Arquivo mensais:fevereiro 2014

A VIDA DOS SANTOS NO CINEMA

Quase sempre sem se darem conta de que é muito difícil realizar um autêntico filme religioso, os cineastas têm levado para as telas a vida dos santos. Sem ter a pretensão de esgotar o assunto (e excluindo espetáculos de televisão), lembrarei as principais cinehagiografias  produzidas até o final dos anos 60.

Joanna D’ Arc ocupa um lugar de destaque, pois foi sobre ela que se fez o maior número de filmes nesse gênero. Nos primórdios do Cinema  surgiram as versões de Georges Hatot (L’Exécution de Jeanne d’Arc / 1898); Georges Méliès (Joana d’Arc / Jeanne d’Arc / 1899 com Bleuette Bernon); Albert Capellani (La Vie de Jeanne d’Arc / 1908 com Léontine Massart); e Mario Caserini (Vita de Giovanna d’Arco / 1909 com Maria Gasperini).

Nos anos dez, foram realizados Joana d’Arc / Giovanna D’Arco / 1913 de Ubaldo Maria Del Colle com Maria Jacobini, uma das divas da cena muda italiana e Jeanne d’Arc / Joan the Woman / 1917 de Cecil B. De Mille  (obs. o filme estreou no Rio de Janeiro como Jeanne d’Arc, escrito assim em francês mesmoe em São Paulo como Joana d’Arc, A Donzela de Orleans) com a cantora de ópera Geraldine Farrar.

O filme de Del Colle narra os momentos mais importantes da vida de Joana d’Arc. Quando jovem, aprecem diante dela São Miguel, Santa Margarida e Santa Catarina, que lhe indicam o êxito que terá na Guerra dos Cem Anos entre seu povo francês e os inglêses. A sua missão terminará com o processo ordenado pela Inquisição, o qual a levará à morte na fogueira.

A Donzela de Orleans é o protótipo dos futuros espetáculos de Cecil B. DeMille. Sua manipulação das massas nas grandes cenas de batalhas (com a ajuda de sete câmeras e um pequeno exército de assistentes de direção incluindo seu irmão mais velho William C. DeMille, George Melford e Donald Crisp) é excepcional, igualando-se ao trabalho de D. W. Griffith em Nascimento de Uma Nação / The Birth of a Nation / 1915. A direção de arte de Wilfred Buckland impressiona e o clímax com Joana na fogueira, colorido pelo processo Hanschiegl de stêncil, é antológico.

Em 1928, o dinamarquês Carl Theodor Dreyer fez O Martírio de Joana d’Arc / La Passion de Jeanne d’Arc com Falconetti, genuíno poema litúrgico que figurava sempre nas listas dos dez melhores filmes de todos os tempos. O filme de Dreyer causou uma revolução estética com a utilização sistemática e eloquente dos grandes planos, desvendando a alma da heroína e de seus algozes, a brancura e a abstração dos cenários, os enquadramentos imprevistos e a montagem minuciosa, e até hoje gera impacto com sua perfeição estilística a serviço da verdade interior.

Analisando o filme, Pierre Leprohon (Cinquante Ans de Cinéma Français, 7e Art, 1954) percebeu que “a abundância de primeiros planos, os ângulos de câmera mais insólitos justificam-se pela posição ou o olhar dos personagens-testemunhas; o espectador se torna então cada um dos personagens que vêem Jeanne e que Jeanne vê. É uma espécie de diálogo constante de fotogenia que, escamoteando a palavra expressa, discursa através dos pensamentos”

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Não se pode dissociar da obra sua intérprete, Renée Falconetti, atriz de teatro que ficou famosa por este seu único filme. Supervisionada com muito rigor por Dreyer e, tal como os demais componentes do elenco – Silvain (Cauchon), Maurice Schutz (Nicolas Loyseleur), Antonin Artaud (Jean Massieu), Michel Simon (Jean Lemaître), Jean d’Yd (Guilaume Evrard) – renunciando à maquilagem, ela viveu intensamente o papel de Joana, como se estivesse em estado de transe e em permanente tensão dolorosa.

No número especial da revista Cahiers du Cinéma sobre Carl Th. Dreyer (nº 207, décembre 1968), Henri Langlois observou: “Dreyer radiografou literalmente as almas. Ele agiu sobre os atores com uma tirania tal, que eles deixaram de ser eles mesmos, para se tornar os juízes, as testemunhas, os carrascos, a própria Jeanne”… “Não resta mais nada da face de Falconetti, de sua personalidade, ela não existe senão por sua arte, que a faz através dos séculos uma evocação mágica de Jeanne d’Arc”.

La Merveilleuse Vie de Jeanne d’Arc / 1928 de Marco de Gastyne, foi um projeto ambicioso de Bernard Natan (dois anos de filmagem, custo entre oito e nove milhões de francos), que contava a história de Joana  desde a sua infância em Domrémy até à fogueira de Ruão mas passando rapidamente por longos períodos de sua vida com a ajuda de intertítulos um tanto extensos e enfadonhos. A atriz Simone Génevois tinha apenas 16 anos quando o filme entrou em produção e convenceu como a camponesinha que colocou o herdeiro legal no trono francês, empurrando os ingleses para o outro lado do Canal da Mancha. Ela soube dar o devido vigor à sua interpretação enquanto Gastyne providenciava cenas espetaculares (a coroação de Charles VII em Notre Dame, a captura de Joana em Compiègne e especialmente o seu sítio bem sucedido de Orleans) tão boas como as do filme de DeMille.

Durante o período hitlerista, Gustav Ucicky filmou Joana d‘Arc / Das Mädchen Johanna / 1935 com Angela Salloker, como uma propaganda anti-britânica (a Inglaterra era inimiga de Joana), dando a impressão de que a Donzela de Orleans não passava de uma antecessora do Fuherer. Sob a direção fidedigna de Ucicky, mas um tanto estática,  atuou um  elenco de grandes artistas do cinema alemão como Gustaf Grundgens (Charles VII), Heinrich George (Duc de Bourgogne), René Deltgen (Maillezais), Erich Ponto (Lord Talbot), Willy Birgel (La Trémouille), Theodor Loos (Dunois), Aribert Wäscher (Valençon) etc.  O filme foi exportado internacionalmente para mostrar a qualidade da produção alemã porém a mensagem política passou despercebida por muitos espectadores.

