O documentário é uma das três modalidades básicas da criação cinematográfica, sendo as outras a ficção narrativa e a vanguarda experimental. Antes dos anos vinte foram realizados documentários ocasionais (vg. In the Land of the Head Hunters / 1914 e In the Land of the War Canoes / 1914 de Edward S. Curtis), mas estes não constituíram um gênero significativo.
No decorrer da década, entretanto, o documentário atingiu uma nova estatura, na medida em que ficou identificado com o cinema artístico. Podemos distinguir três tendências principais nos documentários daquela época: o exotismo, o registro direto da realidade e a compilação.
O documentário exótico foi particularmente importante nos Estados Unidos. Ele chamou a atenção do público em 1922 com a exibição de Nanook do Norte / Nanook of the North / 1922 de Robert Flaherty.
Nascido no Michigan, de origem irlandesa, Flaherty era filho do proprietário de uma mina de ferro no Canadá. Ainda criança, acompanhava seu pai nas suas prospecções, vivendo meses na companhia de mineiros e índios. Ali nasceu seu gosto pela natureza e pelos grandes espaços.
Em 1910, aos vinte e seis anos de idade, Flaherty foi contratado por Sir William Mackenzie, o construtor Canadian Northern Railway, para procurar jazidas de ferro na área da baía de Hudson. Na sua segunda e terceira expedição, nos anos de 1914 e 1915, Flaherty levou uma câmera cinematográfica e filmou a vida dos esquimós. Em uma quarta expedição, obteve mais imagens porém os negativos foram destruídos em um incêndio. Flaherty convenceu-se de que o desastre fôra benéfico, porque não estava satisfeito com o filme, que parecia um travelogue – “uma cena disto e daquilo, nenhuma relação entre elas, nenhum enredo”.
Ele então decidiu voltar ao Grande Norte e fazer um filme diferente, centralizado em um esquimó e sua família, revelando eventos característicos de suas vidas, com a intenção de evocar o espírito de um povo esquecido.
Flaherty obteve o patrocínio da firma francêsa Revillon Frères e partiu novamente para a baía de Hudson. Como personagem principal de seu filme, ele escolheu Nanook, um caçador da nação inuíte (chamado na realidade Allariallak), que era solteiro, e lhe deu duas mulheres e dois filhos postiços.
Allariallak e seus companheiros encenaram a caçada das morsas para a câmera mas ela era anacrônica, pois os inuítes aparecem usando arpões e facas quando, na época em que o filme foi feito, eles dispunham de armas de fogo. Para registrar imagens no interior do iglu de Nanook, Flaherty retirou a calota gelada do teto e rodou a céu aberto as cenas em que a família esquimó apareceu dormindo. Para exprimir sua visão, o cineasta utilizou todos os procedimentos do cinema de ficção: decupagem, direção de atores, construção dramática, reconstituição de acontecimentos etc.
O filme de Flaherty foi chamado de “romântico” pelo fato de não estar refletindo a vida corrente daquelas pessoas mas a imagem que elas tinham de sua vida tradicional. Entretanto, como observou Erik Barnouw (Documentary – A History of Non-Fiction Film, Oxford University, 1993), “a auto-imagem de um povo pode ser um ingrediente crucial em sua cultura e digno de ser registrado. Os antropologistas, embora conscientes da lente distorcida, a estudam com carinho. E, com efeito, foi o que Flaherty fez”.
Em toda a sua obra, Flaherty comportou-se mais como um artista do que como um documentarista. Ou melhor, seus documentários são poéticos e pouco têm a ver com o que chamamos hoje de documentário, o qual exige o respeito absoluto dos dados brutos da matéria filmada no momento, e nos lugares em que ela é captada pela câmera. Como ele próprio comentou: “One often has to distort a thing to catch its own value” (Muitas vezes a gente tem que distorcer uma coisa para captar seu verdadeiro valor).
