Ele foi um dos grandes diretores do cinema francês clássico ao lado de Jean Renoir, Julien Duvivier, René Clair, Marcel Carné ou Jacques Feyder. Nenhum de seus filmes obteve um verdadeiro sucesso comercial, mas estão entre os mais belos e apaixonantes jamais produzidos na França.
Jean Grémillon (1901 – 1959) nasceu em Bayeux, na Baixa Normandia, França num meio modesto: seu pai era ferroviário e sonhava que seu filho fosse um engenheiro. Em 1920, após vários anos sacrificados à vontade paterna, o jovem Grémillon obteve finalmente permissão de ir para Paris, a fim de seguir os cursos da Schola Cantorum, entre outros os de Vincent d’Indy.
Ele se introduziu nos ambientes da vanguarda musical e teatral e descobriu o cinema enquanto ganhava a vida acompanhando ao violino os filmes mudos nas salas de projeção. Entre 1923 e 1926, Grémillon aprendeu as funções de montador e pouco depois começou a fazer curtas-metragens industriais sob encomenda.
Em 1926, o jovem de 25 anos de idade ganhou prestígio com o seu média-metragem Un Tour au Large / 1926, espécie de poema sinfônico sobre o mar, realizado a partir de imagens documentárias rodadas durante uma pesca de atum. No período sonoro, ele faria outros documentários, inclusive o excelente Le Six Juin a L’Aube / 1945.
Para este artigo, entre os 17 filmes de ficção em longa-metragem do cineasta, dos quais tive o privilégio de ver 14 (não ví Pour un Sou D’Amour / 1931, Gonzague ou L’Accordeur / 1933, Pattes de Mouche / 1936; vi La Dolorosa / 1934, La Valse Royale / 1935), selecionei os doze que considero os mais expressivos de sua carreira.
MALDONE / 1927 – Neste filme mudo, interpretado e patrocinado por Charles Dullin e influenciado pela vanguarda impressionista, em particular pelos filmes de Jean Epstein, Coeur Fidèle / 1923 e La Belle Nivernaise / 1924, Grémillon aborda o tema clássico na linha de “o dinheiro não traz felicidade”, quer dizer, a história de um carroceiro, Olivier Maldone (Charles Dullin), filho pródigo de uma família rica que, após a morte do irmão num acidente, assume a propriedade da terra de seus ancestrais. Ele se envolve com uma cigana sedutora, Zita (Génica Athanasiou) e se casa, mais por imposição do que por desejo, com a virtuosa Flora (Annabella). Finalmente, incapaz de se adaptar à rotina da vida familiar e às convenções sociais, Maldone veste de novo o seu traje de carroceiro – quebrando simbolicamente a imagem de gentil-homem campesino – e foge a cavalo, galopando desvairadamente pelos campos.
O tema da família-prisão é desenvolvido através de imagens recorrentes, desde a coleção de borboletas do tio até o movimento da jovem esposa encerrando seu marido nos seus braços. Maldone liberta a borboleta que seu tio acabara de capturar, antes de se libertar ele próprio dos laços familiares.
O cineasta demonstra sua inventividade pelos ângulos audaciosos e pelos efeitos de superposição ou movimentos de câmera, dando ao espetáculo um impacto visual impressionante. Um exemplo marcante da preocupação estética de Grémillon é o episódio do baile campesino, no qual o prazer físico da dança é expresso pela virtuosidade da câmera, que transforma a farandola em uma passagem cinematográfica particularmente brilhante.
GARDIENS DE PHARE / 1929 – Este outro filme silencioso foi realizado sob o apadrinhamento de Jacques Feyder, que havia feito a “decupagem cinematográfica” de uma peça do repertório do Théâtre du Grand-Guignol, introduzindo um personagem novo: o mar. De modo que Grémillon pôde dar livre curso ao seu amor pelos horizontes marinhos e pela Bretanha.
