Arquivo mensais:janeiro 2012

HERÓIS DOS QUADRINHOS NOS SERIADOS SONOROS AMERICANOS

Desde o sucesso fenomenal de Superhomem / Superman: The  Movie / 1978 de Richard Donner, as transposições cinematográficas das histórias em quadrinhos estão aumentando cada vez mais nos últimos anos e se adaptando às tendências dos novos tempos.

Os modelos hollywoodianos dos seriados dos anos 30 e 40, que reproduziam os personagens dos comics tal como eram desenhados naquela época, não são mais utilizados, pois os enredos e as visualizações dos heróis foram mudando nos próprios quadrinhos, impondo-se a figura de um herói mais dark e mais  complexo psicologicamente.

Além disso, os recursos de produção B dos antigos serials não podem ser comparados aos dos blockbusters atuais com a sua tecnologia de efeitos especiais espetaculares e ritmo vertiginoso.

Mas, tanto os fãs dos seriados tradicionais como os admiradores das recentes superproduções, reclamam sempre quando não encontram nas telas os heróis reproduzidos tal como eles foram ilustrados nas tiras dos jornais ou revistas ou nas graphic novels.

Acho que os jovens de antigamente eram mais indulgentes, aceitando as liberdades que as “fitas-em-série” tomavam com os personagens dos quadrinhos:  eles sabíam que o repórter de rádio Billy Batson não adquiriu seus poderes de Capitão Marvel durante uma expedição arqueológica; notaram que o Capitão América perdeu seu escudo, as asinhas nas têmporas, seu amiguinho Bucky  passou de soldado raso Steve Rogers a promotor de justiça Grant Gardner; perceberam que o Hércules subitamente ganhou um irmão gêmeo; ficaram decepcionados ao ver o Mandrake sem o bigode e a companhia da linda princesa Narda (o personagem Lothar permaneceu mas, em vez do gigante africano ele assumiu as feições de um asiático, interpretado pelo havaiano Al Kikume); estranharam a ausência do pigmeu Guran da tribo Bandar ao lado do Fantasma Voador, substituido que foi por um tal de Moku; e repararam que, na tela,  todo uniforme de herói tinha dobras, uma descoberta desconcertante, que nunca ocorria nas histórias em quadrinhos – porém ninguém perdia as sessões das duas horas aos sábados no cinema de seu bairro.

A Universal foi a primeira companhia a utilizar os serviços de um herói dos quadrinhos, no período sonoro, quando trouxe para a tela Tailspin Tommy (HQ: Glenn Chaffin, Hal Forrest), em duas aventuras aéreas: O Rei das Nuvens / Tailspin Tommy / 1943 e O Grande Mistério Aéreo / Tailspin Tommy in the Great Air Mystery / 1935. No primeiro seriado, Tommy Tompkins (Maurice Murphy), um mecânico de automóvel, é escolhido pelo piloto Milt Howe (Grant Withers) da Three Points Airline, para voar com ele numa corrida contra o tempo, a fim de obter um contrato de entrega de correspondência. Milt ganha o contrato mas neste processo desperta a animosidade  de Tiger Taggart (John Davidson),  que quer ver a ruina da Three-Points. Tommy logo se torna um piloto da companhia e, sempre acompanhado de seu amigo Skeeter (Noah Beery Jr.) e sua namorada Betty Lou Barnes (Patricia Farr), combate os piratas aéreos de Taggart. No segundo seriado, Tommy (Clark Williams), Skeeter (Noah Beery Jr.) e Betty (Jean Rogers), ajudados por um piloto mascarado (Pat O’Brien) que surge inesperadamente  nos céus, frustram um plano concebido por dois indivíduos inescrupulosos para roubar valiosas reservas de petróleo situadas numa ilha da America Central.

