Arquivo mensais:outubro 2012

PRIMÓRDIOS DO CINEMA BRITÂNICO

A primeira exibição pública de cinema na Grã-Bretanha foi organizada, no dia 20 de fevereiro de 1896, por Félicien Trewey,  prestidigitador e amigo dos irmãos Lumière, no Marlborough Hall da Regent Street Polytechnic em Londres. A resposta do público foi favorável e, em março, Trewey levou o Cinématographe para o  Empire Theatre of Varieties, situado na Leiscester Square, como parte do programa do music hall, para uma série de sessões, que perduraram por dezoito meses.

Antes da primeira exibição de filmes na Inglaterra e na França (o Cinematógrafo – cuja invenção foi inspirada no Cinetoscópio de Edison – havia sido lançado em Paris em 28 de dezembro de 1895), cientistas, inventores e fotógrafos vinham fazendo experiências para resolver o problema da projeção de imagens. É o que Charles Musser chamou de the history of screen practice. Brinquedos óticos, tais como o Zootrope e o Phénakistiscope representaram os primeiros experimentos e a lanterna mágica, que havia sido inventada no século dezessete, tornou-se muito popular na era Vitoriana. Durante este período avanços significativos ocorreram nos Estados Unidos e na França.

Em 1979, Eadweard  Muybridge, um inglês que vivia na América, usando 24 câmeras, tirou 24 fotografias de um cavalo trotando. Quando “projetadas” por meio do seu Zoopraxiscope, foi criada a ilusão de um cavalo em movimento. Mais ou menos na mesma época, na França, Étienne-Jules Marey se interessou pela possibilidade de fotografar pássaros voando e construiu uma câmera – na realidade um “fuzil fotográfico” – que captou o vôo de uma gaivota. Outros esforços foram feitos por Louis Le Prince, William Friese-Griene, Ottomar Anschütz, e, finalmente, Thomas Alva Edison.

Tendo dado os últimos retoques no seu fonógrafo, Edison, com a colaboração do seu jovem assistente escocês, William Kennedy Laurie Dickson, construiu o Kinetoscope, máquina na qual um filme de 50 pés (=15,24 m) de comprimento e 35 mm de largura, com duração de mais ou menos 20 segundos, podia ser visto por uma pessoa de cada vez, olhando pela abertura de uma caixa de 1.40 m de altura. Edison encarava o seu Cinetoscópio como uma novidade  e, apesar de sua popularidade nos Estados Unidos e Europa, ele deixou de patentear a máquina na Inglaterra.

Este descuido permitiu que o engenheiro elétrico inglês Robert William Paul (1869-1943), produzisse os seus  Cinetoscópios e, naturalmente, não tendo os filmes de Edison à sua disposição, passasse a produzí-los por conta própria, empregando o fotógrafo (americano de nascimento mas filho de ingleses) Birt Acres como assistente. Juntos, eles construíram uma câmera e rodaram seu primeiro filme em fevereiro de 1895, mostrando o amigo de ambos, Henry Short, no exterior da casa de Acres em Barnet. Foi o primeiro filme rodado (para ser mostrado através do Cinetoscópio) na Grã Bretanha, porém nunca exibido comercialmente. Outros filmes se seguiram, incluindo The Oxford and Cambridge Boat Race, Rough Sea at Dover, The Arrest of a Pickpocket, The Carpenter’s Shop, Boxing Kangaroo e The Derby, antes dos dois homens se separarem acrimoniosamente em junho de 1895.

Depois disso, Paul começou a projetar filmes em uma tela, exibindo seus primeiros resultados em 21 de fevereiro de 1896 no Finsbury Technical College,  mesmo dia em que os irmãos Lumière lançaram o Cinematógrafo ao público londrino na Regent Street Polytechnic. A primeira exibição de filmes feita por Paul apresentava defeitos técnicos, mas eles foram resolvidos quando o seu projetor Theatrograph estreou no Egyptian Hall em Piccadilly. Dois dias depois, ele mostrou o projetor no Olympia (utilizando filmes de Edison e os que fizera com Birt Acres) e, em abril, começou a produzir filmes novamente, para suprir este mercado florescente. Os primeiros filmes de Paul foram atualidades, porém ele produziu também aquele que foi considerado o primeiro filme britânico de ficção, The Soldier’s Courtship / 1896.

Birt Acres (1854-1918), construiu uma câmera, viajou para a Alemanha em junho de 1895, sob o patrocínio da fábrica de chocolate alemã Stollwerck, e lá filmou várias cenas, inclusive a abertura do Kiel Canal. No seu retorno, dirigiu sua atenção para a projeção de filmes, apresentando a primeira exibição pública de um filme na Grã Bretanha no Lyonsdown Photographic Club em 10 de janeiro de 1896. Seguiu-se uma programação na Royal Photographic Society em 14 de janeiro, indicando sua preferência por uma abordagem científica. Acres era temperamentalmente inadequado para a exploração comercial de filmes mas, apesar disso, começou a exibir filmes comerciais em 21 de março com o seu projetor Kineoptikon em Piccadilly Mansions, Londres. Ele teve um êxito financeiro modesto com o seu projetor, nada que chegasse perto das vendas obtidas pelo astuto Paul com os seus projetores Theatrograph e Animatograph (construído posteriormente ao Theatrograph).

O music hall foi a primeira sede do cinema, onde filmes curtos tornaram-se parte do programa nas várias salas através do país; porém elas não foram os únicos locais de projeção dos filmes. Exibidores itinerantes percorreram cidades e vilas, permanecendo às vezes em determinado local durante alguns mêses, criando o hábito de “ir ao cinema”. Entretanto, de maior importância foram as feiras e parques de diversões, onde se disponibilizavam lugares sentados para até 800 espectadores.

Em 1904, o Lt Colonel A. C. (Alfred Claude) Bromhead inaugurou o Daily Bioscope em Bishopsgate, Londres, uma ex-loja ou “penny gaff” (lugar de divertimento barato ou duvidoso) com lugares para 100 pessoas, onde ele exibia cine-jornais. Dois anos depois, o americano George Hale abriu um “cinema” em Oxford Street. Tratava-se também de uma ex-loja e a conversão tomou a forma de um vagão de locomotiva. Os espectadores sentavam-se dentro do vagão e assistiam a filmes de viagem, fotografados com a câmera montada na frente de um trem. Logo, este “Hale’s Tours” foi inaugurado em outras cidades através da Inglaterra. O seu poder de atração durou pouco, mas a idéia de Hale instigou outros empreendedores a converter lojas, garagens e ringues de patinação em cinemas.

Entre 1908 e a Primeira Guerra Mundial ocorreu uma transformação: a construção de prédios destinados especialmente para a exibição de filmes. Esses primeiros cinemas ou “fixed shows” procuraram criar uma atmosfera de elegância e bom gosto e nomes como Bijou e Gem foram usados para a indicar a “classe’ procurada pelos seus donos. Alguns deles eram relativamente pequenos, com 300 lugares ou menos, porém outros tinham capacidade para mil lugares ou mais e um acompanhamento musical na forma de um trio ou pianista.

