Arquivo mensais:dezembro 2013

JACQUES FEYDER II

Foi na América que Jacques Feyder fez seu último filme mudo, O Beijo / The Kiss / 1930, escrevendo, com  Hans Kraly, a adaptação de uma história de Georges M. Saville, cujo resumo é o seguinte: casada com Charles Guary (Anders Randolf), um empresário brutal de Lyon, à beira da falência, Irene Guarry (Greta Garbo) ama o advogado André Dubail (Conrad Nagel), mas afasta-se dele,  sentindo-se incapaz de trair o marido. O jovem Pierre Lassalle (Lew Ayres), filho do sócio de Charles, apaixona-se por Irene e, quando vai partir de Lyon para ingressar em uma faculdade, ela o beija inocentemente como despedida; porém o marido os surpreende e, louco de ciúme, arrasta Pierre para o seu escritório, a fim de matá-lo. Irene tenta separá-los, ouve-se um tiro de revólver e o marido morre. Irene é defendida por Dubail que, de boa fé, alega suicídio. Absolvida, Irene confessa a Dubail, que matou seu marido, para evitar que ele matasse Pierre. Eles irão refazer sua vida juntos.

Apesar do assunto melodramático, O Beijo é um filme muito elegante, com uma fotografia magnífica (Greta Garbo soberbamente enquadrada por Feyder e pelo cinematographer William Daniels, que tantas vezes teve por missão restituir na tela a beleza da “Divina”), uma encenação dinâmica obtida por uma câmera extremamente móvel, belos cenários Art-Déco (providenciados por Cedric Gibbons), e figurinos perfeitos (desenhados por Adrian).

Feyder, como sempre dedicando-se à fabricação de um vocabulário visual, oferece uma decupagem engenhosa como, por exemplo, na cena do jantar, a sucessão de planos sobre os diferentes convidados associada à travellings ligeiros ou, na cena do interrogatório de Irene, em que o relato é quase que inteiramente traduzido pela imagem: quando ela hesita, a imagem hesita, as janelas se abrem e fecham misteriosamente, os ponteiros do relógio tremem, antes de fixar a hora exata.

Os dirigentes da MGM pediram então para Feyder dirigir Le Spectre Vert, a versão francêsa de The Unholy Night (Dir: Lionel Barrymore) e Si L’Empereur Savait Ça e Olympia, respectivamente versões francêsa e alemã de His Glorious Night (Dir: Lionel Barrymore). No Brasil, Le Spectre vert passou com o título em português de O Fantasma Verde, igualmente conferido à versão original americana. Quanto às versões de His Glorious Night, entre nós foi somente exibida a versão espanhola Olimpia (Dir: Chester M. Franklin, Juan de Homs), com o título em português de Olimpia. Na MGM, Feyder encarregou-se também da versão alemã de Anna Christie (Dir: Clarence Brown) e de dois filmes estrelados por Ramon Novarro, Alvorada / Daybreak e O Filho do Oriente / Son of India, ambos produzidos em 1931.

Greta Garbo causou sensação ao pronunciar a sua primeira frase no cinema falado, “Gimme a visky, ginger ale on the side – and don’t be stingy, baby’”, e o sucesso do filme foi tanto que a MGM decidiu lançar uma versão alemã. A realização ficou a cargo de Feyder e atores germânicos foram contratados para os papéis coadjuvantes (Salka Steuermann (depois Viertel), substituindo Marie Dressler, Theo Shall no lugar de Charles Bickford e Hans Junkermann no papel antes confiado a George F. Marion. A “Divina” dizia ”Whisky – – aber nicht zu knapp!” e vários articulistas da época, comparando as duas versões, afirmaram, com toda razão, que o filme de Feyder se beneficiava de diálogos mais precisos, de um figurino mais austero para Anna e, sobretudo, de uma intérprete mais à vontade falando alemão do que inglês. Segundo seu biógrafo, Barry Paris, Garbo teria confidenciado para amigos, que a versão alemã de Anna Christie, filmada em apenas vinte dias, fôra o seu melhor trabalho no cinema”.

Em O Filho do Oriente, Ramon Novarro é Karim, filho de um mercador de jóias que, antes de morrer durante um ataque de bandidos ao seu acampamento, dá ao seu herdeiro um valioso diamante. Karim é salvo por um homem santo, Rao Rama, e parte para Bombaim. Depois de algumas tribulações, Karim enriquece com a venda do pedra preciosa e se apaixona por uma americana, Janice Darsay ( Madge Evans) – mas ele renuncia ao seu amor, porque sabe que não poderá esposá-la. Em Alvorada, Ramon é Willi Kasda, jovem oficial da guarda imperial austríaca, apaixonado por uma professora de piano, Laura Taub (Helen Chandler), que ele conheceu em um bordel de luxo, onde ela, inocentemente se encontrava. Willi a salva dos avanços libidinosos de um ricaço, Herr Schnabel (Jean Hersholt) e, depois de beberem alguns drinques, passa à noite com ela. Na manhã seguinte, Willi parte e Laura descobre com horror, que ele deixara algum dinheiro para ela. Decepcionada, Laura torna-se amante de Schnabel. Willi perde uma quantia enorme no jogo para Schnabel, que lhe dá duas opções: ou paga tudo o que deve ou se mata, como o código de honra militar o exigia.

Nesses dois filmes, Feyder trabalhou dentro dos limites do sistema de estúdio, sem poder criar algo original em termos de cinema, explorando apenas o charme de um grande astro, dando ênfase às cenas de amor com suas lindas parceiras, Madge Evans e Helen Chandler.

