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FILME NOIR II

Para ser considerado noir, além de ser um drama criminal, um filme tem que ter elementos típicos no que concerne ao tema, personagens, atmosfera, estrutura narrativa e estilo visual.

Quanto ao tema: a existência de relatos de crime e paixão nas formas da ficção produzida por escritores como Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James  Cain, Cornell Woolrich e seus descendentes ou semelhantes literários; visão pessimista da vida, angústia, insegurança, fatalismo; o absurdo e o caos em um mundo violento e incoerente; ausência de sentimentalismo, cinismo; importância da atração sexual nos enredos, erotismo, preocupação com desejos inconscientes e reprimidos; histórias deliberadamente complicadas e finais quase sempre tristes; exame das áreas mais sombrias da mente, pondo em foco as obsessões e as neuroses, que geram o nihilismo, a crueldade, a luxúria etc; autoridades corruptas e metrópoles habitadas por pessoas viciadas e amorais; venalidade e criminalidade dominando a maioria das relações sociais, que geralmente terminam em traição ou morte; presença de tipos estranhos (v. g. Joel Cairo / Peter Lorre em Relíquia Macabra / The Maltese Falcon / 1941, Moose Malloy / Mike Mazurki em Até à Vista, Querida / Murder My Sweet / 1944) ou sádicos (v. g. Canino / Bob Steele em À Beira do Abismo / The Big Sleep / 1946, Krause / Marvin Miller em Confissão / Dead Reckoning / 1947); uma visão do mundo na qual a vida é sórdida e cheia de perigos; retrato de uma sociedade na qual o sonho americano de sucesso é invertido e a alienação e o fracasso são os tons dominantes.

Quanto aos personagens: a presença de um investigador (que pode ser um detetive particular, policial, jornalista ou cidadão comum), uma vítima ou um psicopata – geralmente uma dessas figuras básicas domina a ação do filme -, envolvidos em um crime pelas artimanhas de uma mulher fatal, pela própria ambição ou psicose, ou pelo acaso.

Os personagens masculinos são introvertidos, solitários (v. g. Philip Raven / Alan Ladd em Alma Torturada / This Gun for Hire / 1942, David Morgan / Richard Basehart em Demônio da Noite / He Walked by Night / 1949), obsessivos (v. g. Steve Thompson / Burt Lancaster  em Baixeza/ Criss Cross / 1949, Dave Bannion / Glenn  Ford em Os Corruptos / The Big Heat / 1953), desmemoriados (Frank Thompson / Burgess Meredith em Vida contra Vida / Street of Chance / 1942, George Taylor / John Hodiak em Uma Aventura na Noite / Somewhere in the Night / 1946), com uma incrível incapacidade para perceber a desonestidade da mulher traiçoeira (v. g. Christopher Cross / Edward G. Robinson em Almas Perversas / Scarlet Street / 1945) ou incapazes de conhecer ou controlar as causas de seu infortúnio (v. g. Frank Bigelow / Edmond O’Brien em Com as Horas Contadas / D.O.A. / 1950).



Eles estão sempre à mercê de um destino malévolo que, quando não os empurram para as garras da fêmea perversa e sem escrúpulos, colocam-nos em uma situação angustiante, sem que eles saibam nem por quem, nem porquê estão sendo atacados. Em Envolto nas Sombras / Dark Corner / 1946, o detetive particular Bradford Galt / Mark Stevens vê-se envolvido em uma rede de circunstâncias aparentemente insignificantes, porém fatais. A certa altura da narrativa, solta um grito de aflição, observando para a secretária: “Sinto-me completamente morto por dentro. Estou andando para trás em uma esquina escura e não sei quem está me atingindo”. Al Roberts / Tom Neal, em Curva no Destino / Detour / 1945, pede carona em uma estrada e, sem nenhuma culpa de sua parte, a não ser a falta de fé em si mesmo, vê-se envolvido em duas mortes, e termina preso por assassinatos, que não cometeu. Ao comentar seu infortúnio, raciocina: “Algum dia, o destino ou alguma força misteriosa pode apontar o dedo para você ou para mim sem nenhum bom motivo para isso – para qualquer lado que você se mova, o destino estica a perna para lhe dar uma rasteira”.

Como observou Foster Hirsch (Film Noir – The Dark Side of the Screen, Da Capo, 1981), as histórias contadas sob o ponto de vista do detetive particular (v. g. Relíquia Macabra, À Beira do Abismo) tendem a ter um tom objetivo, refletindo a frieza, o desligamento do herói investigador; as histórias construídas a partir do modelo da vítima emaranhada nas teias do crime contra a sua vontade (v. g. Almas Perversas) ou por ter descoberto o seu potencial criminoso (v. g. Pacto de Sangue / Double Indemnity / 1944), inclinam-se para um tom subjetivo e uma textura mais complexa e febril, como reflexo da personalidade emotiva e neurótica do protagonista.

As personagens femininas são criaturas frias, calculistas, dissimuladas, agressivas e sensuais, que levam os homens à destruição moral e, algumas vezes, à morte; mas acabam sempre punidas, vítimas  de suas próprias ciladas. São mulheres de posse de sua própria sexualidade, que fogem dos papéis tradicionais do sistema patriarcal e, em consequência, devem ser castigadas por esta tentativa de independência, para que seja  restaurada aquela ordem inviolável.

Três das mulheres fatais mais famosas servem como exemplo ideal. Phyllis Dietrichson / Barbara Stanwyck, em Pacto de Sangue,  primeiro atrai o corretor sem caráter Walter Neff / Fred MacMurray, depois o convence a matar seu marido pela indenização do seguro e, no final, dá-lhe um tiro. Kathie Moffett / Jane Greer, em Fuga ao Passado / Out of the Past / 1947, fascina o detetive particular Jeff Bailey / Robert Mitchum e o faz trair seu cliente gângster, para que (sem conhecimento de Bailey), ela possa escapar com quarenta mil dólares. Três anos depois, Kathie aparece novamente, trai Bailey mais uma vez e, finalmente, o mata. Em determinado momento da história, Bailey diz a Kathie com desgosto: “Você é como uma folha, que o vento carrega de um esgoto para outro”. Kitty Collins / Ava Gardner, em Assassinos / The Killers / 1946, encanta de tal modo o Sueco / Burt Lancaster, que ele primeiro vai para a cadeia para impedir que a moça seja presa. Passados dois anos, o Sueco envolve-se em um assalto por causa de Kitty, apenas para ser enganado por ela, ficando sem dinheiro e com a culpa pela traição do bando de ladrões. Seis anos mais tarde, aceita passivamente ser assassinado por dois pistoleiros de aluguel.