No período pré-guerra, havia muitas cadeias de cinemas, entre as quais estavam a Electric Theatres (1908), Biograph Theatres (1908) e Provincial Cinematograph Theatres – PCT (1909). A Electric Theatres possuía doze cinemas e a Biograph Theatres tinha cinco e planejava construir mais sete. Todavia, a Electric e a Biograph não foram adiante enquanto que a Provincial, formada por Ralph T. Jupp, prosperou e desempenharia papel importante no desenvolvimento da Gaumont-British Corporation nos anos vinte. A PCT tinha como objetivo abrir cinemas em todas as cidades com uma população acima de 250 mil habitantes. Em 1911, a companhia possuía 8 cinemas e em 1914 este número subiu para 18. Em 1913, Jupp fundou  uma companhia de produção, a London Film Company (com estúdios em Twickenham) e, alguns meses antes da guerra, uma subsidiária, Associated Provincial Pictures Theatres. Este grupo alargado de empresas foi o primeiro exemplo de sucesso da integração vertical na indústria cinematográfica britânica.

Ao irromper a guerra em 1914, havia 109 circuitos na Grã Bretanha, que correspondia a 20% de um total estimado de 3 mil, 4 mil e até 7 mil salas. A maioria dos circuitos era pequena – apenas três possuíam mais de 20 cinemas e os circuitos menores costumavam ser locais. Na medida em que o número de cinemas aumentava, seus proprietários sentiram a necessidade de uma organização representativa e consequentemente foi formada, em 1912, a Cinematograph Exhibitors’ Association.O crescimento do número de cinemas após 1908 levou à intervenção governamental por razão de segurança pública. O CInematograph Films Act de janeiro de 1910 estabeleceu regras concernentes à prevenção de incêndios, ventilação adequada, mas também abriu caminho para a censura e o fechamento dos cinemas aos domingos. Em 1910, o London County Council entrou com uma ação para forçar o fechamento dos cinemas aos domingos, que não prosperou. Eventualmente, chegou-se a um acordo no ano seguinte, quando ficou acertado com os exibidores que o lucro da exibição  naqueles dias seria dado à caridade. Eles aceitaram o compromisso mas nem sempre o cumpriram.

A questão da censura foi solucionada no âmbito da indústria. A British Board of Film Censors foi formada pela Kinematograph Manufacturers Association (que existia desde 1909) e seus examinadores eram independentes do mercado. A Board of Film Censors começou a funcionar em janeiro de 1913 com o apoio do Home Office e dos exibidores. Estes ficaram particularmente entusiasmados, porque viram na criação daquele organismo a libertação do poder arbitrário das autoridades locais.

Com a emergência das primeiras cadeias de cinemas, a distribuição de filmes tornou-se um grande negócio. Inicialmente os exibidores compravam filmes diretamente dos produtores (que publicavam catálogos dos seus filmes), mas a prática de aluguel se desenvolveu rapidamente, destacando-se as distribuidoras Walturdaw (cujos fundadores foram John Dewhurst Walker, Edward George Turner e G. H. Dawson, daí o nome Walturdow) e a Jury’s Imperial Pictures (fundada por William Jury).

A demanda do público por filmes de longa metragem foi estimulada, pelo menos parcialmente, pelas produções americanas e francêsas. Em 1910, a França forneceu 36% dos filmes lançados no Reino Unido e os Estados Unidos, 28%. A Grã Bretanha vinha em quarto lugar com 15% depois da Itália com 17%. Juntamente com a Itália e a França, particularmente a Pathé Frères, a Grã Bretanha foi uma exportadora de filmes importante durante os primeiros dez anos do desenvolvimento da indústria. Porém a mudança para filmes de longa-metragem envolvia altos custos de produção e suporte financeiro, que não estava prontamente disponível.  O Reino Unido não era um mercado suficiente amplo para justificar esta espécie de investimento e, mesmo antes da eclosão da guerra, as vendas internacionais estavam diminuindo enquanto que a indústria americana se expandia.

Nos dez anos que se seguiram à apresentação do Cinematógrafo em Londres, milhares de filmes foram feitos na Grã Bretanha, a maioria com duração de um a dois minutos e abordando os mais variados temas: atualidades, viagens, comédia, drama etc. Neste período primitivo havia uma dúzia de companhias produtoras em funcionamento, sendo as mais importantes a Animatograph Works de Robert William Paul, a Hepworth Manufacturing Company de Cecil Hepworth e a Warwick Trading Company de Charles Urban.

A maioria da produção de R. W. Paul consistia  de filmes curtos de atualidades mas, no segundo ano de sua carreira de realizador, em 1896, ele começou a experimentar formas mais longas, enviando seu associado Henry Short com uma câmera mais leve e portátil para o Sul da Europa. Short trouxe-lhe 14 sequências curtas de atualidades que ele exibiu num só programa sob o titulo de A Tour of Spain and Portugal. No ano seguinte, Short realizou algo semelhante com dez sequências sobre o Egito, porém a produção mais ambiciosa que surgiu do estúdio de Paul em 1897 foi o registro fílmico do Queen Victoria’s Diamond Jubilee. Em 1900, Paul envolveu-se com um projeto mais arrojado, realizando Army Life,  33 filmes que, coletivamente, procuravam dar uma visão global da vida no Exército Britânico e, no ano seguinte, ele  produziu as primeiras tomadas sobre a Guerra dos Boers. Whaling Afloat and Ashore, de 1908, era uma criação ainda mais sofisticada, que tentava ilustrar todos os detalhes da pesca da baleia. Embora ainda faltassem vinte anos para a criação do Movimento Documentarista Britânico, este filme, e muitos outros cujas cópias não existem mais, demonstram que R.W. Paul foi um dos seus precursores mais importantes.

Entre 1899 e 1906 e especialmente em 1901, a Animatograph Works realizou uma certa quantidade de “trick films”. Eram filmes bem curtos, usualmente cômicos, que faziam uso de efeitos especiais, alguns dos quais espantosamente sofisticados, dadas as limitações da tecnologia da época. Eles podem ser comparados ao trabalho mais conhecido de George Méliès. A maioria desses filmes foram colaborações entre Paul e W. R. Booth, um mágico e ilusionista que rapidamente percebeu o potencial do novo meio e se tornou um parceiro ideal para Paul.  O filme mais antigo deles parece ter sido Upside Down or The Human Flies / 1899, que punha tanto o cenário como a câmera de cabeça para baixo, para causar a impressão de que os personagens estavam caminhando pelo teto. Embora extremamente simples, esta técnica não era muito diferente dos efeitos especiais de Stanley Kubrick em 2001, Uma Odisséia do Espaço, realizado quase 70 anos depois.

Mas foi a partir de 1901, que os filmes de truque de Paul se tornaram mais complexos, culminando com The Magic Sword e The  ‘ ? ‘ Motorist, ambos de 1906. No primeiro, um gigante rapta uma moça do alto da muralha de um castelo, feiticeiras alçam vôo nas suas vassouras e transformações instantâneas são levadas a efeito por explosões. No segundo, com título estranho e trama ainda mais excêntrica, um motorista empenhado em fugir do policial, que o persegue, acaba subindo aos céu e dando voltas em torno dos anéis de Saturno, antes de retornar à Terra.