As grandes companhias de Hollywood recusaram-se a distribuir Nanook do Norte, porém a companhia independente Pathé Exchange exibiu-o no Cinema Capitol de Nova York. O filme fez grande sucesso nos Estados Unidos e teve um êxito substancial no exterior, sendo aclamado por quase todos os críticos.
Em consequência, a Paramount patrocinou a expedição de Flaherty a Samoa, para dirigir um filme semelhante, Moana. Ele partiu em 1923 e verificou que os nativos haviam adotado costumes ao estilo ocidental. Flaherty persuadiu seus “atores” a voltar a usar seus trajes tradicionais a fim de incutir drama no filme, reencenando um doloroso e obsoleto ritual de tatuagem. A esta altura, Flaherty já havia adquirido o hábito de ultrapassar o tempo previsto para a filmagem e filmar quantidades imensas de celulóide. Moana (que recebeu o título estranhíssimo em português de O Homem Perfeito) só ficou pronto para o lançamento em 1926 e não obteve o mesmo sucesso de Nanook do Norte.
Embora nenhum movimento ou escola tivesse se formado em torno dele, o exemplo de Flaherty foi seguido de uma maneira geral por outros americanos que focalizaram a vida de povos-primitivos. A dupla Ernst B. Schoedsack e Merian C. Cooper realizou Náufragos da Vida / Grass, A Nation’s Battle for Life / 1925 (também financiado e distribuído pela Paramount), que registrava uma migração perigosa de nômades iranianos pelas montanhas da Persia à procura de pastagens para seus rebanhos. A travessia do caudaloso rio Karun, com perdas de vidas entre homens, mulheres, crianças, cabras, ovelhas, macacos, cavalos, proporcionou uma das mais espetaculares sequências jamais filmadas. Porém, como observou Barnouw, os migrantes continuaram sendo uma massa de estranhos para o público, nenhum retrato individual emergiu deles. E a ênfase final não recaiu sobre o que eles haviam suportado mas – em uma impetuosa exibição de egoísmo – no feito heróico dos realizadores.
Ainda sob encomenda da Paramount, a mesma dupla realizou Chang / Chang / 1927, um relato – que parece ter sido pre-planejado em Hollywood – sobre uma família das selvas siamêsas lutando pela sobrevivência contra animais hostís. Em uma cabana construída sobre pilotis, vivem Kru, sua mulher, seus três filhos e o macaco Bimbo. Uma pantera ataca a cabra de Kru, e um tigre mata seu búfalo. Kru reúne os homens de uma aldeia próxima, para caçar os felinos, que são abatidos. Pouco tempo depois, a família descobre seu campo de arroz devastado, e o rastro de Chang, um filhote de elefante. Kru prepara uma armadilha para capturá-lo, com a intenção de domesticá-lo. Porém, subitamente, a mãe do elefantezinho surge para libertar seu filhote e destrói a morada de Kru. A família atravessa a selva e vai buscar refúgio na aldeia. E então aparece um perigo maior: uma grande manada de elefantes. Filmado na nova técnica do Magnascope, e exibida com um score especial de Hugo Riesenfeld, Chang foi um grande sucesso crítico e financeiro. Posteriormente, os dois cineastas levariam seu interesse pelo exótico para um filme totalmente de ficção, o imensamente exitoso King Kong / King Kong / 1933.
Na primeira metade do século vinte, Martin (Martin Elmer Johnson) e Osa Johnson (Osa Helen Johnson) captaram a imaginação do público através de seus filmes e livros de aventura em terras exóticas e distantes. Em 1917, já tendo feito um travelogue em 1912, o casal partiu para as ilhas Novas Hébridas e Salomão, onde filmaram seu encontro com uma tribu chamada Big Nambas, de uma das ilhas do arquipélago Novas Hébridas, Malakula. Com o material filmado, fizeram Among the Cannibal Isles of the South Seas / 1918. Entre seus filmes mais conhecidos podem ser citados: Jungle Adventures / 1921, Headhunters of the South Seas / 1922, Entre Bichos e Feras Africanas / Trailing African Wild Animals /1923, Simba / Simba, King of the Beasts/ 1928, Across the World with Mr. and Mrs. Johnson / 1930, Congorilla / Congorilla / 1932, Wonders of the Congo / 1934, Baboona / Baboona / 1935, Bornéo / Borneo / 1937.