Em 1936, a Universal comprou os direitos de um pacote de histórias em quadrinhos do King Features Syndicate. Encabeçando a lista estava Flash Gordon (HQ: Alex Raymond). O estúdio investiu muito dinheiro ao transferir o personagem de Alex Raymond para a tela e a escolha de Buster Crabbe para interpretar o papel principal foi um toque de gênio dos seus executivos. Flash Gordon tornou-se o seriado mais popular da Universal e duas sequências foram filmadas: Flash Gordon no Planeta Marte / Flash Gordon’s Trip to Mars / 1938 e Flash Gordon Conquistando o Mundo / Flash Gordon Conquers the Universe / 1940.

Os companheiros e/ ou inimigos do herói todos conhecem: Dr. Zarkov (Frank Shannon); Dale Arden (Jean Rogers); Imperador Ming (Charles Middleton); Princesa Aura (Priscilla Lawson); Rei Thun (James Pierce), rival de Ming; legítimo soberano do Planeta Mongo, Príncipe Barin (Richard Alexander);  Príncipe Vultan (John Lipson),  líder dos homens alados; Kala, lorde de uma raça submergida de Homens Tubarões; e outros personagens fabulosos, inclusive o Orangopoid (Ray “Crash” Corrigan vestido de gorila). Apesar da pobreza dos efeitos especiais e do ritmo lento, o espetáculo tem uma atmosfera de aventura e fantasia adequada e um charme que persiste através dos tempos.

Do pacote do King Features também saíram:  A Sorte de Tim Tyler ou A Patrulha do Marfim /  Tim Tyler’s Luck / 1937 (HQ: Lyman Young), cuja ação transcorre na África, para onde vai Tim (Frank Thomas), à procura de seu pai (Al Shean), que achou, na região dos gorilas, um valioso cemitério de elefantes. Durante a viagem, Tim conhece Lora Lacey (Frances Robinson). A moça que saber o paradeiro de Spider Webb (Norman Willis), ladrão de diamantes responsável por um roubo, pelo qual seu irmão foi injustamente acusado. Auxiliado por amigos humanos (Sargento Gates / Jack Mulhal), Cabo Spud, que na versão dos quadrinhos para o Brasil chamava-se Tom e/ou Tok / Bill Benedict) e animais (a pantera negra Fang, o macaco Juju), Tim consegue liquidar Spider e seus asseclas e encontrar o tesouro em marfim, cobiçado pelos bandidos;  Ás Drummond / Ace Drummond / 1935 (HQ: Eddie Rickenbacker, Clayton Knight) mostrando John King como o aviador Ace Drummond, que procura identificar na Ásia um vilão chamado The Dragon (Arthur Loft) e, ao mesmo tempo, ajudar Peggy Trainor (Jean Rogers) a encontrar seu pai e uma montanha escondida contendo enorme quantidade de jade; X-9, o Agente Secreto /  Secret Agent X-9 / 1937 com Scott Kolk no personagem inventado por Dashiel Hammett e desenhado inicialmente nos quadrinhos por Alex Raymond, à procura das jóias roubadas da coroa da Belgrávia, auxiliado pela jovem Shara Graustark (Jean Rogers) – outra versão foi feita em 1945, com o mesmo título em inglês, mas traduzido para o português como O Agente Secreto X-9, com Lloyd Bridges lutando contra os agentes do Eixo; Jim das Selvas / Jungle Jim / 1937 (HQ: Alex Raymond), no qual Jim (Grant Withers) e seu amigo Malay Mike (Raymond Hatton) procuram Joan (Betty Jane Rhodes), jovem branca criada na África, herdeira de uma fortuna na América e adorada pelos nativos como uma deusa. Evelyn Brent, atriz  do cinema mudo, faz o papel de Shanghai Lil, irmã do Cobra; Rádio Patrulha / Radio Patrol / 1937 (HQ: Eddie Sullivan, Charlie Schmidt) com Grant Withers no papel do Sargento Pat O’Hara, tentando solucionar um crime estranho, motivado por uma disputa pelo controle de uma fórmula para criar “aço flexível à prova de balas”; e, finalmente, Red Barry / Red Barry / 1938 (HQ: Will Gould) trazendo de volta Buster Crabbe como o detetive Red Barry envolvido,  juntamente com a jornalista Mississipi (Frances Robinson), numa trama sobre o roubo de dois milhões de dólares em ações, destinados à compra de aviões de combate para uma nação asiática.

