Prossigo apontando mais cinco obras-primas do filme noir puro: À Beira do Abismo, Assassinos, Baixeza, A Dama de Shanghai e A Morte num Beijo.
À Beira do Abismo / The Big Sleep / 1946 é um verdadeiro clássico do filme noir, resumindo suas leis essenciais.
Chamado à mansão do general Sternwood (Charles Waldron), o detetive particular Philip Marlowe (Humphrey Bogart) é contratado para livrá-lo de um chantagista chamado Geiger (Theodore Von Eltz) e conhece as duas filhas do general, Carmen (Martha Vickers) e Vivian (Lauren Bacall).
Seguindo as pistas até a residência de Geiger, Marlowe ouve o barulho de tiros e vê dois carros saindo do local. Ao entrar na casa, encontra Geiger morto, Carmen drogada e uma máquina fotográfica escondida dentro de uma estatueta. Antes de a polícia chegar, Marlowe leva Carmen de volta para casa, deixando-a sob os cuidados de Vivian. Esta lhe fala sobre uma possível ligação entre duas pessoas desaparecidas: Mona Mars (Peggy Knudsen), a mulher do gângster Eddie Mars (John Ridgley), dono de um cassino, e o amigo confidente do general, Sean Regan.
Ignorando a sugestão de Vivian para que abandone o caso, Marlowe fica sabendo que um outro homem, tendo uma mulher como cúmplice, tentou chantagear Carmen. Isto leva a uma confrontação entre Marlowe, Vivian e Carmen alcoolizada com um casal de empregados de Geiger, Joe Brody (Louis Jean Heydt) e Agnes (Sonia Darrin), que agora estão de posse dos arquivos do patrão. Marlowe ameaça implicar Brody na morte de Geiger a menos que ele conte tudo o que sabe; porém, antes disso, Brody é morto.
Marlowe procura Eddie e, na visita ao cassino, descobre que Vivian é frequentadora do local. Eddie, que é o proprietário, da casa de Geiger e já havia advertido Marlowe de que deveria parar com a investigação, recusa-se a discutir o assunto delicado do relacionamento entre sua mulher e Sean Regan.
Quando Marlowe parece estar num beco sem saída, recebe a visita de Harry Jones (Elisha Cook, Jr.), o novo namorado de Agnes. Harry diz que Agnes descobriu onde Mona está escondida e quer dinheiro para revelar o endereço. Ao chegar ao local onde marcou encontro com Harry, para lhe entregar a quantia pedida, Marlowe vê que ele está sendo interrogado por um capanga de Eddie, Canino (Bob Steele). Canino dá um copo com veneno para Harry e ele morre, sem trair Agnes.
Marlowe porém consegue falar com Agnes e a informação que esta lhe dá o conduz a um rancho afastado da cidade. Ao estacionar em uma garagem próxima, simulando um defeito no carro, Marlowe é capturado pelos capangas de Eddie e levado ao rancho onde encontra Mona e Vivian. Percebendo que seus esforços para defender a irmã podem causar a morte de Marlowe, Vivian liberta o detetive. Marlowe pega uma arma no carro e mata Canino. Depois, ele e Vivian marcam um encontro com Eddie na casa de Geiger.
Pensando que Marlowe e Vivian telefonaram do seu rancho, Eddie vai para lá a fim de armar uma emboscada, mas encontra Marlowe esperando por ele. Após Eddie confessar que Carmen matou Regan por ciúmes e que ele era o chefe de Geiger, Marlowe dá alguns tiros e o obriga a sair pela porta da frente, onde é alvejado pelos seus próprios homens.
O enredo é muito complicado (segundo consta, até o autor do romance, Raymond Chandler, foi incapaz de responder a uma pergunta sobre a trama) e se desenvolve em ritmo veloz, forçando o espectador a assimilar os fatos e avaliar as situações rapidamente, para não ficar confuso. Mesmo depois que o filme termina, ficam faltando algumas peças do quebra-cabeça. Por exemplo, os dois carros que saem em disparada da casa de Geiger após o assassinato deste, eram guiados por Owen Taylor (Dan Wallace), o motorista do general, apaixonado por Carmen e Joe Brody respectivamente? Quem matou Owen? A chantagem dizia respeito também a fotos pornográficas de Carmen? etc.
Algumas explicações suplementares ou um retrospecto teriam sido suficientes para introduzir algumas claridade na intriga, porém o diretor Howard Hawks não se preocupou com isso, porque sua intenção primordial, como ele próprio declarou, era fazer com que cada cena, por si mesma, se tornasse a mais divertida possível.
Muitos momentos atraentes realimente ficam na nossa memória: o primeiro encontro de Marlowe com as irmãs Sternwood, Carmen tentando seduzí-lo … à primeira vista; o assassinato por envenenamento do patético Harry Jones; Vivian cantando “And her tears flowed like wine …”; o climático tiroteio no final; e, melhor do que todas, é claro, a cena da livraria, quando Marlowe sugere um drinque e a atendente (Dorothy Malone) com aparência de intelectual desce as cortinas e fecha a porta, com uma tabuleta do lado de fora que diz Fechado.