O tom predominante nas suas realizações era a auto-glorificação. Os Johnsons estavam constantemente diante das câmeras em sequências demonstrando a sua coragem e o seu humor. Sua idéia de humor, por exemplo, era dar um charuto para um pigmeu e aguardar até que ele ficasse enjoado; ou dar para um outro pigmeu uma bola para ele assoprar e ver sua reação quando ela explodia; ou dar cerveja para um macaco e ver o resultado. Durante uma tomada de um crocodilo abrindo sua mandíbula, a narração de Johnson comentava: “Nossa, que lugar para se jogar lâminas de barbear velhas”. Martin faleceu em um desastre de avião. Osa ficou gravemente ferida no acidente. Mais tarde prestou assistência a Henry King na filmagem de As Aventuras de Stanley e Livingstone / Stanley and Livingstone / 1939. Em 1940, ela produziu Casei-me com a Aventura / I Married Adventure, cinebiografia de sua vida com Martin (traduzida para o português e lançada pela Editôra José Olympio) e, em 1942, African Paradise.
Na mesma linha, o caçador e “colecionador de animais selvagens”, Frank Buck (Frank Howard Buck) ajudou a encher vários jardins zoológicos e ficou muito conhecido pelo seu best seller “Bring Em Back Alive”. Em 1932, ele foi ator e narrador de um documentário passado nas selvas da Malásia, com o mesmo título do seu livro. O filme (que passou noBrasil com o título de Agarrem-nos Vivos), dirigido por Clyde E. Elliott e fotografado por Nick Cavaliere e Carl Burger, combinava trechos engraçados (vg. a vã tentativa dos nativos de transportar um filhote de elefante capturado) e cenas das lutas entre as grandes feras, inoculadas com efeitos sonoros e quase sempre pre-planejadas. A passagem mais longa e excitante era o confronto entre um tigre e uma cobra pitão, que deixava o público quase sem fôlego. Buck participou ainda de mais dois documentários, Carga Selvagem / Wild Cargo / 1934 e Unhas e Dentes / Fang and Claw / 1935 e de uma compilação desses três filmes citados (Aventuras na Selva / Jungle Cavalcade / 1941). Depois, funcionou como narrador em Jacaré, o Assassino do Amazonas / Jacaré, The Killer of the Amazon / 1942 (com música de Miklos Rosza) e como ator em Tiger Fangs / 1943) e no seriado, A Ameaça das Selvas / Jungle Menace / 1937.
Desde o seu início, o documentário americano de registro direto da realidade esteve profundamente envolvido com posições políticas, geralmente de esquerda, e abordou os temas principais dos anos trinta, como Depressão, o desemprêgo e a pobreza, o sindicalismo e a crescente ameaça do fascismo no exterior.
Em 1930, a Worker’s Film and Photo League, foi organizada em Nova York, com o objetivo de treinar diretores e fotógrafos para produzirem material de mídia que mostraria a “verdadeira imagem” da vida nos Estados Unidos, isto é, do ponto de vista marxista – uma imagem que não era revelada pelas agências de notícias, cine-jornais ou imprensa capitalista. Entre seus consultores ou associados estavam os fotógrafos Margaret Bourke-White, Berenice Abbott, Leo Hurwitz, Herbert Kline, Willard Van Dyke, Irving Lerner, Ralph Steiner e Paul Strand; Elia Kazan, ator e depois diretor de teatro e cinema; o dramaturgo Elmer Rice; os atores Burgess Meredith e James Cagney; Slavo Vorkapich, téorico do cinema e um especialista no montage. (sequência de montagem); Thomas Brandon, futuro distribuidor de filmes em 16mm para cineclubes e escolas.