O contrato de Feyder com a MGM previa uma licença de seis meses na França e a possibilidade dele realizar um filme durante este período. O cineasta acertou com a Pathé-Natan a produção de 1940, um filme de antecipação, cujo roteiro ele havia escrito com Charles Spaak, e no qual Françoise Rosay deveria interpretar o papel de uma deputada; porém o projeto não se concretizou. Feyder voltou para a América com a vã esperança de dirigir Greta Garbo em Como Me Queres / As You Desire Me /1932. Decepcionado, ele retornou definitivamente à França e, após ter sido abortado o projeto de filmar Madame Bovary, aceitou a proposta da Films de France, escolhendo outro roteiro seu e de Spaak, A Última Cartada / Le Grand Jeu / 1934.

Na história, que se passa no Marrocos, Pierre Martel (Pierre Richard-Willm) se desonrou, cometendo alguns desfalques, por Florence (Marie Bell), uma amante indigna. Ele se alista na legião Estrangeira e encontra Irma (Marie Bell), uma prostituta desmemoriada muito parecida com Florence, no cabaré de Clément (Charles Vanel) e de sua esposa Madame Blanche (Françoise Rosay), que é cartomante. Pierre surpreende Clément assediando Irma e o mata acidentalmente. Ao receber uma herança, ele decide voltar para a França na companhia de Irma, mas se depara com Florence, que o rejeita novamente. Ele dá todo o seu dinheiro para Irma  e promete seguí-la nos próximos dias. Após a partida do navio, Pierre se alista de novo na Legião e Blanche, em uma última cartada, prediz sua morte.

Impregnado de fatalismo e desesperança existencial, o filme já anuncia o realismo poético. Feyder deu credibilidade a uma trama romântica  convencional e a elevou ao nível de um drama pirandelliano, utilizando os cenários e o quadro geográfico, para completar a psicologia dos personagens.  Além de uma utilização feliz da dublagem (no papel de Florence, Marie Bell preservou a própria voz; no de Irma, Claude Marcy emprestou-lhe a sua), o espetáculo retrata de uma maneira bastante realista a vida colonial: a atmosfera dos cabarés frequentados pelos legionários, seu embrutecimento sob o calor sufocante do deserto, sua nostalgia, fossa ou decadência.

Na cena final, Pierre se embebeda com Blanche no cabaré. Ele pede a ela que leia as cartas. Um par de noves – prenúncio da morte – aparece. Pierre se despede, sabendo que vai partir em sua última missão. Blanche espalha as cartas e elas caem no chão.  Ela se ajoelha, soluçando, e as apanha uma a uma. Ouve-se a marcha do regimento que parte. A câmera recua lentamente, afastando-se de Blanche, como se estivesse com medo de ser carregada pelo seu desespero.

Em A Última Cartada Feyder teve como assistente de direção Marcel Carné, que continuaria colaborando com o mestre em Pensão Mimosas e A Quermesse Heróica. Nas palavras de Carné, Monsieur Feyder, como ele o chamava respeitosamente, foi “ao mesmo tempo um amigo, um pai espiritual, um conselheiro e um guia, ao qual devo tudo o que sou”.

Realizado com o mesmo rigor, que caracteriza toda a sua filmografia, o filme seguinte de Feyder / Spaak, Pensão Mimosas (TV) / Pension Mimosas / 1934 é um drama, no qual ele faz a análise psicológica de um amor frustrado, de um amor impossível, baseado em uma situação sem saída.

Em Nice, Gaston (André Alerme) e Louise (Françoise Rosay) Noblet têm uma pensão familiar, As Mimosas. Casal sem filhos, eles recolheram o pequeno Pierre Brabant (Paul Bernard), cujo pai cumpria pena em uma prisão. Ao ser libertado, o pai verdadeiro leva o menino, então com doze anos de idade. Já adulto, e morando em Paris, Pierre continua escrevendo para a sua “madrinha”, que lhe envia dinheiro. Inquieta, Louise  vai para a capital e descobre que Pierre vive do jogo e tem uma amante, Nelly (Lise Delamare). Devido a uma briga, Pierre se refugia  na pensão. Louise se apaixona por Pierre, e então ocorre uma tragédia.

Jacques Feyder vai direto ao essencial das situações. O almoço da primeira comunhão, perturbado pela chegada do pai de Pierre, é de uma objetividade espantosa. Françoise Rosay, com, todo o vigor de sua capacidade artística, mostra como o sentimento maternal de uma mulher madura se transforma em amor por um rapaz desencaminhado, que ela tenta livrar do vício. Louise faz tudo para salvar Pierre. Ela primeiro consegue afastar Nelly. Depois, vai jogar no cassino, onde ganha a soma desejada. Mas, durante  esse tempo, Pierre engolira um veronal. As últimas imagens do filme mostram a janela se abrindo repentinamente e o vento espalhando as cédulas pelo quarto em volta da cama, onde Louise, prostrada sobre o corpo inerte de Pierre, grita desesperada: “Volte a ser criança”.

Nessa fase de muita inspiração do cineasta belga surgiu sua obra-prima no cinema sonoro, A Quermesse Heróica / La Kermesse Heroique / 1935 (cuja versão alemã, Die Klugen Frauen, também foi dirigida por ele), que recebeu o Grand Prix du Cinéma Français em 1936.

No século  XVII, uma pequena cidade de Flandres aguarda atemorizada a chegada do duque de Olivares (Jean Murat). Os homens são covardes e deixam a iniciativa às mulheres. Enquanto o burgomestre (André Alerme)  se faz passar por morto, sua esposa Cornélia (Françoise Rosay) organiza um banquete para os espanhóis. O anão (Delphin) que serve ao duque descobre a farsa do burgomestre, mas promete ficar calado mediante boa soma de dinheiro, que lhe é logo arrebatada pelo capelão (Louis Jouvet). Após uma noite de romance com Olivares, a lúcida Cornélia casa sua filha Siska (Micheline Cheirel) com o jovem pintor Jan Brueghel (Bernard Lancret), união que vinha sendo contrariada pelo seu acovardado marido.


