Arquivo diários:março 27, 2014

FILME NOIR II

Para ser considerado noir, além de ser um drama criminal, um filme tem que ter elementos típicos no que concerne ao tema, personagens, atmosfera, estrutura narrativa e estilo visual.

Quanto ao tema: a existência de relatos de crime e paixão nas formas da ficção produzida por escritores como Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James  Cain, Cornell Woolrich e seus descendentes ou semelhantes literários; visão pessimista da vida, angústia, insegurança, fatalismo; o absurdo e o caos em um mundo violento e incoerente; ausência de sentimentalismo, cinismo; importância da atração sexual nos enredos, erotismo, preocupação com desejos inconscientes e reprimidos; histórias deliberadamente complicadas e finais quase sempre tristes; exame das áreas mais sombrias da mente, pondo em foco as obsessões e as neuroses, que geram o nihilismo, a crueldade, a luxúria etc; autoridades corruptas e metrópoles habitadas por pessoas viciadas e amorais; venalidade e criminalidade dominando a maioria das relações sociais, que geralmente terminam em traição ou morte; presença de tipos estranhos (v. g. Joel Cairo / Peter Lorre em Relíquia Macabra / The Maltese Falcon / 1941, Moose Malloy / Mike Mazurki em Até à Vista, Querida / Murder My Sweet / 1944) ou sádicos (v. g. Canino / Bob Steele em À Beira do Abismo / The Big Sleep / 1946, Krause / Marvin Miller em Confissão / Dead Reckoning / 1947); uma visão do mundo na qual a vida é sórdida e cheia de perigos; retrato de uma sociedade na qual o sonho americano de sucesso é invertido e a alienação e o fracasso são os tons dominantes.

Quanto aos personagens: a presença de um investigador (que pode ser um detetive particular, policial, jornalista ou cidadão comum), uma vítima ou um psicopata – geralmente uma dessas figuras básicas domina a ação do filme -, envolvidos em um crime pelas artimanhas de uma mulher fatal, pela própria ambição ou psicose, ou pelo acaso.

Os personagens masculinos são introvertidos, solitários (v. g. Philip Raven / Alan Ladd em Alma Torturada / This Gun for Hire / 1942, David Morgan / Richard Basehart em Demônio da Noite / He Walked by Night / 1949), obsessivos (v. g. Steve Thompson / Burt Lancaster  em Baixeza/ Criss Cross / 1949, Dave Bannion / Glenn  Ford em Os Corruptos / The Big Heat / 1953), desmemoriados (Frank Thompson / Burgess Meredith em Vida contra Vida / Street of Chance / 1942, George Taylor / John Hodiak em Uma Aventura na Noite / Somewhere in the Night / 1946), com uma incrível incapacidade para perceber a desonestidade da mulher traiçoeira (v. g. Christopher Cross / Edward G. Robinson em Almas Perversas / Scarlet Street / 1945) ou incapazes de conhecer ou controlar as causas de seu infortúnio (v. g. Frank Bigelow / Edmond O’Brien em Com as Horas Contadas / D.O.A. / 1950).



Eles estão sempre à mercê de um destino malévolo que, quando não os empurram para as garras da fêmea perversa e sem escrúpulos, colocam-nos em uma situação angustiante, sem que eles saibam nem por quem, nem porquê estão sendo atacados. Em Envolto nas Sombras / Dark Corner / 1946, o detetive particular Bradford Galt / Mark Stevens vê-se envolvido em uma rede de circunstâncias aparentemente insignificantes, porém fatais. A certa altura da narrativa, solta um grito de aflição, observando para a secretária: “Sinto-me completamente morto por dentro. Estou andando para trás em uma esquina escura e não sei quem está me atingindo”. Al Roberts / Tom Neal, em Curva no Destino / Detour / 1945, pede carona em uma estrada e, sem nenhuma culpa de sua parte, a não ser a falta de fé em si mesmo, vê-se envolvido em duas mortes, e termina preso por assassinatos, que não cometeu. Ao comentar seu infortúnio, raciocina: “Algum dia, o destino ou alguma força misteriosa pode apontar o dedo para você ou para mim sem nenhum bom motivo para isso – para qualquer lado que você se mova, o destino estica a perna para lhe dar uma rasteira”.

Como observou Foster Hirsch (Film Noir – The Dark Side of the Screen, Da Capo, 1981), as histórias contadas sob o ponto de vista do detetive particular (v. g. Relíquia Macabra, À Beira do Abismo) tendem a ter um tom objetivo, refletindo a frieza, o desligamento do herói investigador; as histórias construídas a partir do modelo da vítima emaranhada nas teias do crime contra a sua vontade (v. g. Almas Perversas) ou por ter descoberto o seu potencial criminoso (v. g. Pacto de Sangue / Double Indemnity / 1944), inclinam-se para um tom subjetivo e uma textura mais complexa e febril, como reflexo da personalidade emotiva e neurótica do protagonista.