Uma das alterações feitas pela adaptação diz respeito à misoginia do herói. Na obra original, Marlowe repele ambas as irmãs Sternwood, porém no filme fica com Vivian: “O que há com você?”, pergunta ele. “Nada que não possa consertar”, diz ela. A sensualidade emerge em todos os encontros de Marlowe com as mulheres e nos diálogos que a censura deixou passar por causa do emprego das palavras no sentido figurado como estas metáforas turfísticas:
Marlowe – Falando de cavalos … você tem um toque de classe, mas não sei até onde pode chegar.
Vivian – Depende muito de quem monta na sela. Vai em frente Marlowe. Gosto muito do jeito como você trabalha.
O fascínio do espetáculo não está na sua história, mas sim na atmosfera de mistério, no erotismo, nos duelos verbais insolentes e, como pretendeu Hawks, na qualidade de cada cena. Não sabemos quem são os assassinos, quem é aliado de quem, quem fala a verdade e quem mente ou porque certas pessoas estão em determinado lugar em um determinado momento. Cada nome, cada situação é um enigma e a proposta dos roteiristas não é a de solucioná-los, mas incrementar ainda mais o clima de suspeita e incerteza.
Contratado pelo general para acabar com a chantagem, Marlowe não sabe qual o seu verdadeiro motivo. Todo mundo esconde isso dele, inclusive Vivian, que quer proteger a irmã a qualquer preço. Após seu primeiro sucesso, Vivian paga pelo serviço prestado e o despede. Mas o dinheiro não o satisfaz. Ele enfrenta todos os desafios, ameaças e mortes, chegando até o fim de sua investigação. Por amor? Porque gosta de ação? Ou simplesmente para testar sua incorruptibilidade?
Marlowe continua na sua busca da verdade por três motivos. Porque quer provar a si mesmo que não sente o odor da corrupção, porque se apaixonou por Vivian e, tal como os heróis típicos de Hawks, porque é um homem que age, e o que vale é o seu esforço e sua luta.
O preceito de Assassinos / The Killers / 1946 é o de que a ambição pelo dinheiro leva à corrupção e à morte.
Uma dupla de assassinos de aluguel, Max (William Conrad) e Al (Charles McGraw) chegam à pequena cidade de Brentwood, New Jersey, à procura de Pete Lund cujo nome verdadeiro é Ole Andreson. Conhecido como Sueco (Burt Lancaster), ele trabalha em um posto de gasolina. Eles o encontram aguardando-os silenciosamente em um quarto escuro, e não oferece resistência.
Ao saber das circunstâncias em que o crime foi cometido, Jim Riordan (Edmond O’Brien), investigador da companhia de seguros responsável pelo pagamento da indenização à beneficária do falecido – a arrumadeira de um hotel onde o “Sueco” havia se escondido usando o nome de Nelson -, quer descobrir porque a vítima deixou-se matar mansamente pelos dois facínoras.
Sua investigação leva-o ao encontro de várias pessoas que conhecem o passado do Sueco: o detetive Lubinsly (Sam Levene), sua esposa Lilly (Virginia Gilmore) e Charleston (Vince Barnett), um ex-presidiário. Através desses depoimentos, fica sabendo que o Sueco foi obrigado a encerrar a carreira de pugilista por ter quebrado a mão em uma luta e, incitado por uma bela mulher, Kitty Collins (Ava Gardner), se uniu a um bando de ladrões liderados pelo amante dela, Big jim Colfax (Albert Dekker).
Riordan localiza os outros componentes da quadrilha, Blanky (Jeff Corey) e Dum Dum (Jack Lambert) e, finalmente, chega à Colfax e Kitty, desvendando todo o mistério: como Kitty fez o Sueco passar por traidor do grupo após um assalto enquanto ela e o amante fugiram com o dinheiro roubado, e como, anos depois, Kitty e Colfax contrataram os pistoleiros para matar o Sueco por medida de segurança.
Desenvolvendo o conto de Ernst Hemingway (publicado em 1927 em uma coletânea intitulada Men Without Women), o filme procura decifrar o enigma da resignação existencial do Sueco, como ele perdeu a vontade de viver. Por intermédio de onze retrospectos acronológicos e com uma obsessão pessoal que excede os interesses da companhia de seguros, Riordan vai descobrindo porque aquele homem abraçou a morte com indiferença. Os testemunhos das pessoas que o conheceram no passado se completam uns aos outros e o obstinado investigador vai reconstituindo, como um mosaico, o seu destino trágico.
O prólogo – que corresponde exatamente ao conto – é conduzido, com admirável precisão cinematográfica, em um clima sombrio e de violência fria criado pela interpretação seca dos atores que formam a dupla de assassinos, pelos diálogos curtos e diretos e pela iluminação claro-escuro combinada com a profundidade de campo, angulações em câmera alta e baixa e um fundo musical de alta tensão. Deitado na cama no quarto escuro, o condenado aguarda impassível a chegada dos assassinos. Até que ouve o barulho de passos na escada e percebe um raio de luz infiltrando-se por debaixo da porta. Após alguns segundos de silêncio, a porta se abre brutalmente, iluminando o rosto angustiado do Sueco, e os dois algozes descarregam suas armas sobre ele.