Os primeiros filmes da Film and Photo League (ela depois retirou a palavra Worker’s da sua denominação) apenas registravam comícios, greves e marchas contra a fome que ocorriam por todo o país. (vg. National Hunger March / 1931, Hunger: The National Hunger March to Washington / 1932, Bonus March / 1932). A ausência de uma forma cinematográfica sofisticada era compensada por uma intensidade emocional e um compromisso político apropriado para o momento histórico no qual esses filmes estavam sendo realizados.
Outras atividades da Film and Photo League incluíam a realização de palestras em reuniões da esquerda, redação de críticas denunciando os filmes de Hollywood e a organização de protestos contra a exibição de filmes nazistas.
Como observaram Jack C. Ellis e Betsy A. McLane (em A New History of Documentary Film, Continuum, 2006), uma divisão crescente nesse grupo de esquerda desenvolveu-se entre os que queriam continuar apegados aos cine-jornais de agitação e propaganda e filmes polêmicos e aqueles que achavam que a causa da revolução (ou do progresso social – as intenções políticas variavam de pessoa a pessoa) poderiam ser melhor servidos por filmes com maior apelo estético e emocional. Este último contingente alegava que através da artisticidade fílmica eles poderiam de fato serem capazes de persuadir os não persuadidos, enquanto que as formas padronizadas e óbvias de propaganda que estavam sendo usadas eram essencialmente uma pregação para os que já haviam sido convertidos.
Em 1934, três membros importantes – Leo Hurwitz, Ralph Steiner e Irving Lerner – deixaram a Film and Photo League para formar a Nykino (obviamente uma abreviação russonizada para New York Cinema), da qual passaram a fazer parte também Lionel Berman, Sidney Meyers, Ben Maddow e Paul Strand. Pie in the Sky / 1934 com Elia Kazan, Molly Day Thatcher, Ralph Steiner e Irving Lerner, uma sátira às promessas feitas para os pobres durante a Depressão, foi o primeiro lançamento da Nykino. No mesmo ano, Paul Strand realizou Redes / 1937, documentário social encarregado pelo governo mexicano, trabalhando em colaboração com vários artistas como Carlos Chávez, Henwar Rodakiewicz e Fred Zinnemann. O assunto tratado era a revolta dos pescadores da região de Alvarado, explorados por um negociante sem escrúpulos. A Nykino tornar-se-ia subsequentemente a Frontier Films, cuja produção veremos adiante ao falarmos sobre os documentários não-governamentais.
Ao lado desses filmes patrocinados pela esquerda, um outro, A Marcha do Tempo / The March of Time, custeado pela direita (ou, no mínimo, pelo centro), representada pela Time-Life, Inc., ofereceu uma nova e diferente espécie de jornalismo cinematográfico, um cruzamento entre o cine-jornal e o documentário , usando sequências de atualidades, porém combinando-as com dramatizações das notícias.
Eric Barnouw entende que a ambiência dos acontecimentos tal como descrita em A Marcha do Tempo era quase sempre inteiramente uma criação da Time e não tinha caráter de um “documentário” ou “cine-Jornal”. Henry Luce, o fundador da Time-Life, Inc., definia o estilo da série como “falsificação com submissão à verdade”. Louis de Rochemont dizia que era “jornalismo pictórico”. Quanto ao formato, seria uma revista cinematográfica, porque tinha o dobro (vinte minutos) da duração de um cine-jornal comum e oferecia uma cobertura mais aprofundada (e provocativa) das histórias individuais.
A série cinematográfica foi precedida por um programa radiofônico semanal com o mesmo título, criado por Roy E. Larsen, gerente geral da revista Time (depois editor da revista Life e presidente da Time, Inc.), que também foi, de início, responsável pela série cinematográfica, posteriormente comandada por Louis de Rochemont.