A antítese da mulher fatal, que comumente aparece no mesmo filme, é a figura da mulher doméstica: uma esposa ou uma namorada, associada ao lar, capaz de compreender (ou pelo menos perdoar) o herói. Ela pede muito pouco em troca (apenas que ele volte para ela) e é geralmente passiva e estática, ligada à natureza, aos espaços abertos iluminados em chave alta (high key lighting). A Ann / Virginia Huston de Fuga ao Passado / Out of the Past / 1947 representa bem a mulher doméstica em oposição a Kathie, excitante, criminosa, muito ativa e lasciva.

Uma outra espécie de mulher procura ajudar o herói vítima, dando-lhe todo apoio durante a sua provação como a Joyce / Veronica Lake em A Dália Azul / The Blue Dahlia / 1946 ou realizando um trabalho de detetive para salvá-lo como a Carol / Ella Raines em A Dama Fantasma / Phantom Lady / 1944.

Existem ainda figuras femininas que não são mulheres fatais, mas podem ser definidas como “sexuais” em contraste com as domésticas. Elas também se aproveitam do seu domínio sexual sobre o herói a fim de obter o que desejam, porém são menos mortíferas no seu impacto sobre ele: por exemplo, a Mona / Lizabeth Scott de O Caminho da Tentação / Pitfall / 1948. Seria justo compará-la com a Kitty March / Joan Bennet de Almas Perversas? Ninguém se esquece do que Kitty, gargalhando histericamente, disse para o pobre Christopher: “Eu estava querendo rir na sua cara desde o dia em que o conhecí. Vocë é velho e feio e estou farta de você – farta! farta! farta!”

Na análise visual que Janey Place fez no seu ensaio Women in Film Noir, inserido no livro do mesmo título, editado por E. Ann Kaplan (British Film Institute, 1978), a força dessas mulheres é expressa  por sua dominância  no que concerne ao enquadramento, angulação, movimento de câmera e iluminação. Estão quase sempre  colocadas opressivamente no centro do quadro e/ou no primeiro plano ou atraindo o foco para si mesmas no fundo. Parecem dirigir a câmera (e o olhar extasiado do herói, junto com o nosso) irresistivelmente para elas enquanto se movimentam.

Quanto à atmosfera: ela é de confusão, medo, ansiedade, paranóia em um mundo de trevas na paisagem urbana americana. A grande cidade é um lugar inquietante com seus becos e ruas escuras invadidas pela neblina ou molhadas pela chuva, onde a morte ou a brutalidade podem irromper a cada instante. Boates e restaurantes ordinários ou de primeira classe, quartos de hotéis vagabundos ou luxuosos, prédios de apartamentos ou de escritórios com escadas de incêndio exteriores e elevadores com portas de ferro, delegacias de polícia com seus longos corredores e suas salas de interrogatório tétricas, armazéns abandonados, estações ferroviárias desertas etc. também estão carregados de ameaças, compondo um mundo cheio de medo, onde sempre é noite e ecoa o barulho de tiros e soluços.

O filme noir ainda conta com cenários surreais e exóticos – como o aquário, o teatro chinês e o parque de diversões de A Dama de Shanghai / Lady from Shanghai / 1947 – para sugerir  insegurança e instabilidade. Existem decorações noires (venezianas, luzes de neônio, arte “moderna”), figurinos noirs (capa de chuva, chapéus com a aba virada para baixo, ombreiras), acessórios noir (cigarros, aperitivos, revólveres), estilos musicais noir (não somente trilhas orquestrais, mas também melodias de jazz melancólicas, linguagem noir (derivada principalmente da fala hard boiled dos romances policiais modernos).

Quanto à estrutura narrativa: o uso da narração na primeira pessoa em voz over e do flashback, que desafiam as narrativas lineares convencionais. O narrador fala geralmente em um tom reflexivo, confessando seus crimes (vg. O Destino Bate à Porta / The Postman Always Rings Twice / 1946), ou respirando aliviado por ter escapado de uma enrascada (vg. A Dama de Shanghai), e há filmes noir que começam com narrações  de personagens que já estão mortos (vg. Laura / Laura / 1944 ) ou da narração da própria metrópole, onde se passa a ação, com um leve eco indicativo da voz de Deus (vg. A Cidade que não Dorme / City That Never Sleeps / 1953).

Muitos filmes noir como, por exemplo, Assassinos, usam vários narradores e retrospectos. No admirável filme de Robert Siodmak, eles recompõem aos poucos o passado do protagonista, construindo  diferentes explicações para a sua morte de auto-sacrifício até que, no final, surge toda a verdade. Já em Pacto de Sangue, o herói nos conta sua história diretamente e a conjugação da técnica da narração na primeira pessoa e do retrospecto faz com que tenhamos a impressão de que o narrador está sentindo um prazer perverso em relatar os acontecimentos, que o induziram à sua crise atual.

Quanto ao estilo visual: caracteriza-se geralmente pela iluminação em chave alta (low key lighting) com a constante oposição de áreas de luz e escuridão e sombras difusas; pela utilização de angulações e enquadramentos inusitados ou exagerados para perturbar, chocar ou desnortear o espectador e expressar a desorientação do personagem; pelas linhas horizontais cruzadas com verticais, aumentando a impressão de clausura psicológica e física; pelo emprego da câmera oblíqua, da profundidade de campo e das lentes grandes angulares; pela filmagem de cenas noturnas realmente de noite (night-for-night), tornando o céu mais negro e ameaçador; pelas silhuetas dramáticas contra um fundo iluminado; reflexos no espelho, sugerindo “o outro lado” do personagem ou sublinhando os temas recorrentes de perda ou confusão de identidade; pelos pontos luminosos estranhos sobre a face dos vilões, para lhes dar uma aparência sinistra ou de demência; pelo uso da câmera subjetiva (vg. a narração quase que totalmente subjetiva em A Dama do Lago / Lady in the Lake / 1947), que enfatiza o ponto de vista de modo radical, forçando-nos a alinhar o nosso com o do personagem.

Os elementos típicos acima descritos aparecem em maior ou menor número em certos dramas criminais e, por isso, faço a seguinte distinção: filme noir puro e impuro. Filme noir puro seria aquele drama criminal que contém a totalidade ou uma boa quantidade de elementos típicos (vg. Pacto de Sangue); filme noir impuro, seria aquele drama criminal que possui poucos elementos típicos (v. g. Cidade Nua / Naked City / 1948.

Nunca encontrei esta divisão em nenhum livro sobre o assunto, mas acho que ela é necessária , pois não podemos comparar a “negritude” máxima do filme de Billy Wilder com a “negritude” mínima do filme de Jules Dassin (de elementos típicos noir, este tem apenas a voz over, a cidade grande como parte integral do drama, enquadramentos muito ornamentados nas cenas passadas nas vigas da ponte).

Concluindo, sustento que os filmes noir puros, são muito poucos – talvez não passem de uma dúzia. E que eles é que são os verdadeiros filmes noir.