No primeiro retrospecto, Nick (Phil Brown), um rapaz que trabalhava na lanchonete, conta a Riordan que, uma semana atrás, o Sueco reconheceu um cliente em um cadillac negro. Depois, disse que estava doente e não voltou mais ao trabalho. No segundo, Riordan procura a beneficiária do seguro, Mary Ellen Daugherty (Queenie Smith) em Atlantic City e esta lhe conta que, uma tarde, ouviu o Sueco gritando, “Ela foi embora! Ela foi embora! Charleston tinha razão!”. Mary entrou no quarto onde ele, como um louco, estava quebrando os móveis, e o impediu de se atirar pela janela.
Em Filadélfia, o detetive Lubinsky explica para Riordan – terceiro retrospecto – porque o Sueco abandonou sua carreira promissora de boxeador depois de levar uma surra do adversário, e ter quebrado todos ossos de sua mão direita. A esposa de Lubinsky, Lilly, antiga namorada do Sueco, revela, em um quarto retrospecto, o encontro fatal do ex-pugilista com Kitty em uma festa no luxuoso apartamento de seu amante. Quando o Sueco entra, Kitty está apoiada no piano com um copo na mão; o vestido longo de cetim preto, os ombros cobertos por sua cabeleira negra, as luvas pretas cobrindo seus antebraços, toda a sua aparência de um erotismo refinado, é a própria imagem da sedução. Enquanto ela canta “The More I Know Of Love”, uma lâmpada em forma de vela (espécie de símbolo fálico inflamado), os separa, criando uma composição visual muito evocativa da paixão devastadora que arrastará o Sueco para a morte.
Em um quinto retrospecto, Lubinsky lembra um dos últimos encontros com o Sueco em um restaurante, quando ele se preparava para prender Kitty, suspeita de ter roubado uma jóia de grande valor. Aí aparece o Sueco, assume a culpa por Kitty, e Lubinsky é obrigado a prendê-lo. No enterro do Sueco, comparece seu antigo companheiro de cela, Charleston, e vem um sexto retrospecto, um tanto lírico. Charleston dá uma lição de astronomia para o Sueco, mostrando as estrelas que ele observa através das grades enquanto seu companheiro, tendo na mão o lenço de Kitty com desenhos de harpas, recorda-se de sua amada. No decorrer do sétimo retrospecto, Charleston descreve a reunião para preparar o assalto. O Sueco concorda em participar. Charleston se retira e o aconselha a não “ouvir o som das harpas”.
Riordan prossegue sua investigação na biblioteca municipal, onde examina velhos jornais, Durante a leitura da matéria, aparecem – oitavo retrospecto – as peripécias do audacioso assalto a uma fábrica de chapéus em New Jersey. Para acentuar o caráter jornalístico desta sequência, o diretor Robert Siodmak filmou-a sem cortes, em um só movimento de grua apanhando em câmera alta os mínimos detalhes do roubo.
O nono e o décimo restrospectos dizem respeito às lembranças de Blanky, que Riordan encontra moribundo em um hospital. No seu delírio, Blanky se reporta a uma desavença entre o Sueco e Colfax durante um jogo de pôquer e à partilha do roubo, quando o Sueco rende todo mundo e foge com o dinheiro.
Riordan compreende que Blanky foi morto por um outro membro da quadrilha, Dum Dum, e o surpreende no quarto do Sueco em Brentwood. Graças às suas informações, localiza Colfax, que se tornou um cidadão respeitável em Pittsburg, e finalmente Kitty, que lhe revela, no décimo primeiro e último retrospecto, como persuadiu o Sueco a fugir com ela.
Kitty está casada com Colfax; o Sueco foi apenas um instrumento para iludir o resto do bando; porém Dum Dum também descobriu o logro; Riordan chega na casa de Colfax, acompanhado por Lubinsly e outros policiais, no momento em que ocorre o tiroteio entre Dum Dum e Colfax.
Um travelling lateral da direita do patamar da escada mostra, atrás de um balaústre iluminado na melhor tradição expressionista, o cadáver de Dum Dum e depois, estendido sobre alguns degraus, Colfax agonizando. Kitty agarra-se ao pescoço de Colfax e suplica histérica : “Diga a eles que eu não sabia de nada”, mas Colfax finge que não ouve, e morre com um cigarro nos lábios contraídos pela dor.
Todo o filme é marcado por lances de violência e sadismo (a luta de boxe, o primeiro plano da mão deformada; as balas dos assassinos que “rasgam o corpo do Sueco; Blanky, um “morto que ainda respira”; o banho de sangue no confronto final entre Dum Dum e Colfax etc.) e pela tendência do herói para a autodestruição, em uma mistura de ingenuidade e masoquismo.
E há também o caráter fetichista do amor do Sueco por Kitty, não só na sua idealização romântica desta mulher, como na maneira pela qual ele acariciava o lenço de seda que ela lhe deu – a única coisa que ainda possuía, quando se entregou passivamente aos seus executores.
Baixeza / Criss Cross / 1949, é um drama criminal com um estudo psicológico magistral sobre o aviltamento de um homem fraco e apaixonado e, sem dúvida, o filme noir mais trágico de todos.