Segundo o argumento, pai (Paul Fromet) e filho (Geymond Vital) trabalham como faroleiros. No farol, o filho mostra ao pai uma mordida de um cão que recebeu quando passeava com sua noiva. No continente, o veterinário da aldeia diagnostica uma epidemia de raiva. O filho sente-se cada vez pior. O pai quer pedir socorro, porém a tempestade o impede. O filho, inicialmente abatido, torna-se agressivo. De repente ouve-se a sirene de um barco em perigo. O pai tenta acender o farol para evitar o naufrágio, mas é atacado pelo filho delirante, vendo-se obrigado a arremessá-lo no mar.
Trama melodramática, sem dúvida, mas sustentada por um excelente uso dos travellings, das elipses e dos efeitos sonoros (inclusive o silêncio). A música é usada principalmente para criar a atmosfera e dar o tom psicológico de uma cena, antes que seu componente visual apareça. Um bom exemplo é o batuque hipnótico que ouvimos durante a apresentação dos créditos, preparando-nos para o implacável calor de Cayenna e o estado de espírito triste dos prisioneiros aglomerados no dormitório.
Na intriga muito simples sobressai o pai, cuja figura corpulenta e rude contrasta com a ternura patética que sente pela filha. Alguns críticos acharam que o realismo poético já estava aí, bem antes de Carné e Prévert: calçadas luzentes, bruma, claro-escuro, destino do qual se sonha em vão escapar…
DAÏNAH LA MÉTISSE / 1931 – Em um navio de luxo, que ruma em direção das colônias, viajam um negro ilusionista (Habib Benglia) e sua esposa mestiça, Daïnah (Laurence Clavius). Dotada de um charme estranho e um exotismo perturbador, ela se diverte flertando com Michaud (Charles Vanel), um mecânico da sala de máquinas, o qual ela acaba repelindo, mordendo-o cruelmente. No dia seguinte, Daínah desaparece de bordo. A investigação se arrasta sem resultado; porém o marido, adivinhando a verdade, faz justiça pelas próprias mãos.
O filme foi cortado pela Gaumont de 90 para 50 minutos, prejudicando bastante a exposição mas, mesmo assim, ainda restou magia suficiente para eletrizar o espectador como, por exemplo, as sequências do insólito Baile de Máscaras (as máscaras dos convidados são como paródias grotescas de suas personalidades, exceto a de Daïnah, que parece uma caixa toráxica que encerra e aprisiona o seu rosto) e o número de mágica ensejando truques de câmera, que parecem ter saído de um filme de vanguarda surrealista dos anos 20.
O espetáculo propõe uma crítica aos preconceitos racial e colonial e uma reflexão bastante aguda sobre os costumes: Daïnah e seu marido são mostrados como um casal anticonformista, algo ainda mais chocante por dizer respeito a “pessoas de cor”, que costumam ser comumente retratados como obedientes aos costumes tradicionais, para não dizer “primitivos”.
GULA DE AMOR / GUEULE D’AMOUR / 1937. Lucien Bourrache (Jean Gabin), suboficial do corpo de cavalaria francês em Orange, agita todos os corações femininos; mas, cansado dos sucessos que lhe valeram o apelido de “Gueule d’Amour”, ele prefere a companhia de seu amigo René (René Lefèvre), major médico do regimento. De passagem por Cannes para receber uma pequena herança, Lucien conhece Madeleine (Mireille Balin), bela mulher de reputação equívoca. Ela o arrasta para o cassino, onde ele aposta e perde os dez mil francos da herança. Depois, quando Lucien pensa que a seduziu, Madeleine o repudia. Ansioso por revê-la, Lucien se desliga do regimento e vai para Paris, onde arruma um emprego de tipógrafo. Ele reencontra por acaso Madeleine em um cinema e, desta vez, ela corresponde aos seus avanços, tornando-se sua amante. Entretanto, Lucien descobre que Madeleine é ricamente sustentada por um “protetor” e, após uma cena humilhante, Lucien deixa Paris para se instalar em Orange como dono de um pequeno restaurante. Pouco depois, Lucien vem a saber que Madeleine está tentando enganar René, que se apaixonara por ela. Após tentar em vão convencer René do poder maléfico daquela mulher, Lucien a estrangula e depois confessa tudo ao amigo, que o ajuda a fugir para a África do Norte.
