Ele foi um ator admirável, um astro do Teatro e do Cinema, e uma das personalidades mais eletrizantes de sua época. Mas sob esta reputação pomposa estava um homem torturado, que obteve pouca ou nenhuma satisfação com o seu sucesso.
John Sidney Blyth (ou Blythe) nasceu em 14 de fevereiro de 1882 em Filadélfia. Seus pais foram o ator inglês Maurice Blyth (que adotou o nome artístico de Barrymore) e Georgiana Drew, filha de uma famosa família de atores. A avó materna de John era Louisa Lane Drew, proeminente e respeitada atriz e administradora do teatro Arch Street Theater, conhecida como “Mrs. Drew”, que exerceu grande influência sobre John nos seus anos de formação. Georgiana morreu vitimada pela tuberculose deixando três filhos: Lionel (nascido em 1878), Ethel (nascida em 1879) e John, que tinha apenas onze anos de idade. Poucos meses depois do funeral, Maurice encontrou consolação nos braços de Mamie Floyd e se casou com ela, sem avisar os filhos.
Durante a primavera de 1896, Maurice estava em dificuldades financeiras quando lhe ofereceram encabeçar um programa no Music Hall, apresentando-se num esquete, que ele mesmo escolheria. Maurice aceitou e colocou John num pequeno papel, no qual ele não teria que falar nada. Muito preocupado para dar atenção a John, Maurice pôs um bigode postiço e foi para o palco. Na ausência de alguma instrução específica em relação à maquilagem, John pôs um bigode idêntico ao do pai e entrou em cena atrás dele. As gargalhadas que irromperam da platéia, sufocaram o já ínfimo interesse que ele tinha pelo teatro. Desde cedo John havia demonstrado inclinação para o desenho e queria estudar arte.
Aos quinze anos, John deixou-se seduzir por sua jovem madrasta. É bem provável que um complexo de culpa por ter traído o pai, tenha contribuído para que ele se tornasse um alcoólatra crônico. Quando o rapaz fez dezesseis anos, Maurice pôde mandá-lo para a Inglaterra (acompanhado por Ethel, que tinha muitos admiradores na sociedade londrina), a fim de completar seus estudos. Do King’s College, John transferiu-se para a London University, onde frequentou um curso de palestras sobre literatura inglêsa. Com a ajuda monetária de Ethel, ele se dedicou à sua verdadeira paixão na Slade School of Art.
De volta a Nova York, John continuou a estudar arte na escola do pintor George Bridgman e conseguiu exibir alguns desenhos na Press Artists League, onde um de seus trabalhos foi comprado (por dez dólares) pelo magnata do aço, Andrew Carnegie. Pouco depois, a Cosmopolitan publicou uma série de seus desenhos macabros no estilo de Gustave Doré com os títulos de “Medo”, “Inquietação”, “Ciúme” e “Desespero”. Estes desenhos refletiam seus tormentos mentais.
Quando John viu as primeiras manifestações de loucura de seu pai, causadas pela sífilis e pelo excesso de bebida alcoólica, ficou com medo de que o mesmo pudesse acontecer com ele. O amor de John pela arte nunca desvaneceu e seu fracasso em se elevar acima da mediocridade como artista o deprimia. Aquele medo e esta frustração são outros fatores que explicam a sua auto-destrutividade.
John começou a ganhar a vida como cartunista de um jornal diário de Nova York mas, em 1903, precisando de dinheiro, decidiu seguir a tradição da família e estreou no teatro na peça Magda, um drama de Hermann Sudermann, no qual ele fazia o pequeno papel de um jovem oficial, Max von Wedlowski. Apesar de ter iniciado tarde a profissão de ator, John ultrapassou os feitos artísticos de sua irmã e seu irmão, tornando-se um ídolo dos palcos da sua época em peças como The Affairs of Anatol, Justice, Peter Ibbetson e Redemption. Ele atingiu o auge da fama no teatro com suas inspiradas interpretações em dois papéis shakespereanos, Richard III em 1920 e Hamlet em 1922.
Em 1913, Adolph Zukor, fundador da Famous Players e progenitor do star system na tela, persuadiu John a seguir o exemplo de seus irmãos Lionel e Ethel, se aventurando no cinema. O primeiro filme de John foi um velho drama sentimental de quatro rolos, An American Citizen / 1914, no qual ele fez o papel de Beresford Cruger que, quando é forçado a deixar a sua terra nativa e partir para a Inglaterra, acaricia um retrato de George Washington e abraça apaixonadamente a bandeira americana. No quarto dia de filmagem, Zukor perguntou ao diretor J. Searle Dewley o que ele achava de John. “Mr. Zukor”, respondeu Dawley, “ele é o melhor ator que eu tive o privilégio de dirigir”.