As personagens femininas são criaturas frias, calculistas, dissimuladas, agressivas e sensuais, que levam os homens à destruição moral e, algumas vezes, à morte; mas acabam sempre punidas, vítimas  de suas próprias ciladas. São mulheres de posse de sua própria sexualidade, que fogem dos papéis tradicionais do sistema patriarcal e, em consequência, devem ser castigadas por esta tentativa de independência, para que seja  restaurada aquela ordem inviolável.

Três das mulheres fatais mais famosas servem como exemplo ideal. Phyllis Dietrichson / Barbara Stanwyck, em Pacto de Sangue,  primeiro atrai o corretor sem caráter Walter Neff / Fred MacMurray, depois o convence a matar seu marido pela indenização do seguro e, no final, dá-lhe um tiro. Kathie Moffett / Jane Greer, em Fuga ao Passado / Out of the Past / 1947, fascina o detetive particular Jeff Bailey / Robert Mitchum e o faz trair seu cliente gângster, para que (sem conhecimento de Bailey), ela possa escapar com quarenta mil dólares. Três anos depois, Kathie aparece novamente, trai Bailey mais uma vez e, finalmente, o mata. Em determinado momento da história, Bailey diz a Kathie com desgosto: “Você é como uma folha, que o vento carrega de um esgoto para outro”. Kitty Collins / Ava Gardner, em Assassinos / The Killers / 1946, encanta de tal modo o Sueco / Burt Lancaster, que ele primeiro vai para a cadeia para impedir que a moça seja presa. Passados dois anos, o Sueco envolve-se em um assalto por causa de Kitty, apenas para ser enganado por ela, ficando sem dinheiro e com a culpa pela traição do bando de ladrões. Seis anos mais tarde, aceita passivamente ser assassinado por dois pistoleiros de aluguel.

A antítese da mulher fatal, que comumente aparece no mesmo filme, é a figura da mulher doméstica: uma esposa ou uma namorada, associada ao lar, capaz de compreender (ou pelo menos perdoar) o herói. Ela pede muito pouco em troca (apenas que ele volte para ela) e é geralmente passiva e estática, ligada à natureza, aos espaços abertos iluminados em chave alta (high key lighting). A Ann / Virginia Huston de Fuga ao Passado / Out of the Past / 1947 representa bem a mulher doméstica em oposição a Kathie, excitante, criminosa, muito ativa e lasciva.

Uma outra espécie de mulher procura ajudar o herói vítima, dando-lhe todo apoio durante a sua provação como a Joyce / Veronica Lake em A Dália Azul / The Blue Dahlia / 1946 ou realizando um trabalho de detetive para salvá-lo como a Carol / Ella Raines em A Dama Fantasma / Phantom Lady / 1944.

Existem ainda figuras femininas que não são mulheres fatais, mas podem ser definidas como “sexuais” em contraste com as domésticas. Elas também se aproveitam do seu domínio sexual sobre o herói a fim de obter o que desejam, porém são menos mortíferas no seu impacto sobre ele: por exemplo, a Mona / Lizabeth Scott de O Caminho da Tentação / Pitfall / 1948. Seria justo compará-la com a Kitty March / Joan Bennet de Almas Perversas? Ninguém se esquece do que Kitty, gargalhando histericamente, disse para o pobre Christopher: “Eu estava querendo rir na sua cara desde o dia em que o conhecí. Vocë é velho e feio e estou farta de você – farta! farta! farta!”

Na análise visual que Janey Place fez no seu ensaio Women in Film Noir, inserido no livro do mesmo título, editado por E. Ann Kaplan (British Film Institute, 1978), a força dessas mulheres é expressa  por sua dominância  no que concerne ao enquadramento, angulação, movimento de câmera e iluminação. Estão quase sempre  colocadas opressivamente no centro do quadro e/ou no primeiro plano ou atraindo o foco para si mesmas no fundo. Parecem dirigir a câmera (e o olhar extasiado do herói, junto com o nosso) irresistivelmente para elas enquanto se movimentam.