O espetáculo traz a marca do cineasta, discreta e sensível, sempre interessado pelas relações humanas. Como escreveu o crítico da Télérama, Jacques Morice, “sob a aparência de um romance impossível entre o formoso spahi e a femme fatale, Grémillon encurrala a dor de um homem rejeitado por uma mulher em virtude de seu meio social. A aventura termina em tragédia, porém o diretor não cede à ênfase: basta-lhe se deter sobre um rosto silencioso, Lucien segurando suas mãos (obs. tentando deter seu impulso criminoso), uma paisagem pedregosa, para exprimir com pudor seus tormentos interiores”.
O HOMEM QUE VIVIA DUAS VIDAS / L‘ ÉTRANGE MONSIEUR VICTOR / 1938. Em Toulon, Victor Agardanne (Raimu) leva uma vida dupla: a de um comerciante honesto e respeitado durante o dia, que à noite se torna chefe e receptador de um bando de ladrões que assaltam os castelos da região. Vítima de uma tentativa de chantagem, Victor mata um de seus cúmplices com um instrumento cortante pertencente a seu vizinho, o sapateiro Bastien Robineau (Pierre Blanchar). Este é preso e condenado. Sete anos depois, Bastien foge da prisão e se refugia na casa de Victor, que lhe oferece ajuda, até ser desmascarado e preso pela polícia sob os olhares incrédulos de toda a vizinhança.
Do mar é que surge Catherine, a agente do destino, que vai perturbar a existência tranquila de André, deixando-o em um conflito psicológico entre o dever e o desejo. E é também o mar (e os barcos, o céu coberto de nevoeiro, as longas praias desertas) que envolve os personagens no curso da narrativa, sempre visto através de belas imagens, complementadas por uma orquestração sonora e musical audaciosa. O roteirista e dialoguista Jacques Prévert reencontrou a essência mesma de sua inspiração poética. Basta ver aqueles momentos em que André e Catherine passeiam pela praia e descobrem a estrela-do-mar, quando visitam a casa vazia ou finalmente se separam e ela diz: “Cheguei com a tempestade e a tempestade vai me levar”.
LUMIÈRE D’ÉTÉ / 1942 – Nos Alpes, perto de uma barragem em construção, Patrice Le Verdier (Paul Bernard), aristocrata perverso, convida para o seu castelo Roland Maillard (Pierre Brasseur), pintor fracassado e alcoólatra, com a finalidade de seduzir Michèle Lagarde (Madeleine Robinson), a jovem companheira do artista. A antiga amante de Patrice, Cri-Cri (Madeleine Renaud), proprietária de um hotel nas redondezas, lhe recorda que eles foram cúmplices no assassinato da mulher dele. Decepcionada com Roland, Michèle prepara-se para partir com Julien (Georges Marchal), engenheiro da barragem. Roland morre em um desastre de automóvel. Patrice tenta matar Julien, mas é acuado pelos operários da construção e cai em um abismo.
O CÉU LHE PERTENCE (Na TV)/ LE CIEL EST A VOUS / 1944 – Thérèse (Madeleine Renaud) e Pierre Gauthier (Charles Vanel) são proprietários de uma pequena garagem. Um cliente propõe a Thérèse o cargo de gerente de sua grande garagem em Limoges. Na ausência da esposa, Pierre entrega-se à sua antiga paixão: a aviação. Thérèse volta e pede a Pierre que pare de voar. Porém, o destino faz com que Thérèse receba o batismo do ar. A partir de então, Pierre e Thérèse compartilham a mesma paixão. Finalmente, Thérèse bate o recorde feminino de distância em linha reta e é recebida triunfalmente pela população.
