conduziu com muita segurança o relato, ao longo do qual conjugam-se admiravelmente sexo, a violência e o suspense, surgindo várias cenas de real valor cinematográfico, entre elas, a aparição de Lana Turner vestida de bermuda e turbantes brancos, deixando cair o batom, que rola até os pés de John Garfield e a tensão dos minutos que antecedem a primeira tentativa de matar o marido, ouvindo-se a voz de Nick cantando, o miar do gato, o guarda que chega de bicicleta para conversar com Frank e o grito de Cora, quando o animal provoca o curto-circuito.

Mesmo não tendo um estilo visual expressionista na maior parte de sua duração, O Destino Bate à Porta é um filme noir perfeito, porque contém os elementos fundamentais: a estrutura narrativa complexa (retrospecto, narração na primeira pessoa / voz over), o tom deprimente e pessimista, o clima de corrupção, morte, angústia, loucura (o amor louco entre os amantes), fatalismo etc.

FILME NOIR III

Existem duas espécies de fontes do filme noir – uma literária, outra cinematográfica – e diversos fatores da realidade que, provavelmente, o pressionaram.

Sob o aspecto literário, o grande impacto sobre o filme noir foi o dos pulps magazines, notadamente a revista Black Mask, em cujas páginas floresceu a chamada escola hard-boiled de histórias de detetives, que os francêses denominaram “roman noir”. Em geral os pulps eram revistas impressas em papel barato, feito com fibra de polpa, vendidas a dez centavos ou um quarto de dólar. Começaram a ser publicadas na virada do século XX e atingiram maior popularidade entre 1930 e 1945, evoluindo de antologias de contos para revistas especializadas em gêneros como western, histórias fantásticas, de guerra, de detetive etc.

A primeira história de detetive foi Murders in the Rue Morgue, publicada em 1841, de autoria de Edgar Allan Poe, que introduziu a estrutura básica da narrativa policial: um crime aparentemente perfeito, vários suspeitos e, no final, a descoberta do culpado graças aos recursos espantosos de observação e raciocínio de um excêntrico detetive. O personagem de Poe, C. Auguste Dupin, analisa minuciosamente os fatos e chega à solução do enigma por meio de uma dedução brilhante e lógica impecável, antecipando o Sherlock Holmes de Conan Doyle, o Philo Vance de S. S. Van Dine ou o Hercule Poirot de Agatha Christie, para citar somente três entre outros autores, que continuaram seguindo a forma clássica.

Dashiell Hammett

Dashiell Hammett

Este modelo de investigador intelectualmente superdotado, de postura britânica mesmo quando não era inglês, que circula em ambientes sofisticados, dominou a ficção policial até os anos trinta, quando Dashiell Hammett revolucionou a substância e a forma do romance policial, inserindo-lhe ação, sexo, violência e escrevendo em uma prosa coloquial rápida e objetiva, tipicamente americana.

Interessando-se mais pela caracterização e atmosfera do que pela intriga, o autor colocou de lado o esquema artificial do quebra-cabeça e trouxe o crime para as ruas sórdidas da grande cidade, onde geralmente ocorre. Como disse Raymond Chandler no seu ensaio The Simple Art of Murder, devolveu o crime “ao tipo de pessoas que o cometem por alguma razão e não apenas para proporcionarem um cadáver ao leitor”.

Com Hammett, o romance policial humaniza-se, passa a ter como personagens seres de carne e osso – assassinos de aluguel, policiais corruptos, pequenos escroques, prostitutas, chantagistas, traficantes e detetives particulares que não são “máquinas pensantes”, mas homens normais; transforma-se então em roman noir. Vestido de capa impermeável e chapéu de feltro, fumante inveterado e beberrão, exprimindo-se em um dialeto lacônico e vulgar, seu herói mais famoso, Sam Spade, lançado em The Maltese Falcon, usa mais os punhos do que a cabeça, para realizar as investigações. É um hard-boiled, um tough guy, insolente e esquentado, aproveitando-se de espertezas quando necessário, mas cuja integridade moral não pode ser posta em  dúvida.

