O cinema de John Ford é simples, claro, fluente, na melhor tradição clássica. Ele espalha sobre seus filmes não somente seu estilo, mas também seu espírito, sua poesia, seu sentimento, que tão profundamente nos atinge. É também um grande pintor, sem dúvida o maior pictorialista da sétima arte. Um filme de Ford é antes de tudo um prazer estético visualmente. Ele usa a câmera como um pincel, criando imagens bonitas e, para homenageá-lo, escolhí alguns westerns, que considero os melhores de sua carreira.
O CAVALO DE FERRO / THE IRON HORSE/ 1924.
(Foto: George Schneiderman)
Davy Brandon (George O’Brien), cavaleiro do Correio Expresso, escapa dos índios, pulando para um trem em movimento na primeira parte do percurso da Union Pacific, que está sendo construída por Thomas Marsh (Will Walling), pai da namorada de infância de Davy, Miriam (Madge Bellamy). Davy e Miriam se reconhecem, mas ela está noiva de Peter Jesson (Cyril Chadwick), engenheiro do leste com a incumbência de achar um atalho para a estrada de ferro. Davy tenta mostrar-lhe o caminho que ele e seu pai haviam encontrado anos atrás, porém Jesson trabalha na verdade para Bauman (Fred Kohler), dono de um grande rancho, cujo interesse é que a ferrovia passe por suas terras. Jesson tenta matar Davy, porém este sobrevive e briga com o rival. Mal compreendido por Miriam, o rapaz vai prestar serviços na outra extremidade da linha. Durante um ataque de índios, Davy reconhece Bauman como o “índio” com a mão mutilada, que assassinara seu pai, e o mata em uma luta corpo a corpo. Após a junção das duas linhas, Davy e Miriam se reconciliam.
Conjugando com felicidade a ação individual (a história privada de um jovem que pretende vingar a morte do pai) e a epopéia coletiva (a construção da ferrovia transcontinental), esta superprodução tem como aspectos mais notáveis: 1. filmagem em locação no Nevada com um grande número de figurantes; 2. magnificência visual dos cenários selvagens e de outros elementos originais da mitologia do Oeste (rebanho de gado bovino, manada de búfalos, confrontos com índios, tiroteio no saloon, contribuição das comunidades pioneiras integradas por imigrantes chineses e italianos; aparição de figuras como Wild Will Hickock e Buffalo Bill); 3. emprego dinâmico da câmera e efeitos de fotografia nas cenas de ataque dos índios, sendo inesquecível a sombra ameaçadora dos peles-vermelhas no vagões do trem; 4. recriação, com uma precisão documentarista, dos detalhes físicos da construção da ferrovia, notadamente, no final do filme, a junção das duas ferrovias no dia 10 de maio de 1896 em Promontory Point no Utah.
Ford usa pela primeira vez o trio de “mosqueteiros”, tanto para a comédia como para a tragédia. Slaterry (Francis Powers), Casey (J. Farrell MacDonald), e Schultz (James Welch), três grandes amigos que lutaram na Guerra Civil, acompanham o herói. Eventualmente, Schultz é ferido, Slaterry é morto e Casey vai com Davy para a Western Pacific. Quando as duas linhas finalmente se unem, os dois “mosqueteiros” remanescentes se abraçam e desejam que o terceiro camarada estivesse ali. Sua morte simboliza as provações que toda nação teve que suportar para a construção da obra grandiosa.
TRÊS HOMENS MAUS / 3 BAD MEN / 1926.