Steve Thompson (Burt Lancaster) retorna a Los Angeles apos ter viajado por todo o país, para esquecer Anna (Yvonne De Carlo), sua ex-mulher. Ainda obcecado por ela, Steve vai à boate que costumavam frequentar. Fica surpreso ao vê-la na pista de dança e percebe seu relacionamento com Slim Dundee (Dan Duryea), um gângster. Encorajado por Anna, e apesar das advertências por parte de seus familiares e do amigo detetive, Pete Ramirez (Stephen MacNally), Steve começa a se aproximar de novo da ex-mulher.
Um dia, Anna desaparece. O garçom da boate informa Steve de que ela está em Yuma e se casou com Dundee. Seis meses mais tarde, Steve avista Anna na estação ferroviária, onde acabara de se despedir de Dundee. Anna diz que se casou com Dundee devido à hostilidade de sua família e porque Ramirez ameaçou prendê-la, se não saísse da cidade. Conta também que Dundee costuma bater nela, mostrando as marcas de ferimentos nas costas.
Dundee surpreende-os na casa de Steve e este improvisa uma explicação: diz que tem planos para roubar a empresa de transporte de valores em que trabalha e pede auxílio de Dundee. Combinam que o dinheiro roubado ficará com Anna, até que possam se encontrar, para repartí-lo. Steve pretende pegar sua parte e fugir com Anna. Dundee planeja matar Steve durante o roubo.
No decorrer do assalto, o velho Pop (Griff Burnett), companheiro de Steve no carro-forte, é morto. Steve reage e, apesar de ferido, consegue recuperar metade do dinheiro, passando por herói. Dundee manda raptar Steve no hospital, pois quer saber do paradeiro de Anna. Steve consegue subornar seu raptor para que o leve até a cabana perto do mar em Palos Verdes, onde Anna está escondida. Aterrorizada com a presença de Steve, pois sabe que Dundee virá atrás deles, a jovem se prepara para abandoná-lo, ferido e amargurado. Antes que possa partir, levando o dinheiro consigo, Dundee chega. Ele mata Steve e Anna. Ao sair para fora da casa, ouve o som das sirenes dos carros da polícia que se aproximam
O filme começa de uma maneira bastante original. A câmera sobrevoa o aeroporto de Los Angeles todo iluminado, vai descendo como um pássaro, e depois parte em direção a Steve e Anna, que se abraçam entre dois carros na escuridão de um estacionamento. O espectador é introduzido repentinamente no curso da ação, tomando logo conhecimento do triângulo amoroso (“Dei uma fugida, enquanto ele estava dançando”… “É melhor voltar, antes que ele comece a procurar por você”.. “Depois que tudo acabar e nós estivermos seguros, seremos só eu e você. Do jeito que deveria ter sido desde o princípio”), que é a chave de todo o drama. No dia seguinte, Steve dirige o carro-forte para San Raphaelo, onde vai ocorrer o assalto e, durante o percurso de quarenta minutos, recorda o passado.
O diretor Robert Siodmak soube dominar um enredo de estrutura complexa e criar esplêndida atmosfera e de amargura e fatalismo, complementando muitas vezes a narração na primeira pessoa com uma quantidade de planos subjetivos que acentuam alguns pontos temáticos muito importantes. Por exemplo, a solidão de Steve é expressa em uma tomada na qual surpreende o irmão beijando a noiva, ambos vistos do ponto de vista dele, sentado no sofá da sala de visita.
Mais tarde, Siodmak usa inúmeros planos subjetivos para obrigar a platéia a participar da situação aflitiva e de suspense do protagonista, aguardando a vingança de Dundee. Imobilizado na cama do hospital, Steve percebe, pela porta entreaberta, a presença de um homem no corredor. A enfermeira lhe diz que ele é um visitante, chamado Nelson. Steve manda chamá-lo. Nelson (Robert Osterloh) se apresenta como caixeiro-viajante e diz que sua mulher foi ferida num acidente. Steve pede-lhe que passe a noite com ele. Nelson senta-se dentro do quarto e parece que vai adormecer. Assim que a enfermeira sai, ele se levanta, vai ao corredor, e volta com uma cadeira de rodas. Aproximando-se do leito, acorda Steve e se identifica como mensageiro de Dundee. Corta as cordas do contrapeso que sustenta o braço engessado de Steve e a imagem sai de foco, sugerindo seu desmaio.
No seu retorno a Los Angeles, Steve tenta enganar aos próximos, e a si mesmo, de que já se libertou da ex-mulher, mas ali está ele, triste e desamparado, procurando por ela na boate, onde sabe que vai acabar a encontrando. Até que o desejo se concretiza em uma sequência notável, que mostra toda a fascinação que Anna exerce sobre ele: Steve entra no Rondo Club. Vemos os pares dançando uma rumba executada pela orquestra de Esy Morales. Esy tocando sua flauta travessa., Anna rodopiando na pista, linda e sensual, outro plano de Esy e, finalmente, Steve, em plano americano – e depois em primeiríssimo, durante o intercutting -, inteiramente subjugado.
