Arquivo mensais:abril 2013

JAMES CAGNEY I

Embora tenha sido comumente associado ao filme de gângster, James Cagney brilhou com intensidade nos mais variados gêneros, sempre empolgando o público com suas interpretações inesquecíveis. Todos os seus filmes valem à pena serem vistos pela sua presença, pela força de sua personalidade, pela vitalidade que descarrega na tela, pelo estilo original e sutileza de sua representação.

James Francis Cagney Jr. (1899 -1986) nasceu na East 8th Street em Nova York e cresceu na área de Yorkville, para onde a família se mudou em 1901. Seu pai, de descendência irlandesa, era um atendente de bar, que se tornou brevemente proprietário de um saloon e morreu durante a epidemia de gripe espanhola em 1918. Sua mãe, Carolyn Elizabeth Nelson, de origem norueguesa, foi o suporte de uma família de cinco filhos.

Em Yorkville, James era um campeão das brigas de rua e, como na vizinhança viviam muitos imigrantes, ele se acostumou a ouvir não somente o idioma alemão, mas também o húngaro, chinês, espanhol, italiano, russo, polonês e sobretudo o iídiche.

Quando terminou seus estudos em uma escola pública, começou a trabalhar, aos quatorze anos de idade, como office-boy do New York Sun. Posteriormente, chegou a dar duro de dia, na Biblioteca Pública de Nova York; de noite, como bedel na East Side Settlement House; aos domingos, como vendedor de bilhetes na Hudson River Day Line.

Em 1917, James exerceu a função de mensageiro no clube The Friars, frequentado por atores da Broadway e nessa ocasião era comum ganhar ingressos para alguns espetáculos teatrais. Foi assim que ele viu Anna Pavlova dançar e descobriu que  a dança estava dentro de si.

Após se formar na Stuyvesant High School, James estudou desenho na Lenox Hill Settlement House, onde chegou a desenhar e pintar alguns cenários e pôsteres, além de prestar serviço à instituição como porteiro.

Certo dia, seu irmão Harry, que estava estudando medicina na Universidade de Columbia, falou com James que a universidade estava recrutando alunos para o Student Army Training Corps. Havia vaga para pessoas com talento para o desenho e, se ele ingressasse no SATC, receberia um diploma da Columbia e se tornaria um oficial do Exército no dia de sua formatura. James matriculou-se imediatamente e, durante o curso, usufruiu especialmente das aulas de alemão com o Professor Mankiewicz, pai do roteirista Herman J. e do diretor Joseph L. Mankiewicz. Entretanto, quando James Frances Cagney morreu, Cagney Jr. deixou a escola e aceitou emprego como empacotador na loja de departamentos Wanamaker, a fim de ajudar Harry a continuar seus estudos.

Um colega da Wanamaker, ex-artista do vaudeville, indicou James para substituir um amigo no côro masculino de uma revista musical intitulada Every Sailor e  ele foi, sem saber que teria que irromper no tablado vestido de mulher no meio de outras sete “beldades”.

No verão de 1920, James foi escolhido para integrar o coro de um musical da Broadway, Pitter Patter. Nessa ocasião, conheceu a dançarina Frances Willard Vernon, a “Billie”, e os dois se casaram em 1922, permanecendo juntos até a morte dele. Billie ficou intrigada com James porque, em vez de jogar cartas, como fazia a maioria dos rapazes do coro entre os números musicais, ele lia livros. Isto já era singular, mas quando Billie o ouviu, discutindo com outro colega interessado em literatura o romance “Jean-Christophe” de Romain Rolland, referindo-se ao livro como um roman-fleuve (romance longo contando a história de várias gerações de uma família), ela ficou impressionada com o fato de que alguém tão bonitinho pudesse ter tanta inteligência. Anos depois, Billie costumava brincar com James dizendo: “Naquele instante, decidí que você era o meu roman-fleuve”.

Quando o musical saiu de cartaz, James e Billie tentaram o teatro de variedades (o casal atuou junto em uma excursão pelo país com o espetáculo Lew Field’s Ritz Girls of 19 and 22),  procuraram em vão emprego na indústria do cinema em Los Angeles e, finalmente, de volta a Nova York, James obteve um papel dramático em Outside Looking In de Maxwell Anderson, ao lado de Charles Bickford, recebendo elogios pela sua interpretação.

A partir daí, suas perspectivas artísticas se ampliaram, com muito trabalho (Broadway, Women Go On Forever, The Grand Street Follies of 1928 (no qual James dançava um número intitulado From Tango to Taps com Sophia Delza), The Grand Street Follies of 1929, Maggie the Magnificent), até o sucesso com Joan Blondell em Penny Arcade, que o levou para Hollywood.

Al Jolson adquiriu os direitos de filmagem de Penny Arcade e, ao revendê-los para a Warner Bros., pediu a Jack Warner que fôsse ver a peça antes que ela saísse de cartaz, não somente para avaliar seu potencial como base de um filme sonoro, mas também para apreciar os talentos de James Cagney e Joan Blondell. Warner foi, ficou convencido, e contratou os dois artistas.

O diretor de Sinner’s Holiday (o título no cinema de Penny Arcade), John G. Adolfi, achou que eles possuíam o dinamismo necessário para assumir os papéis principais, porém Darryl Zanuck, não concordou, insistindo que Cagney e Blondell deveriam repetir os papéis secundários, que haviam interpretado na Broadway, ficando Grant Withers e Evelyn Knapp com os leading roles.

O próximo filme de Gagney, A Caminho do Inferno / Doorway to Hell / 1930, dirigido por Archie Mayo e com história de Roland Brown indicada para o Oscar, deu início a um ciclo de filmes de gângster e nele, James fazia o papel do melhor amigo e capanga de Louis Ricarno, apelidado de “Baby Face”, interpretado por Lew Ayres.

Subsequentemente, Cagney fêz duas pequenas participações em Other Men’s Women / 1931 (Dir: William Wellman) e O Milionário /  The Millionaire/ 1931 (Di: John G. Adolfi). Neste último, Cagney intervém em uma única cena de dois minutos, marcando sua presença, como um corretor de seguros, ao lado de George Arliss, um dos astros da Warner  nos anos trinta.

O segundo filme de gângster na carreira de Cagney foi O Inimigo Público / The Public Enemy / 1931. No enredo, dois amigos de infância Tom Powers (James Cagney) e Matt Doyle (Edward Woods), criados em um bairro pobre, enveredam pelo crime, na época da Lei Sêca. Tom acaba sendo metralhado por uma quadrilha rival e depois deixado agonizante na porta da casa de sua mãe. O diretor William Wellman recordou: “Quando ví os primeiros rushes, disse a Zanuck: ‘Houve um terrível engano. Os papéis estão trocados. Cagney é quem deve ser o tough guy e ter o papel principal. Zanuck respondeu: ‘Bem, você sabia que Eddie Woods está noivo da filha de Louella Parsons? (a poderosa colunista de Hollywood, protegida de William Randolph Hearst)’ Eu disse: ‘Pelo amor de Deus, você vai deixar uma jornalista dirigir seus negócios?’ E ele, vencido, concordou: ‘Mude-os’ Nós os mudamos e Cagney se tornou um astro”.