(Foto: George Schneiderman)
No Dakota, por ocasião da corrida do ouro de 1877, três bandidos simpáticos, Mike Costigan (J. Farrell Macdonald), Bull Stanley (Tom Santschi) e “Spade” Allen (Frank Campeau), decidem proteger Lee Carlton (Olive Borden), a filha de um criador de cavalos assassinado por um xerife corrupto, Layne Hunter (Lou Tellegen). O amor entre Lee e Dan O’Malley (George O’Brien), jovem imigrante irlandês em busca de ouro, floresce à sombra desses “anjos da guarda”, que não hesitam em se sacrificar, para salvar o casal. O maior interesse na vida de Bull é sua irmã, Millie (Priscilla Bonner). Ela fugiu de casa com Layne Hunter sob a promessa de casamento, mas Layne recusou-se a se casar e chegou até a “entregá-la” para outro homem. Bull é impedido de ter qualquer envolvimento emotivo com a irmã, e só conseguiu ficar perto dela, quando ela estava morrendo. Finalmente, Bull lidera uma revolta contra Layne, cujos capangas incendeiam a igreja repleta de mulheres e crianças. Bull, Dan e alguns cidadãos as resgatam, porém Millie é alvejada, e morre nos braços de Bull. No desenlace, um a um, os três homens maus vão perdendo suas vidas, ao repelirem os homens de Layne. Bull mata Layne e morre. Anos depois, Dan e Lee, com um bebê que tem o nome dos três “anjos da guarda”, continuam sendo protegidos pelos espíritos dos seus amigos.
Boa parte da filmagem em locação teve lugar em Jackson Hole, no Wyoming, porém Ford rodou as cenas da corrida do ouro no Deserto de Mojave, na Califórnia, utilizando diligências, carroças, vários tipos de carruagens, e centenas de homens a cavalo – em desabalada correria. Durante a corrida, chama atenção a cena em que um bebê chorando está prestes a ser pisoteado pelos cavalos e veículos em disparada. No último momento, um cavaleiro surge dentro do quadro, abaixa-se e ergue a criança, deixando-a em segurança – um momento de ação realmente excitante.
Usando a trinca de sublimes canalhas, para veicular, em uma saga de aventura picaresca, o tema da amizade e da redenção, Ford obtém mais uma vez um perfeito equilíbrio entre os elementos íntimos e épicos da trama, demonstrando novamente seu humor peculiar (“Meu nome e endereço é Dan O’Malley”), sua notável acuidade visual (o primeiro encontro de Dan e Lee, vistos através da roda de uma carroça, a abertura traseira de um dos veículos da caravana enquadrando mãe e filho no interior e mostrando a ampla paisagem; Layne e Millie separados – física e emocionalmente – por uma pequena janela enquanto conversam; o funeral de Millie com Bull levando-a nos braços, enquadrado pelos archotes, seu senso de ação cinematográfica (a corrida para as terras, a morte do vilão surpreendido pela reaparição súbita do último “homem mau”), seu sentimentalismo (a dedicação dos protetores) e sua veia poética (as despedidas entre os três amigos quando eles se preparam para enfrentar a morte e depois a silhueta deles cavalgando sob o crepúsculo).
NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS / STAGECOACH / 1939.
(Foto: Bert Glennon)
Foi a realização deste filme que, segundo muitos críticos, teria criado todos os clichês do gênero. Entretanto, o filme apenas reúne um espaço (as grandes planícies do oeste), acontecimentos (a viagem, o ataque dos índios, a perseguição), e sobretudo uma galeria de tipos (Hatfield / John Carradine, o cavalheiro sulista, jogador e arruinado; Dr. Josiah Boone / Thomas Mitchell, o médico alcoólatra; Samuel Peacock / Donald Meek), o vendedor de uísque; Henry Gatewood / Berton Churchill, o banqueiro escroque; o tenente da cavalaria Tenente Blanchard / Tim Holt; o cocheiro da diligência, Buck / Andy Devine; a mulher grávida de um oficial do exército, Lucy Mallory / Louise Platt); Curly Wilcox / George Bancroft, o xerife; Ringo Kid / John Wayne, o fora-da-lei; Dallas / Claire Trevor, a prostituta etc., que fazem parte da tradição do western – não há nada de novo. A mestria de Ford consiste na composição dramática de elementos conhecidos.
Ringo e Dallas são duas pessoas interiormente puras, que sofrem o preconceito social. Durante a maior parte do filme, ele não percebe que Dallas é uma prostituta. Ringo pensa que as pessoas estão desprezando Dallas na mesa de jantar, porque ela está sentada ao seu lado. E, quando Dallas o faz descobrir a verdade, ele não muda sua opinião a respeito dela. Mais tarde, Dallas ajuda Doc Boone a fazer o parto de Lucy Mallory. Quando a prostituta carrega o bebê nos braços para os outros verem, ela exclama alegremente: “É uma menina”, e Ford, no momento mais lindo do filme, mostra Dallas sob uma iluminação radiante, transformando-a em uma Madona.