Raymond Chandler

Raymond Chandler

Foi também  da pulp fiction que emergiu Raymond Chandler, considerado o melhor escritor de histórias de detetive da literatura americana, aquele que trouxe para o gênero elegância, humor e profundidade. Verbalmente mais ousado do que Hammett, combinou a gíria do submundo com a expressão poética. Como escreveu Peter Wolfe em Something More Than Night: The Case of Raymond Chandler (Popular Press, 1985), Chandler produziu uma prosa sombriamente lírica , que transformou suas histórias em “metáforas do pesadelo urbano”. Ele colocou esses “pesadelos urbanos” no sul da Califórnia, onde  seu herói, Philip Marlowe, apresentado em The Big Sleep e reaparecendo em Farewell My Lovely e The Lady in the Lake, embrenha-se em uma selva de criaturas predatórias, obcecadas pela busca do poder e dinheiro, que procuram obter através da violência e da corrupção. Marlowe possui algumas das características de Sam Spade – atrevimento, sensualidade, inteligência e força física -, mas é mais culto e sentimental.

James M. Cain

James M. Cain

Os romances de James M. Cain também influenciaram o filme noir, porém ele focaliza mais o criminoso do que o investigador. Nas suas duas obras-primas Double Indemnity e The Postman Always rings Twice, desde o  início sabemos quem matou, pois são os criminosos que narram suas histórias. O suspense  decorre, não das tentativas de localização dos culpados, mas do exame de suas consciências enquanto nos contam como foram levados ao crime. Os protagonistas de Cain são pessoas comuns, que se deixam dominar pela paixão, cometendo os piores crimes em uma espécie de impulso irracional e estúpido. Ele descreveu seus romances como um tipo de tragédia americana, tratando da “força da circunstância”, que leva um indivíduo “à execução de um ato terrível”. Os textos de Hammett , Chandler e Cain inspiraram alguns dos melhores filmes noir, assim como os de Cornell Woolrich, o mais solicitado pelo cinema.

Cena de A Dama Fantasma

Cena de A Dama Fantasma

A obra de Woolrich, conhecido também pelos pseudônimos de William Irish e George Hopley, deu ensejo a Vida contra Vida / Street of Chance / 1942, A Dama Fantasma / Phantom Lady / 1944, Morte ao Amanhecer / Deadline at Dawn / 1946, Anjo Diabólico / Black Angel / 1946, A Senda do Temor / The Chase / 1946, Um Rosto no Espelho / Fear in the Night / 1947, A Noite tem Mil Olhos / Night Has a Thousand Eyes / 1948, Ninguém Crê em Mim / The Window / 1949, Pesadelo / Nightmare / 1956 etc.

Cornell Woolrich

Cornell Woolrich

São histórias vividas por gente banal e impregnadas de desespero, solidão e, eventualmente, de elementos fantásticos, nas quais se percebe a habilidade para criar uma atmosfera de inquietude e terror e, sobretudo, uma profunda sensibilidade noir. Nos romances de Woolrich, o mal está sempre presente e a fatalidade reduz a ação individual à insignificância. A cidade grande é um lugar triste, desolado, ameaçador; a paisagem noir definitiva pode “parecer familiar” e até humanizada à luz do dia, mas não consegue esconder sua malignidade após o anoitecer.

Como Bruce Crowther disse (Film Noir: Reflections in a Dark Mirror, Columbus Books, 1988), ninguém mais do que ele ajudou a estabelecer o clima do filme noir, que atraiu e inspirou numerosos realizadores. Seus relatos amargos de depravação humana prenunciam o trabalho dos romancistas posteriores, que expandiram as fronteiras da ficção tough guy em direções apenas insinuadas por esse autor imaginativo e prolífico.

Outros autores de origem pulp tiveram suas histórias transportadas para a tela, porém esses quatro foram os que mais contribuíram para a formação da temática noir.

Do ponto de vista cinematográfico, a fonte mais importante do filme noir foi o cinema expressionista alemão dos anos vinte. O Expressionismo, tendência artística afirmada com particular vigor na Alemanha nas primeiras décadas do século vinte, visava não mais reproduzir a impressão causada pelo mundo exterior no artista (como faziam os impressionistas), mas expressar as emoções íntimas do próprio artista no contato com as coisas da natureza. Diziam os expressionistas que era preciso libertar a “expressão mais expressiva” dos fatos e dos objetos.

