JACQUES FEYDER II

Foi na América que Jacques Feyder fez seu último filme mudo, O Beijo / The Kiss / 1930, escrevendo, com  Hans Kraly, a adaptação de uma história de Georges M. Saville, cujo resumo é o seguinte: casada com Charles Guary (Anders Randolf), um empresário brutal de Lyon, à beira da falência, Irene Guarry (Greta Garbo) ama o advogado André Dubail (Conrad Nagel), mas afasta-se dele,  sentindo-se incapaz de trair o marido. O jovem Pierre Lassalle (Lew Ayres), filho do sócio de Charles, apaixona-se por Irene e, quando vai partir de Lyon para ingressar em uma faculdade, ela o beija inocentemente como despedida; porém o marido os surpreende e, louco de ciúme, arrasta Pierre para o seu escritório, a fim de matá-lo. Irene tenta separá-los, ouve-se um tiro de revólver e o marido morre. Irene é defendida por Dubail que, de boa fé, alega suicídio. Absolvida, Irene confessa a Dubail, que matou seu marido, para evitar que ele matasse Pierre. Eles irão refazer sua vida juntos.

Apesar do assunto melodramático, O Beijo é um filme muito elegante, com uma fotografia magnífica (Greta Garbo soberbamente enquadrada por Feyder e pelo cinematographer William Daniels, que tantas vezes teve por missão restituir na tela a beleza da “Divina”), uma encenação dinâmica obtida por uma câmera extremamente móvel, belos cenários Art-Déco (providenciados por Cedric Gibbons), e figurinos perfeitos (desenhados por Adrian).

Feyder, como sempre dedicando-se à fabricação de um vocabulário visual, oferece uma decupagem engenhosa como, por exemplo, na cena do jantar, a sucessão de planos sobre os diferentes convidados associada à travellings ligeiros ou, na cena do interrogatório de Irene, em que o relato é quase que inteiramente traduzido pela imagem: quando ela hesita, a imagem hesita, as janelas se abrem e fecham misteriosamente, os ponteiros do relógio tremem, antes de fixar a hora exata.

Os dirigentes da MGM pediram então para Feyder dirigir Le Spectre Vert, a versão francêsa de The Unholy Night (Dir: Lionel Barrymore) e Si L’Empereur Savait Ça e Olympia, respectivamente versões francêsa e alemã de His Glorious Night (Dir: Lionel Barrymore). No Brasil, Le Spectre vert passou com o título em português de O Fantasma Verde, igualmente conferido à versão original americana. Quanto às versões de His Glorious Night, entre nós foi somente exibida a versão espanhola Olimpia (Dir: Chester M. Franklin, Juan de Homs), com o título em português de Olimpia. Na MGM, Feyder encarregou-se também da versão alemã de Anna Christie (Dir: Clarence Brown) e de dois filmes estrelados por Ramon Novarro, Alvorada / Daybreak e O Filho do Oriente / Son of India, ambos produzidos em 1931.

Greta Garbo causou sensação ao pronunciar a sua primeira frase no cinema falado, “Gimme a visky, ginger ale on the side – and don’t be stingy, baby’”, e o sucesso do filme foi tanto que a MGM decidiu lançar uma versão alemã. A realização ficou a cargo de Feyder e atores germânicos foram contratados para os papéis coadjuvantes (Salka Steuermann (depois Viertel), substituindo Marie Dressler, Theo Shall no lugar de Charles Bickford e Hans Junkermann no papel antes confiado a George F. Marion. A “Divina” dizia ”Whisky – – aber nicht zu knapp!” e vários articulistas da época, comparando as duas versões, afirmaram, com toda razão, que o filme de Feyder se beneficiava de diálogos mais precisos, de um figurino mais austero para Anna e, sobretudo, de uma intérprete mais à vontade falando alemão do que inglês. Segundo seu biógrafo, Barry Paris, Garbo teria confidenciado para amigos, que a versão alemã de Anna Christie, filmada em apenas vinte dias, fôra o seu melhor trabalho no cinema”.