Grémillon descreve um heroísmo secreto que nasce no seio de uma família burguesa da província, uma aventura espiritual que solta as amarras das tradições, dos hábitos e das convenções sociais, o abandono do cotidiano pela conquista do sublime. A história comovente de um casal apaixonado pela aviação, seus esforços, seus dissabores, a vitória final da jovem mulher, a incompreensão dos pais diante do ideal diferente de sua filha amante da música (eles vendem o piano dela para comprar um avião), tudo aqui é verdadeiro, vivo, humano. Um estilo sóbrio, matizado, elíptico faz dessa obra uma das mais altas e nobres representações da arte cinematográfica francesa.
L’ÉTRANGE MADAME X / 1951 – Irène (Michèle Morgan), esposa de um grande editor, Jacques Voisin-Larive (Maurice Escande), apaixona-se por um jovem marceneiro, Etienne (Henri Vidal). Ela se faz passar por uma camareira da mansão de Voisin-Larive. Do romance nasce uma criança. Iréne quer se divorciar mas seu marido esquiva-se das discussões sobre 9 assunto. A criança, deixada aos cuidados de uma ama de leite, fica gravemente doente e morre. Nesta ocasião, Etienne descobre a verdadeira identidade de sua amante e rompe com ela. Irène, superando seu desespero, retoma sua vida mundana.
É certo que, neste penúltimo longa-metragem de ficção de Grémillon, encontram-se os ingredientes usuais do gênero melodrama (a intensidade lacrimal, o pathos, a artificialidade das situações); porém o diretor soube impor aos seus intérpretes a sobriedade que queria conferir ao seu filme, obtendo deles expressões de grande sinceridade. Há um contraste marcante entre os lugares proletários (a rua, o restaurante do tio de Etienne, seu quarto, o pequeno apartamento onde ele pensa que levará uma vida feliz com a mulher que ama e a filha) e o luxo excessivo da mansão de Voisin-Larive, sendo que a construção da narrativa pode desconcertar o público porque Grémillon nos leva de um mundo para o outro, sem dar quaisquer explicações. A única ligação entre eles é Irène e é pouco a pouco que nós ficamos sabendo da verdade. Para Voisin-Larive, Irène é uma estátua ou algo decorativo que ele pode mostrar quando dá uma festa. Quando Irène lhe comunica que está grávida (de Etienne) ele não liga, manda-a para a Suiça e exclama numa voz neutra terrível: “Eu não preciso de descendentes”. A derradeira imagem de Irène (depois de ter dito para Jeannette (Arlette Thomas) que “há muitas maneiras de morrer”) de volta ao seu ambiente mundano e com uma atitude gélida, sem emoção, é uma crítica à burguesia, onde reinam as aparências e a hipocrisia.
L’AMOUR D’UN FEMME / 1954 – Uma jovem médica, Marie Prieur ( Micheline Presle) chega na ilha de Ouessant, onde faz amizade com professora Mlle. Leblanc (Gaby Morlay), que consagrou sua vida aos filhos dos outros. A gentileza, a devoção e a competência de Maria conquistam a confiança dos habitantes da ilha. Marie se apaixona por um engenheiro, Andre Lorenzi (Massimo Girotti) que está de passagem por Ouessant. Lorenzi deseja esposá-la e quer obrigá-la a abandonar a medicina. Marie não hesita em atender a um chamado de emergência de um faroleiro isolado durante uma tempestade. Lorenzi compreende que Marie, cuja vocação é um verdadeiro sacerdócio, não pode ser só dele. Marie, que perdeu recentemente sua amiga, Mlle. Leblanc, vê Lorenzi partir com uma profunda tristeza. Ela está só, porém uma nova professora acaba de chegar. A vida continua.
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