FILME NOIR I

Film Noir é uma expressão inventada por alguns críticos francêses no período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, para designar um grupo de dramas criminais americanos, produzidos a partir dos anos quarenta, com certos traços comuns que os distinguiam dos filmes policiais feitos antes da guerra. Eles usaram a palavra noir, inspirando-se na Série Noire, que era uma coleção de romances policiais com uma capa preta, criada por Marcel Duhamel para a editora Gallimard. Como a maioria desses romances eram traduções em francês de obras de autores americanos como Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James M. Cain, Cornell Woolrich etc. e os dramas criminais cinematográficos também se baseavam nos livros desses romancistas, por analogia com o nome da coleção, eles os chamaram de films noirs.

Durante a ocupação alemã, os filmes dos estúdios de Hollywood não podiam ser exibidos na França. A proibição começou na zona ocupada e, a partir de outubro de 1942, estendeu-se a todo o território francês. Quando o país foi libertado, a produção acumulada dos últimos quatro anos inundou o mercado cinematográfico. Em poucas semanas, sucederam-se nas telas parisienses Relíquia Macabra/ The Maltese Falcon/ 1941 de John Huston,  Laura / Laura / 1944 de Otto Preminger, Até a Vista, Querida / Murder, my Sweet /1944 de Edward Dmytryk, Pacto de Sangue / Double Indemnity / 1944 de Billy Wilder  e Um Retrato de Mulher / Woman in the Window / 1945 de Fritz Lang, e os críticos começaram a notar que estes dramas criminais possuíam traços comuns no que se referia ao tema, personagens, atmosfera, estrutura narrativa e estilo visual.

Humphrey Bogart em Relíquia Macabra

Humphrey Bogart em Relíquia Macabra

Eles não procediam de uma forma de produção original – não eram “cinema de arte” de qualquer espécie – nem suas equipes criativas constituíam um grupo ou uma escola dentro de Hollywood. O termo filme noir era desconhecido pela indústria cinematográfica e pelas platéias. Nem Huston, nem Preminger, Dmytryk, Wilder ou Lang tinham consciência de estavam fazendo filmes noir. O termo film noir foi criado a posteriori pelos críticos.

O crítico Nino Frank foi o primeiro a empregar o termo film noir em um artigo intitulado “Un Nouveau genre ‘policier’ : l’aventure criminelle”, publicado na revista Écran Français nº 61 em  agosto de 1946. Ele não empregava a palavra noir no título, mas dizia em um trecho: “Ainsi, ces films ‘noirs’ n’ont-ils pas rien de comun avec les bandes policières de type habituel; ce qui y importe vraiment ce sont les visages, les comportements, les paroles”. Em novembro do mesmo ano, um outro crítico, Jean-Pierre Chartier, escreveu na Revue du Cinéma nº2 um artigo denominado “Les Américains aussi font des films noirs”, usando o adjetivo noir no próprio título. Finalmente, em 1954, surgiu um livro pioneiro, “Panorama du Film Noir Américain 1941-1953”, escrito por Raymond Borde e Étienne Chaumeton (Éditions de Minuit), que, apesar de suas limitações, serviu de base para todos os estudos posteriores sobre a matéria.

O termo e o conceito de filme noir demoraram um pouco para serem adotados pelos críticos anglo-saxões. A primeira abordagem em língua inglêsa sobre o assunto só apareceu quatorze anos depois, no capítulo “Black Cinema” do livro “Hollywood in the Forties”, de Charles Higham e Joel Greenberg (A. S. Barnes, 1968). Desde então, aumentou muito a literatura sobre filme noir, principalmente nos Estados Unidos a partir de 1976, quando foi publicado “Towards a Definition of the American Film Noir: 1941-1949, de Amir Massoud Karimi (Arno Press, 1976).

A bibliografia do filme noir é cada vez mais extensa e especializada, pois ele continua sendo uma categoria fílmica muito debatida pelos estudiosos do cinema. Cada crítico ou historiador apresenta a sua definição e uma lista pessoal de filmes para justificá-la. Para complicar, nenhuma lista é igual a outra. No que diz respeito ao assunto filme noir prevalece o ditado popular: “Cada cabeça, uma sentença”.

Existem controvérsias sobre seu período de vigência (anos 40/50 ou até os nossos dias?) e seus limites geográficos (pode haver filme noir realizado fora dos Estados Unidos?).

Cena de Homens em Fúria

Cena de Homens em Fúria

Entendo que há um período clássico do filme noir, que vai de Relíquia Macabra / 1941 a Homens em Fúria / Odds Against Tomorrow / 1959. Nos anos sessenta inicia-se, de forma irregular, um período novo noir ou neo-noir (vg. Detetive Marlowe em Ação / Marlowe / 1969), que assume maior força a partir dos anos setenta (v. g. O Perigoso Adeus / The Long Goodbye / 1973, Chinatown / Chinatown / 1974, Um Lance no Escuro / Night Moves / 1975). O filme neo-noir é autoconsciente e incorpora as convenções narrativas e estilísticas do filme noir clássico, projetando-as em um quadro cinematográfico moderno (cor, tela larga, sistemas de som mais avançados, montagem frenética, etc.). Como todo gênero, o filme noir modificou-se, para se manter de acordo com os novos tempos. E muitos filmes noir clássicos inspiraram refilmagens. Nos anos oitenta e noventa os realizadores se animaram ainda mais para homenagear ou reavivar o filme noir (v. g. Corpos Ardentes / Body Heat / 1981, O Destino Bate à Porta / The Postman Always Rings Twice / 1981, Morto ao Chegar / D.O.A. / 1988, Voltar a Morrer / Dead Again / 1991, O Poder da Sedução / The Last Seduction / 1994, Fugindo do Passado / Twilight / 1998).

Dana Andrews em Laura

Dana Andrews em Laura

Quanto à extensão territorial, o filme noir está enraizado em um tempo e lugar particulares – a América urbana contemporânea. Mas, assim como acontece com o western, gênero americano por excelência, nada impede que sejam produzidas imitações de filmes noir na Europa ou em outros países.

Entretanto, a discussão mais importante é com relação à natureza do filme noir. Seria um movimento, um ciclo, um estilo, um gênero? A meu ver, o filme noir não é um movimento como o Expressionismo Alemão, o Neo-Realismo Italiano ou a Nouvelle Vague Francêsa, porque é menos autoconsciente e articulado. Nem um ciclo como o das comédias da Ealing ou o dos filmes de horror da Hammer, porque não é tão restrito no tempo.

Resta saber se é um estilo ou um gênero. Existem adeptos de ambos os conceitos.  Nino Frank, que foi o inventor do termo e disse cristalinamente: “Un Nouveau Genre ‘policier’ L’Aventure Criminelle”. Com base nesta afirmação deduzí que um filme para ser considerado noir, tem que ser antes de tudo um drama criminal, e como o drama criminal se subdivide em vários tipos (filme de gângster, filme de assalto, filme de prisão, filme de amantes fugitivos ou fora-da-lei etc,), o filme noir seria qualquer um desses tipos , acrescidos dos ingredientes noir e, tal como eles, um subgênero do drama criminal.