Filho de um célebre showman de lanterna mágica, T. C. Hepworth, Cecil Hepworth (1874-1953) permaneceu em atividade no negócio de filmes por mais tempo do que qualquer outro pioneiro, tornando-se uma das figuras mais respeitadas do cinema britânico. Nos primeiros dias do cinema, ele trabalhou na periferia da indústria, como assistente de Birt Acres e depois escrevendo o primeiro livro sobre cinema, Animated Photography, The ABC of Cinematograph, em 1897. Depois de ter sido despedido por Charles Urban da Maguire and Baucus (ver adiante), Hepworth e seu primo Monty Wicks formaram a sua companhia, Hepworth and Co. com o logo comercial, Hepwix;  o estúdio ficava em Walton-0n-Thames. Nos próximos anos, a Hepwix fez uma série de filmes cênicos e de atualidades com Hepworth como cinegrafista / diretor. Seu primeiro sucesso popular veio com o funeral da Rainha Victoria em 1901. Em 1904, a companhia foi rebatizada como Hepworth Manufacturing Company e em 1905 obteve outro grande êxito de público com Rescued by Rover (co-dirigido por Lewin Fitzhamon), estrelado por um cachorro da raça collie. No ano seguinte ele apresentou um novo astro – um cavalo – em Black Beauty, que fez dupla com Rover em Dumb Sagacity / 1907. Hepworth reconheceu também o talento de futuros astros como Alma Taylor, Stewart Rome e Chrissie White e sua simpatia por inovações encontrou expressão no Vivaphone, uma tentativa fracassada de sincronizar o som de discos com a imagem.

Em 1911, depois que o mercado dos Estados Unidos foi fechado para os filmes britânicos devido à constituição da Motion Picture Patents Company e as vendas no Reino Unido despencaram, Hepworth resolveu adaptar autores célebres para a tela, usando atores famosos, numa tentativa de revitalizar seu produto. Ele ofereceu ao público várias adaptações da obra de Charles Dickens inclusive Oliver Twist (Dir: Thomas Bentley, 1912) e uma versão de Hamlet (Dir: Hay Plumb, 1913), interpretado por Sir Johnston Forbes-Robertson.

Hepworth manteve sempre o mesmo estilo de linguagem fílmica, que cultivou anteriormente a 1910: a câmera estática  focalizando em plano médio os intérpretes com suas gesticulações exageradas. Quando o sistema de narrativa clássica  começou a imperar, os filmes de Hepworth começaram a parecer cada vez mais fora de moda.

A Hepworth Picture Plays, como a companhia passou a se chamar, continuou fazendo filmes modestos, na sua maioria melodramas, embora tivesse alcançado um grande êxito popular com uma comédia, Alf ‘s Button / 1919, inclusive na América. Animado por este sucesso de bilheteria, Hepworth planejou construir um estúdio enorme e comprou uma vasta propriedade no campo com o propósito de usá-la nas filmagens, porém não conseguiu obter o capital necessário para saldar o que  havia comprado. Com muita dificuldade, ele completou a sua refilmagem de Comin’ Thru’ The Rye / 1923, considerado seu melhor filme; mas, infelizmente, o público não prestigiou o espetáculo e ele acabou pedindo falência, tendo que vender sua companhia por um preço muito menor do que ela valia.

A figura mais significativa nos primórdios da indústria cinematográfica britânica foi um americano de descendência alemã, Charles Urban (1867-1942), que nasceu em Cincinnati, mudando-se para Detroit em 1890, onde exerceu a profissão de vendedor de fonógrafos. Em 1897, Urban tornou-se diretor da sucursal inglêsa da firma Continental Commerce de Frank Maguire e Joseph D. Baucus, agentes dos filmes de Edison na Europa, estabelecendo os negócios da firma em Londres na Warwick Court – ocasião em que o jovem Cecil Hepworth trabalhou com ele por algum tempo. Em 1899, Urban reorganizou a Continental, agora chamada Warwick Trading Company, e começou a produzir filmes assim como a comercializar seu projetor Bioscope (desenvolvido para ele quando ainda estava na América pelo engenheiro Walter Isaacs). Graças à sua personalidade forte e entusiástica, Urban fez da Warwick a companhia britânica mais proeminente, especializada, em filmes de atualidades, que contaram com experientes cinegrafistas como John Bennett-Stanford, Joe Rosenthal, Jack Avery, F. Ormiston-Smith e F. B. Stewart. A associação profissional mais notável de Urban foi com G. A. Smith, empregando-o como engenheiro e designando-o para aperfeiçoar o processo de duas cores Kinemacolor (Urban havia comprado os direitos do processo de seus inventores Edward Turner com o apoio do financista F. Marshall Lee).

Em 1903, Urban desligou-se da Warwick (sendo substituido sucessivamente por George William Barker e Cherry Kearton), para fundar a Charles Urban Trading Company (marca registrada Urbanora) reforçando sua reputação como produtor de filmes documentários de qualidade e formando a Natural Colour Kinematograph Company (para explorar o Kinemacolor) e a firma Eclipse francêsa. Ele demonstrou um interesse especial pelo filme científico com séries como The Unseen World, mostrando a microcinematografia  de F. Martin Duncan e os estudos zoológicos de Perry Smith. Em 1907, Urban publicou um manifesto, declarando sua crença na força educativa do filme, intitulado “The Cinematograph in Science, Education and Matters of State” e no ano seguinte, ele mandou imprimir o primeiro catálogo de filmes educativos da Urbanora.

Urban continuou uma figura de proa  da indústria até a Primeira Guerra Mundial. A serviço da propaganda governamental, ele produziu o documentário Britain Prepared / 1915 e, depois de montar The Battle of the Somme / 1916,  foi enviado para os Estados Unidos, a fim de promover o esforço de guerra britânico nas telas de cinema americanas. Em 1917, Urban co-editou o cine-jornal de propaganda Official War Review e, após a guerra, fundou a Kineto Company of America (cujo produto principal era a revista cinematográfica Urban Movie Chats) e o cine-jornal Kinograms (editado por Terry Ramsaye). No final dos anos vinte, ele voltou para a Grã Bretanha, onde faleceu depois de alguns anos vivendo em relativa obscuridade.

Em 1898, a companhia francêsa Gaumont  abriu um escritório em Londres para  vender filmes importados e equipamento. Entretanto, logo começou a produzir e distribuir, tornando-se um dos mais importantes agentes de venda do mundo,  tanto para filmes inglêses como para os estrangeiros. A Gaumont cuidava dos filmes feitos por Cecil Hepworth e os realizadores da chamada “Escola de Brighton”.

Na virada para o século vinte, os balneários de Brighton e Hove desempenharam um papel vital na criação da indústria de cinema, tendo sido até chamada de “Little Hollywood by the Sea”. Na  chamada “Escola de Brighton” estavam os primeiros pioneiros verdadeiros entre os quais se destacaram George Albert Smith (1864-1959) e James Williamson (1855-1933). Eles ajudaram a fazer de Brighton e Hove (cidade vizinha de Brighton, hoje unidas) um dos mais importantes centros de filmagem na Grã Bretanha.