As adaptações de quadrinhos restantes da Universal consistiram em duas aventuras navais, Don Winslow na Marinha / Don Winslow of the Navy / 1942 e Don Winslow na Guarda Costa / Don Winslow of the Coast Guard / 1943 (HQ: Comandante Frank V. Martinek, Tenente Leon A. Beroth, Carl Hammond),  nas quais o intrépido herói  (Don Terry) combate o espião chamado Scorpion (Nestor Paiva, Kurt Hatch); Buck Rogers / Buck Rogers / 1939 (HQ: Phil Nolan, Dick Calkins), uma tentativa  de repetir o êxito de Flash Gordon com o mesmo Buster Crabbe no papel principal, buscando,  na companhia de seu amiguinho Buddy (Jackie Moran), ajuda em Saturno, para livrar a Terra de Killer Kane (Anthony Warde) e um bando de supergângsteres do século 25; e Aventuras de Chico Viramundo / Adventure’s of Smilin’ Jack / 1943, (HQ: Zach Mosley) focalizando as peripécias  do piloto Smilin’ Jack  (Tom Brown) e seus amigos Tommy Thompson (Edgar Barrier) e Capitão Wing (Keye Luk) do Exército chinês, prejudicando os planos da espiã alemã, Fraulein von Teufel (Rose Hobart) e de seu capanga Kageyama (Turhan Bey), que desejam descobrir uma estrada secreta entre a China e a Índia, informação importantíssima em tempo de guerra. Na tela, o personagem de Zack Mosley (que na tradução dos quadrinhos no Brasil  recebeu o nome de Jack do Espaço), perdeu o bigode e alguns companheiros pitorescos (vg. o cozinheiro Fat Stuff, um caçador de cabeças regenerado dos Mares do Sul).

A Columbia, também fez adaptações dos comics, a começar por duas propriedades da King Features, que escaparam do pacote entregue à Universal: Mandrake e Terry e os Piratas. Em Mandrake, o Mágico / Mandrake, the Magician / 1939 (HQ: Lee Falk, Phil Davis), o mágico, interpretado por Warren Hull, impede que o bandido mascarado The Wasp, se apodere de uma máquina poderosa inventada pelo professor Houston (Forbes Murray). Em Terry e os Piratas / Terry and the Pirates / 1940 (HQ:  Milton Caniff), o Dr. Herbert Lee (J. Paul Jones), um arqueólogo americano, chefia uma expedição nas selvas da Asia, para descobrir uma civilização perdida. Ele é capturado por um chefe guerreiro mestiço Fang (Dick Curtis) e um bando de renegados brancos, que querem se apoderar do tesouro do templo de Mara. Terry (William Tracy), filho do professor e Pat Ryan (Granville Owen), assistente de seu pai, acompanhados pelo criado chinês Connie (Allen Jung) e pelo gigante Big Stoop (Victor De Camp), fazem amizade com o comerciante Allen Drake (Forrest Taylor) e sua filha Normandie (Joyce Bryant) e saem à procura do professor, envolvendo-se também com a Dragon Lady (Sheila Darcy), a guardiã do tesouro no Templo de Mara e inimiga de Fang.

Em 1943, o estúdio lançou O Morcego / Batman / 1943 (HQ:  Bob Kane, Bill Finger, Jerry Robinson), com Lewis Wilson como Bruce Wayne / Batman e Dick Grayson / Robin, (Douglas Croft) enfrentando o Dr. Daka (J. Carrol Naish), agente japonês, que prepara a conquista da América pela Nova Ordem do Eixo. Na trama aparecem ainda o fiel mordomo Alfred (William Austin) e Linda (Shirley Patterson), noiva de Wayne. Uma sequência, A Volta do Homem Morcego / Batman and Robin, foi feita seis anos depois com Robert Lowery como Batman e John Duncan como Robin, ajudando o Comissário de Polícia de Gotham City (Lyle Talbot) na sua busca por uma máquina de controle remoto roubada por um criminoso encapuzado, conhecido como The Wizard.