Duas cenas ficaram célebres: a primeira em que Cagney espreme um grapefruit no rosto de Mae Clarke e a cena final, quando o irmão de Cagney no filme abre a porta e o corpo dele, enrolado em ataduras ensopadas de sangue, como se fosse uma múmia, balança por uns momentos e cai de bruços no chão.

O filme foi recebido entusiasticamente pelos críticos e público e Cagney percebeu que seu contrato de sete anos estava totalmente inadequado quanto ao salário. Seu agente, William Morris, queixou-se ao estúdio. Não houve resposta. Cagney mudou de agente e o novo negociador, George Frank, dirigiu-se diretamente a Darryl Zanuck, argumentando que O Inimigo Público custara 151 mil dólares, já estava rendendo mais de 1 milhão de dólares nas bilheterias, e ainda iria entrar mais dinheiro nos cofres da Warner.

Enquanto aguardava a resposta dos patrões, Cagney fêz mais dois filmes, As Mulheres Enganam Sempre / Smart Money / 1931 (Dir: Alfred E. Green) e Travessuras de uma Loura ou Gente Esperta / Blonde Crazy / 1931 (Dir: Roy Del Ruth). No primeiro filme, ele atuou pela única vez ao lado de Edward G. Robinson, como assecla do chefão do jogo ilegal; no segundo filme, teve seu primeiro papel principal, contracenando com Joan Blondell. Cagney é Bert Harris, mensageiro de hotel e Blondell, uma camareira. Eles se metem a fazer trapaças e são enganados por um vigarista mais esperto (Louis Calhern) e sua cúmplice (Noel Francis). Cagney e Blondell se completaram magnificamente.

Terminadas essas filmagens, Cagney foi para Nova York. Após seis meses de suspensão por causa de sua revbeldia, ele voltou, ganhando mil dólares semanais. Seu irmão William, acompanhou- o, para cuidar de seus negócios e, ao mesmo tempo, tentar a sorte como ator no cinema.

O primeiro filme de Cagney depois da suspensão, foi Peso do Ódio / Taxi! / 1932 (Dir:  Roy Del Ruth), no qual ele interpreta o papel de Matt Nolan, líder de um grupo de choferes de taxi, que desafia o poderoso sindicato da classe. Sua esposa, Sue (Loretta Young) tenta em vão refrear-lhe a combatividade. Quando o irmão de Matt é morto, ele parte para a vingança. Ficou famosa a cena em que o ator, embora sendo católico, demonstrava sua fluência no idioma iídiche. Outra curiosidade foi a participação do então novato George Raft como seu rival em uma cena de concurso de dança Peabody.

Anos mais tarde, Cagney faria sempre questão de dizer que nunca havia pronunciado as palavras que seus imitadores sempre punham na sua boca: “You dirty rat!”. “Eu nunca disse isso”, ele insistia. Porém, em Peso do Ódio, pouco antes de descarregar sua arma na porta do vilão, Cagney grita: “Come on and take it, you dirty yellow bellied rat, or I’ll give you through the door!”.


Antes de deixar a Warner novamente, por insatisfação quanto ao seu salário e por estar descontente com o excesso de apresentações pessoais em campanhas de promoção dos filmes que o estúdio estava impondo aos seus astros, Cagney fêz  Delirante / The Crowd Roars /  1932 (Dir: Howard Hawks) e Tudo ou Nada / Winner Take All / 1932 (Dir: Roy Del Ruth). No primeiro filme, ele surge como Joe Greer, ás do automobilismo que tenta impedir que seu irmão, Eddie (Eric Linden) siga a mesma carreira e o adverte sobre o passado de Anne (Joan Blondell), uma loura por quem o jovem está interessado. Eddie casa-se com Anne e se torna campeão enquanto Joe, após ter causado acidentalmente a morte de um colega, entra em decadência. A namorada de Joe, Lee (Ann Dvorak), procura incutir-lhe confiança em si mesmo e afinal ele substitui Eddie em uma corrida e se reconcilia com o irmão. A cena que revela mais originalidade é a do desfecho, quando os pilotos feridos continuam a corrida nas ambulâncias que os levam para o hospital. No segundo filme, assume as feições de  Jim Lane, ídolo do ringue que, sem dinheiro por causa das farras, interna-se, graças a uma coleta de seus fãs, em uma casa de saúde no Novo México, onde conhece Peggy (Marian Nixon), que está sendo despejada. Para ajudá-la a pagar o aluguel, Jim volta a lutar e, animado com o sucesso, envolve-se com uma ricaça (Virginia Bruce). Para esse seu primeiro filme em ambiente de boxe, Cagney treinou durante três semanas com um pugilista verdadeiro, o campeão de peso médio, Harvey Perry.

Ao se afastar do estúdio, o ator deixou dois filmes em preparação: Bisbilhiotices / Blesssed Event20.000 Anos em Sing Sing / Twenty Thousand Years in Sing Sing, nos quais foi substituido respectivamente por Lee Tracy e Spencer Tracy. Em setembro de 1932, ele retornou mais uma vez à Warner, depois de ter chegado a um acordo pra receber três mil dólares semanais com possibilidade de aumentos.

Jack Warner contou nas suas memórias: “Cagney moveu tantas ações judiciais contra nós, que nossos advogados ficavam loucos. Tínhamos que encerrar cada ação, oferecendo-lhe um novo contrato, mas eu penso que, no final das contas,  ele merecia”. Jack apelidou Cagney de “the professional against-er”, título que este  ostentava com orgulho.

O primeiro filme de Cagney, após o retorno, foi Hard to Handle / Difícil de Lidar 1933 (Dir: Mervyn LeRoy), comédia de compasso frenético no qual ele fazia o papel de Lefty Merrill, promotor de maratonas de dança que se vê em apuros quando o sócio foge com o dinheiro do prêmio e a mãe (Ruth Donnelly) da vencedora (Mary Brian) tenta forçá-lo a se casar com a filha. Cagney detestava LeRoy, considerando-o um mau diretor, um conversa fiada que dependia dos seus fotógrafos e dava instruções as mais disparatadas para os atores. Achava inclusive que LeRoy era um bajulador, por ter se casado com a filha de Harry Warner, o presidente do estúdio.