Dick Powell e Claire Trevor em Até a Vista, Querida

Dick Powell e Claire Trevor em Até a Vista, Querida

Acompanho também Foster Hirsch (Film Noir: The Dark Side of the Screen, DaCapo, 1981) na sua percepção de que o filme noir tem todas as espécies de convenções fílmicas que normalmente associamos com gêneros cinematográficos (convenções de estrutura narrativa, caracterização, tema e estilo visual) e o uso repetido destas convenções o qualifica como um gênero, tão intensamente codificado quanto o western.

É por causa dessa incompreensão que existem tantas listas de filmes noir tão abrangentes, algumas chegando ao absurdo. Recentemente, Michael F. Keaney no seu livro “Film Noir Guide” (Mc Farland, 2011) enumera nada menos do que 745 filmes noir possíveis, entre eles: Rebecca, a Mulher Inesquecível / Rebecca / 1940, O Homem Que Vendeu a Alma / The Devil and Daniel Webster / 1941, Casablanca / Casablanca / 1942, Os Filhos de Hitler / Hitler’s Children / 1943, O Retrato de Dorian Grey / The Picture of Dorian Grey / 1945, Amar foi Minha Ruina / Leave Her to Heaven / 1945, Monsieur Verdoux / Monsieur Verdoux / 1947, Crepúsculo dos Deuses / Sunset Blvd. / 1950, A Morte do Caixeiro Viajante / Death of a Salesman / 1951, O Homem do Oeste / Man of the West / 1958.

Fred MacMurray e Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue

Fred MacMurray e Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue

Na coletânea editada por Alain Silver e James Ursini, “Film Noir Directors” (Limelight, 2012), variados articulistas nomeiam os filmes noir de cada diretor, emergindo entre eles: Carta de uma Desconhecida / Letter from an Unknown Woman / 1948 (Max Ophuls), Atlântida, o Continente Perdido / Siren of Atlantis / 1949 (John Brahm), Jardim do Pecado / Garden of Evil / 1958 (Henry Hathaway), Intriga Internacional / North by Northwest / 1959 (Alfred Hitchcock), O Dia em que a Terra Parou / The Day the Earth Stood Still / 1951 (Robert Wise).

Raymond Durgnat no seu artigo Paint it Black: The Family Tree of the Film Noir, publicado em Film Noir Reader, editado por Alain Silver e James Ursini (Limelight, 1996) aponta como filmes noir : King Kong / King Kong / 1933, Matar ou Morrer / High Noon /  1952 e 2001, Uma Odisséia no Espaço / 2001, A Space Odyssey / 1968.

Com a devida vênia, nenhum desses filmes pode ser classificado como noir, simplesmente porque eles não são dramas criminais. Crepúsculo dos Deuses e Amar foi Minha Ruina, que vêm sendo designados por vários autores como noirs desde a Enciclopédia de Alain Silver e Elizabeth Ward (Overlook Press, 1979), embora contenham crimes nas suas tramas, são dramas psicológicos, respectivamente sobre os distúrbios mentais de uma atriz decadente do cinema mudo e uma mulher possuída por um ciúme doentio do marido.

Pode existir ingredientes noir em filmes de outros gêneros. Entretanto, este fato não os transforma em um filme noir como categoria fílmica autônoma. Sangue na Lua / Blood on the Moon / 1948 é um western com algumas caraterística noir de forma e contudo, mas ele será sempre um western. Capacete de Aço / The Steel Helmet / 1951 é um filme de guerra com estilo visual expressionista e certas convenções temáticas noir, mas será sempre um filme de guerra.

Joan Bennett e Edward G. Robinson em Um Retrato de Mulher

Joan Bennett e Edward G. Robinson em Um Retrato de Mulher

Em O Outro Lado da Noite: Filme Noir (Rocco, 2001), indiquei como noir, filmes que não eram dramas criminais (vg. Angústia / The Locket / 1947, Alma em Suplício / Mildred Pierce / 1945, Gilda / Gilda / 1946,  O Beco das Almas Perdidas / Nightmare Alley / 1947, Acossado / Cornered / 1945, Anjo do Mal / Pickup on South Street / 1953, Nuvens de Tempestade / The Woman on Pier 13, No Silêncio da Noite / In a Lonely Place / 1950, O Tempo Não Apaga / The Strange Love of Martha Ivers / 1946, Ao Cair da Noite / Moonrise / 1949 mas sim,  respectivamente, um melodrama (os quatro primeiros),  um drama de guerra (o quinto),  um drama político, de espionagem ou de propaganda anticomunista (o sexto e o sétimo ), um drama psicológico (o oitav e o nono) e um drama social (o décimo). A presença de elementos noir em todos esses filmes me confundiu; porém devo dizer que a maioria dos autores continuam considerando-os como filmes noir.

Deixei de incluir como noir alguns dramas criminais que não tinha visto (vg. Johnny Angel / Johnny Angel / 1945, The Lady Confesses / 1945, Mulher Dilinger / Decoy / 1946, Prisioneiro do Medo / The Pretender / 1947, Maré Alta / High Tide / 1947, Traição / Race Street / 1948; Impacto / Impact / 1949, A Cena do Crime / Scene of the Crime / 1949, Desafiando o Perigo / Red Light / 1950, Na Noite do Crime / Woman on the Run / 1950, The Man Who Cheated Himself / 1950, Cidade Tenebrosa / Crime Wave / 1954, Fúria Assassina / Naked Alibi / 1954, Pecado e Redenção / Rogue Cop / 1954).

Richard Widmark em Sombras do Mal

Richard Widmark em Sombras do Mal

Para ser franco, ainda tenho dúvidas sobre se determinados filmes, são noir ou não, porque nem sempre é fácil distinguir o gênero de um filme. Sombras do Mal / Night and the City / 1950 tem todos os ingredientes de um filme noir, porém a ação transcorre fora do ambiente urbano americano. E seria um drama criminal? Ou um drama psicológico? Borde e Chaumenton escolheram a foto de Richard Widmark como o seu personagem em Sombras do Mal para a capa do seu livro pioneiro sobre o filme noir. Entretanto, no Índice Cronológico das Séries (pois eles consideravam o fenômeno noir como uma série, sugerindo, não se sabe bem, se um ciclo ou um gênero) os dois autores não colocaram o filme de Jules Dassin entre os filmes noir, mas sim entre os de Psychologie Criminelle, ao lado de Amar foi Minha Ruina, como se fosse um drama psicológico, onde ocorre um crime. Outro exemplo seria Loura de Gelo / Blonde Ice / 1948,  que vem sendo apontado como filme noir, porém acho que se trata mais de um drama psicológico. Spencer Selby  (Dark City – The Film Noir, McFarland, 1894) tinha razão ao sugerir que “o filme noir é talvez a mais escorregadia de todas as categorias fílmicas”. Brutalidade / Bruce Force / 1947 e Cidade NuaThe Naked City / 1948 possuem alguns aspectos noir mas hoje , pensando melhor, não os colocaria no meu livro O Outro Lado da Noite : Filme Noir.