Hollywood voltou a abordar o tema em 1948 quando o produtor Walter Wanger, o diretor Victor Fleming  e Ingrid Bergman fundaram a Sierra Pictures, com o objetivo exclusivo de adaptar para a tela a peça “Joan of Lorraine” de Maxwell Anderson, que a estrela havia interpretado no palco com grande triunfo.  O texto de Anderson focalizava uma atriz, Mary Grey, às voltas com a composição da personagem de Joana; no cinema, os roteiristas  (o próprio autor e Andrew Solt) resolveram eliminar o esquema ontem-e-hoje da narrativa, preferindo um tratamento histórico direto de sua vida. Houve muitos recursos (cinco milhões de dólares, quatro mil extras) e cuidados com a autenticidade; mas o resultado não correspondeu à expectativa. O filme Joana d’Arc / Joan of Arc tem sequências deslumbrantes em Technicolor (Oscar para a fotografia de Joe Valentine, Winton Hoch e William V. Skall), entre elas a magnífica recriação da catedral  de Reims (direção de arte, Richard Day) porém, sem movimento e sem substância espiritual. A encenação é medíocre, substituindo o sublime pelo pitoresco.  Por ocasião da estréia o comentarista do Los Angeles Daily News escreveu: … “ já a direção de Fleming é quase insensata”. Do desastre, salvaram-se ainda os desempenhos esforçados de Ingrid Bergman e de José Ferrer, este marcando sua estréia diante das câmeras como o indeciso Delfim.

Na França, em Destino de Mulher (TV) / Destinées / 1953, Jean Delannoy, com a colaboração dos argumentistas  Jean Aurenche e Pierre Bost, contou um episódio pouco conhecido na trajetória de Joana, interpretada por Michèle Morgan, durante a qual ela realiza um milagre, reanimando o corpo de uma criança morta e batizando-a, antes que expirasse definitivamente.

O filme mostrava o destino de três mulheres diante da guerra, desdobrando-se em esquetes, cada qual dirigido por um diretor diferente. No episódio Elisabeth (dir: Marcello Pagliero), uma viúva de guerra (Claudette Colbert) descobria que seu marido fôra amante de uma jovem camponesa (Eleonora Rossi Drago), que lhe dera um filho; no segundo episódio, Jeanne, passado em 1430, Joana d’Arc reencontra um de seus antigos companheiros de armas, o capitão Baretta (Daniel Ivernel), em uma floresta perto de Compiègne e este lhe confirma que seus soldados perderam a fé nela. Porém o milagre realizado por Joana recobra a confiança das tropas, que partem com ela em direção a Compiègne, onde será capturada. No terceiro episódio, Lysistrata (Dir: Christian-Jaque), no ano 411 A.C., as mulheres de Atenas, lideradas por Lysistrata (Martine Carol) decidem fazer greve de sexo contra seus maridos, obrigando-os a concluir a paz com Esparta.

Cada diretor marcou seu segmento com a sua personalidade. Pagliero imprimiu uma atmosfera sentimental e trágica ao seu trabalho; Delannoy restituiu a grandeza e o caráter da grande figura da Pucelle d’Orleans. Christian-Jaque deu um toque de humor e de realismo na reconstituição fantasista que ele fez da história ateniense, enfeitando-a com idéias originais.

Apesar de ser muito velha para o papel (a atriz tinha 34 anos, o dobro da idade de Joana) Michèle Morgan idealizou o personagem da santa guerreira, iluminada por sua fé e pelo ardor combativo exigido pela sua missão sagrada.

Em 1954, Joana d’Arc de Rosselini (TV)/ Giovanna d’Arco al Rogo, de Roberto Rosselini,  enfocou o drama de La Pucelle sob o ponto de vista do neo-realismo. Ele filmou, em Gevacolor, o oratório de Paul Claudel e Arthur Honnegger, “Jeanne au Bucher” com Ingrid Bergman como Joana d’Arc, em uma mise-en-scène de ópera, estilizada, na qual a cor e os gestos deveriam exprimir o essencial do poema musical. Rossellini disse que tentou “reencontrar o estilo, o modo de expressão dos primeiros tempos do cinema”. Para uns, o filme é um ato de pura contemplação; outros aborreceram-se com sua monotonia.

Três anos mas tarde, Otto Preminger dirigiu Santa  Joana / Saint Joan com roteiro de Graham Greene baseado na peça “Saint Joan” de Bernard Shaw. A história de Joana d ‘Arc forneceu ao célebre autor irlandês um drama por vezes comovente, onde o humor, que ele manipulava tão bem, serviu sobretudo como pretexto para reflexões cáusticas, principalmente com relação aos inglêses.

No filme, o Delfim não consegue dormir. Ele vê em sonho a Pucelle e a conversa entre eles evoca os traços marcantes do destino fulgurante de Joana: Vaucouleurs, Chinon, Orleans, Reims e a coroação e depois o processo odioso. É evidente que, sob pena de transformar totalmente o sentido da peça de Shaw, o roteirista não podia ter evitado certos elementos teatrais, notadamente as aparições, que fazem a sua originalidade.

Jean Seberg, escolhida aos 17 anos entre 18 mil candidatas para encarnar Joana, enfrentou um papel difícil mas conseguiu se identificar totalmente com o personagem, exprimindo-se com simplicidade e fervor. O filme tinha ainda, além de um excelente fotógrafo, George Perinal, competente elenco de apoio: John Gieguld (Earl of Warwick), Richard Widmark (exagerado como um Delfim frívolo e covarde), Richard Todd (Dunois), Anton Walbrook (Cauchon), Felix Aylmer (Inquisidor), Harry Andrews (John de Stogumber), Barry Jones (De Courcelles), Finlay Curie (Archbishop of Rheims).

Em 1963, Procès de Jeanne d‘Arc, de Robert Bresson, com Florence Delay (creditada como Florence Carrez), segue rigorosamente os autos do processo do século XV, e é tratado no tom intimista e ascético do cineasta, muito parecido com o de Dreyer. Até então, todos os filmes que haviam tomado por tema Joana d’Arc eram obras pessoais. Seus autores procuravam transmitir ao espectador a idéia que eles faziam dela. Tal não aconteceu com Bresson, que escolheu para matéria viva de seu filme, não um personagem (Joana) mas um texto: as perguntas e as respostas do processo de Rouen.

Em uma entrevista, o diretor declarou que, para ele, o julgamento  é um duelo entre o bispo Cauchon e Joana, confronto narrado no filme com extrema economia de meios, a fim de se manter a realidade nua do drama. Mas, como  acentua Jean D’Yvoire, a um nível mais alto, Procès de Jeanne d ‘Arc é o processo do testemunho da santidade.

São Francisco de Assis mereceu a atenção dos cineastas por várias vezes desde o cinema mudo: Enrico Guazzoni ( Il Poverello d’Assisi / 1911 com Emilio Ghione), Mario Corsi e Ugo Falena (Frate Sole / 1918 com Umberto Palmarini), sendo mais lembrado nesta época A Vida e os Milagres de São Francisco / Frate Francesco / 1927 de Giulio Cesare Antamoro com Alberto Pasquali.