Steve confunde sua própria passividade com as maquinações do destino. “Estava escrito nas cartas ou foi o destino, ou o azar, ou o que você quiser”, diz ele no começo do retrospecto. “Estava nas cartas, e não havia como impedí-lo”, conforma-se, quando recebe a notícia do casamento de Anna. É a convenção noir do homem vítima de um destino inexorável. Porém, na realidade, o destino não teve nada a ver com os problemas de Steve. Podem ter ocorrido certas coincidências, mas significaram muito pouco. Não foi o destino que fez Steve perder sua força de vontade, que está sempre se desintegrando na presença de Anna. Ele simplesmente não consegue se libertar de seu encanto.
A sequência do assalto é estilizada, deliberadamente irrealista. Uma câmera diretamente do alto mostra o carro-forte dirigindo-se para o seu destino. Quando Steve e Pop saltam com as sacolas de dinheiro, as bombas de gás lacrimogêneo explodem. Uma nuvem sufocante invade toda a rua. Dundee e seus homens colocam suas máscaras contra gases. Soa o alarme, que não vai parar de tocar durante toda a sequência. Dundee surge no meio da fumaça e dispara vários tiros conta Pop. Steve vê Dundee matar seu amigo e muda de idéia. Ele alveja um bandido e tenta pôr as sacolas em segurança dentro do carro-forte. Dundee atira nele. Os dois entram em luta corporal. Steve fere Dundee na perna e depois recebe um tiro no ombro. Ouvem-se as sirenes dos carros de polícia. Os bandidos fogem. Toda essa movimentação, com os homens meio perdidos no nevoeiro de gás, alguns com as estranhas máscaras contra gases, parece um sonho febril, um estranho balé, encenado com muita noção de cinema.
Siodmak esmera-se na última cena, que é uma das mais românticas de toda a sua carreira. Nelson aceita o suborno e leva Steve até a cabana em Palos Verdes, onde Anna está escondida com parte do dinheiro roubado. Steve pede a Anna que entregue dez mil dólares a Nelson. Depois que este vai embora, e Steve explica quem ele é, Anna grita enraivecida: “Você não sabe o que vai acontecer?. Neste exato momento ele já deve ter dito ao Slim onde eu estou”. E começa a fazer as malas. “Você vai partir? Você vai me deixar? Aqui?”, diz Steve, desapontado. “Todas aquelas coisas que você me disse … Eu sei que você disse a verdade … Você me ama”, continua ele. E ela: “Amor, amor … Você simplesmente não sabe que espécie de mundo é este”. Steve responde, entorpecido: “Nunca quís o dinheiro. Só queria você”. Anna sai e a câmera fica focalizando Steve lá dentro, arriado no sofá, de frente para a câmera.
Passam-se alguns segundos. Ouve-se o barulho de um carro chegando. De repente, Anna volta correndo, aterrorizada. A câmera apanha os dois, ela de pé e ele sentado. Fica mais alguns segundos mostrando a porta aberta e a escuridão lá fora, até que do escuro surge Dundee, apoiado em uma bengala. Ele contempla os dois amantes e diz: “Você sempre a desejou, não foi Thompson? Você realmente a amou. Eu também. Mas você venceu, Thompson. Ela é toda sua”. Anna dá um grito, pronunciando o nome de Steve e cai no colo deste, escondendo o rosto. “Aperte-a nos seus braços. Aperte-a bem forte”, prossegue Dundee. Anna grita novamente o nome de Steve. Dundee desfere três tiros e fica em primeiro plano, diante da porta. Ouve-se o som das sirenes, que vai aumentando cada vez mais. Dundee sai do quadro e vemos o casal morto, enquanto a música berrante de Miklos Rosza faz um resumo dos ásperos conflitos da trama.
A Dama de Shanghai / The Lady from Shanghai / 1948 é um filme noir no sentido mais completo do termo, porém as concepções arrojadas e a personalidade exuberante do diretor se impuseram e ele se transformou em um filme de Orson Welles.
Andando pelo Central Park à noite, o marinheiro irlandês Michael O’Hara (Orson Welles) socorre uma mulher misteriosa, Elsa Bannister (Rita Hayworth), que está sendo assaltada. Elsa convence o marido, Arthur Bannister (Everett Sloane), um famoso advogado criminal aleijado, a contratar O’Hara como contramestre do seu iate para um cruzeiro de Nova York até San Francisco, passando por Acapulco no México. O’Hara aceita, esperando rever Elsa.
Durante a viagem, os dois se apaixonam e O’Hara conhece George Grisby (Glenn Anders), sócio de Bannister. Grisby faz uma estranha proposta ao marinheiro: ele dará cinco mil dólares a O’Hara para simular sua morte. O’Hara assinará uma confissão de que o matou, a fim de que possa desaparecer. Como não existirá um cadáver, O’Hara não poderá ser condenado. Grisby receberá uma indenização do seguro e então poderá passar seus últimos anos em um lugar bem longe do holocausto nuclear que tanto o atormenta.