O melhor seriado da Columbia foi O Fantasma Voador / The Phantom / 1943 (HQ: Lee Falk, Ray Moore, Wilson McCoy) com Tom Tyler no papel de Godfrey Prescott, que se tornou o Fantasma, quando seu pai foi morto, continuando uma tradição transmitida de pai para filho há 400 anos. No enredo, o professor Davidson (Frank Shannon) e sua sobrinha Diana (Jeanne Bates) procuram na África a Cidade Perdida de Zoloz, onde deve estar escondido um enorme tesouro. Para localizá-la, é preciso manipular sete peças de marfim. Davidson possui três, um escroque chamado Singapore Smith (Joe Devlin) tem mais três; mas falta a mais importante para completar o quebra-cabeças: a que está pendurada no pescoço de um gorila (Ray “Crash” Corrigan). Ao mesmo tempo, o Dr. Bremmer (Kenneth Macdonald) pretende transformar Zoloz em uma base secreta para uma nação não identificada. Com o auxílio de seu cão Devil (Ace, The Wonder Dog, que nos quadrinhos traduzidos para o português chamava-se Capeto), o Fantasma  intervém para que e a paz volte a reinar na selva.


Os outros seriados da Columbia baseados nos quadrinhos foram: Brenda Starr, Repórter / Brenda Starr, Reporter / 1945 (HQ: Dalia (Dale) Messick) com Joan Woodbury no papel título, procurando uma mochila cheia de dinheiro roubada de um gângster, que ela, com a ajuda de seu amigo Tenente Larry Farrel (Kane Richmond) e de seu fotógrafo, Chuck Allen (Joe Devlin), acaba encontrando; O Terror das  Montanhas / The Vigilante / 1947 (HQ: Mort Wesinger, Mort Meskin), tendo como herói um agente secreto do governo que é na realidade, Greg Sanders (Ralph Bird), um astro de cinema especializado no gênero western. Uma missão o leva ao rancho do milionário George Pierce (Lyle Talbot), chefe de uma quadrilha conhecido como X-1, que prcoura um colar de pérolas amaldiçoado, chamado “as 100 lágrimas de sangue”; Brick Bradford / Brick Bradford / 1947 (HQ: William Ritt, Clarence Gray), com Kane Richmond personificando Brick. A pedido das Nações Unidas, ele tem que proteger o Interceptor Ray, um míssel que o Dr. Tymak (John Merton) está aperfeiçoando. Brick e seus amigos, Professor Salisbury (Pierre Watkin), a filha do professor, June (Linda Johnson) e Sandy Sanderson (Rick Vallin) são ameaçados pelos cúmplices de Laydron (Charles Quigley), que querem a invenção  para usá-la com fins maléficos. No decorrer da narrativa, Brick passa pela “Porta de Cristal”, inventada pelo Dr. Tymak, que o leva até a Lua, onde ele ajuda forças exiladas a vencerem seus opressores, os Lunários. De volta à Terra, Brick, através de uma cápsula do tempo, volta ao século dezoito na América Central,  a fim de obter uma fórmula  que o Dr. Tymak precisa, fabricada naquela época. Para isso, tem que lutar contra nativos e bucaneiros, antes de retornar são e salvo ao nosso planeta; Tex Granger / Tex Granger / 1948 (HQ: Lorence F. Bjorklund) com Robert Kellard como o “Midnight Rider of the Plains”  combatendo os malfeitores de Three Buttes ao lado de seu amiguinho Tim (Buzz Henry) e da corajosa jornalista Helen Kent (Peggy Stewart); Congo Bill / Congo Bill / A Rainha do Congo / 1948 (HQ: F. Whitney Ellsworth) traz Don McGuire como o treinador de animais Congo Bill à procura de Ruth Culver (Cleo Moore), herdeira de um circo desaparecida na África, que se tornara Lureena, uma rainha branca na selva; O Disco Voador / Bruce GentryDaredevil of the Skies/  1949 (HQ: Ray Bailey)  no qual Bruce (Tom Neal) impede que um disco voador mortífero, controlado eletronicamente por um agente inimigo conhecido como The Recorder (porque fala somente por meio de gravações) destrua o Canal de Panamá; O Falcão Negro / Blackhawk / 1952 (HQ: Charles Cuidera, Reed Crandall), tendo como centro das atenções o Falcão Negro (Kirk Alyn) e seus companheiros de esquadrão de nacionalidade diversas: Chuck, (John Crawford), Olaf (Don C. Harvey), Stanislaus (Rick Vallin), André (Larry Stewart), Hendrickson (Frank Ellis) e Chop Chop (Weaver Levy). Eles desbaratam os membros da International Brotherhood, organização devotada à espionagem, comandada por uma mulher Lasca (Carol Forman), sob as ordens de um chefão, conhecido apenas como The Leader (Michael Fox); e, encerrando a lista, Os Mistérios da África / King of the Congo / 1952 (HQ: Frank Frazetta) com Buster Crabbe num papel duplo: o Capitão Roger Drum da Força Aérea dos Estados Unidos e o Rei do Congo, Thunda. Roger abate um avião não identificado, cujo piloto se dirigia para a África a fim de entregar um microfilme para um grupo subversivo liderado por Boris (Leonard Penn). Quando seu avião sofre um desastre, Roger é resgatado pelo Povo da Rocha, chefiado por Pha (Gloria Dee). Por causa de sua força, Roger é rebatizado como Thunda, Rei do Congo e, no decorrer dos acontecimentos, ele enfrenta não somente Boris e seus homens como também uma tribo hostil, os Homens das Cavernas.