John fez ao todo 23 filmes mudos, dos quais eu conheço 8. Tive a sorte de vê-lo como Dr. Henry Jekyll / Mr. Edward Hyde em O Médico e o Monstro / Dr. Jekyll and Mr. Hyde / 1920; como Sherlock Holmes em Sherlock Holmes / Sherlock Holmes / 1922; como Gordon Bryon “Beau” Brummel em O Belo Brummel / Beau Brummel / 1924; como Don Jose de Marana / Don Juan de Marana em Don Juan / Don Juan / 1926; como François Villon em Amor de Boêmio / The Beloved Rogue / 1927; como o Cavaleiro Fabien des Grieux em Quando um Homem Ama / When a Man Loves / 1927; como o Sargento Ivan Markov em Tempestade / Tempest / 1928; e como Marcus Paltran em Amor Eterno / Eternal Love / 1928. Mesmo sem usar a sua magnífica voz, suas performances foram o ponto alto desses filmes, encantando o público feminino como “great lover” ou interpretando personagens atormentados e disformes. Gostaria de ter visto A Fera do Mar / The Sea Beat/ 1926 porém a única cópia em dvd que existe é de má qualidade.
O Médico e o Monstro distingue-se somente por dois momentos: a primeira transformação de Dr. Jekyll em Mr. Hyde, na qual o médico se contorce diante da câmera até aparecer aquela figura ponteaguda de olhos penetrantes e dedos aracnídeos e a cena em que um aterrorizado Dr. Jekyll está sentado na sua cama, quando uma aranha gigantesca (seu próprio eu) aproxima-se silenciosamente e salta sobre seu corpo, desencadeando a transformação.
Sherlock Holmes é um filme de ritmo arrastado e trama inconsistente, valendo apenas pelas cenas entre Barrymore e Gustav von Seiffertitz, que interpreta o papel de seu tradicional inimigo, Professor Moriarty.
O Belo Brummel é uma opulenta mas estática versão da peça de Clyde Fitch valorizada pela atuação de Barrymore, cujas expressões faciais e maneirismos, descrevem maravilhosamente a impertinência e a insolência do dândi arrivista do século dezenove, amigo do Prince of Wales.
Primeiro filme com trilha musical sincronizada (e alguns efeitos sonoros). Don Juan apresenta cenários suntuosos e um Barrymore inspirado ao assumir os traços do célebre libertino de Tirso de Molina; além das belas cenas de sedução, o ator (com a ajuda ocasional de um dublé) desempenha cenas atléticas capazes de satisfazer aos fãs de Douglas Fairbanks, destacando-se sob este aspecto o combate a cavalo entre Don Juan e uma horda de soldados e o excepcional duelo com Montagu Love nas escadarias do palácio
Em Amor de Boêmio, Barrymore é quase ofuscado pela direção de arte de William Cameron Menzies com seus cenários gigantescos em linhas expressionistas porém ele consegue se impor no papel do poeta e aventureiro da França medieval, principalmente na cena em que Villon é coroado O Rei dos Tolos e vestido de palhaço e na cena de sua reação ao banimento que lhe foi imposto pelo seu amado Rei Luis XI – usando somente o seu rosto, Barrymore exprime o que muitos atores, usando todo o corpo e a voz seriam incapazes de transmitir.
Quando um Homem Ama, é uma adaptação livre da história do Abade Prevost com altos valores de produção e um Barrymore altivo e corajoso nas cenas do jogo de cartas com Luis XV, vigoroso nas cenas de ação a bordo do navio prisão (dignas de um Michael Curtiz) e em perfeita alquimia com Dolores Costello nas cenas de amor.
Em Tempestade, Barrymore, se sai bem (numa determinada cena ele muda da fúria para a afeição com a maior facilidade), apesar do script fraco (sobre a obsessão de um oficial de cavalaria de origem humilde por uma arrogante princesa durante a Revolução Russa); a grande atração do filme é a fotografia de Charles Rosher complementada pela direção de arte brilhante de William Cameron Menzies.
Amor Eterno é um melodrama romântico de final trágico, sem uma grande contribuição de Barrymore para a arte interpretativa mas muito bem servido pelas lentes de Oliver T. Marsh (que soube tirar vantagem da pitoresca aldeia suíça e da deslumbrante paisagem montanhosa que a cerca) e por alguns toques de Lubitsch nesse filme pouco lubitschiano.
Quando chegou o cinema sonoro, a voz treinada nos palcos (e por uma excelente professora de fonética, Margaret Carrington, irmã de Walter Huston) de Barrymore adicionou uma nova dimensão ao seu trabalho cinematográfico. Ele estreou nos talkies com uma leitura do solilóquio do Duke of Gloucester (depois Richard III) extraído do Ato III, cena 2 da peça Henry VI de Shakespeare, no musical revista da Warner Bros. A Parada das Maravilhas / The Show of Shows / 1929 e, subsequentemente, participou de mais 34 filmes falados.