O cineasta escolheu um cenário grandioso, filmando pela primeira vez no Monument Valley, área isolada da reserva dos índios Navajos, onde o Utah faz limite com o Arizona. O instinto artístico de Ford parece ter sido estimulado por esse panorama arrebatador, sendo admiráveis alguns planos gerais da diligência correndo através dessa região. No mesmo local, ocorrem os instantes mais excitantes de ação, quando os índios perseguem a diligência e o stuntman Yakima Canutt executa duas das cenas arriscadas mais memoráveis da História do Cinema. Dublando um índio, Yak pula do seu cavalo para cima de uma parelha de cavalos da diligência. Alvejado por Ringo, ele é arrastado para debaixo dos cavalos, até que leva outro tiro de Ringo, e morre. Logo depois, dublando John Wayne, Yak pula da boléia da diligência para a primeira parelha de cavalos, e vai passando do pescoço de um para outro, até alcançar a parelha da frente, e apanhar as rédeas que Buck, o cocheiro, deixara cair.
O movimento do filme, retomado por etapas da viagem e seus incidentes – Dry Fork, onde o grupo decide continuar seu percurso apesar da ausência da escolta militar; Apache Wells, onde Mrs. Mallory dá a luz; Lee’s Ferry com a sua travessia de rio difícil; Lordsburg, no qual ocorre o clímax e o desenlace, quando Ringo elimina os assassinos de seu pai e irmão, e foge com Dallas das “bençãos da civilização” – se baseia, de um lado, na evolução das relações entre os membros do grupo e, de outro, na tensão crescente dos perigos que o ameaçam. Assim, No Tempo das Diligências é, sem cessar e ao mesmo tempo, uma epopéia trágica e um drama psicológico, uma aventura coletiva e uma série de aventuras individuais, destacando-se entre estas a do fora-da-lei heróico e a da prostituta de bom coração (cujo personagem e situação lembram a Boule de Suif de Maupassant).
As reações dos diversos personagens, provocadas por sua educação ou preconceitos, alargam o quadro do filme e fazem desse microcosmo que é a diligência uma amostra da sociedade americana do fim do século XIX. Pode-se dizer, a respeito dessa obra, que ela abriu caminho para um western mais cerebral, consciente de seus temas e de sua significação.
AO RUFAR DOS TAMBORES / DRUMS ALONG THE MOHAWK / 1939.
(Foto: Bert Glennon, Ray Rennahan)
Dois jovens récem-casados, Gil Martin (Henry Fonda) e Lana (Claudette Colbert), se instalam no Vale do Mohawk, na Nova Inglaterra, em plena Guerra da Independência. Ali, eles constroem seu futuro, enfrentando as dificuldades da vida na fronteira e se defendendo dos índios e dos ingleses. Neste ambiente conturbado, a moça educada no Leste torna-se mãe e pioneira.
Os valores diferentes ente Leste e Oeste estão representados no personagem de Lana. A história começa com a câmera focalizando em plano próximo o seu buquê de noiva. Depois, se afasta, para revelar a cerimônia do casamento em um ambiente elegante, com todos os convidados muito bem vestidos. Após a festa, Lana e Gil partem na sua carroça, deixando a residência ampla de Albany. À medida em que progridem na sua viagem para o Oeste, ela vai se sentindo cada vez mais deslocada e, quando chega na cabana em uma noite chuvosa, picada pelas moscas, molhada e cansada, Lana tem um ataque histérico ao ver, um passo à frente da porta, a figura gigantesca do índio cristão Blue Back (Chief Big Tree) com a sua capa vermelha. A transformação de Lana em uma mulher da fronteira começa quando os Martin perdem sua primeira fazenda saqueada pelos índios, e se consolida na cena da última batalha, na qual ela, vestida com o casaco de um soldado, mata o índio no forte.