Farsa irônica (que também deve muito a Spaak, co-roteirista e autor da história original e ao dialoguista Bernard Zimmer) inspirada no tema da Lysistrata de Aristófanes, ridicularizando alguns dos estereótipos da mística da guerra: coragem, heroismo, o mito do inimigo bárbaro e sedento de sangue. A sátira é reforçada por certos personagens secundários, como o anão tirânico e esperto ou o capelão, que lembra com volúpia as diversas torturas que praticou com mulheres como “inquisidor” e vende indulgências “autênticas e certificadas”. Feyder realiza uma síntese cinema-pintura por meio de uma pesquisa pictórica dos pintores flamengos aplicada não somente aos cenários (Lazare Meerson, assistido por  Alexandre Trauner e Georges Wakhévitch) e figurinos (Georges K. Benda) e à composição das imagens (magnificamente obtida pelas lentes de Harry Stradling, Louis Page), mas também ao espírito e ao tom geral da obra.

Continuando a atrair com sucesso os melhores talentos estrangeiros, o produtor Alexander Korda levou Feyder para a London Films na Inglaterra, entregando-lhe o comando de uma superproducão, adaptada por Frances Marion do romance de James Hilton, e cuja ação transcorre na Rússia revolucionária.

Em O Amor Nasceu do Ódio / Knight Without Armour / 1937, Ainsley J. Fothergill (Robert Donat), um inglês que trabalha como tradutor e jornalista na Rússia czarista em 1913, é recrutado pelo Serviço Secreto Britânico com a  missão de se infiltrar no movimento revolucionário em São Petersburgo; porém ele é capturado pela Polícia Secreta e enviado para a Sibéria. Três anos depois, os prisioneiros da Sibéria são libertados. Na prisão, Fothergill faz amizade com um líder comunista, que se torna uma figura poderosa no regime Bolchevista. Em consequência, o inglês é nomeado comissário e encarregado de escoltar a bela Condessa Alexandra Vladinoff (Marlene Dietrich) para Petrogrado. Fothergill e a condessa se apaixonam e tentam desesperadamente escapar da polícia secreta, envolvendo-se no meio de uma Guerra Civil entre os exércitos Branco e Vermelho.

Feyder e o fotógrafo Harry Stradling criaram um épico visualmente atraente com boas cenas noturnas e de multidão, e exploraram bem a fotogenia dos trens e das estações ferroviárias. Em uma destas cenas, ocorre uma momento memorável, na qual a tensão psicológica causada pela guerra civil é condensada de uma maneira comovente, quando o chefe da estação continua a executar suas funções, fazendo sinais para trens que nunca chegam e instruindo passageiros inexistentes, para embarcarem em trens inexistentes.

Outra cena marcante é aquela em que a condessa acorda e percebe que está sózinha no palácio. Ela chama os criados, mas ninguém responde. Confusa, ela vagueia pelas terras de sua propriedade até que, subitamente, uma horda de camponeses revolucionários surge no topo da serra e avança raivosamente em sua direção.

O entrosamento dos dois intérpretes principais também contribui para o bom resultado do espetáculo; eles conseguem dar credibilidade ao amor improvável que seus personagens estão vivendo. Focalizada em belíssimos primeiros planos, Marlene está deslumbrante, e consegue combinar perfeitamente altivez e vulnerabilidade.

Foi na Alemanha que Feyder fez seu próximo filme, produzido pela Tobis Film Kunst Povo Errante Les Gens du Voyage / 1938, que teve uma versão alemã, Fahrendes Volk, na qual Hans Albers e outros atores germânicos substituíram os atores francêses, com exceção de Françoise Rosay, mantida no papel principal.

A ação transcorre em um circo itinerante. Flora (Françoise Rosay), a domadora, esconde na sua carroça, seu antigo amante, Fernand (André Brulé), fugitivo da colônia penal de Caiena, com quem tivera um filho, Marcel (Fabien Loris) há vinte anos.  Flora arruma emprego para Fernand no circo. Marcel, que não sabe que é filho de Fernand, ama Yvonne (Sylvia Bataille), uma das filhas do dono do circo, M. Barlay (Guilaume de Saxe), mas é também amado por Suzanne (Louisa Carletti), a irmã de Yvonne, e por Pepita (Mary Glory), sua parceira em um número equestre. M. Barlay fica furioso ao saber do romance entre Yvonne e Marcel e manda a filha para longe em companhia de uma tia. Furioso, Marcel agride M. Barlay, e sai do circo. Mais tarde, ele é encontrado por Fernand, na companhia de Pepita, ambos vivendo e trabalhando juntos em um circo de luxo. Forçado pelos seus antigos comparsas, Fernand os ajuda a assaltar o circo Barlay, apagando as luzes no meio do espetáculo. Durante o pânico, Flora fica dentro da jaula dos tigres às escuras.  Para desagrado de Pepita, Fernand convence Marcel a retornar para a companhia da mãe, que fôra ferida pelos animais.  Para se vingar, Pepita denuncia Fernand às autoridades e ele é perseguido e morto pelos policiais. Yvonne volta clandestinamente para o circo de seu pai e dá a luz um menino na carroça de Flora, que juntamente com M. Barlay e todos os artistas, comemoram felizes  o nascimento da criança.