Em O Filho do Oriente, Ramon Novarro é Karim, filho de um mercador de jóias que, antes de morrer durante um ataque de bandidos ao seu acampamento, dá ao seu herdeiro um valioso diamante. Karim é salvo por um homem santo, Rao Rama, e parte para Bombaim. Depois de algumas tribulações, Karim enriquece com a venda do pedra preciosa e se apaixona por uma americana, Janice Darsay ( Madge Evans) – mas ele renuncia ao seu amor, porque sabe que não poderá esposá-la. Em Alvorada, Ramon é Willi Kasda, jovem oficial da guarda imperial austríaca, apaixonado por uma professora de piano, Laura Taub (Helen Chandler), que ele conheceu em um bordel de luxo, onde ela, inocentemente se encontrava. Willi a salva dos avanços libidinosos de um ricaço, Herr Schnabel (Jean Hersholt) e, depois de beberem alguns drinques, passa à noite com ela. Na manhã seguinte, Willi parte e Laura descobre com horror, que ele deixara algum dinheiro para ela. Decepcionada, Laura torna-se amante de Schnabel. Willi perde uma quantia enorme no jogo para Schnabel, que lhe dá duas opções: ou paga tudo o que deve ou se mata, como o código de honra militar o exigia.

Nesses dois filmes, Feyder trabalhou dentro dos limites do sistema de estúdio, sem poder criar algo original em termos de cinema, explorando apenas o charme de um grande astro, dando ênfase às cenas de amor com suas lindas parceiras, Madge Evans e Helen Chandler.

O contrato de Feyder com a MGM previa uma licença de seis meses na França e a possibilidade dele realizar um filme durante este período. O cineasta acertou com a Pathé-Natan a produção de 1940, um filme de antecipação, cujo roteiro ele havia escrito com Charles Spaak, e no qual Françoise Rosay deveria interpretar o papel de uma deputada; porém o projeto não se concretizou. Feyder voltou para a América com a vã esperança de dirigir Greta Garbo em Como Me Queres / As You Desire Me /1932. Decepcionado, ele retornou definitivamente à França e, após ter sido abortado o projeto de filmar Madame Bovary, aceitou a proposta da Films de France, escolhendo outro roteiro seu e de Spaak, A Última Cartada / Le Grand Jeu / 1934.

Na história, que se passa no Marrocos, Pierre Martel (Pierre Richard-Willm) se desonrou, cometendo alguns desfalques, por Florence (Marie Bell), uma amante indigna. Ele se alista na legião Estrangeira e encontra Irma (Marie Bell), uma prostituta desmemoriada muito parecida com Florence, no cabaré de Clément (Charles Vanel) e de sua esposa Madame Blanche (Françoise Rosay), que é cartomante. Pierre surpreende Clément assediando Irma e o mata acidentalmente. Ao receber uma herança, ele decide voltar para a França na companhia de Irma, mas se depara com Florence, que o rejeita novamente. Ele dá todo o seu dinheiro para Irma  e promete seguí-la nos próximos dias. Após a partida do navio, Pierre se alista de novo na Legião e Blanche, em uma última cartada, prediz sua morte.

Impregnado de fatalismo e desesperança existencial, o filme já anuncia o realismo poético. Feyder deu credibilidade a uma trama romântica  convencional e a elevou ao nível de um drama pirandelliano, utilizando os cenários e o quadro geográfico, para completar a psicologia dos personagens.  Além de uma utilização feliz da dublagem (no papel de Florence, Marie Bell preservou a própria voz; no de Irma, Claude Marcy emprestou-lhe a sua), o espetáculo retrata de uma maneira bastante realista a vida colonial: a atmosfera dos cabarés frequentados pelos legionários, seu embrutecimento sob o calor sufocante do deserto, sua nostalgia, fossa ou decadência.