Os maiores êxitos da Columbia foram Super-Homem / Superman / 1948 e O Homem Atômico contra o Super-Homem / Atom Man vs. Superman / 1950 (HQ: Jerry Siegel, Joe Shuster) com Kirk Alyn como Clark Kent, enfrentando (como Super-Homem) respectivamente a Spider Lady (Carol Forman) e Lex Luthor (Lyle Talbot), sem que seus colegas do Planeta Diário, Lois Lane (Noel Neill) ,Jimmy Olson (Tommy Bond) e Perry White (Pierre Watkin) soubessem que ele era “O Homem de Aço”. Os efeitos especiais funcionaram convincentemente em muitas proezas; porém, no que se refere às cenas de vôo, o produtor preferiu utilizar o desenho animado, prejudicando a credibilidade. Super-Homem tornou-se um tremendo sucesso financeiro, chegando a ser exibido em cinemas de primeiro lançamento, que nunca programavam seriados.



A Republic, a melhor das companhias produtoras de seriados, percebeu desde cedo que era mais barato desenvolver seus próprios personagens do que pagar direitos e entrar em discussões legais com obstinados donos dos copyrights. Entretanto, o estúdio dedicou dez das suas 66 produções aos heróis dos quadrinhos e, em cada caso,  acertou no alvo comercial e artisticamente.