No final dos anos dez, a Milano Films já havia pensado em um projeto sobre São Francisco, encarregando Adolfo Padovani de redigir o roteiro. Porém a Cines agiu mais rápido e, na Exposição Internacional de Turim de 1911, apresentou Il Poverello di Assisi. Segundo recordou Guazzoni, os dois rolos com um total de 450 metros de película produziram uma “enorme impressão” no público, graças sobretudo à interpretação de Emilio Ghione (o futuro protagonista de uma séria centralizada no personagem de Za la Mort, o “apache” sentimental, em torno do qual giravam assuntos “policiais” ambientados no submundo parisiense), que logrou um triunfo pessoal com o seu São Francisco franzino, de olhar profundo e andar hierático.

Sete anos depois de Il Poverello di Assisi, a Tespi Film de Roma filmou A Vida de São Francisco de AssisFrate Sole, anunciado como “reconstituição franciscana em quatro cantos de Mario Corsi, com poemas sacros para orquestra e côro de Luigi Mancinelli”. O êxito do filme e da música foram “grandíssimos”, conforme asseguraram as crônicas da época.

Em 1927, Giulio Antamoro, especialista em filmes religiosos (que em 1926 havia realizado Christus),também obteve muito sucesso com A Vida e os Milagres de São Francisco, inspirado na biografia de São Francisco escrita pelo dinamarquês Johannes Jorgensen com base nos Fioretti. No filme, os fatos históricos são escrupulosamente respeitados e reconstituídos de acordo com o livro de Jorgensen; porém, como comentou Riccardo Capasso (Dizionario Biografico degli Italiani, 1961), a busca da “poesia franciscana” se traduziu em um estilo narrativo vagamente idílico e pouquissimamente emotivo.

Depois veio um filme mexicano, São Francisco de Assis / San Francisco de Assis / 1943, com José Luis Jiménez, dirigido por Alberto (Tito) Gout, ex-maquilador dos estúdios da 20thCentury nos anos trinta, um diretor rotineiro, geralmente dedicado aos melodramas de cabaré do final dos anos quarenta e começo dos anos cinquenta com Ninón Sevilla, Maria Antonieta Pons etc. e unicamente preocupado com a eficácia narrativa.


Bem mais importante  é o clássico Francisco, Arauto de Deus / Francesco, Giullare de Dio / 1950 de Roberto Rosselini, com atores não-profissionais e Aldo Fabrizzi como o tirano Nicolas. Rosselini apresenta sob a forma de antologia, fragmentos dos Fioretti com proposital indigência de encenação e trata os personagens de um modo que pareceu insólito para quem achava que a santidade só podia ser austera. O diretor quer mostrar o Poverello e seus companheiros tal como eram na vida cotidiana: jovens monges com uma alegria e inocência próximas às das crianças, com uma simplicidade de coração que se assemelhava, como disse Henri Agel, a uma “doce demência”.

São Franciso de Assis / Francis of Assisi / 1960 de Michael Curtiz, deveria ter sido um épico religioso à maneira de Hollywood mas saiu um filme reverente e modesto. O enredo conta a vida do “Poeta dos Pássaros”, o milagre da estigmatização e sua morte. Curtiz, sempre correto na direção, conjuga incidentes movimentados com  os instantes sérios, a fim de manter o interesse da intriga. O trecho final é mais impregnado de caráter místico, embora o veterano cineasta não consiga refletir a poesia da realidade. Bradford Dillman põe muito sentimento na composição do “Jogral de Deus” e nos dá um Francisco verdadeiro e humano, passando habilmente da frivolidade de um jovem embriagado pelo prazer  para a elevação de espírito de um santo.

Uma raridade do nosso Ciclo do Recife, História de uma Alma (Vida e Milagres de Santa Teresa de Lisieux do Menino Jesus) / 1926, produção da Vera Cruz Film com roteiro e direção de Eustórgio Wanderley, tendo Noemi Gomes de Matos no papel de Teresa adulta e Maria Pompeu Alcoforado Gesteira como Teresa menina, abre a filmografia de Santa Teresa. Eis um trecho do argumento, relatado por Jurandir Noronha (Dicionário  de Cinema Brasileiro, 2008): … Thereza desde menina dedica-se a ajudar os pobres. Aos oito anos, é internada pelos pais na Abadia dos Beneditinos. Um dia, a irmã Paulina adoece mas é milagrosamente salva pela Virgem, que lhe aparece em sonhos. Estranhamente o claustro do convento enchera-se de neve apesar do tempo quente e seco. Antes de se confessar, Thereza é tentada pelo demônio, que lhe aparece em sonhos, colocando-a diante de sérios embaraços. Consegue no entanto a tudo vencer. Logo alastra uma epidemia no convento, tornando-se ela uma enfermeira dedicada. Depois, consagrou-se à salvação de um jovem sacerdote. Doente, não deixou de participar dos exercícios sagrados; mas, já sem poder sair do leito, sonhou que a Madre Ana de Jesus, que morrera três séculos atrás, lhe confirmava o lugar ao lado do Senhor, morrendo então poucos dias depois … Infelizmente perderam-se as cópias e o negativo desta preciosidade do cinema brasileiro.

No mesmo ano, Georges Pallu (cineasta francês que participou ativamente do cinema mudo português até 1924, realizando adaptações de obras literárias como Rosa do Adro / 1919, Os Fidalgos da Casa Mourisca / 1921, Amor de Perdição / 1921, O Primo Basilio / 1923) fez Rosa Desfolhada ou A Vida Admirável  de Santa Terezinha do Menino Jesus / La Rose Efeuillée, refilmado pelo mesmo diretor em 1936, recebendo o titulo em português de Santa Teresinha do Menino Jesus. Na trama, Rose, uma jovem lavadeira (Simone Vaudry) injustamente acusada de furto, é despedida. Quando o filho do patrão adoece gravemente, ela retorna e, aos pés do menino desenganado, invoca Santa Teresa (Janine Lequesne) e a criança se cura. Na segunda versão, Jacqueline Francell era Rose e Maria Aldona, Thérèse Martin.

Os demais filmes sobre Santa Teresa foram realizados pelo cinema francês: La Vie Miraculeuse de Thérèse Martin / 1929 de Julien Duvivier com Simone Bourday; O Milagre das Rosas / Thérèse Martin 1938 de Maurice de Canonge; Procès au Vatican / 1951 de André Haguet com France Descaut, sem falar em um curta-metragem, Le Vrai Visage de Thérèse de Lisieux / 1964, de Philipe Agostini (com narração de Odette Joyeux e Gerard Oury).