George Albert Smith, um hipnotizador e manipulador da lanterna mágica em Brighton, adquiriu sua primeira câmera do engenheiro Alfred Darling e construiu sua “fábrica de filmes” no St. Ann’s Well Garden em Hove. No final do século dezenove Smith iniciou uma produção comercial de filmes muito bem sucedida, tendo como fregueses a Warwick Trading Company e, através deste relacionamento, fez uma parceria com  o seu gerente, Charles Urban. Os filmes de Smith nos anos 1897-1903 eram na sua maioria comédias e adaptações de contos de fadas e histórias populares. Sua esposa, Laura Bayley, trabalhou em alguns de seus filmes mais importantes como Let Me Dream Again / 1900 e Mary Jane’s Mishap / 1903. Smith filmou apenas uma tomada em estúdio do vagão de trem em The Kiss in the Tunnel / 1899; mas quando a inseriu no filme de Cecil Hepworth, View From an Engine Front -Train Leaving the Tunnel / 1899, ele criou um filme montado, que demonstrou um novo senso de continuidade e simultaneidade entre três planos. Esta imaginação fílmica era radical na época e Smith usou esta inovação para realizar uma série de filmes em 1900 que, juntamente com  Let Me Dream AgainThe Kiss in the Tunnel, foram os trabalhos mais importantes de seu percurso artístico: Grandma’s Reading Glass, As Seen Through the Telescope, The House That Jack Built. Estes quatro filmes contêm fragmentos narrativos, que introduziram conceitos de montagem fundamentais para o futuro desenvolvimento da forma cinematográfica tais como close-ups intercalados, planos com ponto de vista subjetivo e objetivo, inversões, dissolvências etc.

Após 1900, o processo Kinemacolor dominou o final da carreira de Smith no cinema. Ele foi lançado em Paris e Londres em 1908 e foi transformado por Charles Urban em um novo empreendimento: a Natural Color Kinematograph Company . Ela teve êxito no período 1910 a 1913, produzindo mais de 100 curtas nos seus estúdios em Hove e Nice. Entretanto, uma ação sobre patente contra o Kinemacolor, movida por William Friese-Griene em 1914, levou ao seu colapso e pôs fim à trajetória de Smith na indústria cinematográfica.

William Friese-Greene foi um inventor que fez experiências com projetores no alvorecer do cinema, mas cujos resultados práticos não corresponderam às reivindicações que ele fez com relação a eles. Após sua morte surgiram uma biografia romanceada de Ray Allister e um filme impreciso,  The Magic Box, dirigido por John Boulting em 1951 (e magnificamente interpretado por Robert Donat) numa tentativa de despertar o interesse dos historiadores por esta figura curiosa do cinema britânico. Aprendiz de fotógrafo, Friese-Griene abriu seu estúdio em Bath. Ali, por volta de 1880, ele conheceu John Rudge, que estava querendo descobrir como a lanterna mágica, poderia criar uma ilusão de movimento. Friese-Griene adotou estas idéias com entusiasmo e começou a fazer experiências com Rudge e por conta própria.  Em 1885, ele abriu duas lojas de retratos em Londres com seu colega Esme Collins, que depois seria outro pioneiro do cinema na área de Brighton. Friese-Griene fez novas tentativas e patenteou aparelhos insuficientes, sempre alegando que havia inventado o que não inventou. Ele começou a experimentar a fotografia em cores em 1898 e se tornou o maior rival de G. A. Smith, que vivia em Brighton, para onde Friese-Griene havia se mudado em 1905. Foi uma decisão judicial em 1913, proferida numa ação na qual  disputavam o Biocolor de Friese-Greene com o Kinemacolor de Smith, que eventualmente derrubou Smith, embora Friese-Greene tivesse sido incapaz de capitalizar sua vitória. Perturbado por dificuldades financeiras, ele continuou um otimista incorrigível. Mais como um sonhador do que como um inventor, Friese-Greene tem seu lugar como um dos fundadores do filme britânico.

James Williamson, nascido na Escócia, estudou para ser químico, mas em 1886 mudou-se para Hove com sua família, e abriu uma farmácia. Na década seguinte, ele se interessou pela fotografia e, em 1897, começou a fazer filmes; seu primeiro catálogo listava 60 títulos, a maioria dos quais continha apenas uma tomada. Seu primeiro filme narrativo montado composto por quatro planos foi Attack on a China Mission – Bluejacks to the Rescue / 1900.  O próximo filme de vários planos significativo de Williamson foi Fire! / 1901, que refletia a compreensão do diretor da narrativa de resgate e sua ambição de encontrar os meios de desenvolver uma estrutura fílmica mais complexa e impressionante. Seus dramas sociais subsequentes e filmes de truques engenhosos, especialmente The Big Swallow / 1901, mantiveram o mesmo espírito e inovação.

Em 1901, o compromisso de Williamson com a narrativa de ficção continuou com duas “picture stories”, como ele as chamava, baseadas nas experiências de soldados que retornavam da África do Sul para os seus lares. Ambos os filmes expressam a inteligência e compaixão que estavam faltando na maioria dos filmes de guerra daquela época. Em Soldier’s Return / 1902, um soldado de volta da Guerra dos Boers, recolhe sua mãe do asilo  e  restabelece o seu lar. A segunda história de Williamson sobre um soldado que retorna, A Reservist, Before the War, and After The War (1902), proporciona um retrato mais negativo da experiência do pós guerra. Na primeira cena, antes da guerra, vemos uma jovem família em casa num ambiente agradável. Após o intertítulo, “After the War”,  vemos o mesmo interior, mas agora ele sofreu uma transformação trágica: está quase sem mobília, uma criança doente é embalada nos braços de sua mãe e não há fogo na lareira. Esta transição do conforto para a pobreza é mostrada como o resultado direto do serviço que o reservista prestou à guerra e seu subsequente desemprego. A organização lúcida e cuidadosa manifestada em A Reservist, Before the War, and After the War é também evidente em The Little Match Seller / 1902, Remorse: A Tragedy in Five Acts / 1903, The Old Chorister / 1904, The Two Little Waifs / 1905 e The 100 Pounds Reward / 1908, provando que o drama cinematográfico, ao contrário do drama da lanterna mágica ou do drama teatral,  podia agora ser concebido como uma entidade distinta e viável.

Em 1902, a Williamson Kinematograph Company inaugurou seu primeiro estúdio construído propositadamente para a produção e processamento de filmes em Hove. Os dramas e comédias de Williamson eram vendidos e exibidos através da Europa e América. Em 1907, seu filho Alan abriu um escritório em Nova York e em 1909 Williamson compareceu na European Convention of film Producers and Publishers em Paris. Porém, neste mesmo ano, mudanças no mercado cinematográfico mundial levaram-no a se afastar da produção de filmes.

Outro pioneiro de Brighton foi aquele fotógrafo colega de William Friese-Freene, Arthur Esme Collins (1859 – 1936). Depois de sua parceria com Friese-Griene, Collins começou a fazer seus filmes em Brighton. Ele fez contato com Alfred Darling, um fabricante de equipamento cinematográfico que lhe forneceu câmeras e conselhos técnicos. Em contraste com Friese-Greene, Collings produziu mais de 30 filmes curtos durante o ano de 1896 entre eles Bathers on the Beach of Brighton, Scrambling for Under the Pier, Children Padding, Donkey Riding, Rough Sea: The Hove Sea Wall in a Gale, Train Arriving at Dyke Station, A Lady Undressing in Her Boudoir etc. Após 1897, Collings parece ter perdido o interesse por filmes e, em 1898, abandonou o cinema dedicando-se ao revivescimento da pintura em miniatura.