No mesmo ano de 1933, seguiram-se O Furão / Picture Snatcher / 1933 (Dir: Lloyd Bacon), O Prefeito do Inferno / The Mayor of Hell / 1933 (Dir: Archie Mayo), Belezas em Revista / Footlight Parade / 1933 (Dir: Lloyd Bacon) e O Mulherengo / Lady Killer (Dir: Roy Del Ruth).

Em O Furão, Cagney é Danny Kean, ex-condenado, que vai trabalhar em um jornal como “fotógrafo de escândalos” e se apaixona pela filha (Patricia Ellis) do policial que o conduzira à prisão. Como sempre exuberante, ele garante a diversão nesta comédia despretensiosa e engraçada, dirigida com rapidez por Lloyd Bacon; porém Alice White quase rouba o filme como uma lourinha amalucada.

Em O Prefeito do Inferno, Cagney é Patsy Gargan, ex-escroque, que se torna superintendente  de um reformatório como prêmio dos políticos corruptos seus amigos. Inicialmente, ele não tem interesse na escola, mas sua simpatia pelos garotos, que cresceram nas favelas como ele próprio e sua atração pela enfermeira residente, Dorothy Griffith (Madge Evans), o convencem a levar o trabalho a sério. Este melodrama criminal eficiente, que na verdade pertence mais aos garotos e a seu líder carismático interpretado por Frankie Darro, ofereceu ainda um clímax inesperado, que agradou o público.

Em Belezas em Revista, Cagney é Chester Kent, produtor de prólogos musicados que eram apresentados nos palcos antes da exibição do filme. Neste musical de bastidores, alternando o lufa-lufa na preparação dos espetáculos com pequenos trechos cômicos e românticos, surgem sucessivamente, mais para o final, três números musicais formidáveis criados pelo gênio do coreógrafo Busby Berkeley, “Honeymoon Hotel”, “Shanghai Lil” e “By the Waterfall”. Cagney fala que nem uma metralhadora e sapateia naquele seu estilo saltitante em “Shanghai Lil” ao lado de Ruby Keeler.

Em O Mulherengo, Cagney é Dan Quigley, lanterninha de cinema que, ao ser despedido, trilha a senda do crime. Ele se esconde em Hollywood da polícia de Nova York, consegue uma “ponta” como índio em um filme e atinge o estrelato; porém seu  bando aparece e tenta convencê-lo a roubar a casa dos astros. Cagney comete nova “indelicadeza” com Mae Clarke (a moça do grapefruit em O Inimigo Público), desta vez arrastando-a pelos cabelos, e namora Margaret Lindsay, nesta sátira alegre, dirigida em um ritmo veloz por Roy Del Ruth.

No seu próximo filme, Bancando o Cavalheiro / Jimmy the Gent / 1934, Cagney iniciou sua longa e frutífera conexão com Michael Curtiz, que ele admirava e, ao mesmo tempo, desprezava. Cagney disse: “Mike era um bastardo pomposo, que não sabia como tratar os atores, mas ele certamente sabia como lidar com uma câmera”.

Na trama de Bancando o Cavalheiro, Cagney intrerpreta Jimmy Corrigan, um trapaceiro, que forja herdeiros, para se habilitarem em inventários, ainda não abertos. Ele quer reconquistar a ex-assistente (Bette Davis) e, para isso, tenta se transformar em um cavalheiro fino e elegante. Reunidos nesta comédia turbulenta, sob as ordens do astuto Michael Curtiz, Bette Davis e James Cagney têm novamente em sua companhia Alice White em gostosa caracterização de dumb blonde.

Cagney participou de mais três filmes no ano de 1934: O Homem Que Eu Perdí / He Was Her Man / 1934 (Dir: Lloyd Bacon), Aí Vem a Marinha / Here Comes the Navy (Dir: Lloyd Bacon) e Comprando Barulho / The St. Louis Kid (Dir: Ray Enright).

Em O Homem Que Eu Perdí, Cagney é Flicker Hayes, arrombador de cofres recém-saído da prisão, que concorda em praticar um roubo com os homens que o traíram e, depois do golpe, denuncia-os à polícia. Um deles escapa e persegue Flicker com seus capangas até San Francisco, onde ele conhece Rose (Joan Blondell), uma ex-prostituta, que vai se casar com um pescador português. No final da trama, para salvá-la, Flicker se entrega aos bandidos. Cagney e Blondell atuam juntos pela sétima e última vez.

Em  Aí Vem a Marinha, Cagney é Chesty O’Connor, rapaz temperamental, que vive infringindo as regras da Marinha e namora a irmã (Gloria Stuart) de seu superior hierárquico,  Biff Martin (Pat O’Brien), contra a vontade deste. Filmada a bordo do U.S.S. Arizona e na Base Naval de San Diego, foi o primeiro dos oito filmes que Cagney fez com Pat O’Brien e um dos melhores, tendo sido indicado ao Oscar de Melhor Filme de 1934.

Em Comprando Barulho, Cagney é Eddie Kennedy, chofer de caminhão combativo que se envolve em um conflito entre uma empresa de transporte e produtores de leite em greve. Injustamente acusado de assassinato, ele sai em busca do verdadeiro culpado e de sua namorada (Patricia Ellis), que fora raptada pelos agentes da transportadora. Cagney naquele tipo de filme que só a Warner sabia fazer, formou uma boa dupla com Allen Jenkins, seu coadjuvante em várias ocasiões.

Aplicando a fórmula semelhante à de Aí Vem a Marinha, a Warner realizou  Fuzileiros do Ar / Devil Dogs of the Air / 1935 (Dir: Lloyd) outro filme em ambientes militares autênticos. Desta vez, Cagney surge como Tommy O’Toole, um rapaz que, estimulado por um colega de infância, William Brannigan (Pat O’Brien), ingressa no Corpo da Aviação Naval. Sua indisciplina e o namoro com uma garçonete (Margaret Lindsay) fazem nascer uma rivalidade entre os dois. O’Brien e Cagney juntos sempre funcionaram muito bem, mas o maior destaque foi para as cenas aéreas e o desempenho de Frank McHugh – companheiro e Cagney em inúmeros espetáculos – como o chofer de ambulância que não consegue arranjar feridos para transportar. Por ocasião do lançamento de Fuzileiros do Ar, Cagney foi anunciado como um dos Dez Campeões de Bilheteria de Hollywood.

Seus filmes seguintes foram: G-Men Contra o Império do Crime / G-Men / 1935 (Dir: William Keighley), Filhinho de Mamãe / The Irish in Us / 1935 (Lloyd Bacon), Sonho de Uma Noite de Verão / A Midsummers Night’s Dream / 1935 (Dir: Max Reinhardt, William Dieterle), Cidade Sinistra / Frisco Kid / 1935 (Dir: Lloyd Bacon), Heróis do Ar / Ceiling Zero / 1935 (Dir: Howard Hawks), Pesos e Medidas / Great Guy / 1936 (Dir: John G. Blystone), Domando Hollywood / Something to Sing About / 1936 (Dir: Victor Schertzinger), Comprando Barulho / Boy Meets Girl / 1938 (Lloyd Bacon), até receber sua primeira indicação para o Oscar por sua atuação em Os Anjos de Cara Suja / Angels With Dirty Faces / 1938 (Dir: Michael Curtiz).