O filme de Julien Duvivier respeita o desenrolar da vida de Thérèse antes de tomar o hábito (ela tem quatro anos, sua mãe morre), depois a partir de sua ordenação como freira até a sua morte e termina com uma imagem na Basílica de São Pedro em Roma, representando a jovem santa; porém a narrativa oculta quase totalmente os escritos de Santa Teresa de Lisieux, que asseguraram a sua posteridade (vê-se apenas um plano de Teresa escrevendo uma carta mas não os textos).

O filme de Maurice de Canonge mostra a vida de Thérèse Martin desde a sua entrada no convento, aos quinze anos de idade, sob o nome de Irmã Teresa do Menino Jesus até sua morte, nove anos depois. Irène Corday comove como a pequena irmã Teresa, principalmente na longa sequência de agonia da jovem santa, destacando-se também a bela partitura do renomado compositor Jacques Ibert.

No filme de André Haguet, por ocasião da canonização da irmã Teresa do Menino Jesus, assistimos a uma reconstituição de toda a sua vida desde a infância em Buissonets; a partida para o Carmelo de sua irmã Pauline;  sua visita ao Papa para obter seu ingresso na mencionada Ordem aos quinze anos de idade; e as múltiplas angústias e as consolações espirituais que a fazem descobrir sua vocação profunda.  Exposta à regra severa do Carmelo e com uma saúde frágil, Teresa não resiste às fadigas que lhe são impostas. Aproveitando os conselhos do abade Combès, especialista no assunto, Haguet conseguiu boas cenas no segmento passado no convento e no encontro com o assassino Franzini – tocado por Deus, graças a Teresa, na manhã de sua execução. Faltou, porém, unidade de estilo e a explicação espiritual de uma vocação, do misterioso início da “história de uma alma”.

Outra santa, Bernadette Soubirous, teve sua vida abordada em: La Merveilleuse Vie de Bernadette / 1926 (Dir: Georges Pallu com Janine Borelli); A Canção de Bernadette / The Song of Bernadette / 1943 (Dir: Henry King com Jennifer Jones);  Il Suffit d’Aimer / 1961 (Dir: Robert Darène com  Danièle Ajoret.  Há ainda muitos documentários  sobre a Virgem de Lourdes  entre os quais o excelente trabalho de Georges Rouquier, Os Milagres de N. Sa. de Lourdes / Lourdes et Ses Miracles / 1954.

Em La Vie Merveilleuse de Bernadette, após ter ficado paralítica em virtude de uma tempestade violenta, a pequena Antoinette  Hirt (Janine Borelli) pede a seus pais que a levem a Lourdes. Seu padrinho organiza a estadia naquela cidade e ouve a história de Bernadette Soubirous pela madre superiora local, de 92 anos de idade. Tudo começou em fevereiro de 1858, quando Bernadette Soubirous (Alexandra) viu aparecer uma dama misteriosa (Janine Lequesne) perto da gruta de Massabielle. As aparições se sucederam suscitando a incredulidade dos habitantes, pelo menos até o jorro de uma fonte miraculosa. No dia da Anunciação, a dama misteriosa se apresenta como a Imaculada Concepção e a gruta se torna um santuário enquanto a polêmica aumenta na imprensa. Conduzida até a gruta, Antoinette sente-se investida da força divina e começa a caminhar. Filmado em Lourdes e nos estúdios de Saint-Laurent-du-Var, o filme teve uma exibição muito limitada fora do Deuxième Congrès Catholique pour le Cinématographe, que teve lugar em novembro de 1929 na Igreja de La Madeleine (Paris).

O filme de Henry King teve por origem o romance do escritor austríaco Franz Werfel mas o diretor e seu roteirista George Seaton fizeram um trabalho de seleção rigoroso, porque seria literalmente impossível transformar em imagem a integralidade do livro. Para encarnar Bernadette, escolheu uma jovem atriz de 24 anos, Jennifer Jones (antes no cinema como Phyllis Isley), dotada de uma beleza juvenil e de uma capacidade de interpretação instintiva. O público e a crítica celebraram o carisma e a presença cinematográfica de Jennifer e ela conquistou  o Oscar de Melhor Atriz. Curiosamente, o papel da Virgem Maria foi entregue a Linda Darnell , que não foi creditada nos letreiros de apresentação. A Canção de Bernadette talvez tenha sido o drama religioso mais sincero e comovente que saiu dos estúdios americanos, graças à delicadeza de sentimentos e à notável noção de continuidade do cineasta. Sem cair no evangelismo extremo ou na caricatura clerical, o espetáculo se posiciona mais como um testemunho de um destino do que como um apelo radical ao cristianismo.

Em Il Suffit d’Ainer Robert Darère optou pelo despojamento, desdenhando aparições e milagres, assumindo o risco de que a adoção desta atitude tornasse pouco compreensível a admiração de todo um país por uma pequena camponesa, que não tinha feito nada de notável. Boas cenas dramáticas, notadamente as do interrogatório e da conversão de Peyremale, e a interpretação transparente de Danièle Ajoret evitaram este perigo. Danièle comunica com uma tal sinceridade a sua fé ingênua e simples de sua personagem luminosa, que ela consegue tornar lógicos os milagres e aparições que não vemos nunca na tela.

Também a respeito de milagres tivemos, como exemplo: Os Milagres de Santo Antonio / 1909 de Antonio Serra com Erico Braga; Tragédia de Lourdes / Credo ou La Tragédie de Lourdes / 1923 de Julien Duvivier; O Milagre de Lourdes / Le Miracle de Lourdes / 1926 de B. Simon; Os Milagres de Nossa Senhora da Penha ou A Virgem da Penha e seus Milagres /1923 de Arturo Carrari com Nina Carrari e Olga Navarro; Rosas de Nossa Senhora / 1919, (2a versão em 1930) ambas de Pasquale di Lorenzo; Destino das Rosas / 1930 de Ary Severo; La Merveilleuse Tragédie de Lourdes / 1933 de Henri Fabert (com Jean-Pierre Aumont);

Os Milagres da Virgem de Lourdes / La Vierge du Rocher ou Le Drame de Lourdes / 1934 de Georges Pallu (com  Micheline Masson); La Reina del México / 1940 de Fernando Méndez; La Virgen que forjó una Pátria / 1942 de Julio Bracho (com Ramon Novarro); A Virgem Morena / La Vírgen Morena / 1947 de Gabriel Soria (com José Luis Jiménez); Fátima, Terra de Fé / 1943 de Jorge Brum do Canto; A Porta do Céu / La Porta del Cielo / 1945 de Vittorio de Sica; Senhora de Fátima / La Senora de Fatima / 1951 de Rafael Gil (com Inés Orsini); A Virgem de Fátima e, na reprise, O Milagre de Fátima / Miracle of Our Lady of Fatima / 1952 de John Brahm (com Susan Whitney).