Alfred Darling (1862- 1931) abriu uma loja de produtos de engenharia na sua casa em Brighton e, após um contato com o grupo de cineastas daquela localidade,  começou a se especializar em equipamento cinematográfico, tendo como seus primeiros clientes Esme Collings, G. A. Smith e James Williamson. Ele também os estimulou no seu trabalho pioneiro e lhes prestou valiosa assistência técnica, sempre que necessária. Em 1897, Darling se associou coma firma de J. Wrench e Son e em julho daquele ano registrou, com Alfred Wrench, a patente de uma câmera cinematográfica com obturador variável. No ano seguinte, ele foi empregado por Charles Urban, para fabricar um mecanismo para a Biokam, uma câmera de bitola pequena para uso amadorístico. Posteriormente, ele usou câmeras de 35 mm, que encontraram boa acolhida no mercado não somente na Inglaterra, mas em todo o mundo. Outros equipamentos fabricados por Darling incluíam copiadoras, manivelas, medidores, tripés e projetores. Entre seus fregueses estavam os nomes mais representativos da indústria.

Em dois breves períodos de atividade cinematográfica, 1890 – 1900 e 1913 – 1915, a Bamforth and Company de Holmfirth, West Yorkshire, foi responsável pela produção de uma coleção de filmes modestos mas historicamente significativos. A companhia adquiriu proeminência, por volta de 1896, pela sua produção industrial em massa de slides da lanterna mágica  e, após 1904, por sua expansão no mercado internacional de cartões postais. James Bamforth estava entre o seleto grupo de cineastas de Brighton, mas suas excursões na indústria cinematográfica foram relativamente breves. Primeiramente sua companhia se especializou em sequências de modelos vivos em slides representando temas morais ou religiosos, acompanhados por canções ou hinos populares. A maneira pela qual essas sequências da lanterna mágica foram feitas e exibidas teve uma profunda influência sobre o primeiro período da realização de filmes por parte da companhia. Neste período podemos citar: Kiss in the Tunnel / 1899, Women’s Rights / 1899, The Tramp and the Baby’s Bottle / 1899, Leap Frog / 1900 etc. No segundo período, destaca-se a comédia bizarra Finding His Counterpart /  1913, no qual um homem visita um frenologista e então tenta descobrir sua companheira ideal apalpando as cabeças de uma sucessão de improváveis amantes. Em 1914, Bamforth and Co. contratou o comediante do music hall “Winky”(Reginald Switz) , que se tornou o astro de seus filmes mais exitosos entre eles Winky’s Weekend, Itching Powder, Winky Causes a Snmallpox Panic. Em 1915, outros atores cômicos como Lily Ward, Alf Scottie  e o astro infantil Baby Langley foram contratados; porém, pouco depois, talvez devido ao impacto da guerra, os filmes da Bamforth foram absorvidos pela Holmfirth Producing Company de curta existência, sediada em Londres. A Bamforth and Co. sobreviveu até os anos 90 e hoje é principalmente lembrada por sua produção de cartões postais.

Para finalizar, vejamos a contribuição de mais dois pioneiros: William Haggar e Frank Mottershaw.

Nascido em Dedham, Essex no Pais de Gales, William Haggar (1851-1925) foi músico e carpinteiro de teatro, antes de formar uma trupe (composta por sua esposa Sarah e oito de seus onze filhos), na qual atuou como ator-cantor. Em 1889, ele adquiriu um projetor Wrench  e explorou um cinema itinerante em parques de diversões no Oeste da Inglaterra e Sul do País de Gales. Haggar fez seus próprios filmes por volta de 1902, a maioria dos quais foram distribuídos pela Gaumont, Charles Urban ou Warwick Trading Company.  Haggar inspirou-se nas sua origem rural e sua vivência na pobreza, para realizar muitos filmes sobre caça e pesca furtivas. Um deles, The Salmon Poachers / 1905, vendeu mais cópias do que qualquer outro filme feito pela Gaumont na Grã Bretanha. Seus melodramas eram versões truncadas de peças teatrais (algumas vezes derivadas das performances de sua própria companhia)  tais como Duel Scene from the Two Orphans / 1902, The Sign of the Cross / 1904, The Dumb Man of Manchester / 1908 e a atração principal do seu repertório, The Barn Crime, or Marie Marten / 1908. Os filmes de Haggar incluíam ainda comédias, thrillers criminais (vg. The Life of Charles Peace / 1905, biografia de um assassino enforcado em 1879) e filmes de truques. Seu A Desperate Poaching Affray / 1903 é hoje considerado como um dos dois ou três filmes britânicos que influenciaram os primeiros dramas narrativos nos Estados Unidos, particularmente o desenvolvimento do filme de perseguição. Após a morte de sua esposa, Haggar parou de explorar espetáculos itinerantes e abriu uma cadeia de cinemas no País de Gales com membros de sua família como gerentes.

Frank Mottershaw (1850 – 1932) foi um dos primeiros diretores britânicos pioneiros em Sheffield, Yorkshire. Seus filmes, A Daring Daylight Burglary e The Robbery of the Mail Coach, realizados em abril e setembro de 1903, tendo um protagonista inspirado em Jack Sheppard, salteador de estradas do século dezoito, podem ter exercido influência sobre o paradigmático “filme de perseguição” de Edwin S. Porter, O Roubo do Grande Expresso / The Great Train Robbery, de dezembro de 1903.

Na trama de A Daring Daylight Burglary, um ladrão joga um policial pelo telhado de um prédio, é perseguido através do país entre rios e montanhas, e acaba escapando em um trem; mas os policiais enviam uma mensagem pelo telégrafo e o capturam na próxima estação. Comparado com outros filmes britânicos do período, o ritmo é  invulgarmente rápido e a narrativa surpreendentemente sofisticada – particularmente o uso do tema da vingança (o policial vingando seu companheiro gravemente ferido),  que todo espectador de thrillers de ação imediatamente reconhecerá como um ingrediente básico do gênero.

Foi este filme que firmou a reputação internacional da Sheffield Photo Company, fundada por Mottershaw, mas ele fez vários outros entre 1903 e 1908 (vg. The Coronation of King Peter I of Serbia / 1903, Attack on a Japanese Convoy / 1904, The Market Woman‘s Mishap / 1904, A Solider’s Romance / 1905, Lazy Workmen / 1905, Lost in the Snow / 1906, The Romany’s Revenge / 1907, That Nasty Sticky Stuf / 1908 etc).

JEAN GRÉMILLON

Ele foi um dos grandes diretores do cinema francês clássico ao lado de Jean Renoir, Julien Duvivier, René Clair, Marcel Carné ou Jacques Feyder.  Nenhum de seus filmes obteve um verdadeiro sucesso comercial, mas estão entre os mais belos e apaixonantes jamais produzidos na França.

Jean Grémillon (1901 – 1959) nasceu em Bayeux, na Baixa Normandia, França num meio modesto: seu pai era ferroviário e sonhava que seu filho fosse um engenheiro. Em 1920, após vários anos sacrificados à vontade paterna, o jovem Grémillon obteve finalmente permissão de ir para Paris, a fim de seguir os cursos da Schola Cantorum, entre outros os de Vincent d’Indy.