Na cena final, Pierre se embebeda com Blanche no cabaré. Ele pede a ela que leia as cartas. Um par de noves – prenúncio da morte – aparece. Pierre se despede, sabendo que vai partir em sua última missão. Blanche espalha as cartas e elas caem no chão.  Ela se ajoelha, soluçando, e as apanha uma a uma. Ouve-se a marcha do regimento que parte. A câmera recua lentamente, afastando-se de Blanche, como se estivesse com medo de ser carregada pelo seu desespero.

Em A Última Cartada Feyder teve como assistente de direção Marcel Carné, que continuaria colaborando com o mestre em Pensão Mimosas e A Quermesse Heróica. Nas palavras de Carné, Monsieur Feyder, como ele o chamava respeitosamente, foi “ao mesmo tempo um amigo, um pai espiritual, um conselheiro e um guia, ao qual devo tudo o que sou”.

Realizado com o mesmo rigor, que caracteriza toda a sua filmografia, o filme seguinte de Feyder / Spaak, Pensão Mimosas (TV) / Pension Mimosas / 1934 é um drama, no qual ele faz a análise psicológica de um amor frustrado, de um amor impossível, baseado em uma situação sem saída.

Em Nice, Gaston (André Alerme) e Louise (Françoise Rosay) Noblet têm uma pensão familiar, As Mimosas. Casal sem filhos, eles recolheram o pequeno Pierre Brabant (Paul Bernard), cujo pai cumpria pena em uma prisão. Ao ser libertado, o pai verdadeiro leva o menino, então com doze anos de idade. Já adulto, e morando em Paris, Pierre continua escrevendo para a sua “madrinha”, que lhe envia dinheiro. Inquieta, Louise  vai para a capital e descobre que Pierre vive do jogo e tem uma amante, Nelly (Lise Delamare). Devido a uma briga, Pierre se refugia  na pensão. Louise se apaixona por Pierre, e então ocorre uma tragédia.

Jacques Feyder vai direto ao essencial das situações. O almoço da primeira comunhão, perturbado pela chegada do pai de Pierre, é de uma objetividade espantosa. Françoise Rosay, com, todo o vigor de sua capacidade artística, mostra como o sentimento maternal de uma mulher madura se transforma em amor por um rapaz desencaminhado, que ela tenta livrar do vício. Louise faz tudo para salvar Pierre. Ela primeiro consegue afastar Nelly. Depois, vai jogar no cassino, onde ganha a soma desejada. Mas, durante  esse tempo, Pierre engolira um veronal. As últimas imagens do filme mostram a janela se abrindo repentinamente e o vento espalhando as cédulas pelo quarto em volta da cama, onde Louise, prostrada sobre o corpo inerte de Pierre, grita desesperada: “Volte a ser criança”.

Nessa fase de muita inspiração do cineasta belga surgiu sua obra-prima no cinema sonoro, A Quermesse Heróica / La Kermesse Heroique / 1935 (cuja versão alemã, Die Klugen Frauen, também foi dirigida por ele), que recebeu o Grand Prix du Cinéma Français em 1936.

No século  XVII, uma pequena cidade de Flandres aguarda atemorizada a chegada do duque de Olivares (Jean Murat). Os homens são covardes e deixam a iniciativa às mulheres. Enquanto o burgomestre (André Alerme)  se faz passar por morto, sua esposa Cornélia (Françoise Rosay) organiza um banquete para os espanhóis. O anão (Delphin) que serve ao duque descobre a farsa do burgomestre, mas promete ficar calado mediante boa soma de dinheiro, que lhe é logo arrebatada pelo capelão (Louis Jouvet). Após uma noite de romance com Olivares, a lúcida Cornélia casa sua filha Siska (Micheline Cheirel) com o jovem pintor Jan Brueghel (Bernard Lancret), união que vinha sendo contrariada pelo seu acovardado marido.