É o primeiro filme em cores de Ford e ele se esmerou, registrando com seu gênio pictórico, belas imagens das florestas e dos vales de Utah, especialmente na longa e silenciosa corrida de Gil para buscar auxílio, perseguido por três índios. Porém o momento mais brilhante do ponto de vista cinematográfico ocorre quando Lana vê Gil partindo para a guerra. Lana fica parada no topo de um pequeno morro contemplando de longe as tropas marchando em fila e, quando estas se afastam, ela cai no solo em cima de um de seus braços, exprimindo assim o sentimento de perda.
Entre momentos de ternura e coragem, manifesta-se o humor fordiano em uma cena deliciosa, que ocorre no quarto de Mrs. McKlennar (Edna May Oliver), quando a velha senhora, com a convicção absoluta de que eles são selvagens e ela civilizada, dá uma bofetada em um dos dois índios, que vieram queimar sua casa, obrigando-os a carregar a cama para a parte de baixo da moradia.
No final desse pré-western patriótico (produzido no limiar da Segunda Guerra Mundial) Gil, Lana, a criada negra de Mrs. Klennar, o índio Blue Back e outros contemplam a nova bandeira americana, que está sendo içada no campanário da igreja e que resume tudo pelo qual eles estiveram lutando: a construção da América.
PAIXÃO DOS FORTES / MY DARLING CLEMENTINE / 1946.
(Foto: Joseph P.MacDonald)
Conduzindo seu rebanho através do Arizona para a Califórnia, os irmãos Earp, Wyatt (Henry Fonda), Morgan (Ward Bond), Virgil (Tim Holt) e James (Don Garner), encontram o velho Clanton (Walter Brennan) e um de seus filhos (John Ireland, Grant Withers, Mickey Simpson, Fred Libby), que se oferece para comprar o gado. Wyatt recusa e, na mesma noite, vai com seus irmãos mais velhos para a cidade próxima de Tombstone, deixando James, o mais moço, tomando conta dos animais. Depois que Wyatt domina um índio bêbado, que estava causando transtornos à população, é convidado para ser xerife, porém recusa. Quando os irmãos retornam ao campo, descobrem que o gado foi roubado e James assassinado. Wyatt então aceita o cargo de xerife, com a determinação de vingar a morte do irmão. Nessa missão, Wyatt se envolve com o outrora médico e agora alcoólatra, assaltante e tuberculoso Doc Hollyday (Victor Mature), sua ex-noiva e enfermeira, Clementine (Cathy Downs), e Chihuahua (Linda Darnell), a mexicana namorada de Doc. Após várias peripécias, ajudado por Doc, Wyatt confronta-se com os Clanton no duelo em O.K. Corral. Todos os Clanton morrem, Doc também, e Virgil havia sido morto pelos Clanton anteriormente. Wyatt e Morgan deixam a cidade, levando os corpos de seus irmãos para a casa de seus pais; mas Wyatt pretende voltar, a fim de rever Clementine, que resolve ficar em Tombstone, como professora da escola.
A partir dos personagens do célebre duelo no O.K. Corral, Ford realiza com Paixão dos Fortes um western onde a lenda prevalece sobre a realidade histórica, ou seja, o Wyatt Earp do filme não é o Wyatt Earp real, mas sim o herói romântico. Wyatt e seus irmãos, que se dedicavam ao jogo e à exploração do lenocínio, foram acusados de roubo de cavalos e gado, assaltos a diligências e várias mortes. Virgil, e não Wyatt, é que era xerife em Tombstone.
Porém o filme tem um tema: a chegada da civilização no Oeste. A cidade de Tombstone torna-se o lugar onde forças selvagens – representadas pela paisagem agreste, o rochoso Monument Valley, os Clantons brutais, a mexicana Chihuaha, o índio bêbado que ninguém tem coragem de enfrentar – e as forças civilizadas – representadas pelos “respeitáveis” Earp, pelo culto Doc Holiday (que recita Shakespeare de cor) e pela pura Clementine – se encontram. Por outro lado, Ford faz um paralelo entre a transformação do vaqueiro independente em um homem da lei responsável e a transformação daquela vila da fronteira onde reina a anarquia, em uma comunidade ordeira com sua igreja, escola, a nova, e professora. O espetáculo tem esta estrutura simétrica.