Ele se introduziu nos ambientes da vanguarda musical e teatral e descobriu o cinema enquanto ganhava a vida acompanhando ao violino os filmes mudos nas salas de projeção. Entre 1923 e 1926, Grémillon aprendeu as funções de montador e pouco depois começou a fazer curtas-metragens industriais sob encomenda.

Em 1926, o jovem de 25 anos de idade ganhou prestígio com o seu média-metragem Un Tour au Large / 1926, espécie de poema sinfônico sobre o mar, realizado a partir de imagens documentárias rodadas durante uma pesca de atum. No período sonoro, ele faria outros documentários, inclusive o excelente Le Six Juin a L’Aube / 1945.

Para este artigo, entre os 17 filmes de ficção em longa-metragem do cineasta, dos quais tive o privilégio de ver 14 (não ví Pour un Sou D’Amour / 1931, Gonzague ou L’Accordeur / 1933, Pattes de Mouche / 1936; vi La Dolorosa / 1934, La Valse Royale / 1935), selecionei os doze que considero os mais expressivos de sua carreira.

MALDONE / 1927 – Neste filme mudo, interpretado e patrocinado por Charles Dullin e influenciado pela vanguarda impressionista, em particular pelos filmes de Jean Epstein, Coeur Fidèle / 1923 e La Belle Nivernaise / 1924, Grémillon aborda o tema clássico na linha de “o dinheiro não traz felicidade”, quer dizer, a história de um carroceiro, Olivier Maldone (Charles Dullin), filho pródigo de uma família rica que, após a morte do irmão num acidente, assume a propriedade da terra de seus ancestrais. Ele se envolve com uma cigana sedutora, Zita (Génica Athanasiou) e se casa, mais por imposição do que por desejo, com a virtuosa Flora (Annabella). Finalmente, incapaz de se adaptar à rotina da vida familiar e às convenções sociais, Maldone veste de novo o seu traje de carroceiro – quebrando simbolicamente a imagem de gentil-homem campesino – e foge a cavalo, galopando desvairadamente pelos campos.

O tema da família-prisão  é desenvolvido através de imagens recorrentes, desde a coleção de borboletas do tio até o movimento da jovem esposa encerrando seu marido nos seus braços. Maldone liberta a borboleta que seu tio acabara de capturar, antes de se libertar ele próprio dos laços familiares.

O cineasta demonstra sua inventividade pelos ângulos audaciosos e pelos efeitos de superposição ou movimentos de câmera, dando ao espetáculo um impacto visual impressionante. Um exemplo marcante da preocupação estética de Grémillon é o episódio do baile campesino,  no qual o prazer físico da dança é expresso pela virtuosidade da câmera, que transforma a farandola em uma passagem cinematográfica particularmente brilhante.

GARDIENS DE PHARE / 1929 – Este outro filme silencioso foi realizado sob o apadrinhamento de Jacques Feyder, que havia feito a “decupagem cinematográfica” de uma peça do repertório do Théâtre du Grand-Guignol, introduzindo um personagem novo: o mar. De modo que Grémillon pôde dar livre curso ao seu amor pelos horizontes marinhos e pela Bretanha.

Segundo o argumento, pai (Paul Fromet) e filho (Geymond Vital) trabalham como faroleiros. No farol, o filho mostra ao pai uma mordida de um  cão que recebeu quando passeava com sua noiva. No continente, o veterinário da aldeia diagnostica uma epidemia de raiva. O filho sente-se cada vez pior. O pai quer pedir socorro, porém a tempestade o impede. O filho, inicialmente abatido, torna-se agressivo. De repente ouve-se a sirene de um barco em perigo. O pai tenta acender o farol para evitar o naufrágio, mas é atacado pelo filho delirante, vendo-se obrigado a arremessá-lo no mar.

Rodado quase que inteiramente em cenários naturais em Saint-Guénolé, Gardiens de Phare confirma o talento de Grémillon. Partindo de um melodrama banal, o cineasta, com sua experiência de documentarista e espírito vanguardista, conseguiu criar um paroxismo dramático envolvente, extraindo notáveis efeitos visuais da fúria do vento, das ondas quebrando nas rochas, das luzes giratórias e das formas geométricas do farol. A fotografia de alta qualidade, que contribui muito para a angústia e opressão do espetáculo, a interpretação sóbria e um ritmo dinâmico, concorreram para o sucesso artístico desta tragédia à portas fechadas. Em Maldone e Gardiens de Phare, trabalhos repletos de pesquisas estilísticas audaciosas para a época, já se podiam perceber o senso pungente do “trágico cotidiano” e a aptidão do cineasta em fazer brotar o lirismo das situações mais convencionais.

LA PETITE LISE / 1930 – No primeiro filme falado de Grémillon, Victor Berthier (Pierre Alcover) cumpre pena na penitenciária de Cayenna, por ter matado a esposa, que o traíra. Ele recupera a liberdade por conduta heróica durante um incêndio e parte para Paris, onde sua filha Lise (Nadia Sibirskaia) vive com André (Julien Bertheau), seu companheiro. André trabalha  em um cabaré e Lise recebe em casa seus “clientes”. Berthier se encontra com a filha e lhe dá um relógio de ouro de presente. Necessitando de dinheiro, André e Lise vão empenhá-lo e, durante uma briga com o usurário, Lise o mata, para defender André. Berthier descobre toda a verdade e não tem outra solução para salvar a sua pequena Lise: assumir a culpa pelo crime e voltar para a prisão.

Trama melodramática, sem dúvida, mas sustentada por um excelente uso dos travellings, das elipses e dos efeitos sonoros (inclusive o silêncio). A música é usada principalmente para criar a atmosfera e dar o tom psicológico de uma cena, antes que seu componente visual apareça. Um bom exemplo é o batuque hipnótico que ouvimos durante a apresentação dos créditos, preparando-nos para o implacável calor de Cayenna e o estado de espírito triste dos prisioneiros aglomerados no dormitório.

Na intriga muito simples sobressai o pai, cuja figura corpulenta e rude contrasta com a ternura patética que sente pela filha. Alguns críticos acharam que o realismo poético já estava aí, bem antes de Carné e Prévert: calçadas luzentes, bruma, claro-escuro, destino do qual se sonha em vão escapar…

DAÏNAH LA MÉTISSE  / 1931 –  Em um navio de luxo, que ruma em direção das colônias, viajam um negro ilusionista (Habib Benglia) e sua esposa mestiça, Daïnah (Laurence Clavius). Dotada de um charme estranho e um exotismo perturbador, ela se diverte flertando com Michaud (Charles Vanel), um mecânico da sala de máquinas, o qual ela acaba repelindo, mordendo-o cruelmente. No dia seguinte, Daínah desaparece de bordo. A investigação se arrasta sem resultado; porém o marido, adivinhando a verdade, faz justiça pelas próprias mãos.

O filme foi cortado pela Gaumont de 90 para 50 minutos, prejudicando bastante a exposição mas, mesmo assim, ainda restou magia suficiente para eletrizar o espectador como, por exemplo, as sequências do  insólito Baile de Máscaras (as máscaras dos convidados são como paródias grotescas de suas personalidades, exceto a de Daïnah,  que parece uma caixa toráxica que encerra e aprisiona o seu rosto) e o número de mágica ensejando truques de câmera, que parecem ter saído de um filme de vanguarda surrealista dos anos 20.