Através desse argumento (dele e de Jacques Viot), entrelaçando intrigas sentimentais e policiais, Feyder reconstitui com apuro o ambiente circense, e a verdadeira vida daquele “povo errante”, obtendo dos atores um rendimento de ótimo nível, sobressaindo a atuação de Françoise Rosay e de André Brulé. Françoise soube traduzir admiravelmente a personalidade daquela mulher que aprendeu a não confiar mais em nenhum homem, mas que ainda parece sentir alguma amizade pelo ex-companheiro (quando ele parte e a beija na face, ela chora). André, por sua vez, compõe magnificamente um personagem que, apesar de seu passado nada virtuoso, transmite muita simpatia pois, no fundo, tem um bom coração.

Sob o ponto de vista cinematográfico merece destaque  o número de Flora com os tigres e depois a cena em que ela fica sozinha na jaula com as feras; a cena em que Suzanne rasga suas roupas e grita histericamente com se tivesse sido atacada por alguém, a fim de chamar a atenção do namorado da irmã; o número de Pepita e Marcel paralelamente à fuga de Fernand pelos telhados, e sua queda, escorregando por eles, ao ser atingido pelos tiros.

Depois de Povo Errante, Feyder realizou para o produtor Adolphe Osso, A Lei do Norte / La Loi du Nord / 1942, baseado no romance Telle qu’elle était de son vivant de Maurice Constantin-Weber, escrevendo o roteiro conjuntamente com Alexandre Arnoux (também responsável pelos diálogos).  O filme foi selecionado em 1939 para o primeiro festival de Cannes, anulado por causa da guerra. A cópia ficou nos cofres da censura até ser liberado em 1942 com cortes e um novo título: La Piste du Nord.

Na trama, Robert Shaw (Pierre-Richard Willm), poderoso industrial americano, mata friamente Ellis Lowton, amante de sua mulher. Para salvá-lo da cadeira elétrica, seu  advogado o faz passar por louco. Robert foge do asilo psiquiátrico com a cumplicidade de sua secretaria, Jacqueline Bert (Michèle Morgan), e eles vão para o Canadá. Ali conhecem o caçador Louis Dumontier (Jacques Terrane) e o guarda Dalrymple (Charles Vanel) da Polícia Montada. Dalrymple descobre a identidade dos fugitivos e sai em sua perseguição. Os três homens se apaixonam por Jacqueline, porém ela morre de fadiga no caminho de volta.

O filme é um estudo psicológico sobre o relacionamento de três homens e uma mulher, que eles tentam proteger na imensidão branca do Grande Norte canadense. Mas como foi realizado com uma preocupação de realismo no que se refere às dificuldades da viagem de trenó em uma região árida e gelada, o espetáculo tem também um aspecto de drama de aventura.

Feyder soube sugerir, com uma sobriedade de estilo magistral, a desolação que envolve seus heróis, a sua solidão trágica. É muito bela a última cena, quando Shaw, Dumontier e Dalrymple deixam para trás um túmulo coberto de neve, cada qual guardando dentro de si a lembrança de Jacqueline, “tal como era era enquanto viva”.

Finalizada a filmagem de A Lei do Norte, para não ter que trabalhar para a Continental (firma destinada a produzir na França filmes com capital alemão e mão de obra francesa), Feyder se refugiou na Suiça, onde realizou seu último filme como diretor creditado, Identidade desconhecida / Une Femme Disparait / 1944.

No relato (extraído do romance de Jacques Viot), uma atriz famosa, Fanny Helder (Françoise Rosay), vai repousar na companhia da filha, casada com um diplomata mas, sentindo que sua presença desagrada o casal, desaparece misteriosamente. A descoberta de um corpo sem qualquer identificação, leva três pessoas à sala do comissário encarregado do inquérito (Claude Dauphin): um jovem camponês-vinhateiro cuja velha criada sumiu, sem deixar rastro; uma diretora de pensionato cuja irmã desapareceu; e um barqueiro volúvel abandonado pela mulher depois de uma discussão. A investigação dos policiais permite encontrar as três mulheres e a certeza de que o corpo era mesmo da atriz, que se suicidara. Porém, a pedido do empresário da artista (Henri Guisol), o caso será arquivado e a glória da mãe infeliz permanecerá inabalada.

Em torno do mistério do corpo não identificado desenrolam-se três esquetes, que mostram as razões que cada uma das mulheres apontadas tinham para se suicidar. Françoise Rosay interpreta quatro papéis no filme – a atriz, a criada, a irmã da diretora do pensionato e a esposa enciumada do barqueiro – , que lhe permitem demonstrar sua enorme versatilidade. Foi o que constataram os comentaristas da época.

Feyder trabalhou ainda como supervisor do diretor novato Marcel Blistène (ele só havia feito Étoile sans Lumière / 1945 com Edith Piaf) em Hotel Clandestino / Macadam / 1946, um filme com uma história sórdida de crime e paixão, que transcorre no bairro de Montmartre em Paris.

Madame Rose (Françoise Rosay), proprietária do Hotel BiJou recebe a visita de seu antigo cúmplice, Victor Memnard(Paul Meurisse). Perseguido pela polícia, Victor lhe mostra uma mala cheia de dinheiro, com o qual pretende refazer sua vida na América do Sul. Desejando se apoderar do dinheiro, Madame Rose (que já havia matado seu marido, cuja honestidade estava atrapalhando seu negócios) usa um cabelereiro informante da policia, para delatar Victor, fazendo crer que este fora denunciado por François (Jacques Dacqmine), um camelô por quem tanto sua filha Simone (Andrée Clement) como a amante de Victor, Gisèle (Simone Signoret) estão apaixonadas. Victor consegue fugir da prisão, e volta para acertar as contas com Madame Rose e François. Victor mata Madame Rose e é morto por Simone. François parte com Gisèle enquanto que Simone, agora rica, com o dinheiro da mala, transforma o hotel, de suspeito, para estabelecimento de luxo.