E se os leitores tiverem fôlego para uma longa relação de santos retratados na tela, podemos citar: Santo Antonio em Antonio di Padova, Il Santo dei Miracoli / 1931 de Giulio Antamoro com Carlo Pizauti e em Santo Antonio de Padova / 1949 de Pietro Francisci com Aldo Fiorelli (e foto de Mario Bava); Santa Beatriz em A Lenda de Sóror Beatriz / La Legende de Soeur Beatrix / 1923 de Jacques de Baroncelli com Sandra Milovanoff; Santa Catarina de Sena em Caterina da Siena / 1947 de Oreste Palella com Regana de Liguoro; Santa Clara em La Tragica Notte di Assisi / 1961 de Raffaello Pacini com Leda Negrone; São Damião, o Apóstolo dos Leprososem Le Pèlerin de l’ Enfer  / 1947 de Henry Schneider com Robert Lussac e Molokai, a Ilha Maldita / Molokai / 1959 de Luis Lucia com Javier Escrivá; São Felipe de Jesus em Felipe de Jesús / 1949 de Julio Bracho com Ernesto Alonso; São Francisco Xavier no documentário Caminhos de S. Francisco Xavier / 1953 de Ricardo Malheiro; Santo Inácio de Loyola em El Capitán de Loyola / 1947 de José Diaz Morales com Rafael Durán;

Santa isabel em A Rainha Santa / La Reina Santa / 1947 de Rafael Gil com Maruchi Fresno (e Antonio Vilar como dom Diniz) e um projeto no cinema mudo de Antonio Leitão, O Milagre da Rainha;, que não foi realizado; Santo Isidoro em Isidro, El Labrador / 1964 de Rafael J. Salvia com Javier Escrivá; São João Bosco em Don Bosco / Don Bosco / 1936 de Goffredo Alessandrini com Gian Paolo Rosmino; São João  Maria Vianney, o Cura d’Ars  em O Feiticeiro do Céu / Le Sorcier du Ciel / 1949 de Marcel Blistène com  Georges Rollin (e no curta-metragem Ars / 1959 de Jacques Demy); São José de Cupertino em O Santo Relutante / The Reluctant Saint / 1962 de Edward Dmytryk com Maximilian Schell (e música de Nino Rotta); São Luis em Saint Louis, Ange de la Paix / 1950 (curta-metragem de Robert Darène com narração de Gérard Philipe); Santa Margarida de Cortona em De Pecadora a Santa / Margherita de Cortona /1949 de Mario Bonnard com Maria Frau; Santa Maria Goretti em Céu Sobre o Pântano / Cielo Sulla Palude / 1949 de Augusto Genina com Inés Orsini; Santa Maria Madalena em Maria di Magdala / 1918 de Aldo Molinaro com Ileana Leonidof, A Redenção de Maria Madalena / Redenzione / 1919 de Carmine Gallone com Diana Karenne, Maria Madalena / Maria Magdalena, pecadora de Magdala / 1945 de Miguel Contreras Torres com Medea de Novara e Maria MadalenaLa Spada e la Croce / 1958 de Carlo Ludovico Bragaglia com Yvonne de Carlo; Santa Maxência em Le Martyre de Sainte Maxence / 1927 de Donatien com Lucienne Legrand; São Miguel Garricois em L’Athlete aux Mains Nues / 1952 de Marcel Garand com Olivier Mathot; São Paulo em Le Chemin de Damas de Max Glass com Jean-MarcTenmberg;São Pedro em O Pescador da Galiléia / The Big Fisherman / 1959 de Frank Borzage com Howard Keel e no documentário Tu s Pierre / 1959 de Philippe Agostini; São Pio X em Gli Uomini non guardano el Cielo / 1952 de Umberto Scarpelli com Enrico Widon;

Santa Rosa de Lima em Rosa da AméricaRosa de America / 1946 de Alberto de Zavalia com Delia Garcés e Rosa de Lima / 1961 de José Maria Elorrieta com Maria Mahor; Santa Teresa de Ávila em Teresa de Jesus / 1961 de Juan Orduña  com Aurora Batista; São Thomas Beckett em Beckett, o Favorito do  Rei / Beckett / 1964 de Peter Glenville com Richard Burton: São Thomas Moore em O Homem Que Não Vendeu Sua Alma / A Man for All Seasons / 1966 de Fred Zinneman com Paul Scofield; Santa Ursula em La Legenda di Sant’Orsola / 1948 (curta-metragem de Luciano Emmer); São Vicente de Paulo em Monsieur Vincent, Capelão das Galeras / Monsieur Vincent / 1947 de Maurice Cloche com Pierre Fresnay; semfalar nos inúmeros filmes em que intervieram santos como, por exemplo, São Sebastião em Fabíola / Fabiola / 1949, São Pedro e São Paulo em Quo Vadis? / Quo Vadis / 1951 etc.

Para completar o quadro da hagiografia cinematográfica até o final dos anos 60, sou obrigado a mencionar algumas personalidades religiosas, que ainda não foram santificadas, tais como o nosso Padre José de Anchieta, encarnado por Thomaz Reid Valentino em Anchieta entre o Amor e a Religião / 1932  de Arturo Carrari ; o Papa João XXIII em E Venne un Uomo / 1965 de Ermano Olmi com Angelo Rossi, Giovannio Rossi e Fabrisio Rossi como Angelo Roncali respectivamente com sete, dez e quatro anos de idade e Rod Steiger como ”narrador” e sem representá-lo nas fases subsequentes à infância e à mocidade de Roncalli; o Cardeal Massaia em Abuna Messias / 1939 de Goffredo Alessandrini com Camillo Piloto e Charles de Foucauld, sobre o qual foram feitos dois filmes por Leon Poirier, L’Appel du Silence / 1936 com Jean Yonnel e La Route Inconnue / 1947 com Robert Darène.

Por curiosidade, deixei para o fim um santo peruano, São Martin de Porres, retratado em Frei Escova / Fray Escoba / 1961 de Ramon Torrado com René Muñoz e dois santos russos, Alexandre Nevsky, cuja vida inspirou o clássico Cavaleiros de Ferro / Alexsandr Nevskly / 1938 de Serguei M. Eisenstein com Nikolai Tcherkasov e Andrei Rublev, o iconista do século XV, interpretado por Anatoly Solonitsyn em Andrei Rublev, o Artista Maldito / Strasti po Andreyv / 1966 de Andrei Tarkovsky. Alexandre e Andrei eram santos, sim, mas da igreja Ortodoxa.