O’Hara prossegue com o plano, achando que os cinco mil dólares poderão ajudá-lo a fugir com Elsa. Na noite do falso assassinato, Grisby mata Sidney Broom (Ted De Corsia), um detetive especializado em flagrantes de divórcio a serviço de Bannister, que havia descoberto a verdade sobre a trama. Antes de morrer, o detetive diz a O’Hara que ele caiu em uma armadilha. Grisby só queria um álibi e, com a cumplicidade de Elsa, vai matar Bannister. O’Hara corre para o escritório de Bannister, porém é recebido por um grupo de policiais e fica sabendo que Grisby foi morto.
Bannister defende O’Hara, mas com a intenção de vê-lo condenado. Pouco antes de ser proferida a decisão, O’Hara consegue fugir do tribunal, fingindo uma tentativa de suicídio pela ingerência de barbitúricos. Ele se esconde em um teatro de Chinatown, seguido por Elsa. Enquanto os policiais vasculham o local à sua procura, O’Hara encontra a arma que matou Grisby na bolsa de Elsa e, após acusá-la do crime, perde os sentidos.
O’Hara desperta em um parque de diversões vazio. Depois de passar por várias rampas e obstáculos, vai cair em um quarto de espelhos. Elsa aparece e, logo depois, Bannister. Bannister diz a ela que já explicou tudo em um bilhete para o promotor público: Elsa e Grisby iam matá-lo e dividir a indenização do seguro. Elsa eliminou Grisby, porque ele matou o detetive e ela ficou com receio de que este tivesse contado tudo à polícia. Marido e mulher disparam suas armas um contra o outro. Bannister morre. Elsa se arrasta agonizante para fora do quarto. O’Hara deixa-a morrer e sai daquele lugar, pensando no futuro.
Várias situações não são explicadas (qual era a conexão entre Elsa e os chineses?), as motivações dos personagens permanecem bastante obscuras (depois de se desembaraçar do marido, com a ajuda de Grisby, Elsa queria igualmente livrar-se do seu cúmplice e fugir com O’Hara?), algumas passagens parecem inverossímeis (a proposta de Grisby) – mas isso não tem muita importância, porque o filme vale, sobretudo, pela sua inventividade formal.
A nota dominante desta história confusa e incoerente é a atmosfera tipicamente noire de mal-estar e ambiguidade. Os advogados Grisby e Bannister têm alguma coisa de viscoso e doentio. Grisby está sempre limpando o suor do rosto no calor dos trópicos e Bannister não anda, arrastando-se com a ajuda de duas muletas, ambos parecendo aqueles répteis que infestam os pântanos. Quando O’Hara leva Bannister bêbado para o barco, ouve-se sua voz dizendo: “Está tão indefeso quanto uma cascavel adormecida”.
Elsa é uma mulher perfeitamente enigmática, de rosto sempre sereno. Qual é o jogo dela? Quais são as verdadeiras intenções de cada um? Quem vai matar? Quem será morto? E por quê?
O’Hara não é um tough guy com pleno domínio de si mesmo, mas sim um inocente romântico, mero instrumento de Elsa (Talvez por isso não tivesse percebido o seu sorriso de desprezo quando lhe pediu para fugir com ele e ele lhe disse que, “para começar”, dispunha da quantia de … cinco mil dólares). Compelido por sua ingenuidade (“Quando começo a fazer papel de tolo, pouca coisa me detém”; “Porque sou um tolo por escolha própria. É o pior tipo, não sabe?”), envolve-se nas maquinações sórdidas daquele grupo de pessoas, que ele compara aos tubarões das costas brasileiras, entredevorando-se, inebriados de sangue.
Com seu gênio artístico, Welles fez de um enredo policial comum algo de sabor especial, integrando-o nas suas reflexões sobre aparência e verdade, sobre a busca desesperada de poder / riqueza, temas abordados também nas suas obras-primas, Cidadão Kane / Citizen Kane / 1941 e A Marca da Maldade / Touch of Evil / 1958, e lhe dando um ritmo e uma plástica esteticamente ricos.
A Dama de Shanghai se compõe essencialmente de trechos de antologia com a marca do diretor: um piquenique nos pântanos infestados de crocodilos, os mexicanos passando ao fundo com as tochas acesas e O’Hara contando seu relato alegórico para os patrões deitados nas redes; uma cena de amor em um aquário, Elsa e O’Hara vistos na frente de criaturas aquáticas predadoras, uma metáfora para a armadilha humana em que ele pode cair; um crime falso proposto no alto dos penhascos de Acapulco por um sujeito aparentemente neurótico e gaiato; uma representação de teatro chinês, o auditório invadido silenciosamente pela policia e a reação dos atores entre o barulho dos címbalos e gongos; um acerto de contas final no quarto de espelhos de um parque de diversões, O’Hara despertando no meio de tobogãs e sombras barrocas e as imagens de Bannister e Elsa se multiplicando infinitamente nos espelhos, até que um tiroteio revela quem matou quem no meio dos estilhaços de vidro.
São esses elementos de cinema puro que, apesar de seu indisfarçado artificialismo, dão ao filme todo o seu encanto.
Para Borde e Chaumeton, A Morte num Beijo / Kiss me Deadly / 1955 é o reverso desesperado de Relíquia Macabra, que inaugurara o filme noir 14 anos atrás.