Em Contra o Império do Crime, Cagney é James “Brick” Davis, jovem advogado protegido e educado por um gângster, que se torna G-Man, para vingar a morte de seu melhor amigo. Em uma missão, ele é obrigado a matar seu antigo protetor e pensa em deixar o FBI. Depois, muda de idéia, para ajudar a amiguinha (Margaret Lindsay), mantida como refém pelo líder da quadrilha. Para “amansar” a censura, a Warner colocou Cagney do lado da lei neste melodrama criminal, um dos filmes mais populares do ator.

Em O Filhinho da Mamãe, Cagney faz o papel de um dos três filhos que Mamãe O’Hara (Mary Gordon) criou: Pat (Pat O’Brien), policial; Mike (Frank McHugh), bombeiro; e ele, Danny, promotor de lutas de boxe. Pat enamora-se de Lucille (Olivia de Havilland), mas esta gosta de Danny, surgindo o conflito entre os irmãos. Entrementes, um dos pugilistas de Danny fica impossibilitado de subir ao ringue e ele o substitui, ganhando a luta e a garota. Lloyd Bacon era um dos poucos diretores em quem Cagney confiava. Ele disse: “Lloyd conhecia seu ofício, porém gostava de apressar tudo, de ver tudo logo terminado. Algumas vêzes, estávamos ensaiando diante da câmera, ele filmava as cenas subrepticiamente e as colocava no filme”.

Sonho de Uma Noite de Verão é uma adaptação cinematográfica da peça de William Shakespeare, realizada pelo produtor e diretor teatral alemão Max Reinhardt com a ajuda de seu ex-discípulo William Dieterle.  A história é bastante conhecida. Em Atenas, Lisandro (Dick Powell) e Demétrio (Ross Alexander) estão apaixonados por Hérmia (Olivia de Havilland) enquanto Helena (Jean Muir) ama futilmente Lisandro. Puck (Mickey Rooney), escravo do Rei Oberon (Victor Jory), direciona o amor de Lisandro para Helena por meio de uma poção mágica. A mesma poção é usada por Oberon, para punir sua rainha, Titânia (Anita Louise), e ela se apaixona temporariamente por Bottom (James Cagney), tecelão transformado em asno, que estava ensaiando uma peça, para comemorar as núpcias de Teseu, Duque de Atenas (Ian Hunter) com Hipólita (Verree Teasdale). Quando amanhece, o encanto se desfaz e tudo volta ao normal.

Cagney nunca sentiu desejo de interpretar Shakespeare, porém Reinhardt achava que ele era o melhor ator em Hollywood. Reinhardt declarou em várias ocasiões que “Poucos artistas jamais tiveram a sua intensidade, a sua energia dramática. Cada movimento do seu corpo e suas mãos incríveis contribuem sempre para o que ele está tentando dizer”.

No entanto, no caso de Sonhos de Uma Noite de Verão, Cagney exagerou na interpretação, usou demais as suas mãos e abusou de uma risada incessante e irrelevante. A maioria dos críticos achou que o dinamismo de Cagney não casava bem com o personagem de Bottom. No filme, sobressai a fotografia deslumbrante de Hal Mohr que arrebatou o Oscar … sem ter sido indicado, caso único na história da Academia, em virtude da aplicação do write-in vote, prática então vigente, que permitia ao votante incluir na cédula um candidato próprio. Reinhardt trouxe o compositor vienense Erich Wolfgang Korngold, a fim de providenciar o arranjo da música de Mendelssohn, grande aquisição para a Warner, onde ele comporia algumas das melhores partituras de cinema de todos os tempos.

Em Cidade Sinistra, Cagney é o marujo Bat Morgan, que escapa de ser raptado para trabalhar em um navio e mata um notório bandido, tornando-se todo-poderoso nos antros da jogatina em Barbary Coast. Neste melodrama, parecido com Duas Almas se Encontram / Barbary Coast / 1935, mas inferior a ele, Cagney estranhamente vestido de colete brocado, compõe o tipo agressivo que costuma interpretar, tendo a seu lado mais numa vez Margaret Lindsay.

Em Heróis do Ar, Cagney é Dizzy Davis, piloto irresponsável, que volta para o antigo emprego sob as ordens de um velho companheiro, Jake Lee (Pat O’Brien). Após ser indiretamente culpado por um acidente com outro colega, testa um dispositivo para remover gelo das asas dos aviões, em um vôo suicida. A interpretação humana e contida de Cagney neste drama de aviação suscitou elogios da crítica.

Descontente mais uma vez com a Warner, Cagney ajuizou uma ação contra o estúdio e se tornou um ator free lancer, assinando contrato com a Grand National, Film Inc., uma pequena companhia fundada por Edward L. Alperson. No primeiro filme na Grand National Pesos e Medidas, Cagney personificou Johnny Cave, honesto funcionário do Departamento de Pesos e Medidas que fazia campanha contra os defraudadores e, embora sendo do lado da lei, não hesitava em usar métodos iguais aos deles. O filme reune de novo a dupla James Cagney e Mae Clarke. A certa altura da narrativa – é o que nos conta  John McCabe na extraordinária biografia de James Cagney (Carroll and Graf, 1997), da qual extraímos muitas informações para escrever este artigo -, Cagney  faz esta repreensão para Clarke: “Meu melhor amigo foi atropelado, está ocorrendo uma Guerra Civil na Espanha, temos um terremoto no Japão – e agora você põe este chapéu!”, apontando para a criação atrevida na sua cabeça.

Quando Cagney fêz oitenta anos de idade, perguntaram-lhe qual seria o seu filme, com exceção de A Canção da Vitória, que ele gostaria de rever e ele escolheu o segundo que fez para a Grand National, Domando Hollywood / Something to Sing About / 1937  (Dir: Victor Schertzinger), no qual ele interpreta o papel de Terry Rooney, cantor, dançarino e chefe de orquestra que faz dupla com sua namorada,  Rita Wyatt (a soprano Evelyn Daw). Cagney gostava das canções do filme, compostas pelo versátil diretor Swertzinger e tinha uma admiração particular pelo estilo dos dançarinos Johnny Boyle e Harland Dixon, seus antigos companheiros no vaudeville, que estavam seu lado no espetáculo.