Como escreveu Foster Hirsch (Film Noir: The Dark Side of the Screen, DaCapo, 1981), fiel somente à sua própria visão íntima, o artista expressionista cria transformações fantasmagóricas da realidade. Noite, morte, desordem psíquica, revolta social são os temas recorrentes da sensibilidade expressionista apocalíptica. A litogravura O Grito, do precursor norueguês Edvard Munch, com suas linhas incomodamente onduladas, é uma visão  fantástica de um sonho amargurado. Na frase feliz de Lotte Eisner em L’Ecran Démoniaque (Eric Losfeld, 1965), o expressionismo não vê, tem “visões”.

Cena de No Gabinete do Dr. Calegari

Cena de No Gabinete do Dr. Calegari

O movimento expressionista manifestou-se na pintura, literatura, música, teatro etc. e também no cinema, onde se desenvolveu um estilo visual, que serviu  para simbolizar, através da abstração, da deformação e da estilização, os dramas infiltrados de morbidez e fatalismo, tão do agrado dos alemães conforme a tradição romântica. No cinema, esse estilo atingiu o paroxismo no filme No Gabinete do Dr. Calegari / Das Kabinett des Dr. Caligari / 1919 (Dir: Robert Wiene), no qual a história de um louco, contada por ele mesmo, recebeu um tratamento alucinatório – cenários com formas distorcidas enfatizando o fantástico e o grotesco; trajes, maquilagem e interpretações exageradas – que traduzia simbolicamente o desequilibrio mental do protagonista e cumpria o que fora proclamado pelo cenógrafo Hermann Warm: “os filmes devem ser pinturas vivas”.

Cena de Os Nibelungos

Cena de Os Nibelungos

Outras obras fundamentais como Os Nibelungos / Die Nibelungen / 1923-4 e Metrópolis / Metropolis / 1926 de Fritz Lang, Lobishomem / Nosferatu, eine Symphonie des Grauens / 1923-24 de F. W. Murnau ou Figuras de Cera / Das Wachsfigurenkabinett / 1924 de Paul Leni, não foram tão radicais quanto Caligari e, simultaneamente, evoluiu um expressionismo “realista” , chamado de Kammerspiel (Drama de Câmara ou Intimista), cujos filmes – destacando-se os de Lupu Pick (Scherben / 1921, Sylvester / 1923, E.A. Dupont (Varieté ou Mulher, Por Quê Tentas o Mundo? / Varieté / 1924 e Murnau (A Última Gargalhada / Der letzte Mann / 1924 – aproximaram-se da realidade, que era então invadida por elementos expressionistas.

No que diz respeito ao cinema de Hollywood – onde, a partir de 1927, começaram a chegar Murnau, Leni, Dupont, Karl Freund (o diretor de fotografia de Metrópolis e A Última Gargalhada), William Dieterle, Edgar G. Ulmer e outros contemporâneos do movimento expressionista – o Caligarismo, atenuado ou combinado com a realidade, influenciou grandes diretores como Josef von Sternberg (Paixão e Sangue / Underworld / 1927, John Ford (O Delator / The Informer / 1935, Orson Welles (Cidadão Kane / Citizen Kane / 1941 etc. e os filmes de horror.

Cena de O Gato e o Canário

Cena de O Gato e o Canário

Inicialmente, os filmes de horror da Universal – O Gato e o Canário / The Cat and the Canary / 1927, A Última Ameaça / The Last Warning / 1929 (Dir: Paul Leni), Drácula / Dracula / 1931 (Dir: Tod Browning), Frankenstein / Frankenstein / 1931, A Noiva de Frankenstein / Bride of Frankenstein / 1935 (Dir: James Whale), A Múmia / The Mummy / 1932 e Dr. Gogol, o Médico Louco / Mad Love / 1935 (Dir: Karl Freund), Assassinatos na Rua Morgue / Murders in the Rue Morgue / 1932 (Dir: Robert Florey), O Gato Preto / The Black Cat / 1934 (Dir: Edgar G. Ulmer) etc. – ; depois, a série da RKO produzida por Val Lewton – Sangue de Pantera / Cat People / 1942, O Homem Leopardo / The Leopard Man / 1943, A Morta-Viva / I Walked with a Zombie / 1943 (Dir: Jacques Tourneur), A Sétima Vítima / The Seventh Victim / 1943, A Ilha dos Mortos / Isle of Dead / 1945, Asilo Sinistro / Bedlam / 1946 (Dir: Mark Robson), O Túmulo Vazio / The Body Snatcher / 1945 (Dir: Robert Wise) etc. – que usaram as técnicas expressionistas para criar uma atmosfera de ameaça e pavor.