O programa radiofônico, narrado alternadamente por Ted Housing, Westbrook Van Voohris e Harry Von Zell, usava atores profissionais para interpretar o papel de celebridades conhecidas, cujas vozes eram imitadas em recriações das notícias da semana. Entre os atores estavam Agnes Moorehead, Nancy Kelly, Jeanette Nolan (que costumavam interpretar Eleanor Roosevelt), Art Carney, Bill Adams and Staats Cotsworth (Franklin D. Roosevelt), Dwigth Weist (Adolph Hitler), Edwin Jerome (Josef Stalin), Ted de Corsia (Huey long, Herbert Hoover, Mussolini), Maurice Tarplin (Winston Churchill), Gary Merrill, Ray Collins, Pedro de Cordoba, Porter Hall, Arnold Moss, Paul Stewart, Juano Hernandez, Everett Sloane, John McIntire e muitos outros (os nomes e personagens de todos estão relacionados em On the Air – The Encyclopedia of Old-Time Radio de John Duning (Oxford University, 1998), inclusive o ainda muito jovem Orson Welles.
A série cinematográfica A Marcha do Tempo foi o protótipo americano do “documentário de compilação”, introduzido pioneirísticamente por Esfir (Esther) Shub na União Soviética (vg. Padenie dinasti Romanovykh / 1927). Através de sua narração, pronunciada em um tom apocalíptico por Westbrook Van Voorhis, referido sempre como “A Voz do Time” (e, às vezes, irreverentemente, como “A Voz de Deus”), era anunciada nas marquises dos cinemas antes do filme principal de longa-metragem. No auge de seu sucesso, no final dos anos trinta e nos anos da Segunda Guerra Mundial, foi vista nos Estados Unidos por mais de vinte milhões de pessoas por mês em nove mil salas de projeção e também distribuída internacionalmente, inclusive no Brasil. Em 1937, a série recebeu um Oscar da Academia por ter “revolucionado” os cine-jornais e seu estilo foi frequentemente imitado e parodiado, de maneira mais memorável por Orson Welles com o seu “News on the March” em Cidadão Kane / Citizen Kane/ 1941. Ao todo foram 204 edições regulares entre 1935 e 1951, distribuídas sucessivamente pela First Division, RKO e Twentieth Century-Fox, descritas pormenorizadamente no livro “The March of Time”, de Raymond Fielding ( Oxford University, 1978).
Em 1942, o produtor Frederic Ullman, Jr. desenvolveu para a RKO Assim é a America / This is America, série devotada primordialmente aos valores das pequenas cidades americanas. Nas suas 112 edições, abordou vários assuntos mas seu foco era limitado, quase sempre enfatizando a América tradicional. Compunha-se de compilações de cine-jornais cobrindo os acontecimentos históricos nos Estados Unidos do final da Primeira Guerra Mundial até 1933. Os filmes tinham entre quinze e vinte minutos de duração e em quase todos o narrador, Allois Havrilla, falava como um cidadão comum, e não no estilo estentório de Van Voorhis, que caracterizava A Marcha do Tempo. Muitos episódios foram dirigidos por Richard Fleischer e pelo mestre de sequência de montagem, Vlavko Vorkapich.
A Film and Photo League e A Marcha do Tempo haviam sido precursores, de certa forma, porém o documentário no sentido institucional (ou no sentido de John Grierson) atraindo e educando os cidadãos para os assuntos do Estado – teve início em junho de 1935, quando Rexford Guy Tugwell, chefe da récem-formada Resettlement Administration, tomou a decisão de usar os filmes para interpretar o programa e os objetivos da organização. A Resettlement Administration tinha como escopo ajudar os fazendeiros que estavam sendo obrigados a deixar suas terras por causa da terrível sêca nas Grandes Planícies, causada pelo Dust Bowl (fenômeno climático de tempestades de areia que atingiu os Estados Unidos na década de trinta e durou quase dez anos).
O crítico de cinema Pare Lorentz, convenceu Tugwell de que o que ele precisava era um novo tipo de filme dramático / informativo / persuasivo. Assim nasceu The Plow That Broke The Plains / 1936, marco do filme documentário americano, que abriu um novo caminho, juntando perfeitamente imagem pictórica, música sinfônica e verso livre poético, com muita artisticidade. Ideologicamente, ele resumia indelevelmente os esforços do New Deal de Franklin Delano Roosevelt. Foi o primeiro filme criado pelo Governo dos Estados Unidos para distribuição comercial.