John Mc Cabe nos informa que, nesta época, o ator viveu uma de suas mais curiosas experiências em Hollywood. Ele recebeu um telefonema de Charles Chaplin, convidando-o para uma visita à sua mansão em companhia de Billie. “Venha mesmo”, disse Chaplin, “Gostaria de discutir um assunto de negócios com você e passaremos um dia agradável”. Cagney ficou intrigado como aquele “assunto de negócios. “Que diabos, tínhamos em comum?. Então eu disse sim e nós fomos”. Depois de um almoço muito bem servido e uma longa conversa, o genial criador de Carlitos finalmente lhe disse que havia escrito um roteiro sobre Napoleão e perguntou a Cagney se ele estava interessado. Cagney, respondeu com toda delicadeza que não e teve que aguentar por mais algum tempo, segundo ele mesmo comentou, o palavrório exibicionista de Chaplin. “Raramente eu tive um dia mais entediante, mais desperdiçado do que aquele”.

RAYMOND BERNARD II

Os quatro filmes que Raymond Bernard fêz para a Pathé-Natan – Faubourg Montmartre / 1931, Cruzes de Madeira / Les Croix des Bois / 1931, Os Miseráveis / Les Misérables / 1933 e Tartarin de Tarascon / 1934 – eu  pude ver todos.

Faubourg Montmartre é um melodrama impregnado de um populismo trágico com personagens arquetípicos: duas irmãs, Ginette (Gaby Morlay) e Céline (Line Noro), cujo pai, um viajante comercial, está quase sempre ausente, ficam entregues a si mesmas no seu apartamento no Faubourg Montmartre. Céline, ligada ao proxeneta e traficante Dédé (Charles Vanel), adere às drogas e tenta induzir a irmã à prostituição. Mas Ginette escapa desse meio e encontra o amor junto de um homem honesto, Frédéric (Pierre Bertin), que a leva para longe do bairro. Nesse melodrama já encontramos a estética e o clima do que se chamaria mais tarde realismo poético.

A atmosfera sombria e cinzenta pesa como uma fatalidade sobre um grupo de personagens, que vivem em um ambiente deletério, onde se misturam, a fome, o desespêro, a droga e a prostituição. Este  clima é bem enfatizado na cena em que a cantora gorda (Odette Barencey), interpreta a canção “Faubourg Montmartre” em um quarto cheio de fumaça, cercada por Céline, Dédé e algumas prostitutas. À imagem das jovens de olhar perdido sucede a imagem de uma boneca desequilibrada.

A visão noire da existência de Ginette emociona. Entre a degradação de sua irmã, o egoísmo arrogante e a superficialidade de sua prima Irène (Florelle) e o amargor de sua tia (Pauline Carton), a única pessoa suscetível de proteger Ginette é seu pai (André Dubosq) que, simbolicamente, não sobrevive após seu retorno ao bairro.

Após a sensação opressiva que domina a maior das sequências, a parte final do filme – quando Ginette procura reencontrar um equilíbrio na mansão provinciana   de Frédéric – provoca uma ruptura  desconcertante no tom da narrativa; porém o episódio, no qual aparece Antonin Artaud como o rei de um carnaval grotesco, organizado pelos camponeses para assustar os estranhos julgados indesejáveis, é uma cena admirável de cinema mudo, onde a imagem e a iluminação reencontram tôda a sua força.

Devido ao sucesso comercial de Faubourg Montmartre, Raymond Bernard pôde se debruçar mais uma vez sobre as superproduções, que ele amava tanto. O romance de Roland Dorgelès, “Les Croix des Bois”, um dos mais belos testemunhos da guerra 1914 – 1918 e sobre a guerra em geral, propiciou-lhe  ocasião de realizar mais um grande espetáculo.

Durante a Primeira Guerra Mundial, o jovem estudante de Direito, Gilbert Demachy (Pierre Blanchar), se alista, decidido a enfrentar o invasor alemão.  A frente de batalha está estabilizada nas planícies de Champagne. Os exércitos francês e alemão aguardam nas trincheiras a ofensiva do inimigo. No 39º regimento de infantaria, Gilbert faz amizade com Bréval (Charles Vanel), Sulphart (Gabriel Gabrio) e outros companheiros. Depois vêm as patrulhas e os confrontos. Ele descobre os horrores da guerra e morre nesse inferno.

A lama, o frio, o medo, a fadiga e a fome acabam por desanimar os homens que, alguns meses antes, estavam prontos para botar os alemães para correr. Essa passagem do patriotismo para a desilusão é narrada com muito realismo, facilitado pelas filmagens em locação na região de Reims e pelo fato de que a maior parte do elenco – notadamente Pierre Blanchar e Charles Vanel – era de veteranos da guerra 1914-1918.

Raymond Bernard explora todos os meios visuais e sonoros de que dispõe, para imergir o espectador no pesadelo dos combates. Travelings laterais seguindo a corrida dos soldados no campo de batalha, imagens chocantes das paisagens devastadas, agitação da câmera reforçando a confusão, planos focalizando cadáveres ou homens abatidos ao sairem das trincheiras, estrondos inquietantes e contínuos de detonações,  tudo isso agindo nervosamente sobre o espectador.

A busca de autenticidade é bem nítida também na maneira de mostrar a morte sem heroísmo nem romantismo. A agonia de Bréval (praguejando contra a esposa infiel e depois a perdoando) e a de Gilbert são momentos de grande intensidade dramática, nos quais o medo e a dor física são expressados admiravelmente pela interpretação de Charles Vanel e Pierre Blanchar.

Os planos simbólicos nos quais Demachy,  ferido de morte, revê sua vida e onde os soldados alemães e francêses marcham juntos, vítimas que, tais como os crucificados, carregam suas cruzes até o Golgotha, é uma das mais emocionantes do drama.

No trabalho de adaptação do romance de Victor Hugo, “Os Miseráveis”, Raymond Bernard contou com a colaboração de seu co-roteirista de Tarakanowa André Lang. A obra de Hugo, tão vasta, cheia de parênteses históricos, filosóficos, sociais e de inúmeros personagens e acontecimentos, foi dividida em três partes (Tempête sous un Crâne/ Les Thénardier/ Liberté, Liberté Chérie), cada qual correspondendo praticamente a um filme, totalizando 4h 53min. Posteriormente essa duração foi sendo reduzida conforme as reprises (em 1935 chegou a ser exibida uma versão de apenas 2h 30min.), mas atingiu 4h 41min. na versão atual restaurada, que saiu em dvd (juntamente com Cruzes de Madeira) pela Criterion (Eclipse Series).No Brasil o filme foi exibido no Cinema Odeon em dois capítulos em duas semanas.