Blistène era de fato muito inexperiente e Feyder não conseguiu evitar que a narrativa se tornasse em certos trechos um pouco maçante pelo excesso de diálogos (vg. na cena da bebedeira de Madame Rose) e / ou complicada (afinal, François gosta de Simone ou de Gisèle?) No entanto, a intriga policial (de Jacques Viot) prende a atenção dos espectadores, e os atores compõem bem seus tipos, destacando-se Françoise Rosay na sua criação robusta da hoteleira truculenta e inescrupulosa.

Em 1947, Feyder preparou com Bernard Zimmer um roteiro baseado em La Dame de Pique, previsto para ser filmado com Gaby Moraly, mas o projeto foi abandonado pelo produtor.

Em 1948, o mundo perdeu um dos seus grandes cineastas clássicos.

JACQUES FEYDER I

Foi um daqueles poucos cineastas, que realizaram grandes filmes tanto no cinema silencioso quanto no sonoro e souberam conciliar arte e entretenimento. Sua obra cinematográfica merece ser melhor estudada.

Jacques Léon Louis Frédérix (1885-1948) nasceu em Ixelles, Bélgica, estudou na École Régimentaire em Nivelles e foi destinado pela família para a carreira militar, porém resolveu ser ator, para desespero de seus pais. Ao saber da decisão do filho, o pai de Léon proibiu-o de usar o nome da família no palco e ele então adotou o sobrenome de Feyder. O rapaz partiu para Paris e, no ambiente teatral, conheceu a atriz Françoise Rosay, com a qual se casou em 1917.

Logo, Feyder encaminhou-se para o cinema, figurando na féerie Cendrillon ou La pantoufle mystérieuse / 1912 (com Méliès em Montreuil) e em filmes de outros estúdios (vg. travestido de mulher em Le Troisième Larron / 1912, à cavalo em Protéa, la course à la mort / 1913, ao lado de Françoise Rosay em uma cena curta de Os Vampiros / Les Vampires / 1915 de Louis Feuillade), até que se tornou assistente de Gaston Ravel na Gaumont.

Em 1916, Feyder trabalhava como ator em Monsieur Pinson policier e assumiu a direção do filme, quando Ravel foi prestar serviço militar. Na Gaumont, Feyder continuou sua formação atrás das câmeras, fazendo em seguida vários filmes curtos: Le bluff / 1916, História de Pés e Mãos /Le Pied qui étreint / 1916, Cabeças de Mulheres … Mulheres de CabeçaTêtes de femmes, femmes de tête / 1916, Un conseil d’ami / 1916, L’Homme de compagnie / 1916, Tiens , vous êtes à Poitiers? / 1916, Le Frère de lait / 1916, L’Instinct est maître / 1917, Le Billard cassé / 1917, Le Pardessus de demi-saison / 1917, Abrégeons les formalités / 1917, La Trouvaille de Buchu / 1917, Les Vieilles Femmes de l’hospice / 1917, Le Ravin sans Fond / 1917 (co-dirigido por Raymond Bernard).

Em 1917, sua carreira foi interrompida, por ele ter sido convocado pelo exército belga (onde participou, com Victor Francen e Fernand Ledoux, do Théatre des Armées) e, após seu desligamento das forças armadas, realizou La Faute d’ortographe / 1919. O insucesso dessa última produção causou sua demissão da Gaumont. O jovem cineasta então realizou o longa-metragem Atlântida/ L’Atlantide / 1921, seu primeiro filme importante, que inaugurou uma das carreiras cinematográficas mais expressivas no cinema francês e internacionalmente durante a primeira metade do século vinte.

Feyder fez ao todo 22 longas-metragens, dos quais vi todos, com exceção de: L’Image /1926; Thereza Raquin / Thérèse Raquin / 1928; Identidade Desconhecida / Une Femme Disparait / 1942; O Fantasma Verde / Le Spectre vert / 1930 (versão francêsa de The Unholy Night); Si l’Empereur savait ça / 1930 (versão francêsa de His Glorius Night); e Olympia / 1930 (versão alemã de His Glorious Night).

Atlântida, com roteiro do próprio Feyder baseado no romance de Pierre Benôit, premiado pela Académie Française, é uma superprodução em termos orçamentários, financiada pelo Banco Thalman et Compagnie, pertencente ao tio de Feyder, Alphonse Frédérix, com a participação também de Pierre Descourcelles da SCAGL (Société Cinématographique des Auteurs et  Gens des Lettres) na operação.


A história versa sobre o paraíso perdido de uma rainha, soberana de uma cidade perdida no deserto de Sahara, onde ela seduz exploradores europeus, tomando-os como amantes, e depois os assassina e os transforma  em estátuas de ouro. O filme dura 2.40 hs. e o relato é voluntariamente lento e complexo (com digressões e retrospectos), começando por uma primeira parte bastante longa, concentrada no mistério e na expectativa, até a chegada ao reino mítico; porém  sem jamais perder a fluência narrativa.

A equipe transportou-se para vários locais na Argélia, durante oito meses e essa proeza de filmagem deu ao espetáculo uma autenticidade documentária, que se opõe radicalmente à representação do palácio de Antinéa na elaboração do qual o cenógrafo Manuel Orazi, inspirado no imaginário dos exploradores das civilizações antigas, deu livre curso à sua imaginação e, através de um sincretismo cultural, chegou ao kitsch. Assim, ao lado de cenas de uma teatralidade sobrecarregada (resquícios do velho cinema), nas quais uma Antinéa (Stacia Napierkowska) gorducha (“com os contornos à la Rubens, e tendendo mesmo para Jordaens”, como recordou Feyder em Le Cinéma Notre Métier, Éditions Pierre Callier, pg. 51, 1946) e caricaturalmente vampiresca aparece no meio de uma desordem de objetos extravagantes, tapetes, lâmpadas, tecidos e animais selvagens, o cineasta mostra a sobriedade majestosa do deserto, sendo justamente esta mistura de realismo e exotismo, que faz a magia do filme.