A visão mítica dos personagens baseia-se tanto nas suas proezas como nos pormenores pitorescos de seu comportamento (vg. as inesquecíveis cenas de Earp equilibrando-se na cadeira, da recitação de Hamlet no saloon, e do velho Clanton chicoteando o filho por ter puxado a arma, sem ter conseguido matar. Uma sequência como a do baile popular na inauguração da igreja, onde o tímido Wyatt Earp decide dançar com Clementine, mostra bem a união do tema “social” com o tema “sentimental”, ao mesmo tempo em que faz um contraste com os momentos conturbadores do confronto final.
Ford escreveu ele mesmo algumas frases muito divertidas durante a filmagem. Expressando admiração por Clementine depois que ela ajudou Doc a operar Chihauha no saloon, Wyatt vira-se para o velho irlandês atendente de bar (J. Farrell MacDonald), e pergunta: “Mac, você já esteve apaixonado?”. Mac responde: “Não – fui atendente de bar durante toda a minha vida”. Quando Clementine na varanda do hotel, aspirando profundamente, murmura: “O ar está tão claro e limpo – perfume de flor do deserto”. Wyatt, constrangido, retruca: “É o meu – barbeiro”.
SANGUE DE HERÓIS / FORT APACHE / 1948.
(Foto: Archie Stout)
Após a Guerra Civil, o Tenente Coronel Owen Thursday (Henry Fonda), sentindo-se desprestigiado por ter sido enviado aos confins do Oeste, assume o comando do Fort Apache. Ele traz consigo sua filha Philadelphia (Shirley Temple), que é imediatamente atraída pelo jovem Tenente Michael Shannon O’Rourke, diplomado em West Point e filho do Sargento-Major O’Rourke (Ward Bond); porém o pai se opõe à união dos dois por motivo de diferença de classes. O severo e rigoroso Thursday é informado pelo Capitão Kirby York (John Wayne) e seu velho amigo Capitão Samuel Collingwood (George O’Brien) sobre a iminência de uma insurreição dos apaches, mas a ignora zombeteiramente. Posteriormente, York acerta um acordo de paz com Cochise, mas o arrogante e inflexível Thursday, indignado com as exigências do líder apache, ordena o ataque. Da batalha, ele usa uma estratégia militar suicida, e acaba morrendo com bravura, assim como a maior parte da tropa. York e os sobreviventes então se rendem para Cochise. Anos mais tarde, depois do casamento de Philadelphia com Michael York, nomeado comandante do Fort Apache, defende a reputação de Thursday, quando questionado pelos repórteres sobre o massacre.
Primeiro western da chamada “trilogia militar”, ou da Cavalaria (formada com Legião Invencível e Rio Bravo), é um hino a uma instituição que o diretor muito admirava. Retratando com prazer o pequeno universo do forte, Ford integra ao lado das cenas de ação propriamente ditas (vg. a descoberta dos soldados massacrados no poste do telégrafo por Michael e Philadelphia, o retorno de Michael ao mesmo local e a subsequente perseguição dos apaches, a investida fútil de Thursday e sua morte nas mãos de Cochise), cenas de comédia ( vg. a cena em que os quatro sargentos – Mulcahy / Victor McLaglen), Beaufort (Pedro Armendariz / Schattuck / Jack Pennick) e Quincannon / Dick Foran decidem destruir o uísque que o agente da reserva Silas Meacham / Grant Withers vende para os índios, bebendo-o – e depois de presos são forçados a trabalhar no depósito de adubos do posto), alguns momentos de emoção (vg. a imagem de York através da janela, com o reflexo no vidro dos cavalarianos mortos, enquanto ele fala sobre a vida contínua e mística do regimento), e um conjunto variado de observações sobre a vida em uma guarnição isolada, que nutrem e salvaguardam o tom fordiano.