Apesar da compressão da intriga, o grande afresco romântico foi levado à tela com muita fidelidade, conservando-se o “idealismo humano” do grande escritor. Em síntese, Jean Valjean (Harry Baur depois de cogitado Gabriel Gabrio) foi enviado para as galés por ter roubado um pão. Após sua libertação, ele é acolhido pelo bondoso bispo Myriel (Henry Krauss). Valjean lhe rouba uma baixela de prata. Os guardas o prendem, mas o prelado o inocenta, afirmando que lhe havia doado seu serviço de mesa, aos quais ele acrescenta dois candelabros de prata. A partir daí, sempre perseguido pelo implacável inspetor Javert (Charles Vanel), Valjean encontra uma galeria de personagens como Fantine (Florelle), Cosette (Josseline Gaël depois de cogitada Danielle Darrieux), os Thénardier (Charles Dullin, Marguerite Moreno), Marius (Jean Servais), Eponine (Orane Demazis depois de cogitada Arletty), Gavroche (Emile Genevois) etc … se redime pela bondade e pelo trabalho e se torna um verdadeiro santo.

Graças ao orçamento considerável que foi colocado à disposição do cineasta e aos eminentes artistas que o assistiram, Arthur Honegger (música) e seus colaboradores mais assíduos, Jean Perrier (cenários) e Jules Kruger (fotografia), ele conseguiu transpor cada trecho de antologia do livro em imagens memoráveis.

A preferência de Kruger pela abundância de composições com a câmera oblíqua, muito influenciada pelo estilo expressionista alemão foi perfeitamente complementada pela direção de arte deslumbrante de Perrier, que recriou exteriores da Paris do século dezenove em exteriores em Biot, cidade medieval perto de Antibes na Côte d’Azur.


O elenco de primeira grandeza deixou-se literalmente transportar pelo sopro épico. A interpretação de Harry Baur, que está sublime em todas as encarnações do personagem, jamais foi superada por outro ator. Também admiráveis são os trabalhos de Charles Vanel, como o inflexível Javert; Florelle, assumindo os traços luminosos de Fantine ; Charles Dullin e Marguerite Moreno, nos papéis de Thénardier e senhora, representando com seus sorrisos ávidos e sua fisionomias de raposa, a escória da sociedade.

Aproveitando o talento de Marcel Pagnol como adaptador do romance de Léon Daudet  e tendo Raimu como intérprete ideal daquele fanfarrão meridional que, por força de se vangloriar de caçadas imaginárias é levado para a África, Raymond Bernard realizou uma comédia parcialmente agradável e divertida. Na parte tarasconêsa da trama até a viagem de Tarascon para a África trata-se de uma comédia de costumes com uma observação pitoresca dos saborosos e simpáticos tipos meridionais; entretanto, na expedição algeriana, o filme cai muito, sucedendo-se uma série de episódios indigentes, para não dizer grotescos.

Como explicou Raymond Castans na sua biografia de Raimu (Éditions de Fallois, 1999), desde a primeira semana de filmagem  houve uma ruptura entre Marcel Pagnol e Raymond Bernard, pois eles tinham concepções de cinema bem diferentes. Bernard pertencia, como muitos realizadores, à tendência de René Clair, para o qual um filme falado continuava sendo um filme mudo, ao qual se juntava a palavra. Para Pagnol, era o contrário: no novo cinema, a palavra deveria ser predominante. Na adaptação de Pagnol, Tartarin sonhava suas aventuras sem sair de Tarascon o que, para Bernard, era o “anticinema”. Como, pensava este último, rodar um Tartarin sem leão, sem deserto, sem uma Fatma que fará a dança do ventre? Na segunda parte da narrativa, Bernard acrescentou todo esse amontoado de coisas exóticas ao trabalho de Pagnol, mostrando Raimu  com um barrete e uniforme de zuavo, a barbicha ao vento e o bacamarte. O resultado foi desastroso. Pagnol consolou Raimu: “Tartarin, é o nosso Don Quixote. Don Quixote é o mitômano perfeito, personagem que não suporta a transição para a tela”.

Os sete filmes restantes de Raymond Bernard nos anos trinta foram: Amants et Voleurs / 1935 (refilmagem da comédia Costaud de Épinettes / 1922 com Pierre Blanchar, Florelle, Michel Simon e Arletty); Dominadores do Espaço / Anne-Marie / 1936 (homenagem à aviação civil, escrita por Antoine de Saint-Exupéry, tendo como intérpretes Annabella e Pierre Richard-Willm); Le Coupable / 1936; Marthe Richard Au Service de La France / 1937; J’étais une aventurière / 1938; Les Otages / 1939 e Cavalgada do Amor / Cavalcade D’Amour / 1939 (filme escrito por Jean Anouilh e Jean Aurenche, constituido por três histórias de amor e casamento situadas em épocas diferentes, contando com a participação de Claude Dauphin, Michel Simon, Janine Darcey, Simone Simon e Corinne Luchaire).

Em Le Coupable, Jérôme Lescuyer (Pierre Blanchar), estudante de direito, vive uma história de amor com uma jovem florista, Thérèse (Madeleine Ozeray). Com a declaração da Primeira Guerra Mundial, ele é convocado, deixando Thérèse grávida. O pai de Jérôme (Gabriel Signoret), magistrado severo, recusa a ajuda que lhe pede Thérèse e lhe faz crer que seu filho morreu. Sentindo-se abandonada, Thérèse casa-se com seu primo Edouard (Marcel André), que adota a criança. Durante uma licença, Jérôme, sabendo que Thérèse se casou com outro, aceita um casamento arranjado com uma moça rica, Marie-Louise (Suzet Maïs). Brutalizada pelo marido, Thérèse morre, deixando seu filho (Gilbert Gil) à deriva. Este é preso por vagabundagem e conduzido para uma casa de correção. Libertado, agride um velho usurário e vai ser julgado em um tribunal. É justamente seu pai verdadeiro, agora promotor, que deve acusá-lo; porém, assumindo corajosamente sua própria responsabilidade, Jérôme consegue absolver o filho que até então ignorara, e os dois, enfim, se aproximam.

Trata-se de um melodrama, baseado em um romance de François Coppée, com uma sátira mordaz à uma certa burguesia mesquinha, denunciando outrossim o militarismo, o sistema repressivo das casas de correção e a justiça de classes.

O longo episódio do julgamento é um grande momento do filme, no qual o diretor manteve habilmente o equilíbrio entre a comicidade das testemunhas, a incompetência dos juízes e o patético do discurso de Jérôme, que a interpretação de Pierre Blanchar revestiu de uma grandeza trágica.

Marthe Richard é uma reconstituição fantasiosa da vida da espiã francêsa Marthe Betenfeld (Edwige Feuillère), durante a Primeira Guerra Mundial, focalizando suas relações com o chefe da contraespionagem alemã (Erich von Stroheim), chamado de von Ludow no filme.