Após o sucesso de público e de crítica de Atlântida, Feyder realizou Crainquebille / 1923, sua adaptação da novela de Anatole France, L’Affaire Crainquebille, que conta a trajetória de Jérôme Crainquebille (Maurice de Féraudy), velho verdureiro das ruas de Paris que, injustamente acusado por desacato a um policial, vai para a cadeia.  Ele não se sente incomodado na prisão (onde goza de conforto, boa comida, e ainda ganha um exame médico gratuito e remédio para a tosse); porém, ao deixar o cárcere, vem a ser vítima de uma sociedade cruel e indiferente. O velho perde os freguêses, cai no alcoolismo e está prestes a cometer suicídio, quando é impedido por um pequeno jornaleiro sem lar, La Sourie (Jean Forest), que ele ajudara, e o garoto lhe renova a esperança e o gosto de viver.

Esta simplicidade da trama ajusta-se perfeitamente ao estilo realista  de Feyder, que filmou em exteriores no antigo mercado de Les Halles, reproduzindo com exatidão a movimentação de carroças e transeuntes nesta localidade; mas ele também deu alguns toques artísticos impressionistas, entre os quais o uso da câmera subjetiva e de trucagem, para mostrar o ponto de vista do acusado durante o julgamento (vg. seu advogado diminui de tamanho para expressar sua ineficiência, a estátua da Justiça adquire vida e contempla  com desaprovação o dito defensor).

Para fazer o exame satírico agridoce da injustiça social, o cineasta apoiou-se em dois excelentes intérpretes: Maurice de Féraudy, grande ator de teatro, e na revelação de ator infantil, Jean Forest (que trabalharia depois com Feyder em Visages d ‘Enfants e Gribiche), oferecendo-nos um final Chaplinesco, de tocar o coração.

Depois de Crainquebille, Feyder realizou Visages d’enfants / 1925. Ele escreveu seu único roteiro original, assistido por sua esposa Françoise Rosay, abordando o drama psicológico de filhos de pais que se casaram de novo de uma forma simples, sóbria, sólida (não obstante, palpitante de vida) e com um conhecimento profundo da alma e do comportamento infantís. Toda a estrutura narrativa do filme é um modelo de rigor e equilíbrio e o espetáculo, impregnado de beleza e intensidade espiritual.

No enredo, o prefeito de uma cidade do Haut Valais na Suiça, Pierre Amsler, pai de Jean (de dez anos de idade) e Pierrette (de cinco anos) perde sua mulher. Quando ele casa de novo com uma jovem viúva, Jeanne Dubois, que tem uma filha, Arlette, Jean, traumatizado pelo desaparecimento de sua mãe, não aceita a madrasta e implica com Arlette. Após algumas demonstrações de animosidade com relação à menina, ele joga a boneca de Arlette em uma estrada, quando a família está voltando para casa de trenó, e a convence de ir apanhá-la de noite. Arlete perde-se na neve e é vítima de uma avalanche. Ela é salva, mas Jean fica com remorso e, se sentindo como um miserável, tenta se suicidar, jogando-se em uma correnteza. Avisada por Arlette, a madrasta salva Jean, que a aceita enfim como sua segunda mãe.



As ambições artísticas de Feyder foram muito ajudadas pelo talento natural do ator infantil Jean Forest no papel principal (expressando com o rosto uma dor verdadeira), e pelas cenas exteriores fotografadas por Léonce-Henri Burel (colaborador regular de Abel Gance e de Feyder em Crainquebille), que soube exaltar a beleza rude das paisagens valaisianas, tornando-a um dos personagens do drama, à semelhança dos grandes filmes suecos de Sjöstrom e Stiller.

Feyder e Burel realizaram algumas proezas técnicas como a cena noturna iluminada unicamente pelas tochas, quando os aldeões partem à procura da menina perdida na neve, e as tomadas da avalanche em câmera subjetiva. A sequência do velório e do enterro, até que o garoto desmaia, é admirável, destacando-se ainda, entre outras, a cena simbólica na qual pai e filho seguem rumos diferentes o primeiro, para ver sua futura noiva e o último, para colocar flores no túmulo de sua falecida mãe – o pai sai de cena e o filho permanece, como se não estivesse mais no pensamento do pai e estivesse se separando subconscientemente dele. Desta vez, Feyder usou poucos efeitos impressionistas como, por exemplo, o retrato da mãe mudando de acordo com os pensamentos de Jean: o retrato se apaga, quando Jean se repreende por ter pôsto Arlette em perigo ou rí, quando Jean aceita sua madrasta como sua  segunda mãe.

Após sua restauração completada em 1985 pelo Netherlands Film Museum e sua exibição na 22ª Giornate del Cinema Muto de Pordenone em 2003, Visages d’enfants foi reconhecido como uma obra-prima e incorporado no cânone do cinema mudo.

Como não ví L’Image / 1926, realizado por Feyder para a Vita-Film de Viena, reproduzo apenas a impressão que ele causou no produtor Alexandre Kamenka, da companhia Albatros: “Foi um dos filmes mais belos que ví na minha vida … A poesia que dele se desprendia e era absolutamente extraordinária e por meios de uma grande simplicidade e sinceridade. Era muito avançado para a sua época”.

O roteiro original de tema Pirandelliano, foi escrito por Jules Romains e dizia respeito a quatro homens, um pintor, um dramaturgo, um engenheiro e um seminarista, que se apaixonavam perdidamente por uma mulher desconhecida, cuja imagem eles tinham visto na vitrine de um fotógrafo. Obcecados por aquela que eles achavam que era a imagem de uma mulher ideal, cada um deles, sem se conhecerem, abandona sua profissão para encontrá-la.