Quanto à atmosfera: ela é de confusão, medo, ansiedade, paranóia em um mundo de trevas na paisagem urbana americana. A grande cidade é um lugar inquietante com seus becos e ruas escuras invadidas pela neblina ou molhadas pela chuva, onde a morte ou a brutalidade podem irromper a cada instante. Boates e restaurantes ordinários ou de primeira classe, quartos de hotéis vagabundos ou luxuosos, prédios de apartamentos ou de escritórios com escadas de incêndio exteriores e elevadores com portas de ferro, delegacias de polícia com seus longos corredores e suas salas de interrogatório tétricas, armazéns abandonados, estações ferroviárias desertas etc. também estão carregados de ameaças, compondo um mundo cheio de medo, onde sempre é noite e ecoa o barulho de tiros e soluços.

O filme noir ainda conta com cenários surreais e exóticos – como o aquário, o teatro chinês e o parque de diversões de A Dama de Shanghai / Lady from Shanghai / 1947 – para sugerir  insegurança e instabilidade. Existem decorações noires (venezianas, luzes de neônio, arte “moderna”), figurinos noirs (capa de chuva, chapéus com a aba virada para baixo, ombreiras), acessórios noir (cigarros, aperitivos, revólveres), estilos musicais noir (não somente trilhas orquestrais, mas também melodias de jazz melancólicas, linguagem noir (derivada principalmente da fala hard boiled dos romances policiais modernos).

Quanto à estrutura narrativa: o uso da narração na primeira pessoa em voz over e do flashback, que desafiam as narrativas lineares convencionais. O narrador fala geralmente em um tom reflexivo, confessando seus crimes (vg. O Destino Bate à Porta / The Postman Always Rings Twice / 1946), ou respirando aliviado por ter escapado de uma enrascada (vg. A Dama de Shanghai), e há filmes noir que começam com narrações  de personagens que já estão mortos (vg. Laura / Laura / 1944 ) ou da narração da própria metrópole, onde se passa a ação, com um leve eco indicativo da voz de Deus (vg. A Cidade que não Dorme / City That Never Sleeps / 1953).

Muitos filmes noir como, por exemplo, Assassinos, usam vários narradores e retrospectos. No admirável filme de Robert Siodmak, eles recompõem aos poucos o passado do protagonista, construindo  diferentes explicações para a sua morte de auto-sacrifício até que, no final, surge toda a verdade. Já em Pacto de Sangue, o herói nos conta sua história diretamente e a conjugação da técnica da narração na primeira pessoa e do retrospecto faz com que tenhamos a impressão de que o narrador está sentindo um prazer perverso em relatar os acontecimentos, que o induziram à sua crise atual.

Quanto ao estilo visual: caracteriza-se geralmente pela iluminação em chave alta (low key lighting) com a constante oposição de áreas de luz e escuridão e sombras difusas; pela utilização de angulações e enquadramentos inusitados ou exagerados para perturbar, chocar ou desnortear o espectador e expressar a desorientação do personagem; pelas linhas horizontais cruzadas com verticais, aumentando a impressão de clausura psicológica e física; pelo emprego da câmera oblíqua, da profundidade de campo e das lentes grandes angulares; pela filmagem de cenas noturnas realmente de noite (night-for-night), tornando o céu mais negro e ameaçador; pelas silhuetas dramáticas contra um fundo iluminado; reflexos no espelho, sugerindo “o outro lado” do personagem ou sublinhando os temas recorrentes de perda ou confusão de identidade; pelos pontos luminosos estranhos sobre a face dos vilões, para lhes dar uma aparência sinistra ou de demência; pelo uso da câmera subjetiva (vg. a narração quase que totalmente subjetiva em A Dama do Lago / Lady in the Lake / 1947), que enfatiza o ponto de vista de modo radical, forçando-nos a alinhar o nosso com o do personagem.

Os elementos típicos acima descritos aparecem em maior ou menor número em certos dramas criminais e, por isso, faço a seguinte distinção: filme noir puro e impuro. Filme noir puro seria aquele drama criminal que contém a totalidade ou uma boa quantidade de elementos típicos (vg. Pacto de Sangue); filme noir impuro, seria aquele drama criminal que possui poucos elementos típicos (v. g. Cidade Nua / Naked City / 1948.

Nunca encontrei esta divisão em nenhum livro sobre o assunto, mas acho que ela é necessária , pois não podemos comparar a “negritude” máxima do filme de Billy Wilder com a “negritude” mínima do filme de Jules Dassin (de elementos típicos noir, este tem apenas a voz over, a cidade grande como parte integral do drama, enquadramentos muito ornamentados nas cenas passadas nas vigas da ponte).

Concluindo, sustento que os filmes noir puros, são muito poucos – talvez não passem de uma dúzia. E que eles é que são os verdadeiros filmes noir.