Mas é preciso deixar bem claro que não basta que um filme seja um drama criminal para ser noir.  Ele tem que ter elementos típicos no que concerne ao tema, personagens, atmosfera, estrutura narrativa e estilo visual.

HAL ROACH

Hal Roach funcionou ininterruptamente de 1914 até 1960 como produtor de comédias curtas, filmes independentes de longa-metragem, featurettes e séries de televisão, uma sobrevivência impressionante de sessenta e seis anos de sucesso no mundo do cinema. Seu estúdio nunca alcançou a proeminência de uma grande companhia de Hollywood, porém alavancou  a carreira de Harold Lloyd e da dupla Stan Laurel e Oliver Hardy, que compõem o quarteto de maiores comediantes do cinema ao lado de Charles Chaplin e Buster Keaton.

Hal Roach

Hal Roach

Hal Roach (1892- 1992) nasceu em Elmira no Estado de Nova York. Aos 17 anos de idade, foi para o Alasca, a fim de trabalhar em uma via férrea. Depois rumou para Seattle, Washington, onde exerceu a profissão de motorista de caminhão de uma fábrica de sorvete. Após trabalhar como supervisor dos caminhoneiros que transportavam canos para uma firma petrolífera, no percurso de Bakersfield – San Pedro na Califórnia, ele chegou em Los Angeles, a fim de se empregar na construtora Stone Weber. Mas então viu um anúncio no jornal, que dizia: “Um dólar e almoço para trabalhar em filmes. Esteja em frente à agência dos correios às sete horas da manhã”. Roach sabia andar a cavalo muito bem e tinha um chapéu de abas largas, botas de vaqueiro e um lenço colorido, que ele vestiu quando apareceu na frente da agência dos correios, sendo logo escolhido como figurante da 101-Bison Company.

“Eles me conduziram para o estúdio, onde havia um cenário enorme de saloon, com uma mesa de roleta. Bem, ninguém sabia como operá-la, o que eu havia aprendido no Alasca. Disse a eles que estavam fazendo tudo errado, estavam girando a roda e a bola na mesma direção, e o diretor me perguntou se eu conhecia o jogo. Respondí  que conhecia tudo sobre roleta. Ele então me mandou ficar perto do crupiê, porque eu era muito moço para ser um crupiê, e ensinar para ele, o que tinha de fazer. O personagem principal do filme deveria ganhar muito dinheiro e depois perder tudo. Às três horas e meia da tarde – como nos velhos tempos do cinema mudo não havia luzes, apenas o sol, a filmagem tinha que terminar às quatro da tarde -, o assistente de direção  perguntou meu nome e disse: ’Esteja no estúdio às oito da manhã’. Falei: ‘Esta manhã eu estava na porta dos correios às sete’. Ele retrucou: ‘Não me interessa o que você era ontem. Hoje você é um ator’. Foi assim que eu comecei no negócio de cinema”.

Em 1914, o ex-figurante Roach já fazia parte de um grupo de atores de papéis pequenos usados regularmente nos westerns da Universal, onde conheceu Harold Lloyd, de quem se tornou um grande amigo. Em pouco tempo, Roach tornou-se assistente de direção e exerceu várias funções administrativas. Excitado com essa experiência e graças a uma herança que recebeu, ele organizou sua própria companhia produtora, a Rolin Film Company, denominação derivada da combinação das primeiras letras do seu sobrenome e do seu principal sócio, Dan Linthicum.

Rolin Company

Rolin Company

A Rolin começou produzindo algumas comédias de um rolo, que tinham como atores alguns de seus companheiros do tempo em que era figurante, entre eles Harold Lloyd. O desejo de Lloyd era apenas tornar-se ator de cinema. Ele não tinha nenhum interesse particular pela comédia e, ao contrário da maioria dos outros atores do gênero nessa época, Lloyd não vinha de uma carreira como cômico no vaudeville ou music hall. Roach notou suas habilidades atléticas e o arrastou para a comédia de pastelão.

Nenhuma dessas primeiras comédias da Rolin conseguiu distribuição, até que a Pathé se interessou por uma delas, Just Nuts / 1915, na qual Lloyd interpretava um personagem chamado Willie Work. Embora este filme contivesse os mesmos traços amadorísticos encontrados nas  outras comédias – inclusive uma imitação óbvia de Lloyd do vagabundo criado por Chaplin – a Pathé encorajou Roach a produzir mais filmes na mesma linha, corrigindo os defeitos apontados.

Em outubro de 1915, a Pathé assinou um contrato de longo prazo com a Rolin para a distribuição de uma série de comédias de um rolo, intitulada Phunphilm, com Lloyd como Lonesome Luke (conhecido no Brasil como Hipólito), um personagem (vestido com roupa bem justa e um bigodinho que consistia em dois pingos de maquilagem), que era exatamente o oposto de Carlitos.

Tendo encontrado um distribuidor permanente para os seus filmes, Roach resolveu expandir sua produção, a fim de que sua companhia não ficasse a mercê de um único astro, sujeito a sofrer um acidente ou ser atraído por um estúdio poderoso.

Dee Lampton

Dee Lampton

O primeiro esforço nesse sentido ocorreu em abril de 1916, quando Roach tentou contratar Arnold Novello, um palhaço de circo italiano, que estava trabalhando no teatro burlesco americano com o nome artístico de Toto; porém  os compromissos dele com o tablado não lhe permitiram aceitar o convite. Roach então decidiu realizar uma série em torno de Dee Lampton, um ator de dezoito anos, gorducho como Fatty Arbuckle. A série de Lampton, intitulada com ironia Skinny Comedies, fracassou, mas na primavera de 1917, Toto Novello estava agora disponível.

Roach e Harold lloyd

Roach e Harold lloyd

O plano de Roach era manter uma unidade de produção separada daquela que cuidava dos filmes da série de Lloyd. Roach permaneceu como produtor supervisor de ambas as séries, mas dirigiu somente a série de Toto com a assistência de Fred Newmeyer, ficando Alf Goulding, Gilbert Pratt e  inicialmente J. Farrel MacDonald como diretores da série de Lonesome Luke. Com Roach se concentrando na série de Toto, Lloyd passou a ter um controle maior sobre suas própria série. Roach fez mais duas tentativas antes de 1920 para lançar séries adicionais: uma com Snub Pollard, outra com Stan Laurel, porém ambas não tiveram êxito. Eles teriam mais sorte no futuro.