Quatro dessas aventuras tinham Ralph Byrd  como o célebre detetive Dick Tracy e, na medida em que os seriados se sucediam, aumentava a qualidade das produções: Dick Tracy, o Detetive / Dick Tracy / 1937, A Volta de Dick Tracy / Dick Tracy Returns / 1938, Dick Tracy contra o Crime / Dick Tracy’s vs. G-Men / 1939 e Novas Aventuras de Dick Tracy / Dick Tracy vs. Crime Inc. / 1941 (HQ: Chester Gould). Em cada seriado, Tracy enfrentava um curioso vilão: The Lame One (Edwin Stanley), Pa Stark (Charles Middleton), Zarnoff (Irving Pichel) e The Ghost (Ralph Morgan);  Aventuras de Red Ryder / Adventures of Red Ryder /1940 (HQ: Fred Harman), um seriado bastante movimentado em cujo entrecho Red Ryder (Donald Barry), com a  ajuda de Little Beaver (Tommy Cook) e seus outros amigos, elimina os bandidos que assassinaram seu pai e queriam controlar o território de Mesquita, onde seria construida uma estrada de ferro. O personagem da história em quadrinhos que deu origem ao seriado intitulava-se Bronc Piler e depois passou a ser Red Ryder; no Brasil ele ficou conhecido como Bronco Piler e Little Beaver como Filhote de Castor. Donald Barry não gostava de interpretar Red Ryder, porque achava que tinha sido mal escolhido para o papel; porém  a maioria de seus fãs lembram-se dele com o apelido que adquiriu graças ao seriado: Don “Red” Barry; Allan Lane ficou famoso na Republic como um astro do western B nos anos seguintes, mas suas primeiras experiências nos filmes de ação foram em O Rei da Polícia Montada / King of the Royal Mounted / 1940 e Polícia Montada contra a Sabotagem / King of the Mounties / 1942 (HQ: Zane Grey, Allen Dean, Charles Flanders, Jim Gary), dois seriados excitantes nos quais o Sargento King (Allan Lane) da Polícia Montada Canadense lutava contr a Quinta Coluna.

A Republic tentou comprar os direitos de Superman em 1940, mas quando seus executivos viram que não iam conseguir, voltaram-se para um outro super-herói:  Capitão Marvel. Tom Tyler foi uma escolha perfeita para interpretar o papel título em O Homem de Aço (no Brasil curiosamente deram ao Capitão Marvel este título em português que deveria caber ao Super-Homem) / The Adventures of Captain Marvel, (HQ: Bill Parker, C.C. Beck, Jack Kirby, Otto Binder) assim como Frank Coghlan Jr. se parecia razoavelmente com Billy Batson. No seriado, como assistente de operador de rádio de uma expedição cientifica no Sião, Billy é o único do grupo que não penetra na câmara proibida  de um tumba sagrada e, por isso, recebe do velho guardião do templo, Shazam, o poder mágico de se transformar no indestrutível Capitão Marvel. Assim, ele vai enfrentar o Escorpião  – na realidade um dos membros da expedição, professor Bentley (Harry Worth) -, para impedir que este se apodere de uma arma perigosíssima encontrada na tumba. Trazer um herói sobre-humano dos quadrinhos para as telas, de um modo que a plateia o aceitasse, não era uma tarefa fácil, porém a Republic desempenhou-a com louvor. O que mais chama a atenção no seriado – um dos melhores de todos os tempos – são as cenas de vôo do Capitão Marvel, que parecem absolutamente reais graças aos efeitos especiais de Howard Lydecker e das acrobacias do excelente dublê David Sharpe.

Quando o estúdio Republic adquiriu os direitos do Capitão Marvel da Fawcett Publications, também ficou  autorizada a transpor The Spy Smasher (chamado de Hércules no quadrinhos brasileiros) para o celulóide no seriado O Terror dos Espiões / Spy Smasher / 1942 (HQ: Bill Parker). Neste, Kane Richmond interpreta dois papéis, como Allan Armstrong (nome verdadeiro do herói uniformizado) e como seu irmão gêmeo Jack. Ambos combatem o Máscara / The Mask (Hans Shumm), o chefe de uma rede de espionagem alemã na América. Eles protegem o Almirante Corby (Sam Flint) , pai da noiva de Jack, Eve (Marguerite Chapman) e contam com a colaboração de Pierre Durand (Frank Corsaro), combatente da França Livre. O seriado é excelente, não só pelos efeitos especiais e pela ação dos dublês, mas também porque tem uma trama bem construída, boas caracterizações e uma fotografia até, em certos momentos, artística.