Lorentz nunca havia feito um filme e contratou como cameramen Ralph Steiner, Paul Strand, Leo Hurwitz e Paul Ivano. O grupo começou a filmar em Montana e rumou para o Texas, seguindo as tempestades de areia que estavam transformando rapidamente milhões de hectares de terra de fazenda em um deserto. Como Lorentz não tinha um roteiro preciso, Strand e Hurwitz lhe propuseram um, porém ele o rejeitou, porque seus dois companheiros, como esquerdistas, viam as tempestades não somente como uma catástrofe da natureza, mas como consequência do mal uso da terra por um sistema social voraz. Isso não ficava bem em um documentário patrocinado pelo governo.
Com o término das sequências de tempestade de areia, Lorentz dispersou sua equipe e partiu para Hollywood. Ele esperava descrever o pano de fundo histórico do Dust Bowl por meio de tomadas de arquivo, que os estúdios costumavam alugar por um determinado preço por metro de filme. Entretanto, as companhias haviam aparentemente adotado uma política de não cooperação com o governo – ou pelo menos com a administração Roosevelt. Felizmente, alguns artistas de Hollywood – notadamente King Vidor – não aprovavam a política dos estúdios e ajudaram Lorentz a conseguir as tomadas de arquivo de que necessitava (vg. as cenas da corrida do ouro com as carroças cobertas e as cenas da Primeira Guerra Mundial).
Lorentz contratou o montador Leo Zochling para ensiná-lo a editar o material filmado e começou uma colaboração com o compositor Virgil Thomson, que se tornou o elemento chave de The Plough That Broke The Plains. Eles combinaram perfeitamente imagens e música (folclórica e sinfônica) com palavras faladas (em verso livre poético pelo narrador Thomas Chalmers) e efeitos sonoros, obtendo um resultado emocionante. Como disse o musicólogo Neil Lerner, “ a colaboração entre Lorentz e Thomson rivaliza com a de Eisenstein e Prokofieff”. E, por falar no grande cineasta russo, é bem evidente sua influência nas cenas em que se alternam os tratores com os tanques de guerra.
Lorentz e Thomson trabalharam em outro documentário para o governo, The River / 1937, patrocinado pela Farm Security Administration. O filme contava a história do Rio Mississipi, mostrava a necessidade de um sistema de represas que controlasse as suas águas e propunha a Tennessee Valley Authority como um meio de tornar viáveis a terra devastada e as áreas economicamente debilitadas.
No outono de 1936, Lorentz havia completado a pesquisa e contratado como cameramen Willard Van Dyke e Stacy e Horace Woodard, estes dois últimos depois substituídos por Floyd Crosby. O roteiro de Lorentz relacionava a Depressão com o excesso de cultivo e urbanização do vale do Mississipi, deixando a região imprópria para a agricultura e gerando os americanos sem moradia, sem roupa e sem comida.
Thomson conjugou hinos (“Yes, Jesus Loves Me”), música folclórica (“Go Tell Aunt Rhody”) e canções populares (“Hot Time in the Old Town Tonight”), e a voz sonora de Thomas Chalmers assumiu um estilo encantatório, reminiscente de Walt Whitman – e também do documentário russo Turksib / 1929, conhecido por todos os participantes do projeto. No texto falado, as palavras “we built a hundred cities and a thousand towns”, foram usadas como refrão. Lorentz referia-se ao filme como uma “ópera”, que também incluía tomadas de arquivo de dois filmes de Hollywood: Meu Filho é Meu Rival / Come and Get It / 1936 e Magnólia / Showboat / 1936 bem como de cine-jornais.