Neste ambiente surge o Coronel Thursday (Henry Fonda), cópia do tristemente célebre General Custer, um homem para o qual as noções de autoridade, de disciplina e de amor à glória foram deturpadas. Esta mistura entre uma descrição calorosa de um ambiente amado e respeitado pelo cineasta e uma visão crítica do personagem, que é o seu mais alto representante hierárquico, dá originalidade ao filme.
O CÉU MANDOU ALGUÉM / 3 GODFATHERS / 1948.
(Foto: Winton Hoch)
Três bandidos, Robert Marmaduke Sangster Hightower (John Wayne), William Kearney, “o Abilene Kid” (Harry Carey, Jr.) e Pedro Roca Fuerte (Pedro Armendariz), chegam em Welcome, Arizona. Depois de encontrarem o xerife Buck Perley Sweet (Ward Bond) e sua esposa (Mae Marsh), eles assaltam o banco, exatamente quando Buck descobre que o trio era procurado pela Justiça. “Abilene Kid” é ferido em um tiroteio, mas consegue escapar para o deserto com Pedro e Robert, sendo perseguidos pelo xerife e seu grupo armado. Eles rumam para Tarapin Tanks pretendendo cruzar a fronteira mexicana mais adiante. Os fugitivos enfrentam uma tempestade de areia e depois são obrigados a prosseguir a pé, porque seus cavalos fugiram. Chegam finalmente ao reservatório e verificam que foi dinamitado, e não contém mais água. Entretanto, ali perto, os três fora-da-lei encontram uma mulher grávida sozinha no interior de uma carroça. Os bandidos a ajudam a dar à luz e ela morre pouco depois; mas, antes de expirar, faz os três padrinhos se comprometerem a proteger seu filho. Embora arriscando serem presos, eles decidem voltar para Welcome. Na travessia do deserto, “Abilene Kid” e Pedro morrem. Encontrando inspiração na Bíblia que leva consigo, Robert encontra forças para chegar ao seu destino. Ele recebe uma sentença leve, em virtude de seu feito heroico e a criança fica aos cuidados de Buck e sua esposa (Mae Marsh).
Na narrativa desta versão anti-realista e evangélica do romance de Peter B. Kyne (Dedicada à memória de Harry Carey, “Bright Star of the Early Western Sky”, amigo do diretor e astro da primeira verão da mesma história, Homens Marcados / Marked Men, em 1919), abundam os símbolos e parábolas cristãos, sendo o mais óbvio e importante o nascimento da criança na véspera de Natal e, acompanhando a estrela, a chegada na “Nova Jerusalem”. A relação dos três fora-da-lei com os três Reis Magos é evidente assim como a associação da carroça abandonada com a manjedoura. A travessia do deserto assume gradualmente o caráter de uma peregrinação religiosa, um itinerário espiritual, que culmina quando a trinca de “magos” presenciam a Natividade. Na cena do enterro, quando Abilene Kid canta “Shall We Gather at the River”, Pedro reza, e Robert os observa, todos imóveis em um quadro perfeitamente composto em torno de uma cruz, que eles colocaram no seu túmulo.
Robert é cético com relação à Bíblia, mas a fé de Abilene Kid no “bom livro” e a religiosidade profunda de Pedro eventualmente fazem-no mudar de atitude. O aparecimento do burro miraculoso no final de um longo túnel que Robert atravessa segurando o récem nascido no colo, transforma o bandido em um convertido. Por outro lado, a mulher da carroça, Pedro e Abilene Kid morreram no deserto como um sacrifício para a sobrevivência do bebê e a redenção de Robert.
Ford perde-se um pouco na alegoria e em certos efeitos excessivos (vg. o recurso às sobreimpressões na caminhada de Robert pelo túnel), mas nos oferece uma excelência visual em cores e o seu humor típico, servindo como exemplo o primeiro encontro dos três futuros assaltantes com Buck Sweet, no qual este parece ser um cidadão pacato, cuidando do seu jardim e não se incomodando com as gozações com relação à placa com o seu nome, até que veste o seu colete, deixando ver seu distintivo de xerife.