O herói, o tema e a estrutura narrativa são os mesmos: um detetive particular, a busca de um objeto misterioso (a estátua, a caixa) e a exposição linear dos acontecimentos na terceira pessoa. Mas como de 1941 a 1955 a sociedade mudou, a solução para o desregramento e a brutalidade nela existentes tinha que ser mais radical: o apocalipse nuclear.
O detetive Mike Hammer (Ralph Meeker) dá uma carona para Christina Bailey (Cloris Leachman), uma mulher apavorada que se colocou na frente de seu carro, forçando-o a parar na estrada à noite. Ao passar por um bloqueio policial, Hammer ouve os guardas falando de uma mulher que fugiu de um sanatório. Quando param para abastecer, Christina entrega uma carta ao empregado do posto de gasolina, pedindo-lhe que a ponha no correio. A Hammer diz que, “se algo nos acontecer, lembre-se de mim”.
Mais adiante, o carro de Hammer é empurrado para fora da rodovia. Hammer fica meio inconsciente enquanto Christina é torturada. Os dois são colocados dentro do carro e este é jogado em um despenhadeiro. Hammer recobra os sentidos num hospital, onde sua secretária Velda Wakeman (Maxine Cooper) e um policial conhecido, Pat Murphy (Wesley Addy), o informam de que o F.B.I. deseja interrogá-lo.
Ignorando o aviso deles para não se meter no caso, o detetive decide investigar por conta própria. Ao saber que o editor da seção de ciências do jornal local, Ray Diker (Mort Marshall), também havia sido interrogado, ele o obriga a fornecer-lhe o endereço de Christina. Hammer vai até lá e encontra um livro de poesia que contém um soneto intitulado “Lembre-se de mim”. As palavras que Christina havia lhe dito.
Hammer descobre o paradeiro da companheira de quarto de Christina, Lily Carver (Gaby Rodgers), e esta lhe diz que está se escondendo de uns gângsteres. Uma voz no telefone tenta subornar Hammer, oferecendo-lhe um carro novo de presente. No dia seguinte, Hammer recebe o carro, porém com dois acessórios a mais: uma bomba ligada ao acelerador, pronta para ser detonada quando o motorista virar a chave de ignição e outra, que deverá explodir quando o veículo estiver em alta velocidade. Seu amigo mecânico, Nick (Nick Dennis), consegue removê-las e Hammer lhe pede que descubra quem poderia ter feito este trabalho.
Diker fornece a Velda o nome dos dois homens que foram mortos em acidentes de trânsito misteriosos: o ex-pugilista Leopold Kowalski e o engenheiro-cientista Nicholas Raymond. Hammer vai procurar Harvey Wallace (Strother Martin), o chofer do caminhão que atropelou Kowalski, e este lhe diz que a vítima surgiu repentinamente na sua frente, como se tivesse sido empurrada. Eddie Yeager (Juano Hernandez), o treinador de Kowalski, não quer falar, porque foi ameaçado por Sugar (Jack Lambert) e Charlie Max (Jack Elam) para ficar calado.
Pat diz a Hammer que estes dois homens trabalham para o gângster Carl Evello (Paul Stewart). Chegando à mansão de Evello, Hammer é seduzido pela meia irmã deste, Friday (Marian Carr). Evello tenta em vão suborná-lo e ele percebe que o gângster recebe ordens de outra pessoa.
Hammer visita um amigo de Raymond, o cantor de ópera desempregado, Carmen Trivago (Fortunio Bonanova). Trivago conta que Raymond lhe dissera que tinha um segredo, uma coisa muito pequena que certas pessoas queriam. Nick é morto. Por intermédio de Diker, Velda conhece William Mist (Allen Lee), um mercador de arte abstrata, que lhe dá uma pista sobre um tal Dr. Soberin (Albert Dekker). Sem pensar no risco que ela pode correr, Hammer pede a Velda que vá se encontrar com Mist para obter mais informações. Velda é seqüestrada.
Lembrando-se de que Christina entregou uma carta para o empregado do posto de gasolina, Hammer vai falar como homem e este lhe informa que a carta foi endereçada a um tal de Mike. Hammer encontra-a aberta no seu escritório e os dois capangas de Evello aguardando por ele. A mensagem diz simplesmente “Lembre-se de mim”.
Hammer é levado para uma casa de praia, onde reconhece a voz do assassino de Christina, o Dr. Soberin, que lhe aplica um soro da verdade. Superando os efeitos da droga, Hammer domina Evello e o coloca amarrado em seu lugar, fazendo com que Sugar o mate, pensando que era ele. Depois liquida Sugar e foge.
Imaginando o que “Lembre-se de mim” significa, Hammer e Lily vão ao necrotério, onde Hammer força o médico legista (Percy Helton) a lhe entregar a chave do armário de Raymond no Clube Atlético de Hollywood, que Christina engolira. Hammer acha uma caixa dentro do armário, mas quando abre a tampa um pouquinho, algo queima suas mãos e ele acha melhor colocá-la de novo no lugar. Enquanto isso, Lily desaparece.
Pat revela que a caixa contém material radioativo cobiçado por agentes estrangeiros. Diz ainda que a verdadeira Lily Carver morreu afogada duas semanas atrás. Gabrielle, que estava se fazendo passar por Lily, levou a caixa. Hammer descobre que Soberin é o dono da casa de praia e se dirige para lá na esperança de encontrar Velda.