OS GRANDES WESTERNS DE JOHN FORD II

LEGIÃO INVENCÍVEL / SHE WORE A YELLOW RIBBON / 1949

(Foto: Winton Hoch)

Em  1876, após a morte do General George Armstrong Custer em Little Big Horn, algumas tribos indígenas começam a se reunir e a comprar armas, para lutar contra os brancos. O Capitão Brittles (John Wayne), que está prestes a ser reformado, efetua sua última missão. Ele conduz a mulher Abby (Mildred Natwick) e a sobrinha, Olivia Dandridge (Joanne Dru), do comandante de Fort Starke, Major Allshard (George O’Brien) até Sudros Wells, de onde sai a diligência para o Leste. Por causa da presença das mulheres, Brittles não pode correr o risco de enfrentar os selvagens. Ao chegar em Sudros Wells, ele encontra o posto avançado incendiado, e é obrigado a voltar para Fort Starke, deixando o Tenente Flint Cohill (John Agar) e dois esquadrões naquela região perigosa, Brittles quer retornar ao local para resgatar Cohill e seus homens, mas o Major Allshard manda o Tenente Ross Pennel (Harry Carey, Jr.) “ porque  aquele  jovem  tem que aprender a cruzar o rio sob o fogo”. Vários incidentes acontecem e, nos derradeiros minutos de sua vida militar, Brittles reencontra Cohill e Pennel e efetua um ataque audacioso contra o acampamento dos pele-vermelhas, espantando seus cavalos, e evitando assim uma guerra sangrenta. Quando pensa que vai deixar definitivamente o exército e a cavalaria, o capitão veterano recebe uma carta do Departamento de Guerra, promovendo-o a chefe dos batedores civis, com o posto de coronel.

É uma obra nostálgica sobre um velho militar, Capitão Nathan Britles, que  chegou, no fim de sua carreira, a uma reflexão sobre a aposentadoria e a velhice. Porém Ford também se afeiçoou pela personagem de Olivia Dandridge responsável pela atmosfera romântica do espetáculo. Os jovens tenentes Cohill e Pennel disputam seu coração, desejando saber para qual dos dois é a fita amarela simbólica, que ela traz no cabelo.

Sob o aspecto visual, o filme impressiona pelo colorismo do diretor e do fotógrafo (Winton Hoch ganhou  o Oscar): o azul dos uniformes que se destaca em paisagens grandiosas, o verde da árvores, a luz do sol em uma clareira, a mancha vermelha no manto de um índio, a poeira dourada levantada pelo galope dos cavalos, os ocres do Monument Valley, o amarelo da fita nos cabelos de Olivia…

Um sentimento de ternura se manifesta em uma cena inesquecível: sob um crepúsculo quase irreal, Nathan  fala com a esposa, Mary, diante do seu túmulo e de repente vai aparecendo a sombra de Olivia, que lhe traz um vaso de flores. Quando ela se afasta, Brittles diz para Mary:  “Boa moça, ela me lembra você”.

Outros momentos marcantes do espetáculo são a fuga do Sargento Tyrell (Ben Johnson) perseguido pelos índios, até que consegue pular o abismo; a operação do soldado ferido durante uma tempestade, com o céu escuro iluminado pelos raios; o enterro do soldado Smith (Rudy Bowman) em Sudros Wells; a eliminação dos traficante de armas pelos índios, assistido por Brittles, Pennell e Tyrell; a briga do Sargento Quincannon (Victor MacLaglen) no bar, abatendo vários soldados até que chega a mulher do Major, e o manda no grito para a cadeia; a conversa entre Brittles e o velho cacique Pony That Walks; o ataque noturno ao acampamento de Red Shirt e a debandada do rebanho de pôneis; a despedida de Brittles, diante dos cavaleiros perfilhados, recebendo o relógio de prata e colocando os óculos para ler, comovido, a inscrição carinhosa nele gravada.

CARAVANA DE BRAVOS / WAGON MASTER / 1950

(Foto: Bert Glennon, Archie Stout / 2a unidade).

Dois vaqueiros, Travis Blue (Ben Johnson) e Sandy Owens (Harry Carey, Jr.), chegam em Crystal City, para vender cavalos selvagens. Eles são abordados por dois mórmons, Jonathan Wiggs (Ward Bond) e Adam Perkins (Russell Simpson), que se oferecem para comprar todos os animais, se eles quiserem servir como guias da sua caravana de colonos até San Juan Valley, no Utah. No percurso, eles encontram uma pequena trupe de artistas itinerantes, composta pelo Dr. A. Locksley Hall (Alan Mowbray) e seus assistentes Floretty “Florey” Phyffe (Ruth Clifford), Mr. Peachtree (Francis Ford) e a jovem e linda Denver (Joanne Dru). Os artistas tiveram que beber o elixir que vendiam para aguentar  o calor escaldante e por isso estão todos bêbados. Isto desagrada Adams, porém Wiggs simpatiza com os artistas, e convence  seu amigo puritano a aceitá-los no grupo. No deserto, os membros da caravana, depois de saciarem a sede nas águas de um rio, organizam um baile. A festa é interrompida pela chegada da família Clegg, quatro foragidos da lei liderados por Uncle Shiloh (Charles Kemper). Este, que fôra ferido no ombro durante um assalto, diz aos viajantes que ele e seus “meninos” – os irmãos Luke (Hank Worden), Reese  Fred Libby), Jesse (Mickey Simpson) e Floyd (James Arness) são vaqueiros. Travis e Sandy conhecem sua verdadeira identidade mas, para proteger o grupo, decidem – de acordo com Wiggs – permitir que os bandidos viajem com a caravana. Os índios aparecem, porém não atacam, por respeitarem os mórmons, e convidam todos para o seu acampamento. Durante uma dança indígena, uma mulher navajo (Movita Castenada) denuncia Reese por ter tentado violentá-la e Wiggs imediatamente ordena que o bandido seja chicoteado. Shiloh permite que a punição seja executada, para evitar problemas. Logo depois, os artistas se despedem dos mórmons, mas são detidos por Shiloh, que os obrigam a retornar à caravana. Após uma passagem difícil por uma montanha, os bandidos tentam roubar as sementes que os colonos transportam, porém são finalmente mortos por Sandy e Travis; e os mórmons finalmente chegam à Terra Prometida. Sandy beija Prudence (Kathleen O’Malley), a filha de Adams, e Travis se reúne com Denver.


Verdadeiro filme-poema, construído episodicamente, no qual Ford expressa seu amor pelo Oeste e pelos verdadeiros cowboys, usando imagens encantadoras e uma comovente trilha musical de hinos e canções folclóricas, inclusive a obrigatória “Shall We Gather at the River”. Alternando drama e humor em uma coleção de incidentes apresentados de maneira natural, espontânea, singela, Caravana de Bravos é obra-prima de um cineasta agindo como pintor e músico (pelo seu andamento, pelas suas repetições), uma mistura de epopéia lírica com realidade cotidiana, impregnada de valores humanistas e religiosos (a fé, os esforços e a tolerância dos mórmons, a amizade sincera e solidária dos dois vaqueiros, a mulher perdida tocada pela graça, o valor da família, a busca da paz etc.). “O western mais puro e mais simples que já fiz”, declarou o cineasta, referindo-se a um de seus filmes prediletos.