O espetáculo propõe uma crítica aos preconceitos racial e colonial e uma reflexão bastante aguda sobre os costumes: Daïnah e seu marido são mostrados como um casal anticonformista, algo ainda mais chocante por dizer respeito a “pessoas de cor”, que costumam ser comumente retratados como obedientes aos  costumes tradicionais, para não dizer “primitivos”.

GULA DE AMOR / GUEULE D’AMOUR / 1937. Lucien Bourrache (Jean Gabin), suboficial do corpo de cavalaria francês em Orange, agita  todos os corações femininos; mas, cansado  dos sucessos que lhe valeram o apelido de “Gueule d’Amour”, ele prefere a companhia de seu amigo René (René Lefèvre), major médico do regimento. De passagem por Cannes para receber uma pequena herança, Lucien conhece Madeleine (Mireille Balin),  bela mulher de reputação equívoca. Ela o arrasta para o cassino, onde ele aposta e perde os dez mil francos da herança. Depois, quando Lucien pensa que a seduziu, Madeleine o repudia. Ansioso por revê-la, Lucien se desliga do regimento e vai para Paris, onde arruma um emprego de tipógrafo. Ele  reencontra por acaso Madeleine em um cinema e, desta vez, ela corresponde aos seus avanços, tornando-se sua amante. Entretanto, Lucien descobre que Madeleine é ricamente sustentada por um “protetor” e, após uma cena humilhante, Lucien deixa Paris para se instalar em Orange como dono de um pequeno restaurante. Pouco depois, Lucien vem a saber que Madeleine está tentando enganar René, que se apaixonara por ela. Após tentar em vão convencer René do poder maléfico daquela mulher, Lucien a estrangula e depois confessa tudo ao amigo, que o ajuda a fugir para a África do Norte.

Após alguns fracassos comerciais e um exílio espanhol  (quando realizou La Dolorosa / 1935 e Centinela Alerta! / 1935, que ele não terminou), Grémillon fêz este filme com Jean Gabin, que se tornara, graças aos filmes de Julien Duvivier e Jean Renoir, um ícone do proletariado, figura trágica pela moda do realismo poético; porém o drama sentimental e social ora em apreço faz exceção à regra, porque não possui na sua maior parte a estilização visual expressionista e a atmosfera pesada. A abordagem de Grémillon é mais naturalista, como se vê pelo transcurso da ação nos exteriores ensolarados do Sul da França. A única exceção é a sequência final, na qual Madeleine e Lucien se encontram pela última em seu restaurantee: a encenação do bistrô perto da ponte é um tour-de-force das técnicas expressionistas favorecidas pelos diretores do realismo poético.

O espetáculo traz a marca do cineasta, discreta e sensível, sempre interessado pelas relações humanas. Como escreveu o crítico da Télérama, Jacques Morice, “sob a aparência de um romance impossível entre o formoso spahi e a femme fatale, Grémillon encurrala a dor de um homem rejeitado por uma mulher em virtude de seu meio social. A aventura termina em tragédia, porém o diretor não cede à ênfase: basta-lhe se deter sobre um rosto silencioso, Lucien segurando suas mãos (obs. tentando deter seu impulso criminoso), uma paisagem pedregosa, para exprimir com pudor seus tormentos interiores”.

O HOMEM QUE VIVIA DUAS VIDAS / L‘ ÉTRANGE MONSIEUR VICTOR / 1938. Em Toulon, Victor Agardanne (Raimu) leva uma vida dupla: a de um comerciante honesto e respeitado durante  o dia, que à noite se torna chefe e receptador de um bando de ladrões que assaltam os castelos da região. Vítima de uma tentativa de chantagem, Victor mata um de seus cúmplices com um instrumento cortante pertencente a seu vizinho, o sapateiro Bastien Robineau (Pierre Blanchar). Este é preso e condenado. Sete anos depois, Bastien foge da prisão e se refugia na casa de Victor, que lhe oferece ajuda, até ser desmascarado e preso pela polícia sob os olhares incrédulos de toda a vizinhança.

O aspecto mais interessante do filme é o relacionamento psicológico entre Monsieur Victor e seu vizinho Bastien. Victor é gordo, próspero, bonachão, casado com a encantadora Madeleine (Madeleine Renaud). Bastien é magro, pobre, taciturno, ridicularizado por uma esposa insatisfeita, Adrienne (Viviane Romance), que o engana. Victor comete um crime e deixa que Bastien leve a culpa. Ao retornar, Bastien é recolhido e escondido por Victor e se apaixona por sua mulher. O responsável por sua infelicidade lhe aparece como seu benfeitor e ele, Bastien, é que se sente culpado de traír Victor no mesmo lugar em que o “honrado” comerciante lhe deu asilo. Raimu está magnífico, encarnando através da personagem de Victor a ambivalência própria da natureza humana.

ÁGUAS TEMPESTUOSAS / REMORQUES / 1941 – André Laurent  (Jean Gabin) é capitão de um rebocador no porto de Brest. Sua esposa Yvonne (Madeleine Renaud), sofre de uma doença cardíaca e espera que André deixe o emprego, que o mantém continuamente fora do lar. Ao comandar uma operação de salvamento, André recolhe Catherine (Michèle Morgan), mulher do capitão do cargueiro em perigo. Catherine não quer voltar para a companhia do marido e André a leva para terra. Uma grande paixão nasce entre eles. Porém Catherine se afasta, quando Yvonne fica muito doente e reclama a presença de André.

Do mar é que surge Catherine, a agente do destino, que vai perturbar a existência tranquila de André, deixando-o em um conflito psicológico entre o dever e o desejo. E é também o mar (e os barcos, o céu coberto de nevoeiro, as longas praias desertas) que envolve os personagens no curso  da narrativa, sempre visto através de belas imagens, complementadas por uma orquestração sonora e musical audaciosa. O roteirista e dialoguista Jacques Prévert reencontrou a essência mesma de sua inspiração poética. Basta ver aqueles momentos em que André e Catherine passeiam pela praia e descobrem a estrela-do-mar, quando visitam a casa vazia ou finalmente se separam e ela diz: “Cheguei com a tempestade e a tempestade vai me levar”.

LUMIÈRE D’ÉTÉ / 1942 – Nos Alpes, perto de uma barragem em construção, Patrice Le Verdier (Paul Bernard), aristocrata perverso, convida para o seu castelo Roland Maillard (Pierre Brasseur), pintor fracassado e alcoólatra, com a finalidade de seduzir Michèle Lagarde (Madeleine Robinson), a jovem companheira do artista. A antiga amante de Patrice, Cri-Cri (Madeleine Renaud), proprietária de um hotel nas redondezas, lhe recorda que eles foram cúmplices no assassinato da mulher dele. Decepcionada com Roland, Michèle prepara-se para partir com Julien (Georges Marchal), engenheiro da barragem. Roland morre em um desastre de automóvel. Patrice tenta matar Julien, mas é acuado pelos operários da construção e cai em um abismo.