Cena de O Homem Leopardo

Cena de O Homem Leopardo

Cena de A Sétima Vítima

Cena de A Sétima Vítima

Cena de Asilo Sinistro

Cena de Asilo Sinistro

Novos emigrados, ou melhor, exilados, porque eram refugiados do nazismo – Fritz Lang, Robert Siodmak, Billy Wilder, Otto Preminger, Fred Zinnemann, John Brahm etc. – perceberam que o estilo germânico proporcionava uma iconografia apropriada para a visão dark dos dramas criminais dos anos quarenta, noção compartilhada por outros realizadores (v. g. Edward Dmytryk, John Cromwell, Anthony Mann, John Farrow, Rudolph Maté etc.). Por outro lado, o racionamento de luzes, eletricidade e filme virgem e a necessidade de reciclar cenários e adereços durante a guerra, encorajou o uso da iluminação em low key e de uma decoração parcimoniosa.

Cena de Até a Vista, Querida

Cena de Até a Vista, Querida

Os vestígios do expressionismo nos filmes noirs aparecem não só nos personagens neuróticos e aflitos, no clima de penumbra e insânia, como também nas sequências de pesadelo quando, por alguns instantes, o filme se torna abertamente subjetivo, mostrando fragmentos do que se passa na mente desordenada do herói. Por exemplo, o delírio de Marlowe / Dick Powell, drogado à força em Até à Vista Querida. Quando leva uma pancada na cabeça, a voz over do detetive recorda como “um poço negro se abriu diante de meus pés. Caí nele.  Não tinha fundo” e, ao mesmo tempo, uma mancha preta inunda a tela escurecendo a cena. Em outro instante, ao acordar do torpor provocado pela droga, ele fala de uma fumaça e de uma “teia tecida por mil aranhas”, que obscurecem sua visão enquanto o observamos através de um vidro embaciado. Um pouco adiante, estica as mãos em direção à câmera, e vemos seus dedos deformados, parecendo “uma penca de bananas com jeito de dedos”.

O Realismo Poético também costuma  ser lembrado como uma fonte do filme noir. A expressão pertenceu inicialmente à crítica literária, usada por Jean Paulham, editor da prestigiosa La Nouvelle Revue Française, ao comentar La Rue Sans Nom, romance de Marcel Aymé de 1929 sobre um grupo de seres esquecidos que definha nas ruas escuras dos subúrbios de Paris. Quando o cineasta Pierre Chenal levou o livro para a tela em 1933, Michel Gorel, crítico da revista Cinémonde, declarou: “Esse filme, a meu ver, inaugura um gênero inteiramente novo no cinema francês: o realismo poético”.

Cena de Cais das Sombras

Cena de Cais das Sombras

A partir de então, o termo foi usado para caracterizar um grupo de filmes francêses, realizados entre 1934 e 1939 (vg. A Última Cartada / Le Grand Jeu / 1934, Pensão Mimosas (TV) / Pension Mimosas / 1935 de Jacques Feyder; Hotel do Norte / Hotel du Nord / 1938, Cais das Sombras / Quai des Brumes / 1938, Trágico Amanhecer / Le Jour se Lève / 1939 de Marcel Carné; A Bandeira / La Bandera / 1935, O Demônio da Argélia / Pepé le Moko / 1936, Camaradas / La Belle Equipe / 1936 de Julien Duvivier; A Bêsta Humana / La Bête Humaine / 1938  de Jean Renoir; Gula de Amor / Gueule d’Amour / 1927, Águas Tempestuosas / Remorques / 1939-41 de Jean Grémillon; Paixão Criminosa / Le Dernier Tournant / 1939 de Pierre Chenal etc.), que criavam um mundo maravilhosamente poético , mas com impressão de realidade.