RIO BRAVO / RIO GRANDE / 1950.

(Foto: Bert Glennon, Archie Stout / 2a unidade)

O Tenente Coronel Kirby Yorke (John Wayne) comanda um forte perto da fronteira mexicana e deve repelir as incursões dos apaches vindos do México. Em um destacamento de novos recrutas, ele tem a surpresa de ver seu filho Jeff (Claude Jarman, Jr.), que foi reprovado em West Point. Pouco depois, recebe a visita de sua esposa, Kathleen (Mauren O’Hara), de quem vive separado desde a Guerra de Secessão quando, como oficial nortista, ele teve que cumprir as ordens do General Sheridan (J. Carroll Naish) e incendiar a plantação da família dela no Sul. Eles se encontram pela primeira vez em quinze anos, no momento em que ela veio ao forte, para comprar o desligamento do filho. Jeff treina para se tornar um bom soldado e, após uma luta, que Kirby observa de longe, conquista o respeito de seus camaradas. No curso de uma aula de equitação “à maneira dos antigos romanos”, surge um delegado (Grant Withers) em busca do soldado Tyree (Ben Johnson), um sulista, que é acusado de assassinato em defesa da honra de sua irmã; mas os outros recrutas o escondem. Durante um levante dos apaches, as mulheres e crianças são enviadas para a segurança de um outro forte, porém  o destacamento que as conduz  é atacado, e as crianças capturadas pelos índios. Jeff, Tyree e Boone (Harry Carey, Jr.) penetram furtivamente na igreja, onde os menores estão retidos e, quando a cavalaria chega, conseguem libertá-las. York é ferido no combate e manda Jeff tirar a flecha do seu peito. No forte, Kathleen aguarda com as outras esposas os destacamento que retorna. Ela avista o marido em uma maca, aperta sua mão, e caminha ao seu lado até a enfermaria. Mais tarde, sob o olhar orgulhoso do pai, Jeff é condecorado por bravura. No meio da cerimônia, Tyree rouba o cavalo do General Sheridan e escapa do delegado, com o encorajamento de York. O regimento então desfila sob os acordes de “Dixie”,  tocada em homenagem a Kathleen.

O entrecho, de estrutura circular, ultrapassa os limites do western clássico e atinge o domínio  dos conflitos cornelianos: Yorke é quase o Cid com sua famosa oposição entre o dever e o amor. Quando ordenado a queimar a fazenda de sua noiva, Kirby não tinha como agir de acordo com seus princípios: teve que obedecer ordens superiores. Porém, no decorrer da história o coronel vai descobrir com sua mulher e seu filho novos sentimentos, uma nova maneira de viver.

Cavalgadas em exteriores grandiosos (Monument Valley e Mexican Hat no Utah); a vida cotidiana em um forte isolado; intervalos cômicos a cargo do Sargento Quincannon (Victor MacLaglen);  belas canções (executadas pelos Sons of the Pioneers), que exaltam o espírito da corporação e a abnegação dos militares e outras que emocionam (vg. “I’ll Take You Home Again, Kathleen”); cenas de ação excitante como o resgate das crianças na igreja da aldeia mexicana com uma das meninas tocando o sino,  o ataque da tropa, e Quincannon, segurando pelo braço uma das fugitivas e se ajoelhando diante do altar antes de sair; alguns momentos sentimentais que nos comovem, como o passeio noturno de Yorke pelas margens do Rio Grande, refletindo sobre o que perdeu enquanto ao fundo se ouve “My Gal is Purple”, cantada por alguns membros do regimento à luz de uma fogueira – a tudo isso a gente assiste com prazer.

RASTROS DE ÓDIO / THE SEARCHERS / 1956.

(Foto: Winton Hoch)

O Texas em 1868. Ethan Edwards (John Wayne) ex-confederado, chega à fazenda  de seu irmão Aaron (Walter Coy). No dia seguinte, Sam Clayton (Ward Bond), que é ao mesmo tempo pastor e capitão dos Rangers, convoca-o para irem atrás de ladrões de gado. Porém o roubo de gado era uma armadilha, para afastar os Rangers. No seu retorno, Ethan depara-se com a casa incendiada, o irmão, a cunhada Martha (Dorothy Jordan) mortos e as duas sobrinhas Lucy (Pippa Scott) e Debbie (Lana Wood) sequestradas pelos índios. Na companhia de Brad Jorgensen (Harry Carey, Jr.), noivo de Lucy e Martin Pauley (Jeffrey Hunter), um jovem mestiço adotado pelos Edwards, Ethan segue a pista dos assassinos. Após alguns meses, os três homens descobrem o cadáver de Lucy. Brad, louco de dor, ataca o acampamento indígena e morre. Anos depois, Martin e Ethan voltam para a fazenda dos Jorgensen (John Qualen, Olive Carey), vizinhos de Aaron, e ficam sabendo que Debbie (Natalie Wood), já adulta, está vivendo entre os comanches. Passados mais alguns meses, em New Mexico, eles encontram Debbie como mulher do chefe “Scar” (Henry Brandon); mas ela se recusa a seguí-los, pois se considera uma verdadeira índia. Furioso, Ethan quer matá-la, porém Martin não deixa. Os dois voltam novamente para a fazenda dos Jorgensen, onde Martin impede que a filha destes, Laurie (Vera Miles), sua antiga namorada, se case com outro. Mais tarde, o chefe “Scar” é visto na região. Durante um ataque de surpresa  dos Rangers ao acampamento comanche, Martin consegue libertar Debbie. Ethan a princípio não desiste da idéia de matá-la, mas afinal reconhece a moça como sua sobrinha, erguendo-a amorosamente nos braços. Todos retornam para o lar dos Jorgensen. Tudo em ordem, Ethan parte para o agreste.

Rastros de Ódio aborda os grandes temas do western: o racismo, os problemas dos prisioneiros brancos, as guerras com os índios com seu cortejo de massacres de ambas as partes etc. Entretanto, Ford se apega ao seu herói, este “homem só”, irremediavelmente perdido e afastado da civilização, do calor do lar e da vida, enigmático e taciturno, movido pelo ódio que, em busca da sobrinha, empreende uma imensa odisséia, que se desenrola sob a neve e no deserto, em uma impressionante variedade de paisagens.