Farsa irônica (que também deve muito a Spaak, co-roteirista e autor da história original e ao dialoguista Bernard Zimmer) inspirada no tema da Lysistrata de Aristófanes, ridicularizando alguns dos estereótipos da mística da guerra: coragem, heroismo, o mito do inimigo bárbaro e sedento de sangue. A sátira é reforçada por certos personagens secundários, como o anão tirânico e esperto ou o capelão, que lembra com volúpia as diversas torturas que praticou com mulheres como “inquisidor” e vende indulgências “autênticas e certificadas”. Feyder realiza uma síntese cinema-pintura por meio de uma pesquisa pictórica dos pintores flamengos aplicada não somente aos cenários (Lazare Meerson, assistido por  Alexandre Trauner e Georges Wakhévitch) e figurinos (Georges K. Benda) e à composição das imagens (magnificamente obtida pelas lentes de Harry Stradling, Louis Page), mas também ao espírito e ao tom geral da obra.

Continuando a atrair com sucesso os melhores talentos estrangeiros, o produtor Alexander Korda levou Feyder para a London Films na Inglaterra, entregando-lhe o comando de uma superproducão, adaptada por Frances Marion do romance de James Hilton, e cuja ação transcorre na Rússia revolucionária.

Em O Amor Nasceu do Ódio / Knight Without Armour / 1937, Ainsley J. Fothergill (Robert Donat), um inglês que trabalha como tradutor e jornalista na Rússia czarista em 1913, é recrutado pelo Serviço Secreto Britânico com a  missão de se infiltrar no movimento revolucionário em São Petersburgo; porém ele é capturado pela Polícia Secreta e enviado para a Sibéria. Três anos depois, os prisioneiros da Sibéria são libertados. Na prisão, Fothergill faz amizade com um líder comunista, que se torna uma figura poderosa no regime Bolchevista. Em consequência, o inglês é nomeado comissário e encarregado de escoltar a bela Condessa Alexandra Vladinoff (Marlene Dietrich) para Petrogrado. Fothergill e a condessa se apaixonam e tentam desesperadamente escapar da polícia secreta, envolvendo-se no meio de uma Guerra Civil entre os exércitos Branco e Vermelho.

Feyder e o fotógrafo Harry Stradling criaram um épico visualmente atraente com boas cenas noturnas e de multidão, e exploraram bem a fotogenia dos trens e das estações ferroviárias. Em uma destas cenas, ocorre uma momento memorável, na qual a tensão psicológica causada pela guerra civil é condensada de uma maneira comovente, quando o chefe da estação continua a executar suas funções, fazendo sinais para trens que nunca chegam e instruindo passageiros inexistentes, para embarcarem em trens inexistentes.

Outra cena marcante é aquela em que a condessa acorda e percebe que está sózinha no palácio. Ela chama os criados, mas ninguém responde. Confusa, ela vagueia pelas terras de sua propriedade até que, subitamente, uma horda de camponeses revolucionários surge no topo da serra e avança raivosamente em sua direção.

O entrosamento dos dois intérpretes principais também contribui para o bom resultado do espetáculo; eles conseguem dar credibilidade ao amor improvável que seus personagens estão vivendo. Focalizada em belíssimos primeiros planos, Marlene está deslumbrante, e consegue combinar perfeitamente altivez e vulnerabilidade.

Foi na Alemanha que Feyder fez seu próximo filme, produzido pela Tobis Film Kunst Povo Errante Les Gens du Voyage / 1938, que teve uma versão alemã, Fahrendes Volk, na qual Hans Albers e outros atores germânicos substituíram os atores francêses, com exceção de Françoise Rosay, mantida no papel principal.