Eles possuem em comum o fato de terem sido escritos por roteiristas poetas como Jacques Prévert, Charles Spaak, Henri Jeanson; fotografados por virtuosos do claro-escuro, herdeiros do expressionismo alemão, como Curt Courant, Jules Kruger, Eugen Schüfftan; ambientados em cenários construídos por diretores de arte ilustres como Alexander Trauner, Lazare Meerson, Georges Wakhévitch, interpretados por Jean Gabin, herói trágico por excelência.

Cena de Trágico Amanhecer

Cena de Trágico Amanhecer

Os personagens principais desses filmes são os marginais, os excluídos, cuja única opção é escolher entre o exílio e a morte. Se eles encontram o amor no seu caminho, é para perdê-lo, ao virar a esquina de uma vida fracassada, colocada inteiramente sob o signo de um destino funesto. Uma existência cujo cenário é o das cidades desumanas, dos portos inundados de brumas, dos hotéis cheios de traças, dos desertos longínquos, onde as pessoas se perdem ou exalam o seu último suspiro.

Como esse “cinema do desencanto” estava impregnado de um sentimento de amargura e fatalismo e de uma atmosfera sombria e melancólica, que desempenhava um papel essencial na ação, imputaram-lhe influência sobre os realizadores dos filmes noir; porém o mais provável é que estes tenham se inspirado diretamente no cinema da República de Weimar.

Cena de Cidade Nua

Cena de Cidade Nua

Ao contrário do que pensam alguns autores, o neo-realismo não pode ser considerado fonte do filme noir , porque o primeiro filme noir apareceu em 1941 e o neo-realismo surgiu no pós-guerra. Apenas, nos anos cinquenta, a nova maneira de filmar dos realizadores do movimento italiano foi sendo notada em alguns filmes americanos produzidos por Louis de de Rochemont (responsável pela famosa série A Marcha do Tempo / The March of Time / 1935-1951). O método Rochemont – filmagem em locações reais, eventual presença de um narrador em voz off, tom de reportagem, som direto – infiltrou-se em alguns filmes noirs (v. g.  Sublime Devoção / Call Northside  777 / 1948, Cidade Nua / The Naked City / 1948) sem, no entanto, reprimir as tendências expressionistas que continuaram bem visíveis em outros (v. g. Moeda Falsa / T-Men / 1947, Mercado Humano / Border Incident / 1949).

Cena de Moeda Falsa

Cena de Moeda Falsa

Vários aspectos da sociedade e da cultura no pós-Segunda Guerra Mundial podem ter fomentado a depressão e o  desespero da visão noir.

A desilusão de todo um povo ao se encerrar o grande conflito mundial, principalmente por parte dos que haviam lutado nos campos de batalha e tinham dificuldade em se readaptar  à vida civil, explicaria a angústia  dos protagonistas  dos filmes noir. Um tema recorrente é o do soldado que retorna da guerra, desorientado e indefeso, embrenhando-se em um mundo hostil para vingar um amigo (v. g. Do Lodo Brotou uma Flor / Ride the Pink Horse / 1947) ou se defender de uma acusação falsa (v. g. A Dália Azul / The Blue Dahlia / 1946).

Cena de Do Lodo Brotou uma Flor

Cena de Do Lodo Brotou uma Flor

O veterano desajustado foi depois substituido pelo policial velhaco, que pode ter uma noção de decência básica, o que significa que ele tenta se corrigir como Johnny Kelly / Gig Young) em A Cidade que não Dorme / City That Never Sleeps / 1953 ou pode ter se corrompido irremediavelmente como Webb Garwood / Van Heflin em Cúmplice das Sombras / The Prowler / 1951, Paul Sheridan / Fred MacMurray em  A Morte Espera no 322 / Pushover / 1954  ou Carl Bruner / Steve Cochran em Dinheiro Maldito / Private Hell 36 / 1954.

Cena de A Cidade que nunca Dorme

Cena de A Cidade que nunca Dorme

Cena de Cúmplice das Sombras

Cena de Cúmplice das Sombras

Cena de A Morte Espera no 322

Cena de A Morte Espera no 322

Cena de Dinheiro Maldito

Cena de Dinheiro Maldito

Um terceiro grupo, torna-se violentamente instável através do seu contato com criminosos, que eles desprezam incontrolavelmente: v. g. Mark Dixon / Dana Andrews em Passos na Noite / Where the Sidewalk Ends / 1950 ou Jim Wilson / Robert Ryan em Cinzas que Queimam / On Dangerous Ground / 1952.