A essa altura, Lloyd, insatisfeito  em arrancar o riso pela sua aparência grotesca ou excêntrica, começou a construir um novo tipo, um jovem comum que usava óculos, que ele interpretaria pelo resto de sua carreira. Na primavera de 1919, Rolin e a Pathé concordaram em iniciar a produção de comédias de Lloyd em dois rolos. O primeiro filme com o personagem de óculos foi Over the Fence / 1917.

Harold Lloyd e Bebe Daniels

Harold Lloyd e Bebe Daniels

Mildred Harris e Harold Lloyd

Mildred Harris e Harold Lloyd

Após o término da segunda comédia de dois rolos, a leading lady de Lloyd, desde os primeiros tempos de Lonesome Luke, Bebe Daniels, deixou o estúdio e foi substituída por Mildred Davis, que se casaria com o grande cômico. A nova parceria funcionou muito bem e a popularidade de Lloyd continuou a subir  até que, no dia 24 de agosto de 1919, na sala do Witzel Photography Studio em Los Angeles, Lloyd posava para uma foto de publicidade, acendendo um cigarro no pavio de uma bomba, quando esta explodiu na sua mão. Ela tinha sido colocada por engano em uma caixa que supostamente só continha modelos não explosivos, e dali foi parar nas mãos do ator. Quando a fumaça se espalhou, Lloyd estava vivo, mas sofrera queimaduras sérias na face, teve a sua visão afetada, e perdeu o polegar e o dedo indicador de sua mão direita.

Snub Pollard

Snub Pollard

Como a convalescença de seu astro poderia ser muito demorada, a Rolin começou uma nova série de comédias com o cômico australiano Harold Fraser  que, sob o nome artístico de Snub Pollard, já pertencia à stock company de Harold Lloyd praticamente desde o início dos Lonesome Luke. A série, denominada New Rolin Comedies, estreou com Start Something / 1919 e, desta vez, Pollard  foi muito bem recebido pelos exibidores e pelo público, que apenas lamentaram a tentativa de Roach de tirar o seu bigode, que era a sua marca registrada. Como consequência, Roach colocou o bigode de novo no rosto de Pollard. Um elemento vital para o sucesso das novas comédias de Pollard foi a presença de Ernie “Sunshine Sammy” Morrison, que depois alcançaria maior fama na série Os Peraltas / Our Gang.

Sunshine Morrison

Sunshine Morrison

Com o retorno de Lloyd na sua primeira comédia de dois rolos, Através da Broadway / Bumping into Broadway / 1919, tornando-se um astro da comédia de primeira grandeza, e o êxito das novas comédias de Pollard com Morrison, Roach preparou a expansão tanto da sua linha de produção como de seu espaço físico. Em novembro de 1919, Roach comprou um terreno para construir um estúdio em Culver City, inaugurado oficialmente no verão de 1920 e, em 16 de agosto, a Rolin Film Company foi rebatizada Hal E. Roach Studios.

No mesmo ano, Roach introduziu uma segunda série de dois rolos para alternar com as comédias de Pollard, intitulada Vanity Fair Maids (depois, Vanity Fair Girls), uma pálida variação da velha Bathing Beauties de Mack Sennett, protagonizada por Eddie Boland, interpretando um personagem tímido envolvido com  “não uma, mas seis estrelas”. Em abril, a série foi reintitulada Eddie Boland Comedies, mas foi logo cancelada tendo em vista a sua baixa lucratividade e problemas de saúde do ator.

Eddie Boland

Eddie Boland

Um projeto interessante que infelizmente não pôde ser realizado,  foi um filme de longa-metragem com Al Jolson. Sete anos depois, a performance exuberante de Jolson em O Cantor de Jazz / The Jazz Singer, o colocaria como um dos primeiros astros do cinema sonoro.

Em 7 de julho de 1923, Harold Lloyd e Hal Roach decidiram terminar suas relações amigavelmente. A separação seria boa para ambos, dando mais tempo para Roach se concentrar nos seus outros projetos e maior liberdade para Lloyd (que já vinha fazendo longas-metragens desde Marinheiro de Água-Doce / A Sailor-Made Man/  1921) na produção de seus filmes.

 Glenn Tryon

Glenn Tryon

Após a saída de Lloyd, Roach contratou um ator Glenn Tryon (o Jim de Solidão / Lonesome / 1928 de Paul Fejos), colocando-o em duas comédias de longa-metragem, Os Filhos de Hércules / The Battling Orioles e A Boa Ovelha / The White Sheep (ambas de 1924), e lançou também Arthur Stone; porém nenhum dos dois chegou perto de Harold Lloyd.

Roach e Os Peraltas

Roach e Os Peraltas

Roach anunciou ainda a produção de uma nova série de dois rolos, que seriam dirigidas por Robert F. McGowan. A série (cujo elenco mudou várias vezes à medida em que as crianças foram crescendo: vg. Sammy Morrison, Allen “Farina” Hoskins, Joe Cobb, Mickey Daniels depois George “Spanky” McFarland, Carl “Alfafa” Switzer) foi inicialmente denominada Hal Roach’s Rascals, porém o título do primeiro filme, Our Gang, eventualmente tornou-se a sua designação oficial. No Brasil foi exibida como Os Peraltas mas, mais tarde, quando veio a ser exibida na televisão como The Little Rascals, recebeu o título em português de Os Batutinhas. Ela foi produzida por Roach até 1938 e depois a MGM continuou a produção até 1944, vinte e dois anos depois do primeiro filme, transformando-a em uma das séries de comédia curta mais longas da História do Cinema.

Um lançamento de Roach na mesma ocasião foi a série de um rolo, The Dippy Doo Dads, estrelada por um elenco todo de animais, vestindo roupas humanas e cabriolando em cenários de miniaturas. Embora considerada inteligente por alguns comentaristas, a série ficou em cartaz apenas um ano. Outras séries de um rolo, como as de Will Rogers, Stan Laurel (em nova tentativa) e The Spat Family, duraram somente uma ou duas temporadas.

Cena de um filme da série Dippy Doo Dogs

Cena de um filme da série Dippy Doo Dogs

Muito mais populares foram as comédias de Charles Chase que, usando seu nome verdadeiro, Charles Parrott, havia sido diretor supervisor de algumas séries do estúdio. Seu irmão, Paul Parrott, ator de uma série de Roach de breve duração, voltou a usar seu nome verdadeiro, James Parrott, para escrever e dirigir comédias, inclusive várias da dupla O Gordo e o Magro. As comédias de Charles Chase fizeram tanto sucesso que, apenas um ano depois (1925), ele foi promovido para ser o astro em comédias de dois rolos, que seriam feitas até 1936.