A ação transcorre em um circo itinerante. Flora (Françoise Rosay), a domadora, esconde na sua carroça, seu antigo amante, Fernand (André Brulé), fugitivo da colônia penal de Caiena, com quem tivera um filho, Marcel (Fabien Loris) há vinte anos.  Flora arruma emprego para Fernand no circo. Marcel, que não sabe que é filho de Fernand, ama Yvonne (Sylvia Bataille), uma das filhas do dono do circo, M. Barlay (Guilaume de Saxe), mas é também amado por Suzanne (Louisa Carletti), a irmã de Yvonne, e por Pepita (Mary Glory), sua parceira em um número equestre. M. Barlay fica furioso ao saber do romance entre Yvonne e Marcel e manda a filha para longe em companhia de uma tia. Furioso, Marcel agride M. Barlay, e sai do circo. Mais tarde, ele é encontrado por Fernand, na companhia de Pepita, ambos vivendo e trabalhando juntos em um circo de luxo. Forçado pelos seus antigos comparsas, Fernand os ajuda a assaltar o circo Barlay, apagando as luzes no meio do espetáculo. Durante o pânico, Flora fica dentro da jaula dos tigres às escuras.  Para desagrado de Pepita, Fernand convence Marcel a retornar para a companhia da mãe, que fôra ferida pelos animais.  Para se vingar, Pepita denuncia Fernand às autoridades e ele é perseguido e morto pelos policiais. Yvonne volta clandestinamente para o circo de seu pai e dá a luz um menino na carroça de Flora, que juntamente com M. Barlay e todos os artistas, comemoram felizes  o nascimento da criança.

Através desse argumento (dele e de Jacques Viot), entrelaçando intrigas sentimentais e policiais, Feyder reconstitui com apuro o ambiente circense, e a verdadeira vida daquele “povo errante”, obtendo dos atores um rendimento de ótimo nível, sobressaindo a atuação de Françoise Rosay e de André Brulé. Françoise soube traduzir admiravelmente a personalidade daquela mulher que aprendeu a não confiar mais em nenhum homem, mas que ainda parece sentir alguma amizade pelo ex-companheiro (quando ele parte e a beija na face, ela chora). André, por sua vez, compõe magnificamente um personagem que, apesar de seu passado nada virtuoso, transmite muita simpatia pois, no fundo, tem um bom coração.

Sob o ponto de vista cinematográfico merece destaque  o número de Flora com os tigres e depois a cena em que ela fica sozinha na jaula com as feras; a cena em que Suzanne rasga suas roupas e grita histericamente com se tivesse sido atacada por alguém, a fim de chamar a atenção do namorado da irmã; o número de Pepita e Marcel paralelamente à fuga de Fernand pelos telhados, e sua queda, escorregando por eles, ao ser atingido pelos tiros.

Depois de Povo Errante, Feyder realizou para o produtor Adolphe Osso, A Lei do Norte / La Loi du Nord / 1942, baseado no romance Telle qu’elle était de son vivant de Maurice Constantin-Weber, escrevendo o roteiro conjuntamente com Alexandre Arnoux (também responsável pelos diálogos).  O filme foi selecionado em 1939 para o primeiro festival de Cannes, anulado por causa da guerra. A cópia ficou nos cofres da censura até ser liberado em 1942 com cortes e um novo título: La Piste du Nord.

Na trama, Robert Shaw (Pierre-Richard Willm), poderoso industrial americano, mata friamente Ellis Lowton, amante de sua mulher. Para salvá-lo da cadeira elétrica, seu  advogado o faz passar por louco. Robert foge do asilo psiquiátrico com a cumplicidade de sua secretaria, Jacqueline Bert (Michèle Morgan), e eles vão para o Canadá. Ali conhecem o caçador Louis Dumontier (Jacques Terrane) e o guarda Dalrymple (Charles Vanel) da Polícia Montada. Dalrymple descobre a identidade dos fugitivos e sai em sua perseguição. Os três homens se apaixonam por Jacqueline, porém ela morre de fadiga no caminho de volta.

O filme é um estudo psicológico sobre o relacionamento de três homens e uma mulher, que eles tentam proteger na imensidão branca do Grande Norte canadense. Mas como foi realizado com uma preocupação de realismo no que se refere às dificuldades da viagem de trenó em uma região árida e gelada, o espetáculo tem também um aspecto de drama de aventura.