Desses 35, eu conheço 25, encantando-me com suas aparições como Richard III no musical citado; como Svengali em Svengali / Svengali /1931; como Vladimar Ivan Tsarakov em O Genio do Mal / The Mad Genius / 1931; como Arsène Lupin em Arsene Lupin / Arsène Lupin / 1932; como The Baron em Grand Hotel / Grand Hotel / 1932; como Tom Cardigan em O Promotor Público / State’s Attorney / 1932; como Hilary Fairfield em Vítimas do Divórcio / A Bill of Divorcement / 1932; como o príncipe Paul Chegodieff em Rasputin e a Imperatriz / Rasputin and the Empress / 1932; como Professor Auguste A. Topaze em Topaze / Topaze / 1933; como Archiduke Rudolf von Habsburg em Reunião em Viena / Reunion in Vienna / 1933; como Larry Renault em Jantar às Oito / Dinner at Eight / 1933; como Riviere em Asas da Noite / Night Flight / 1933; como George Simon em O Conselheiro / Counsellor at Law / 1933; como Oscar Jaffe em Suprema Conquista / Twentieth Century / 1934; como Mercutio em Romeu e Julieta / Romeo and Juliet / 1936; como Nicolai Nazaroff em Primavera / Maytime / 1937; como Colonel Neilson em Bulldog Drummond Reaparece / Bulldog Drummond Comes Back / 1937; como Colonel Neilson em A Vingança de Bulldog Drummond / Bulldog Drummond’s Revenge / 1937; como Charles “Charley” Jasper em Confissão de Mulher / True Confession /1937; como Colonel Neilson em Bulldog Drummond em Perigo / Bulldog Drummond’s Peril / 1938; como Louis XV em Maria Antonieta / Marie Antoinette / 1938; como Windy Turlon em Lobos do Norte / Spawn of the North / 1938; como Governor Gabby Harrigan em Agarrem esta Normalista / Hold That Co-ed / 1938; como Gregory Vance em O Grande Homem Vota / The Great Man Votes / 1939; e como Georges Flammarion em Meia-Noite / Midnight / 1939. Gosto de todas essas interpretações de Barrymore mas não posso deixar de destacar as melhores que, na minha opinião, ocorreram nos filmes Svengali, Vítimas do Divórcio, O Conselheiro, Suprema Conquista e Meia-Noite.
Em Svengali, Barrymore encarnou com imenso prazer o músico e hipnotizador húngaro criado por George Du Maurier, sob cujo domínio sinistro a encantadora e dócil Trilby (Marian Marsh) se torna uma grande cantora internacional. A performance de Barrymore, ajudado pela maquilagem e um truque fotográfico (sempre que Svengali exerce o seu poder hipnótico sobre a pobre Trilby, as iris de seus olhos se transformam em dois buracos brancos) está entre suas maiores caracterizações no cinema. Jamais me esquecí da cena final, passada num cabaré no Cairo, quando Svengali, com o coração enfraquecido, rege a orquestra enquanto Trilby canta. De repente, ele desfalece e, neste mesmo instante, Trilby perde a voz e desmaia. Antes de morrer, ele pede a Deus que lhe conceda na morte o que não lhe concedeu na vida: “a mulher que eu amo”. Svengali exala o último suspiro dizendo: “Avanti Signori” (o extraordinário ator fala várias frases em francês, alemão e italiano durante o espetáculo) e, logo depois, como uma resposta ao seu pedido, Trilby morre.
Vítimas do Divórcio mostra Barrymore como um músico que escapa de um hospital psiquiátrico, no qual foi internado anos atrás, vítima de neurose de guerra. O paciente fugitivo retorna ao seu lar, para saber que sua esposa havia se divorciado dele e estava prestes a se casar de novo. Ele implora em vão à esposa (Binnie Barnes), para que o receba de volta. Sua filha Sydney (Katharine Hepburn), que era uma criança no tempo de sua, internação, também está noiva mas, após descobrir que uma veia de insanidade corre através do ramo paterno da família, ela rejeita seu noivo, incita a mãe a se casar imediatamente, e resolve ficar com o pai. Na cena do primeiro encontro do pai com a filha e, pouco depois, do marido com a esposa, Barrymore (sob o olhar atento de George Cukor) transmite com profunda emoção os sentimentos de um homem machucado, hesitante, gentil e confuso, que se tornou um intruso inoportuno de um passado distante. Alguns amigos íntimos de John detectaram na angústia e no páthos de seu desempenho nesse filme um reflexo de seu próprio terror obsessivo de que acabaria seus dias demente como Maurice Barrymore.