Charles Chase

Charles Chase

James Parrott, Stan Laurel e Oliver Hardy

James Parrott, Stan Laurel e Oliver Hardy

Roach não estava satisfeito com seu status de produtor de pequeno porte e, para atingir maior projeção, inaugurou sua carreira de produtor dramático através de um par de seriados com Ruth Roland,  A Águia Branca / White Eagle e A Rainha dos Bosques / The Timber Queen, ambos de 1922. Ele produziu mais um seriado, Her Dangerous Path / 1923, com Edna Murphy, antes de abandonar o formato, para dar o próximo passo:  a produção de dramas de longa-metragem.

O primeiro desses filmes foi uma adaptação do romance de Jack London, Call of the Wild, cuja recepção favorável levou à realização de um segundo filme de ação-aventura em 1924, O Rei dos Cavalos / King of the Wild Horses, estrelado por Rex, the Wonder Horse. Este filme foi votado pelos exibidores um dos dez melhores do ano e proporcionou três continuações: Tufão Negro / Black Cyclone / 1925, The Devil Horse / 1926 e No Man’s Law / 1927.

Dois outros longas-metragens dramáticos de Roach, O Vale do Inferno / The Valley of Hell e O Tributo do Deserto / The Desert’s Toll foram as suas primeiras produções feitas para serem distribuídas pela MGM, a companhia que cuidaria da distribuição de toda a produção do estúdio de 1927 a 1938, o que garantiu a sua estabilidade durante a Depressão. Entretanto, a MGM , com exceção desses dois westerns, estava interessada apenas nos filmes curtos de Roach e não em longas-metragens.

Roach então se empenhou em uma nova série de dois rolos com atores característicos usados em cenas de comic relief, tais como Lucien Littlefield, Al St. John e Clyde Cook. Dentro de um ano, esse conceito havia evoluído para as All Star Comedies. A idéia básica dessa série era simples: Roach faria comédias curtas estreladas por artistas bastante conhecidos dos longas-metragens e montadas com maiores valores de produção, capazes de competir com os features. Infelizmente, esses artistas (entre os quais Theda Bara, Mildred Harris, Lionel Barrymore, Harry Myers) estavam no fim de suas carreiras, desesperados por qualquer espécie de trabalho no cinema ou em uma fase desfavorável na vida profissional.

Outro projeto relacionado de alguma forma com as All Star Comedies foi o retorno de Mabel Normand às telas em uma série, depois do escândalo que a envolveu na morte do diretor William Desmond. Após a realização de dois filmes de três rolos e mais dois de dois rolos, a série foi extinta inexplicavelmente e substituída por uma com o cômico Max Davidson.

No começo da temporada de 1927-1928, Roach abandonou suas altas aspirações para a All Star Comedies e a série ficou mesmo na mão de atores coadjuvantes  do elenco permanente do produtor. Contudo, a diferença desta vez é que a companhia tinha como contratados Stan Laurel e Oliver Hardy.

Hal Roach com Laurel e Hardy

Hal Roach com Laurel e Hardy

Embora ambos tivessem mais de uma década de experiência nenhum deles havia atingido uma posição de astro. Hardy parecia destinado a não ser nada mais que um vilão confiável enquanto que Laurel até então não havia causado uma forte impressão no público. De fato, após os dois insucessos prévios de suas séries, a Pathé havia expressado reservas quanto à volta do cômico para uma terceira tentativa. Todavia, reunidos na All Star Comedies, Laurel e Hardy alcançaram um entrosamento perfeito em cena e, na temporada de 1928-1929, foram oficialmente lançados como astros de sua própria série.

Sob o refletor: Laurel e Hardy e Hal Roach

Sob o refletor: Laurel e Hardy e Hal Roach

Com o advento do cinema falado, a produção de comédias curtas foi prejudicada, porque os custos aumentaram, diminuindo as margens de lucro. Além disso, a adição do diálogo exigiu que os scripts fossem melhor preparados, pondo um fim na improvisação, que havia sido predominante durante na cena silenciosa. Outro trauma que afetou a produção de comédias curtas no começo dos anos trinta foi a adoção do programa duplo, deixando menos tempo para as comédias de dois rolos. Diante dessas mudanças na indústria, Roach pensou em ingressar novamente na produção de longas-metragens, e até em encerrar definitivamente a produção de filmes curtos, mas acabou entrando na era do cinema falado com as mesmas quatro séries que constituíam a sua produção no último ano do cinema mudo: Laurel e Hardy, Charles (ou Charley) Chase, Os Peraltas e as All Star Comedies.

Roach decidiu fazer all-talking comedies no sistema em disco, com a supervisão da Victor Talking Machine Company.  Com a saída de Leo McCarey no final de 1928 para desfrutar de uma carreira de diretor de longas-metragens, as comédias do Gordo e o Magro ficaram sob o controle criativo de Stan Laurel. As comédias de Charles Chase ficaram sob responsabilidade dele próprio. Seu controle sobre a série foi formalizado em 1933, quando começou a dirigir seus filmes sob seu verdadeiro nome, Charles Parrott. Robert McGowan continuou a produzir e dirigir a série Os Peraltas até 1933, quando foi substituido por Gus Meins. Em 1936, Meins foi sucedido por Gordon Douglas, que serviu como produtor-diretor da série até 1938, quando Roach  transferiu a produção da mesma para a MGM. Em 1936, Douglas dirigiu Fugindo da Escola / Bored of Education, agraciado com o Oscar de Melhor Curta-Metragem, um dos dois prêmios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas recebidos por Roach.

The Boy Friends

The Boy Friends

The Taxi Boys

The Taxi Boys

Thelma Todd e Zasu Pitts

Thelma Todd e Zasu Pitts

Ele produziu ainda uma série falada estrelada por Harry Langdon e mais estas cinco: The Boy Friends, concebida como uma versão adolescente de Os Peraltas com dois de seus membros Mary Kornman e Mickey Daniels no elenco, Grady Sutton como Alabam, e George Stevens na direção de vários filmes; Os Chauffeurs de Taxi / The Taxi Boys com Ben Blue e Billy Gilbert; continuação das Hal Roach Comedies com Billy Nelson, Douglas Wakefield e Don Barclay; uma série com o humorista Irving S. Cobb; a série Thelma Todd – Zasu Pitts (substituída depois por Patsy Kelly), da qual participou como diretor Marshall Neilan, cuja carreira estava então em declínio; seis comédias musicais nas quais atuaram Eddie Foy Jr., Billy Gilbert e Billy Bletcher (a voz do Lobo Mau de Disney).