Feyder soube sugerir, com uma sobriedade de estilo magistral, a desolação que envolve seus heróis, a sua solidão trágica. É muito bela a última cena, quando Shaw, Dumontier e Dalrymple deixam para trás um túmulo coberto de neve, cada qual guardando dentro de si a lembrança de Jacqueline, “tal como era era enquanto viva”.

Finalizada a filmagem de A Lei do Norte, para não ter que trabalhar para a Continental (firma destinada a produzir na França filmes com capital alemão e mão de obra francesa), Feyder se refugiou na Suiça, onde realizou seu último filme como diretor creditado, Identidade desconhecida / Une Femme Disparait / 1944.

No relato (extraído do romance de Jacques Viot), uma atriz famosa, Fanny Helder (Françoise Rosay), vai repousar na companhia da filha, casada com um diplomata mas, sentindo que sua presença desagrada o casal, desaparece misteriosamente. A descoberta de um corpo sem qualquer identificação, leva três pessoas à sala do comissário encarregado do inquérito (Claude Dauphin): um jovem camponês-vinhateiro cuja velha criada sumiu, sem deixar rastro; uma diretora de pensionato cuja irmã desapareceu; e um barqueiro volúvel abandonado pela mulher depois de uma discussão. A investigação dos policiais permite encontrar as três mulheres e a certeza de que o corpo era mesmo da atriz, que se suicidara. Porém, a pedido do empresário da artista (Henri Guisol), o caso será arquivado e a glória da mãe infeliz permanecerá inabalada.

Em torno do mistério do corpo não identificado desenrolam-se três esquetes, que mostram as razões que cada uma das mulheres apontadas tinham para se suicidar. Françoise Rosay interpreta quatro papéis no filme – a atriz, a criada, a irmã da diretora do pensionato e a esposa enciumada do barqueiro – , que lhe permitem demonstrar sua enorme versatilidade. Foi o que constataram os comentaristas da época.

Feyder trabalhou ainda como supervisor do diretor novato Marcel Blistène (ele só havia feito Étoile sans Lumière / 1945 com Edith Piaf) em Hotel Clandestino / Macadam / 1946, um filme com uma história sórdida de crime e paixão, que transcorre no bairro de Montmartre em Paris.

Madame Rose (Françoise Rosay), proprietária do Hotel BiJou recebe a visita de seu antigo cúmplice, Victor Memnard(Paul Meurisse). Perseguido pela polícia, Victor lhe mostra uma mala cheia de dinheiro, com o qual pretende refazer sua vida na América do Sul. Desejando se apoderar do dinheiro, Madame Rose (que já havia matado seu marido, cuja honestidade estava atrapalhando seu negócios) usa um cabelereiro informante da policia, para delatar Victor, fazendo crer que este fora denunciado por François (Jacques Dacqmine), um camelô por quem tanto sua filha Simone (Andrée Clement) como a amante de Victor, Gisèle (Simone Signoret) estão apaixonadas. Victor consegue fugir da prisão, e volta para acertar as contas com Madame Rose e François. Victor mata Madame Rose e é morto por Simone. François parte com Gisèle enquanto que Simone, agora rica, com o dinheiro da mala, transforma o hotel, de suspeito, para estabelecimento de luxo.

Blistène era de fato muito inexperiente e Feyder não conseguiu evitar que a narrativa se tornasse em certos trechos um pouco maçante pelo excesso de diálogos (vg. na cena da bebedeira de Madame Rose) e / ou complicada (afinal, François gosta de Simone ou de Gisèle?) No entanto, a intriga policial (de Jacques Viot) prende a atenção dos espectadores, e os atores compõem bem seus tipos, destacando-se Françoise Rosay na sua criação robusta da hoteleira truculenta e inescrupulosa.

Em 1947, Feyder preparou com Bernard Zimmer um roteiro baseado em La Dame de Pique, previsto para ser filmado com Gaby Moraly, mas o projeto foi abandonado pelo produtor.

Em 1948, o mundo perdeu um dos seus grandes cineastas clássicos.

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