Os roteiristas Steve Passeur, Raymond Bernard e Bernard Zimmer basearam-se no relato romanceado das aventuras de Marthe, publicado pelo Comandante Ladoux, um dos responsáveis pelo serviço secreto francês naquele período, sem se preocuparem com a autenticidade dos fatos. A cena de abertura, filmada com sombras expressionistas e enquadramentos inclinados, nos mostra Marthe como uma jovem inocente assistindo, em agosto de 1914, a execução de seus progenitores por soldados alemães cumprindo ordens de von Ludow. Na realidade, os pais da verdadeira Marthe  não foram fuzilados e ela, com a idade de 25 anos em 1914, já tinha 1`passado pela casa de correção até mesmo pela prostituição.

O filme prende a atenção do espectador, graças ao longo duelo que se desenvolve entre os personagens interpretados por von Stroheim e Edwige Feuillère e à aura dos dois astros, Stroheim, impondo como sempre a sua personalidade e suas excentricidades na caracterização do personagem (vg. a cadeira em forma de sela sobre a qual von Ludow toma seu café da manhã ao som de uma música militar).

O momento mais tocante da narrativa é o do suicídio de von Ludow, na qual o vemos, injetar em si mesmo um veneno e arrancar seus galões em planos barrocos enfeitados por candelabros, que dão à cena a impressão de um velório insólito. Sem o monóculo, ele é filmado como um ser ferido, traído e a música de Arthur Honegger reforça o patético dessa cena estranha, onde a própria Marthe parece comovida com o destino do seu inimigo.

Raymond Bernard dirigiu de novo Edwige Feuillère em uma comédia produzida por Grégor Rabinovitch (Ciné-Alliance): J’étais une aventurière. A heroína é uma condessa russa, Vera Vronsky (Edwige Feuillère), que seduz os homens ricos, para caloteá-los com a ajuda de dois cúmplices, Paulo (Jean Tissier) e Désormeaux (Jean Max). Porém Vera se apaixona por uma de suas vítimas, o industrial Pierre Glorin (Jean Murat), decide cessar sua vida de aventureira e se casa com ele. Após uma estada na prisão, Paulo e Désormeaux reaparecem e querem desviá-la do bom caminho. Vera revela seu passado a Pierre e eles conseguem se desembaraçar dos dois escroques.

Evidentemente, houve por parte do roteirista Jacques Companeez o propósito de  criar algo equivalente às comédias sofisticadas americanas, situadas em um universo de luxo,  construído em torno de uma mulher independente, viva e inteligente. Combinando beleza e elegância, Edwige Feuillère interpreta magnificamente esse tipo feminino, seguindo o modelo criado por Irene Dunne ou Katharine Hepburn. O filme se aproveita do seu charme (que ela usa não somente para seduzir os homens, mas também para acalmá-los depois que eles percebem que foram enganados), tem um ritmo fluente, leveza, boas surpresas e alguns toques lubistcheanos, constituindo-se em um espetáculo delicioso.

Com um roteiro original e impecável de Léo Mittler, Victor Trivas e Jean Anouilh, Les Otages é a meu ver a obra-prima de Raymond Bernard, que sofreu cortes e ficou perdida por muito tempo, mas desde 2004 pode ser vista em dvd, restaurada pela “Les Documents Cinématographiques”.

Em Champlagny-sur-Marne, o prefeito  Adrien Beaumont (Fernand Charpin) e o castelão M. Rossignol (Saturnin Fabre), discutem sobre um direito de passagem, deixando em uma posição delicada seus respectivos filhos, Pierre (Jean Paqui) e Annie (Annie Vernay), que estão apaixonados um pelo outro. Porém a cidade é perturbada pela guerra: os jovens são convocados e as tropas alemãs ocupam Champlagny. Um oficial alemão é morto por Pierre, que havia sido convocado e acabado de se casar secretamente com Annie. É justamente Beaumont, inimigo íntimo de Rossignol, quem ajuda Pierre a fugir e se juntar às linhas francêsas. O comandante do exército alemão exige que cinco habitantes se apresentem como reféns, até que o culpado se apresente, caso contrário eles serão mortos, para que a cidade não seja destruída. O prefeito, Rossignol, o oficial de justiça (Pierre Larquey), o guarda-campestre (Noël Roquevert) e o barbeiro (Pierre Labry) se oferecem como prisoneiros da Kommandatur e aguardam seu destino funesto. Quando chegam à prisão encontram lá o caçador furtivo das redondezas (Dorville) como um sexto refém, por ter ofendido os alemães. Beaumont e Rossignol se unem diante da adversidade, mas quando um contra ataque, em plena Batalha do Marne, os liberta, os rancores reaparecem, até que, ao verem a propriedade objeto de sua controvérsia destruída, ambos  esquecem suas antigas disputas.

A produção foi iniciada em 1938, quando predominava o medo de outro conflito europeu e a França se sentia ameaçada pelos seus vizinhos fascistas. Embora não seja um filme pacifista ele transmite algum sentimento anti-bélico que está resumido na cena final na qual os dois rivais, Beaumont e Rossignol, fazem as pazes. Isto é quase uma convite para que os dois lados da guerra iminente resolvam suas diferenças pacificamente em vez de destruirem todo um continente. Infelizmente quando o filme foi lançado em 1939, a guerra se tornara inevitável.

Graças à rica caraterização dos personagens por um grupo de grandes atores (os chamados “excentriques du cinema français”, que geralmente eram vistos em papéis coadjuvantes), Les Otages é uma obra que diz muito sobre o período na qual foi feita e também sobre a natureza humana. Ele mostra a necessidade das pequenas comunidades ficarem unidas em uma época de crise, a futilidade de divergências mesquinhas e também o medo e a ansiedade que acompanham os atos de heroísmo.

Serve como exemplo desse último aspecto a sequência hilariante mas comovente, na qual, a caminho do cárcere, os cinco reféns dão uma corrida rápida para atrás de um monte de feno, a fim de aliviarem seus ventres desarranjados pela angústia, que ele não ousam exprimir.  Um outro momento  parecido é o do retorno dos “heróis” que, à vista das silhuetas de seus conterrâneos, que correm em sua direção para saudá-los efusivamente, confundem-nos com as tropas alemãs e fogem amendrontados.

Ao lado da coragem e sentimento de patriotismo de alguns habitantes, como o caçador furtivo e o velho “Pére Labiche”, que reivindicam comicamente o direito de ser refém, privilégio que, segundo eles, deve caber também aos simples homens do povo e não somente aos cidadãos eminentes, há lugar na trama para os covardes, como o barbeiro que teme ser escolhido e o conselheiro Tartagnac (Marcel Pérès) que, depois de ter sido sorteado, apesar de seus princípios militares de honra, se suicida.

É precisamente a dosagem certa entre drama e humor (e um certo suspense) que dá todo o encanto a esse clássico pouco conhecido do cinema francês.