Cena de A Caixa de Música

Cena de A Caixa de Música

No começo do cinema sonoro, Roach foi o único produtor de curtas-metragens que fez versões múltiplas de seus filmes nos idiomas Espanhol, Alemão, Italiano e Francês  e, nessa época, ele não somente experimentou também o formato de três rolos (Uma dessas comédias, A Caixa de Música ou Entrega a Domicílio / The Music Box, da série Laurel e Hardy, ganhou o Oscar de Melhor Curta-Metragem de 1931-1932) como também lançou em 1931, Perdão para Dois / Pardon Us, o primeiro longa-metragem do Gordo e o Magro. Um segundo longa-metragem da dupla, Procura-se um Avô ou Acabaram-se as Encrencas / Pack Up Your Troubles, apareceu em 1932, seguido por um terceiro, Fra Diavolo / Devil’s Brother em 1933. Embora os dois primeiros tivessem tido um orçamento modesto, o derradeiro era um verdadeiro filme classe “A” de época. O quarto feature de Laurel e Hardy, Filhos do Deserto / Sons of the Desert / 1934 contou com a presença de Charles Chase ao lado deles

Cena de A Dupla do Outro Mundo

Cena de A Dupla do Outro Mundo

Roach faria com a MGM mais 15 longas-metragens com atores variados, entre eles, Cary Grant, Constance Bennett e Roland Young em  A Dupla do Outro Mundo / Topper / 1937, grande sucesso de bilheteria, que daria ensejo a duas continuações.

Aceitando uma oferta generosa da United Artists, que lhe oferecia um contrato de distribuição, prometendo-lhe  maior percentagem sobre a renda da bilheteria e a possibilidade de produzir mais filmes do que a MGM estava disposta a aceitar, Roach desligou-se da “Marca do Leão”, vendendo-lhe a franquia de Os Peraltas. Charles Chase não atuava bem em filmes mais longos e  ele e Roach concordaram em se separar. Laurel e Hardy fizeram seu último filme para Roach, Marujos Improvisados / Saps at Sea /1940, e foram para a Fox.

Lon Chaney Jr e Burgess Meredith em Ratos e Homens

Lon Chaney Jr e Burgess Meredith em Ratos e Homens

Victor Mature e Carole Landis em O Despertar do Mundo

Victor Mature e Carole Landis em O Despertar do Mundo

Com a United Artists, Roach fez 14 longas-metragens, entre os quais se destacam Carícia Fatal / Of Mice and Men / 1939 com Burgess Meredith e Lon Chaney Jr. e O Despertar do Mundo / One Million B.C. / 1940 com Victor Mature e Carole Landis. O primeiro, baseado no best seller de John Steinbeck e dirigido por um diretor do porte de Lewis Milestone, foi indicado para o Oscar de Melhor Filme de 1939, ano considerado dos mais férteis artisticamente de Hollywood; o segundo, trouxe de volta de uma aposentadoria forçada o legendário David W. Griffith. Porém o envolvimento do “Pai do Cinema’ na produção foi mínimo e serviu mais para promover o filme. Um anúncio de O Despertar do Mundo de página inteira no Hollywood Reporter indicava que o filme era uma ‘Produção de D.W. Griffith, Dirigida por Hal Roach”. Griffith não aprovou o uso do seu nome e, quando o filme foi lançado efetivamente, os créditos mencionaram somente Hal Roach como produtor, dividindo a direção com Hal Roach Jr.

Hal Roach e D. W. Griffith

Hal Roach e D. W. Griffith

Infelizmente, no final de 1940, o Hal Roach Studios (conhecido pelo apelido de “Lot of Fun”), estava à beira da falência, porque o lucro de seus longas-metragens não foi suficiente para cobrir os custos das produções e, ainda por cima, a comunidade financeira estava apreensiva sobre o resultado da ação anti-truste movida pelo governo contra as grandes companhias e restringiu seus empréstimos a todos os produtores independentes. A idéia que salvou o estúdio foi a de produzir featurettes ou streamliners, filmes mais baratos de 30, 45 ou 50 minutos, que poderiam preencher o programa duplo no lugar dos filmes “B” , resolvendo assim o problema de sua longa duração.

Roach produziu 20 streamliners: 1941: O Sabichão / Tanks a Million, O Intrometido / Niagara Falls, Pândega Universitária / All American Co-Ed, Travessuras de uma Solteirona / Miss Polly, Dias de Festa / Fiesta (Primeiro filme em cores (Technicolor) produzido por Roach), Sargento Prodígio / Hay Foot. 1942: Orquídeas de Brooklyn / Brooklyn Orchid, Cowboy Apaixonado / Dudes Are Pretty People, Meia-Volta Volver! / About Face, Voando com Música / Flying with Music, Ao Diabo com Hitler / The Devil with Hitler, Os McGuerins do Brooklyn / The McGuerins from Brooklyn. 1943: Xilindró / Calaboose, Fall In, Taxi, Senhor? / Taxi, Mister?, Picardias de Cowboy / Prairie Chickens,  Ianques à Vista Yanks Ahoy, Mais Forte que Hitler / The Nazty Nuisance. 1947: Hal Roach Comedy Carnival (em Cinecolor): Part I – Curley,  Part 2 – The Fabulous Joe. 1948:  Lafftime (em Cinecolor): Part I – Here Comes Trouble, Part II – Who Killed Doc Robbin?

Durante a Segunda Guerra Mundial, o Governo dos Estados Unidos requisitou o estúdio de Roach para fazer filmes de treinamento militar enquanto o produtor, então com cinquenta anos, servia no centro fotográfico do Signal Corps. em Astoria, Long Island. Além das mensalidades recebidas do Exército, a renda do Hal Roach Studio foi complementada pelo empréstimo de alguns de seus artistas contratados para outras companhias (vg. Victor Mature  cedido para o  produtor Arnold Pressburger para Tensão em Shanghai / The Shanghai Gesture / 1941)  e pelo aluguel dos velhos filmes do estúdio para cinemas (através da distribuidora Film Classics) ou para particulares, universidades, igrejas, etc. em cópias de 8 e 16mm.

Depois da guerra, Roach continuou a fazer filmes (vg. os streamliners em Cinecolor já citados) e, finalmente, em 1948, passou a produzir filmes exclusivamente para a televisão ou alugar espaço no estúdio para produtores independentes do novo meio. No começo de 1955, Roach Jr. assinou contrato com Laurel e Hardy para uma série de quatro programas especiais de uma hora que seriam filmados em cores sob o título de Laurel and Hardy’s Fabulous Fables, mas, lamentavelmente, o projeto nunca foi realizado. No mesmo ano, Roach Sr. se aposentou e, sob a administração tíbia de seu filho, o estúdio foi à falência em 1959.

Hal Roach homenageado

Hal Roach homenageado

Em 1984, Hal Roach recebeu um prêmio honorário da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas “em reconhecimento ao seu recorde incomparável de contribuições à arte cinematográfica”. Porém a grande homenagem aconteceu em 1992, quando se realizou a 64a festa de entrega do Oscar. O pioneiro de 100 anos de idade foi recebido com uma grande ovação ao entrar no palco. Ele tentou falar sem microfone. Como ninguém o escutou, o mestre de cerimônias, Billy Cristal, comentou com bom humor: “Acho que isso é natural, afinal ele começou no cinema mudo, não é?