Em O Conselheiro, Barrymore está maravilhoso como o advogado judeu bem sucedido, que veio de um bairro pobre de Nova York, e agora enfrenta problemas profissionais e pessoais no seu belo escritório art déco no Empire State Building. Orientado por William Wyler (que imprimiu um ritmo rápido à narrativa de origem teatral), o ator conteve a sua tendência para a superrepresentação, oferecendo aos espectadores uma interpretação contida, realista e também bastante comovente – muitos críticos a consideram a melhor de toda a sua carreira cinematográfica.
Se George Simon de O Conselheiro foi a melhor interpretação dramática de Barrymore, o seu Oscar Jaffe, o egomaníaco diretor da Broadway de Suprema Conquista foi a mais engraçada. O delírio verbal e comportamental de Barrymore e a composição histérica de Carole Lombard (como a balconista ambiciosa Mildred Plotka, que Jaffe, à maneira de Pigmalião, transforma na grande atriz Lily Garland) nesta comédia screwball frenética de Howard Hawks, são especialmente memoráveis. Os grande gestos e falas melodramáticos de Barrymore estão em perfeito acordo com o personagem e arrancam incessantemente o riso da platéia. O seu “Dinga-linga, ding” no começo dos ensaios e suas enfernizantes marcações com o giz; sua frase “I close the iron door on you” sempre que briga com um de seus auxiliares; sua personificação de um cavalheiro sulista para poder entrar no trem e depois o lamento : “I never taught that I should sink so low as to become an actor”; sua fúria quando descobre que Lily o deixou por Hollywood (ele grita “Anathema! … Child of Satan!” depois de manchar com tinta preta o nome dela nos cartazes da peça); e a sua imitação de um camelo bastam para demonstrar o vigor cômico de Barrymore. O desenlace hilariante transcorre no trem expresso Twentieth Century entre Chicago e Nova York. Sabendo que a sua Galatéia, tendo se livrado de sua dominação, é agora uma estrela de Hollywood e está a bordo, Jaffe finge sofrer um ataque cardíaco. Seu fingimento no leito de morte desperta tanto a compaixão de Lily que, para atender a um último pedido do “moribundo”, ela assina um contrato, colocando-se novamente sob seu poder. De repente ele abre os olhos e a ludibriada Lily emite um urro de raiva enquanto Jaffe aperta o documento no seu peito, triunfante.
Os roteiristas Charles Brackett e Billy Wilder impregnaram Meia-Noite de sofisticação e cinismo e permitiram a Mitchell Leisen realizar sua obra-prima. Claudette Colbert é uma cantora de boate americana, sem dinheiro em Paris, contratada por um aristocrata ciumento (John Barrymore), para se fazer passar por uma condessa húngara e seduzir o gigolô (Francis Lederer), que está namorando a mulher dele (Mary Astor); só que o plano é complicado pela intervenção de um chofer de taxi (Don Ameche), apaixonado pela americana. Nesta história de falsários (todo o mundo mente ninguém é o que pretende ser) os quiproquós se encadeiam num andamento ágil mas dando tempo para que possamos nos deliciar com uma irresistível Claudette e com as expressões fisionômicas divertidas e as frases maliciosas de Barrymore.
Nos meados dos anos trinta, o ator começou a ter dificuldade de se lembrar dos textos, deficiência já evidente em um teste que ele fez para uma versão cinematográfica abortada de Hamlet em 1934. Daí em diante, ele insistiu para ler seus diálogos em quadros negros, que os assistentes de direção seguravam atrás das câmeras.
Barrymore gastou a maior parte de sua vida bebendo com seus amigos íntimos e destruindo seus quatro casamentos (com a atriz Katherine Corri Harris; com a poetiza Blanche Oelrichs, que usava o nome literário de Michael Strange; com a atriz Dolores Costello; e com a modelo Elaine Barrie, nascida Jacobs). Com Blanche ele teve uma filha, Diana e com Dolores, uma filha, Dolores Mae e um filho, John Sidney Barrymore, Jr. (que depois mudou o nome para John Drew Barrymore). John Drew foi o pai de Drew Barrymore.
Seu estilo de vida temerário deixou-o praticamente sem um centavo. Em vez de pedir falência, ele optou por pagar suas dívidas, fazendo caricaturas grosseiras de si mesmo em filmes B (vg. Eterno Don Juan / The Great Profile / 1940) e em programas de rádio.
John Barrymore faleceu de cirrose hepática em 29 de maio de 1942. Durante uma daquelas transmissões radiofônicas, ele entrou numa espécie de transe e, deixando o script de lado, começou a recitar um trecho do solilóquio de Hamlet. As pessoas no auditório da estação ficaram encantadas com o poder de sua performance e aplaudiram entusiasticamente. Barrymore sorriu, enxugou uma lágrima que escorria pelo seu rosto e disse: “These tears taste like bad gin”.