Em maio de 1925 Feyder terminou  L’Image e conheceu Kamenka, com o qual assinou um contrato para a realização de Gribiche e com quem faria ainda Carmen e Les Nouveaux Messieurs. O roteiro de Feyder foi oriundo de uma novela, escrita por Frédéric Boutet  especialmente para o cinema.

Em uma grande loja de departamento, um menino de doze anos, Antoine Belot, apelidado de Gribiche (Jean Forest), avista a bolsa que uma senhora deixou cair. Ele lhe entrega a bolsa e recusa o dinheiro que ela lhe oferece como recompensa. Gribiche vive com sua mãe, jovem viúva de guerra, operária de uma fábrica, em um pequeno apartamento do bairro popular de Grenelle. A senhora, Edith Maranet (Françoise Rosay na sua estréia oficial na tela, uma vez que anteriormente havia sido vista em breve aparições nos filmes de seu marido), uma americana viúva de um diplomata francês, pertence à alta sociedade. Ela se dedica à obras de higiene social e dirige uma creche, onde, com ar doutoral, dá suas palestras. Durante um passeio com sua mãe e o contramestre da fábrica, Gribiche percebe que se tornou um obstáculo para o casamento deles. No dia seguinte, tocada pela honestidade da criança, Edith propõe à mãe de Gribiche adotar o menino, a fim de lhe dar uma boa educação, tal como ela a concebe. A mãe recusa, mas Gribiche aceita. Ele vai viver em uma rica mansão, mobiliada no estilo “Art Déco” e, naquela atmosfera de luxo,  descobre um novo modo de vida, protocolar e sem alma, que lhe pesa cada vez mais até que, no 14 de julho, resolve fugir. Ele volta para casa e encontra sua mãe e o contramestre já casados, que o acolhem calorosamente. Decepcionada com aquilo que ela acha uma ingratidão, Edith declara para seu irmão que “somente a caridade coletiva é boa, a caridade individual é desanimadora, falsa, injusta”. Mas quando Gribiche e a mãe chegam com um buquê de flores para lhe agradecer, ela ainda lhe dá um cheque “para sua educação”.

Feyder escapa do melodrama, porque faz uma sátira mordaz da sociedade burguêsa, da qual denuncia a vaidade e a hipocrisia, e descreve com realismo o meio popular de Paris (notabilizando-se na filmagem das cenas noturnas e de multidão, das quais ele gostava tanto). A intenção satírica do filme é mais explícita nas cenas no curso das quais, por duas vezes, Edith (que adora exibir seu pequeno Gavroche) conta como ela encontrou Gribiche. Cada relato (apresentado em retrospecto), torna-se mais exagerado, mais sentimentalista, até que, finalmente, o menino está vestido de farrapos e sua mãe quase morrendo de fome em um sótão. O espectador, que não ignora a “realidade” dos fatos, que lhe foram contados no início do filme, se  diverte, percebendo a diferença entre os relatos.

O cenário desenhado por Lazare Meerson (na sua primeira colaboração com Feyder), particularmente para a casa luxuosa e moderna de Edith, desempenha um papel essencial no filme, marcado plasticamente pela diferença entre o interior “Art Déco” da mansão da americana  e o apartamento simples da mãe de Gribiche. Cada elemento do cenário, cada pequeno objeto um atributo emblemático do personagem.  Por exemplo, Edith usa óculos e Gribiche deverá usá-los também, como um sinal de distinção. Esta preocupação com o detalhe significativo aparece igualmente nas diversas cenas de refeição, onde o motivo recorrente do guardanapo, funciona explicitamente como símbolo de ascenção social.

É para lhe dar a educação que convém à sua “natureza de elite”, que Edith Maranet vai procurar o menino na casa de sua mãe. Gribiche é submetido a uma instrução burguesa, cerimoniosa, formal, que ele repudia, optando por uma pedagogia prática, mais próxima da vida real, pela cultura que ele adquire por si mesmo, como a aprendizagem da mecânica, que ele acha mais interessante do que suas aulas de matemática.

O próximo filme de Feyder para Kamenka, Carmen / 1926, com roteiro dele próprio baseado na novela de Prosper Mérimée, foi uma superprodução, de duração quase tão longa quanto Atlântida, rodada na sua maior parte em exteriores na Espanha. Em síntese, é a história dramática de um homem vítima de uma paixão fatal. Enfeitiçado por uma bela cigana, Carmen, Don José Lizzarabengoa trai seu dever de soldado, torna-se um contrabandista, ladrão e assassino e, finalmente, abandonado por ela, ele a mata, sem deixar de amá-la.

Com exceção da fábrica de cigarros, reproduzida nas cercanias de Nice, o filme de Feyder foi quase que inteiramente fotografado (por Maurice Desfassiaux e Paul Parguel) em cenários naturais da Navarra e da região de Ronda na Andaluzia. Em uma longa e admirável sequência – quando Carmen, escoltada por Don José e seguida por curiosos, é levada a pé para a prisão -, filmada em um estilo próximo do documentário, o diretor usou o travelling do ponto de vista de Carmen, para mostrar a arquitetura, a paisagem ou os figurantes. Perto do final do filme – quando Carmen vai em um coche para a arena ao encontro de seu novo amante, o picador Lucas – Feyder usou novamente o travelling subjetivo, para exprimir o estado de espírito da heroína, nesse breve instante de alegria que a separa da morte. Os interiores de Lazare Meerson foram desenhados com um senso exato do detalhe para complementar a autenticidade da filmagem em locação.