The River obteve um sucesso crítico e comercial estrondoso. A Paramount Pictures aceitou-o para distribuição nacional. O script de Lorentz, um poema Whitmaniano, chamado por James Joyce de “a prosa mais linda que ouví em muito anos”, foi indicado para o Pulitzer Prize. Competindo com Olimpíadas – Mocidade Olímpica /Olympia / 1938 de Leni Riefenstahl, ganhou o prêmio de Melhor Documentário no Festival de Veneza de 1938.
Devido ao êxito de The River, Lorentz pôde persuadir a administração Roosevelt (com o apoio do próprio presidente, que gostara muito do filme) a criar o United States Film Service em 1938. A primeira realização do U.S. Film Service foi The Fight for Life / 1940, produzida pelo U.S. Public Health Service. Escrito e dirigido por Lorentz e fotografado por Floyd Crosby, o filme foi baseado em um livro do Dr. Paul de Kruif, que popularizou assuntos médicos e científicos e trata das atividades do Chicago Maternity Center, providenciando cuidados pré-natais para mães e partos em casas de famílias pobres. A música, composta por Louis Gruenberg era inovadora, incluindo o uso de blues enquanto um médico jovem passeia pelas ruas da cidade à noite e o elenco misturava não atores com atores como Will Geer. Com duração de longa-metragem, The Fight for Life era um semi-documentário e pode ser considerado um precursor dos semi-documentários de Hollywood do pós guerra como A Casa da Rua 92 / The House on 92nd Street / 1945, O Justiceiro / Boomerang / 1947 e Sublime Devoção / Call Northside 777 / 1948.
A próxima produção do U.S. Service, Power and the Land / 1940, distribuída pela RKO, foi patrocinada pela Rural Electrification Administration e pelo Departamento de Agricultura. Joris Ivens, o documentarista holandês que vivia nos Estados Unidos, dirigiu; Helen van Dongen, sua esposa na época, montou o filme; Floyd Crosby e Arthur Ornitz o fotografou; Stephen Vincent Benet escreveu o comentário e Douglas Moore compôs a trilha musical. O objetivo do documentário era persuadir os fazendeiros a organizarem cooperativas, a fim de obterem a energia fornecida pelo governo. Vemos os fazendeiros trabalhando antes deles terem eletricidade e depois.
O documentário seguinte, The Land / 1941, argumentando que as práticas cientificas e máquinas modernas tornariam as terras mais produtivas. foi concebido e dirigido por Robert Flaherty, retornando à América após passar uma década na Grã Bretanha. A montagem ficou à cargo de Helen van Dongen, a fotografia aos cuidados de Irving Lerner, Douglas Baker, Floyd Crosby e Charles Herbert, Richard Arnell encarregou-se da música e o próprio Flaherty escreveu e leu o comentário.
The Land nunca foi exibido em cinemas e o U.S. Film Service terminou, segundo Robert Snyder (Pare Lorentz and the Documentary Film, University of Oklahoma, 1968) devido a vários motivos: antagonismo e antipatia do Congresso com relação a ele; falta de apoio do governo (Roosevelt agora estava mais preocupado com assuntos internacionais); oposição do público e do Congresso contra as atividades de propaganda do governo (descontentes porque The Plough That Broke The Plains retratara os Estados do sudoeste e do oeste como desertos); oposição de Hollywood.
Na área dos documentários não governamentais (como haviam sido os da Film Photo League e A Marcha do Tempo), a Frontier Film (na qual se metamorfoseara a Nykino) e a Contemporary Film Historians, Inc., formada por um grupo de escritores que incluía John Dos Passos, Ernest Hemingway, Archibald Mac Leish, Dorothy Parker e Lilliam Hellman, preocuparam-se mais ainda do que A Marcha do Tempo, com a ameaça do fascismo na Europa e as conquistas imperialistas japonesas na Ásia. Vários filmes foram feitos sobre a Guerra Civil Espanhola, apoiando a causa Legalista: na Frontier Films, Heart of Spain / 1937 e Return to Life / 1938; na Contemporary Film Historians, The Spanish Earth / 1937.