Soberin e Gabrielle pretendem ganhar uma fortuna vendendo o material radioativo. Gabrielle insiste para ver o que tem dentro da caixa. Adevertindo-a do perigo, Soberin se recusa a abrí-la. Desejando a caixa só para si, Gabrielle mata Soberin. Hammer entra na casa justamente quando ela vai abrir a caixa. De dentro dela sai uma luz intensa. Gabriella grita e seu corpo se incendeia. A casa toda treme e tem início uma reação em cadeia. Hammer se arrasta até uma porta fechada no corredor e liberta Velda. Eles saem da casa e entram cambaleando no mar enquanto um cogumelo atômico se forma no céu.
Nos meados dos anos 50, as fontes literárias dos filmes noirs estavam secando e os enredos tornando-se clichês. Como escreveu Claude Chabrol na Cahiers du Cinéma (L’Évolution du Film Policier / 1955), Robert Aldrich e seu roteirista A. I. Bezzerides “escolheram o pior material disponível, o produto mais lamentável, o mais enjoativo de um gênero em putrefação: um romance de Mickey Spilane”. Apesar de sua enorme popularidade e sucesso comercial, Spillane era considerado um autor de romances policiais muito vulgar, que só pensava em ganhar dinheiro explorando o sexo e a violência com sensacionalismo. Recentemente, alguns críticos reconheceram a habilidade de Mickey como contador de histórias, mas a maioria dos analistas não encontra nenhum valor estético na sua obra, qualificando-a como o ponto mais baixo da escola hard boiled.
Seu personagem, o detetive particular Mike Hammer, não tem a sutileza e a integridade de Philip Marlowe ou Sam Spade. É um sujeito grosseiro e sádico, reacionário e “fascista”, particularmente influenciado pelo seu papel de cruzado anticomunista, um produto típico da era McCarthy.
Escapando do universo terra-a-terra de Spillane, Aldrich e Bezzerides acompanham a descrição dos atos de seu herói de uma meditação sobre a angústia atômica.
Além de valorizar o tema com uma conclusão alegórica, eles se distanciam de Spillane, enchendo o filme com códigos de arte e estabelecendo assim um contraponto para a rudeza de Hammer e as brutalidades que ocorrem a todo instante. Por exemplo, uma pista importante para o desvendamento do mistério é um soneto de um poema de Christina Georgina Rossetti, irmã do também poeta Dante Gabriel Rossetti, ambos figuras de prestígio no meio literário da segunda metade do século XIX. Em outros momentos, há alusões às figuras mitológicas de Cérbero, Pandora e Medusa e ao episódio Bíblico da transformação da mulher de Lot em uma estátua de sal, fragmentos da música clássica, pinturas abstratas etc.
A violência, contudo, está no âmago do filme, apresentada com os efeitos paroxísticos que caracterizam o estilo do diretor. Christina é torturada até a morte (Só vemos suas pernas contraindo-se freneticamente em face da dor causada por um par de alicates); Hammer bate várias vees a cabeça do homem que o seguia na parede e depois o empurra mortalmente para uma longa escadaria íngreme; Nick morre esmagado quando Soberin remove o macaco do carro; Evello é esfaqueado pelas costas; Hammer esmaga os dedos do médico legista em uma gaveta; Gabrielle abre a caixa e vira uma tocha humana.
Cruel e insensível, Hammer ri quando quebra o disco raro de Enrico Caruso na frente do pobre Trivago e não tem o menor escrúpulo em mandar Velda – a secretária que o ama sinceramente – usar sua atração sexual para forjar flagrantes de divórcio ou obter informações, inclusive com risco de vida.
A morte de Nick e o seqüestro de Velda lhe servem de lição – aprendida tarde demais – de que seu modo anti-social e egoísta de vida iria eventualemtne trazer o mal para aqueles que lhe são leais.
O estilo visual extravagante do filme sugere esse contexto apocalíptico, o sentimento de paranóia e de perigo nuclear que obcecou a década de 1950, refletindo os problemas contemporâneos do McCarthismo e da Guerra Fria.
Embora a maioria das cenas tivesse sido rodada em locações naturais, o filme tem um aspecto surreal: o mundo é cuidadosa e obstinadamente distorcido. A gente sente isso desde a apresentação dos créditos, que passam em ordem invertida na tela. Os ângulos chocantes, a fascinante geometria das composições, a narrativa elíptica, a iluminação dramática, o uso excêntrico do som, são um desafio para a percepção e compreensão do espectador. Aldrich e o fotógrafo Ernest Laszlo parecem determinados a colocar a câmera em lugares onde ela jamais esteve, por exemplo, naquele enquadramento do corrimão da escada do Hotel Jalisco no qual vemos em profundidade de campo pela câmera alta Hammer sozinho. e depois Lily, como se estivessem presos em uma armadilha.
A Morte num Beijo foi o último dos grandes filmes noir puros, conseguindo – dentro dos limites da produção classe “B” – transformar um thriller qualquer em uma fábula cinematográfica, estranha e profunda, sobre a violência e decadência moral ligadas às sociedades hipercivilizadas da era atômica.