Entre as melhores cenas, além das já citadas, estão a cena da briga entre Carmen e uma outra operária na fábrica; a cena do duelo entre Don José e seu comandante; as cenas noturnas no acampamento cigano na montanha; a cena da fuga dos contrabandistas pelo deserto perseguidos pelos soldados; as cenas do duelo à faca com Garcia; as cenas da tourada; a cena da morte de Carmen – todas dignas de um grande espetáculo.

Carmen sempre foi um papel para estrelas (Geraldine Farrar, Theda Bara, Pola Negri, Viviane Romance, Rita Hayworth) e o filme de Kamenka, feito primordialmente para Raquel Meller. Feyder declarou ironicamente que “não lhe pediram para fazer um filme sobre Carmen com Raquel Meller, mas sim fazer com Raquel Meller algo sobre Carmen”. O cineasta e a estrela não viam o personagem da mesma maneira. Nas palavras dele, “essa atriz espanhola era perfeita para Carmen mas … por causa de seus princípios morais ela só queria interpretar mulheres puras e de bom coração. Fiquei preocupado porque eu via aquela cigana apaixonada e inconstante tornando-se mais e mais uma garota insípida e virtuosa, cujo amor por Don José era estritamente platônico”. De fato, Raquel não foi uma Carmen tão sensual como deveria ser.

Infelizmente, o filme seguinte de Feyder (depois de abortado o projeto indochinês de Au Pays du roi lépreux /1927), Thérèse Raquin / 1928, rodado nos estúdios da Deutsche Film Union (Defu) em Berlim, com Gina Manès no papel principal e exibido no Brasil como Thereza Raquin, é considerado perdido. Paulo Vanderley, na revista Cinearte, escreveu um comentário longo, concluindo: “Thereza Raquin  é um dos maiores filmes francêses que tenho visto. É uma obra digna de um grande diretor. É um drama real que termina tragicamente sem por um centímetro sequer beirar o sentimental e o exagero próprio do dramalhão”. As críticas francêsas foram igualmente elogiosas. Segundo Denis Marion (em Cinéa-Ciné pour tous), “Seu último filme ultrapassa de longe não somente o que ele já fez, mas mesmo o que o que se poderia razoavelmente esperar dele”. Maurice Bardèche e Robert Brassilach (na sua Histoire du Cinéma, André Martel, 1953), classificaram Thereza Raquin como a obra-prima de Feyder no cinema mudo, acrescentando: “ele foi rodado na Alemanha, e é quase um filme da escola alemã, com uma arte perfeita das luzes e das sombras”.

Antes de partir para Hollywood (e após ter escrito o roteiro de Gardiens de Phare / 1929 de Jean Grémillon), Feyder realizou Les Nouveaux Messiers / 1929,  comédia romântica com uma sátira sobre o mundo político. O argumento, adaptado de uma peça de sucesso de Robert de Flers e Francis de Croisset, gira em torno de três personagens centrais: Suzanne Verrier (Gaby Morlay), bailarina sem grande talento do Théâtre National de l’Opera, é sustentada pelo conde de Montoire-Grandpré (Henry Roussell), deputado de direita. Ela conhece Jacques Gaillac (Albert Préjean), eletricista que trabalha no teatro, e é sindicalista. Quando ocorre uma greve, Jacques transforma-se em um deputado importante de esquerda e depois Ministro do Trabalho. Ele acaba se acomodando com o cargo e suas vantagens e namora Suzanne. Entretanto, em virtude de uma crise, o governo é derrubado, e o conde, pertencendo à nova maioria, é convidado para ocupar um cargo de Ministro; ele não aceita, mas pede a nomeação de Jacques (cuja ligação com Suzanne descobríra) para um posto no exterior. Jacques diz a Suzanne, que lamenta, mas foi obrigado a aceitar, e ela volta para seu antigo protetor.

Contando pela primeira vez com a colaboração de Charles Spaak na elaboração do roteiro, Feyder, se liberta dos constrangimentos da cena teatral, fazendo com que a ação ocorra em vários outros lugares (vg. os bulevares e as margens do Sena, onde Jacques e Suzanne se banham; o subúrbio de Saint-Denis, local da greve: e a província, na qual se situam o parque do castelo do conde e uma cidade operária no Norte) e evitando ao máximo os intertítulos, que são de caráter quase sempre informativo.

Quanto aos interiores (novamente de Lazare Meerson), destacam-se o apartamento bem moderno de Suzanne; a sede do sindicato, exemplo de arquitetura industrial moderna; a reconstituição detalhada da Câmara dos deputados; e o gabinete clássico do Ministro do Trabalho.

O cineasta respeita o espírito dos autores (vg. todos os discursos se equivalem; os dois cartazes eleitorais são semelhantes, mudando somente os nomes dos candidatos e dos partidos; a ambição está acima de tudo; os parlamentares são velhos libidinosos; não sabem se comportar durante as sessões etc.), mas desenvolve, com inventividade e malícia, uma comicidade essencialmente visual, empregando numerosos efeitos técnicos como a superimpressão (nas conversas telefônicas), o soft focus (no centro do espaço semi-círcular onde ficam as bancadas), as panorâmicas rápidas mostrando as bancadas; a câmera acelerada (na inauguração da vila operária); sem falar na sequência em que um deputado entediado adormece durante uma sessão da Câmara dos Deputados e sonha que seus colegas se transformaram em jovens bailarinas, que dançam com as urnas de votação.

Preocupado com o retrato desrespeitoso da Câmara dos Deputados e de seus membros, o Ministro do Interior, André Tardieu, interditou a exibição do  filme. Depois de alguns meses de questionamentos e pequenos cortes, a proibição foi suspensa, ocorrendo a estréia em 5 de abril de 1929. Porém, a esta altura, Feyder já havia partido para a América, em dezembro de 1928.