O mais ambicioso e o mais visto dos documentários sobre a Guerra Civil Espanhola foi The Spanish Earth, dirigido por Joris Ivens, fotografado por John Ferno, montado por Helen Van Dongen, escrito e narrado por Ernest Heminghway e com arranjos musicais de Marc Blitzstein e Virgil Thomson baseado em melodias folclóricas espanholas.
Como notaram Jack Ellis e Betsy McLane, Hemingway comenta as imagens que estamos vendo como se estivéssemos assistindo o filme junto com ele. “Não consigo ler alemão também”, ele diz, quando aparecem palavras gravadas em pedaços de um bombardeiro germânico abatido por um avião de combate Legalista. Estes são identificados como o povo em oposição a Franco e seus estrangeiros – Alemães, Italianos, mercenários Mouros e a Guarda Civil. As palavras de Hemingway são fortalecidas por close-ups dos rostos de soldados, mulheres chorando, crianças. A informalidade e a natureza democrática desse exército de cidadãos são evidentes assim como sua camaradagem e solidariedade. Nunca vemos os rebeldes; eles permanecem um inimigo sem face.
Quanto a filmes abordando a defesa da China contra as agressões japonesas, a Frontier Films fez China Strikes Back / 1937 e a Contemporary Film Historians, The Four Hundred Million / 1939; quanto à crise de Munich de 1938, podemos citar Crisis / 1938 e Lights Out of Europe / 1938, produzidos e dirigidos por Herbert Kline e co-dirigido por Alexander Hackenschmied (depois Hammid quando emigrou para os Estados Unidos).
No que se refere a documentários não governamentais versando sobre assuntos domésticos, a maioria tinha “tendências progressivas” e lidava com temas de particular interesse da esquerda política, como sindicalismo em People of the Cumberland / 1938, United Action / 1939 e, principalmente no longa-metragem, Native Land / 1939 (mas lançado somente em 1942), dirigido e escrito por Leo Hurwitz e Paul Strand, fotografado por Strand, com música de Marc Blitzstein, narração de Paul Robeson e o ator Howard da Silva, interpretando um lastimável espião no meio trabalhista a serviço dos patrões.
Outro tema tratado foi o do planejamento urbano. A Place to Live / 1939, enfocou de maneira convincente a derrubada de cortiços em Filadélfia e The City / 1939 fomentou o conceito de comunidades localizadas em um cinturão verde, separado dos grande centros urbanos.
Exibido com grande êxito na New York World’s Fair de 1939, The City, dirigido por Ralph Steiner e Willard Van Dyke, e patrocinado pelo American Institute of City Planners, contou com o comentário de Lewis Mumford (que foi lido por Morris Carnovsky) e com a colaboração do grande compositor, Aaron Copland. The City apresenta vinhetas cômicas vislumbradas por câmeras escondidas combinadas com ritmo rápido, produzindo entretenimento além da informação. Em uma cena célebre, um café automático serve comida para os fregueses como se eles estivessem em uma linha de montagem.
Alguns documentários cuidaram do desemprego. (Valley Town / 1940) e da educação (And So They Live / 1940, The Children Must Learn / 1940 e One Tenth of a Nation / 1940 este, chamando a atenção para a necessidade de melhores escolas para os negros do Sul.
Como resumiu Richard M. Barsam (Non-Fiction Film – A Critical History, Indiana University, edição revista e ampliada de 1992), o filme de não-ficção floresceu nos Estados Unidos durante os anos trinta com vários diretores emergindo como líderes (Flaherty, Ivens, Lorentz, Van Dyke). Experimentações com fotografia, som, narração, música e cor ajudaram a expandir as potencialidades dos documentários. Avanços no modo de financiamento e distribuição tornaram os filmes mais facilmente disponíveis para o grande público e aumentaram o interesse deste por filmes que alargam o seu conhecimento e ajudam a formar opiniões sobre os acontecimentos contemporâneos.
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial em 1939, o filme americano de não-ficção, que foi desenvolvido quase à plena maturidade durante os anos trinta, assumiria novas responsabilidades e criaria novas formas cinematográficas.