Dois mundos que se confrontam: o mundo do castelo, corrompido pela ociosidade, pelo vício, pela mentira, pelo crime, e o mundo generoso e sincero de um canteiro de obras, voltado para o trabalho e para o futuro Entre esses  dois mundos, um hotel, onde duas mulheres são o pivô do conflito, ao mesmo tempo concreto  e cósmico, entre o Bem e o Mal. O drama atinge ao auge durante um baile de máscaras, no qual cada personagem veste uma fantasia correspondente às suas angústias e às suas pulsações. A última cena do filme  ganha um clima onírico quando, no meio das brumas matinais, Patrice, usando uma indumentária do tempo de Louis XV, é confrontado com os operários, vestidos com sua roupa de trabalho.

O CÉU LHE PERTENCE (Na TV)/ LE CIEL EST A VOUS / 1944 – Thérèse  (Madeleine Renaud) e Pierre Gauthier (Charles Vanel) são proprietários de uma pequena garagem. Um cliente propõe a Thérèse o cargo de gerente de sua grande garagem em Limoges. Na ausência da esposa, Pierre  entrega-se à sua antiga paixão: a aviação. Thérèse volta e pede a Pierre que pare de voar. Porém,  o destino faz com que Thérèse receba o batismo do ar. A partir de então, Pierre e Thérèse compartilham a mesma paixão. Finalmente, Thérèse bate o recorde feminino de distância em linha reta e é recebida triunfalmente pela população.

Grémillon descreve um heroísmo secreto que nasce no seio de uma família burguesa da província, uma aventura espiritual que solta as amarras das tradições, dos hábitos e das convenções sociais, o abandono do cotidiano pela conquista do sublime. A história comovente de um casal apaixonado pela aviação, seus esforços, seus dissabores, a vitória final da jovem mulher, a incompreensão dos pais diante do ideal diferente de sua filha amante da música (eles vendem o piano dela para comprar um avião), tudo aqui é verdadeiro, vivo, humano. Um estilo sóbrio, matizado, elíptico faz dessa obra uma das mais altas e nobres representações da arte cinematográfica francesa.

MULHER COBIÇADA / PATTES BLANCHES / 1948 – Na Bretanha,  Jock le Guen (Fernand Ledoux), proprietário do Café du Port, traz para a cidade sua jovem amante, Odette (Suzy Delair). Na mesma localidade, vive o conde Julien de Kériadec (Paul Bernanrd), apelidado de Patas Brancas por causa de suas polainas. Kériadec é adorado em segredo por Mimi (Arlette Thomas), a criada corcunda do Café du Port. Odette passa facilmente dos braços de Kériadec, possuído por violenta paixão por ela, para os de seu irmão bastardo Maurice (Michel Bouquet), que procura arruinar o conde através daquela mulher sensual.  No dia do casamento de Le Guen e Odette, Kériadec incendeia seu castelo, encontra-se com Odette no alto de um penhasco e a estrangula.

Ao trazer para a tela os personagens mórbidos de Jean Anouilh, Grémillon aboliu a fronteira entre o real e o imaginário, o cotidiano e o insólito. Em alternância  com as cenas da bela paisagem da Bretanha, captada de maneira admirável pela câmera, surgem passagens quase fantásticas, que dão um toque de poesia ao filme. Basta citar  o instante quando, logo após a sua primeira visita ao castelo, a moça disforme põe o vestido que Kériadec lhe deu e começa a dançar sob o som de uma velha caixa de música ou a célebre sequência  do assassinato da heroína, que termina com Kériadec jogando o corpo da vítima no mar e ficando apenas com o véu da noiva nas mãos, enquanto ao longe ressoam os risos e os cantos do banquete de núpcias.

L’ÉTRANGE MADAME  X / 1951 – Irène (Michèle Morgan), esposa de um grande editor, Jacques Voisin-Larive (Maurice Escande), apaixona-se por um jovem marceneiro, Etienne (Henri Vidal). Ela se faz passar por uma camareira da mansão de Voisin-Larive. Do romance nasce uma criança. Iréne quer se divorciar mas seu marido esquiva-se das discussões sobre 9 assunto. A criança, deixada aos cuidados de uma ama de leite, fica gravemente doente e morre. Nesta ocasião, Etienne descobre a verdadeira identidade de sua amante e rompe com ela. Irène, superando seu desespero, retoma sua vida mundana.

É certo que, neste penúltimo longa-metragem de ficção de Grémillon, encontram-se os ingredientes usuais do gênero melodrama (a intensidade lacrimal, o pathos, a artificialidade das situações); porém o diretor soube impor aos seus intérpretes a sobriedade que queria conferir ao seu filme, obtendo deles expressões de grande sinceridade. Há um contraste marcante entre os lugares proletários (a rua, o restaurante do tio de Etienne, seu quarto, o pequeno apartamento onde ele pensa que levará uma vida feliz com a mulher que ama e a filha) e o luxo excessivo da mansão de Voisin-Larive, sendo que a construção da narrativa pode desconcertar o público porque Grémillon nos leva de um mundo para o outro, sem dar quaisquer explicações. A única ligação entre eles é Irène e é pouco a pouco que nós ficamos sabendo da verdade. Para Voisin-Larive, Irène é  uma estátua ou algo decorativo que ele pode mostrar quando dá uma festa. Quando Irène lhe comunica que está grávida (de Etienne) ele não liga, manda-a para a Suiça e exclama numa voz neutra terrível: “Eu não preciso de descendentes”. A derradeira imagem de Irène  (depois de ter dito para Jeannette (Arlette Thomas) que “há muitas maneiras de morrer”) de volta ao seu ambiente mundano e com uma atitude gélida,  sem emoção, é uma crítica à burguesia, onde reinam as aparências e a hipocrisia.

L’AMOUR D’UN FEMME / 1954 – Uma jovem médica, Marie Prieur ( Micheline Presle) chega na ilha de Ouessant, onde faz amizade com professora Mlle. Leblanc (Gaby Morlay), que consagrou sua vida aos filhos dos outros. A gentileza, a devoção e a competência de Maria conquistam a confiança dos habitantes da ilha. Marie se apaixona por um engenheiro, Andre Lorenzi (Massimo Girotti) que está de passagem por Ouessant. Lorenzi deseja esposá-la e quer obrigá-la a abandonar a medicina. Marie não hesita em atender a um chamado de emergência de um faroleiro isolado durante uma tempestade. Lorenzi compreende que Marie, cuja vocação é um verdadeiro sacerdócio, não pode ser só dele. Marie, que perdeu recentemente sua amiga, Mlle. Leblanc, vê Lorenzi partir com uma profunda tristeza. Ela está só, porém uma nova professora acaba de chegar. A vida continua.

O filme foi construído com uma simplicidade quase-genial. Grémillon observa o cotidiano da ilha, a vida rude, monótona, à mercê de uma natureza inclemente, mas evita o romantismo, emergindo então uma verdade tranquila. Do mesmo modo, o seu elogio da devoção da professora e da jovem médica é comedido, concentrado no seu trabalho; porém ele soube tornar pungente a solidão, e mesmo a ingratidão, que faziam parte do destino das duas. Micheline Presle interpreta com uma real emoção o personagem excepcional, mas verdadeiro, de uma jovem mulher que sacrifica sua paixão pela nobre profissão que escolheu.  A direção magnífica de Grémillon celebra esta mulher com lirismo e uma inspiração um tanto tchecoviana. Raramente o conflito entre a vocação e o amor foi tratado com tanta delicadeza e verossimilhança.

VIAJO DIA 14, VOLTO EM NOVEMBRO