Cavalcade d’Amour, que Raymond Bernard realizou depois de Les Otages, foi o seu último filme antes da Segunda Guerra Mundial. Com a ocupação alemã, devido a sua origem judaica, ele teve que suspender sua carreira e fugir para o maquis de Vercors, onde se encontrou com sua esposa Jeannette e seu irmão Étienne, que se tornou médico-chefe dos movimentos da Resistência. Após a Libertação, o cineasta resolveu prestar uma homenagem ao maquis de Vercors, onde encontrou refúgio, e foi um roteiro de Jacques Companeez, que lhe deu esta oportunidade.

A ação de Alguém Virá Esta NoiteUn ami viendra ce soir / 1946  situa-se em um hospital psiquiátrico nas cercanias de uma pequena cidade dos Alpes Francêses. No interior da clínica, administrada pelo Dr. Lestrade (Marcel André), estão Lemaret (Michel Simon) que se diz presidente do “país da inocência”; Prunier (Saturnin Fabre),  que perambula de peito nú, ardendo de um “fogo interior”; a “baronesa” (Lily Mounet), que humilha a todos com o seu desprezo; Martin (Louis Salou, depois de cogitado Louis Jouvet), comissário de policia aposentado, que escrutiniza rigorosamente seus companheiros; Pierre (Daniel Gélin), um poeta exaltado; Jacques (Jacques Clancy), um pianista taciturno; e a loura Hélène (Madeleine Sologne), uma jovem perdida nos seus sonhos. De repente, a vida cotidiana do estabelecimento é transtornada pela chegada de soldados alemães à procura do comandante Gérard, o chefe dos resistentes da região. Maurice Tiller (Paul Bernard), agente da gestapo encarregado de desmascarar Gérard, faz-se passar por um cirurgião suíço e seduz Hélène, que se torna sua amante. Ocorre que Lestrade, Pierre, Jacques, Hélène e alguns outros são camaradas da rede de resistência, que se escondem na clínica e, com seu líder Gérard (disfarçado como Martin), aguardam a mensagem da Radio-Londres “Un ami viendra ce soir”, para passar à ofensiva. Ao descobrir a verdadeira identidade de Tiller, Hélène lhe revela que é judia e o abate antes de perder a razão.

Combinando mais uma vez drama e comédia, Raymond Bernard nos faz viver nesse meio curioso de demência, onde convivem loucos falsos e verdadeiros, um nazista camuflado apaixona-se por uma judia de nervos frágeis e a agressão germânica é tratada com moderação – os oficiais alemães demonstram um auto-domínio e uma nobreza surpreendentes.

E, tal como em Les Otages, um grupo de atores extraordinários, comumente vistos em segundo plano (Michel Simon, Saturnin Fabre, Louis Salou), dão um show de interpretação, principalmente na cena muito engraçada do interrogatório, quando eles expõem a alienação de seus personagens, respondendo arrogantemente ao oficial alemão, sem demonstrarem o menor temor do inimigo.

Os filmes seguintes de Raymond Bernard foram: Até Logo, Querida / Adieu Chérie / 1946,  comédia romântica com Danielle Darrieux; Maya,  a Desejável / Maya / 1949; Le Jugement de Dieu / 1950, drama histórico sobre o relacionamento de Agnès Bernauer (Andrée Debar) com Albert, futuro Duque da Baviera (Jean-Claude Pascal); Le Cap de L’Espérance /1951; La Dame aux Camélias / 1952, adaptação da peça de Alexandre Dumas filho com Micheline Presle como Marguerite Gauthier; La Belle de Cadix / 1953; Frutos do Verão Les Fruits de L’Été / 1954 e Le Septième Commandement / 1956, comédias sofisticadas ambas com Edwige Feuillère e Le Septième Ciel / 1957, comédia de humor negro com Danielle Darrieux. Ví apenas,  Maya, a Desejável, Le Cap de l’ Espérance e La Belle de Cadix.

A heroína de Maya é Bella (Vivianne Romance), personagem simbólica de prostituta que, à imagem da “maya” hindu (a ilusão universal, de aparências múltiplas), torna-se para cada homem de passagem, aquela que ele espera, que ele imagina.

Vivianne Romance identificou-se com a personagem. Ela disse em uma entrevista: “ Esta mulher – animal e deusa, fêmea e fada, inacessível e presente – me atraiu violentamente e me conquistou, pela sua humanidade profunda, seu mistério e, ouso dizer, pela sua pureza natural”.

O tema do filme é cativante e poético. Raymond Bernard tentou incutir poesia nas imagens, e conseguiu fazer isso algumas vezes; porém o grande trunfo do espetáculo é mesmo a presença marcante da atriz.

Em Le Cap de l’Espérance,  história de amor e de traição situada em um universo de gangsters, o cineasta procurou ornamentar o relato com um certo realismo poético de antes da guerra, em um cenário portuário onde vão se desfazer as esperanças de fuga e de uma vida melhor. “Sempre sonhei morar em um porto”, confessa Lyria (Edwige Feuillère), “tem barcos … Oh, a gente nunca os pega, mas ainda assim, eles podem nos levar, um dia…”. “Para onde”, lhe pergunta o comissário Troyon (Jean Debucourt), com a qual ela viveu um dia uma história de amor. “Algures”, ela responde, evasivamente.

Filmada quase sempre em uma quase-penumbra, onde esconde suas feridas e sua prostração, Lyria, dona de um bar apaixonada por um advogado (Frank Villard) que se envolveu com malfeitores e a traiu com outra (Cosetta Greco) – filha do chefe da quadrilha (Paolo Stoppa) -, é a única personagem que atrai realmente o público.

La Belle de Cadix é a versão francêsa da opereta de Francis Lopez, La Bella de Cadiz, em cujo enredo o cantor Carlos Molina (Luis Mariano), astro de uma produção que está sendo filmada no Sul da Espanha,  após alguns equívocos, contrai um matrimônio fictício, que todos crêem real, com sua parceira espanhola, a cigana Maria Luisa (Carmen Sevilla); eles brigam, mas finalmente confessam seu amor mútuo e Carlos rompe com sua noiva Alexandrine (Claude Maurier).

O argumento não importa, porque o filme tem tudo o que é preciso para agradar aos fãs de Luis Mariano e Carmen Sevilla, uma dupla de muito sucesso nos anos cinquenta, unindo com talento o canto e a dansa à sua juventude e seu charme pessoal. Raymond Bernard limitou-se a filmar essa história de amor em paisagens pitorescas, utilizando ao máximo as possibilidades do Gevacolor. A música de Francis Lopez é tanto doce e melancólica quanto trepidante, resultando números musicais agradáveis.

Pelo que pude conhecer da obra de Raymond Bernard, embora não tivesse alcançado o status artístico de um Julien Duvivier, Jean Renoir ou Marcel Carné, ele pode ser considerado um cineasta muito importante do cinema clássico francês, devendo ser melhor conhecido e reverenciado pelas novas gerações de estudiosos do cinema.