Cena de Passos na Noite

Cena de Passos na Noite

Cena de Cinzas que Queimam

Cena de Cinzas que Queimam

O medo e a insegurança reestimulados pela Guerra fria e pelo McCarthismo justificariam a paranoia constantemente refletida nos enredos. A Morte num Beijo / Kiss Me Deadly / 1955, sugere o perigo nuclear que suscitou aqueles sentimentos na década de cinquenta. O filme termina com uma explosão atômica inesquecível e apocalíptica.

Cena de A Morte num Beijo

Cena de A Morte num Beijo

A desconfiança dos homens em relação à mulheres que foram encorajadas a cumprir seu “dever patriótico”, prestando serviço nas fábricas de armamentos, tornando-se independentes econômica e sexualmente, bem como o receio de sua concorrência no mercado do trabalho, seriam responsáveis pela misoginia percebida no tratamento das personagens femininas. Vulgar e autoritária, com traços fisionômicos que de certo ângulo lembram os de um abutre, ávida e feroz, a Vera de Curva do Destino / Detour /1945 parece uma daquelas harpias da mitologia grega. Creio que é a mulher fatal mais desprezível que já apareceu na tela.

Cena de Capitulou Sorrindo

Cena de Capitulou Sorrindo

Cena de O Beijo da Morte

Cena de O Beijo da Morte

A revelação por meio dos cine-jornais das atrocidades cometidas durante o conflito armado teria suscitado a curiosidade e até o apetite pela violência. Muitos momentos noir antológicos são lembrados por causa de sua brutalidade sem precedentes como, por exemplo, quando Ed Beaumont / Alan Ladd é brutalmente espancado por Jeff / William Bendix, um dos capangas do seu patrão em Capitulou Sorrindo / The Glass Key / 1942 ou quando a velha paralítica amarrada na cadeira de rodas é jogada escada abaixo pelo assassino perverso Tom Udo / Richard Widmark em O Beijo da Morte / Kiss of Death / 1947.

A vulgarização da psicanálise no pós-guerra pode ter preparado o público  para o insólito e a ambivalência dos filmes noir; por influência das idéias freudianas, os ímpetos criminais passaram a ser “personalizados”, isto é, gerados subjetivamente , em vez de serem enquadrados como um “problema social”. No filme noir, um trauma de infância torna-se a causa de um comportamento criminoso.

Cena de Fúria Sanguinária

Cena de Fúria Sanguinária

Os filmes noir realçam mais as motivações e as repercussões psicológicas do ato criminoso; sente-se que os protagonistas não estão totalmente no controle de suas ações, mas sob o domínio  de impulsos interiores e obscuros. O instinto criminoso de Cody Jarrett / James Cagney em Fúria Sanguinária / White Heat / 1949, não é o subproduto de um sistema social, mas de uma herança familiar. O pai e o irmão morreram em um hospital psiquiátrico e ele é dominado pela mãe, que o incita  a conquistar “o tôpo do mundo”, orientando-lhe, e lhe servindo de enfermeira nas suas crises encefálicas. O assassino psicótico Philip Raven / Alan Ladd de Alma Torturada / This Gun for Hire / 1942 é obcecado por um sonho recorrente , no qual se vê esfaqueando a tia que batera nele quando criança e o queimara com um ferro em brasa., deformando-lhe o pulso.

Cena de Relíquia Macabra

Cena de Relíquia Macabra

Parece evidente também a afinidade do filme noir com os aspectos negativos (a falta de sentido da vida e a alienação do homem) da filosofia existencialista, cuja vertente francêsa foi popularizada na América  após a Segunda Guerra Mundial pela obra de Jean Paul Sartre e Albert Camus, absorvida pelos autores da escola hard-boiled de histórias de detetive. Como assinala  Jean Copjec (no artigo The Phenomenal Nonphenomenal: Private Space in Film Noir, constante da coletânea Shades of Noir, Verso, 1993), a problemática do dever e da responsabilidade, tão crucial para o existencialismo, é igualmente básica para o filme noir. Basta lembrar o código moral de Sam Spade na repulsa final a Brigid O’ Shaughnessy / Mary Astor em Relíquia Macabra / The Maltese Falcon / 1941.