O aspecto selvagem, antissocial do personagem Ethan é representado por sua afinidade com os índios, especialmente “Scar”. Quando seus homens encontram o índio enterrado, ele demonstra sua intimidade com os seus costumes, atirando nos olhos do morto para que, segundo a religião indígena, ele possa “perambular para sempre entre os ventos”. Ethan conhece os índios, sabe o que seus sinais significam e quais serão os seus planos. Ele fala a língua deles assim como “Scar” fala a sua. E quando eles finalmente se encontram face a face, é como se fosse um homem olhando no espelho. Cada qual sabe o que o outro é, porque está ali, e o que devem fazer. Na tenda, “Scar” diz a Ethan que seus filhos estão mortos e para vingar cada um deles, ele executa muitos escalpos. Do mesmo modo, Ethan quer se vingar dos índios, porque Martha e Aaron estão mortos.

A célebre porta que se fecha no final do filme, mostra que o protagonista, tal como o cadáver do índio, cujos olhos ele alvejara, terá que andar errante eternamente “entre os ventos”, sem encontrar um lar permanente. Continuará sendo um intruso na sociedade assim como era quando chegou ao rancho de seu irmão.


Os exteriores do filme foram rodados principalmente no Monument Valley – que desde No Tempo das Dilgências serviu para muitos westerns do diretor. Todo o filme “respira” estas vastas extensões onde a areia, o vento quente, a distância, os enormes blocos rochosos esculpidos pela erosão, a falta de água, o sol tórrido, criam um clima pesado, desolador, desértico, e desumano. Visualmente, o filme representa a arte de John Ford no seu ápice. Seu grande amor pela humanidade e pela natureza se espalha em imagens majestosas, tocantes, e por vezes brutais, que se organizam para formar um grande e belo poema lírico.

O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA / THE MAN WHO SHOT LIBERTY VALANCE / 1962.

(Foto: Willian H. Clothier)

Em O Homem Que Matou o Facínora, o senador Ransom Stoddard (James Stewart) e sua esposa Hallie (Vera Miles), chegam a Shinbone, pequena cidade do Colorado. Os repórteres querem saber o motivo de sua viagem. Stoddard responde que veio assistir ao enterro de seu amigo Tom Doniphon (John Wayne). Quem é Tom Doniphon? O senador conta a sua história. Anos atrás, a cidade de Shinbone estava sob a dominação de um malfeitor, Liberty Valance (Lee Marvin). Eis que chega Ransom Stoddard, jovem advogado idealista, desejoso de fazer respeitar a lei. Sua concepção de legalidade e de justiça se opõe à de Tom Doniphon, um outro durão da localidade, mas simpático e sentimental. Segundo Doniphon, para se livrar de Liberty Valance, é preciso matá-lo. Ele aconselha Stoddard a aprender o manejo das armas. Stoddard se enfurece: ”Que país é este, onde se é obrigado a fazer justiça pelas próprias mãos?” O advogado faz amizade com Dutton Peabody (Edmond O’Brien), o grandiloquente diretor e redator do jornal A Estrela de Shinbone. Peabody denuncia a supremacia dos grandes criadores de gado (para quem Valance trabalha), que ameaçam os humildes fazendeiros. Stoddard alfabetiza crianças e adultos, entre eles Hallie, empregada de um casal de imigrantes suecos donos de uma cantina e Pompey (Woody Strode), o fiel servidor negro de Tom Doniphon. Preparam-se as eleições para designar dois representantes à Convenção Estadual. Liberty Valance se apresenta, mas é derrotado por Stoddard e Peabody. Furioso, Valance desafia Stoddard. Os amigos do advogado aconselham-no a fugir. Valance destrói a redação do jornal e tortura Peabody impiedosamente. Stoddard então decide ficar e enfrentar Valance. Contra toda a expectativa, o bandido cai morto. Hallie aperta Stoddard nos seus braços. Doniphon os vê e compreende que perdeu sua noiva. Ele se embriaga e põe fogo na casa que acabara de construir para Hallie. Na Convenção, Peabody lança a candidatura de Stoddard, porém os adversários políticos o acusam de ter fundado sua reputação sobre a morte de Liberty Valance. Stoddard pensa em voltar para o Leste, porém encontra Doniphon e este lhe revela as circunstãncias verdadeiras do duelo. No momento fatídico, foi ele Doniphon quem atirou  e matou Valance. Stoddard é eleito senador. Ao terminar sua narrativa, um jornalista rasga suas anotações e diz: “No Oeste, quando a realidade se converte em lenda, publicamos a lenda”.

Rodado quase que inteiramente em estúdio, com a ação transcorrendo em um ambiente relativamente confinado, e com dois astros já envelhecidos interpretando personagens bem mais moços do que eles, o filme aborda vários temas que se entrelaçam: a civilização do Oeste e a morte de seus mitos e heróis; as relações entre a força e o direito; uma reflexão sobre a realidade e a lenda; os fundamentos da democracia americana (Peabody, o jornalista e Stoddard, o tribuno, são as duas figuras de proa de uma democracia em marcha).

Ford parece mais preocupado com o que se perdeu do que com o que se ganhou, quando uma cidade do Oeste selvagem entrou na era moderna. Ele reconhece a bravura e o idealismo de um jovem jurista que desperta a responsabilidade cívica contra a ilegalidade e depois, como político, ajuda a apagar os últimos vestígios do barbarismo; porém lamenta claramente o declínio do arquetípico individualista da fronteira. Duas cenas magistrais mostram a “perdição” espiritual de Tom Doniphon: a primeira, quando vemos as lágrimas de Hallie e a sua mão afagando o rosto de Stoddard e Doniphon na soleira da porta, com o coração partido; a segunda cena, quando Doniphon põe fogo na casa, na qual pretendia morar com Hallie, em um acesso de cólera digno de Aquiles.

Quando Stoddard chega em Shinbone, seus livros de direito são tão impotentes quanto ele. Liberty rasga várias páginas e diz,” Vou lhe ensinar lei – a lei do Oeste” e bate nele com o seu chicote. A antítese de Stoddard é Tom Doniphon, um herói violento do sertão cuja posição de respeito na comunidade está sendo minada pela sociedade moderna. Entretanto, Doniphon reconhece a inevitabilidade da mudança e a apóia. Ele parece ter aceito estoicamente o seu desaparecimento, mergulhando no anonimato, quando sonega o fato de que foi ele, e não Stoddard, que realmente matou Liberty Valance.

Já Stoddard sabe quem matou o facínora, e assim, nunca poderá ficar inteiramente à vontade, ao ser aclamado na sua carreira política como o homem que trouxe o progresso para o Oeste. Na cena final, depois de ter colocado a flor de cactus no túmulo de Doniphon, Hallie e Stoddard, a caminho de Washington, refletem sobre esta verdade inquietante, e enquanto o trem cruza os campos gramados, o filme termina com uma nota de melancolia.