No cinema, o Capitão América ficou sem Bucky, seu jovem companheiro, seu escudo e as asinhas adornando sua máscara. Por causa do método do estúdio de tratar as sequências de briga, estes três itens presentes na história em quadrinhos foram considerados um obstáculo e, portanto,  desprezados. Capitão América, o Vencedor / Captain America / 1944 (HQ: Jack Kirby, Joe Simon) com Dick Purcell, interpretando o papel principal, tem como vilão, o Dr. Maldor (Lionel Atwill), curador do Museu Drummond, que, chamando-se a si próprio de O Escaravelho, de posse de uma arma de grande poder destrutivo, o Vibrador Dinâmico, procura a outra parte de um mapa que conduziria ao tesouro dos maias. O Capitão América que, é na realidade o promotor público Grant Gardner, intervém e, com a ajuda de sua assistente Gail Richards (Lorna Gray), impede que os objetivos do Escorpião se concretizem. As cenas de briga, embora repetitivas e previsíveis quanto aos momentos em que iam acontecer, foram o ponto alto do seriado, sobressaindo o trabalho notável do stuntman Dale Van Sickel, que dublou Dick Purcell nas cenas de pancadaria e em vários lances emocionantes.

Outros seriados tiveram como personagens heróis dos quadrinhos, tais como O Guarda Vingador / The Lone Ranger / Republic, 1938; A Volta do Cavaleiro Solitário / The Lone Ranger Rides Again / Republic, 1939; A Sombra do Terror / The Shadow / Columbia, 1940; O Besouro Verde / The Green Hornet / Universal, 1940; Capitão Meia-Noite / Captain Midnight / Columbia, 1942; O Raio Destruidor / Hop Harrigan / Columbia, 1946, porém se originaram de programas de rádio, onde desfrutaram de maior popularidade.

Com Os Perigos de Nyoka / Perils of Nyoka / Republic, 1942, ocorreu que os quadrinhos, publicados como Nyoka, the Jungle Girl pela Fawcett Comics,  nasceram após o seriado. O personagem apareceu primeiramente no seriado A Filha das Selvas / The Jungle Girl / Republic, 1941, baseado vagamente em um romance de Edgar Rice Burroughs. Como foi a Republic que criou o nome de Nyoka, o estúdio ficou com o direito de filmar uma continuação, usando aquele nome, sem mais nenhuma ligação com Burroughs. Posteriormente, surgiu a comic strip da Fawcett.

Finalmente, com relação a Tarzan, embora tivesse sido objeto de uma HQ (Harold Foster, Burne Hogarth, Rex Maxon), ele foi basicamente um personagem dos romances de Edgar Rice Burroughs e por isso não incluímos Tarzan, o Tigre / Tarzan, the Tiger / Universal, 1929, Tarzan, o Destemido / Tarzan the Fearless / Principal / 1933 e Novas Aventuras de Tarzan / The New Adventures of Tarzan, Dearholt – Stout and Coen / 1935 entre os seriados advindos dos quadrinhos.

O CICLO EDGAR ALLAN POE DE ROGER CORMAN

Começando com O Solar Maldito / 1960 e terminando com O Túmulo Sinistro /  1965, Roger Corman dirigiu oito filmes em cores e tela larga, adaptados livremente das obras de Edgar Allan Poe e distribuídos pela American International Pictures (AIP), que obtiveram enorme sucesso comercial e respeito dos críticos.

Escritos por talentosos argumentistas como Richard Matheson, Charles Beaumont, Robert Towne, entre outros, esses filmes, impregnados de terror psicológico, contém semelhanças formais e temáticas suficientes para serem considerados oito variações da mesma história.

Edgar Allan Poe

Edgar Allan Poe

A literatura gótico-romântica de Poe, explorando o lado sombrio da experiência humana – morte, alienação, ansiedade existencial, pesadelos, fantasmas, várias formas de insanidade e melancolia – , apesar de algumas discrepâncias radicais entre os textos dos contos (ou poemas) originais e o enredo dos filmes, encontrou um intérprete compreensivo em Corman, que soube manter o espírito do genial escritor.

A encenação dos filmes de Poe deve-se muito aos cenários bem detalhados do diretor de arte e desenhista de produção Daniel Haller. A um custo médio de 200 a 300 mil dólares (duas ou quatro vezes mais do que os orçamentos de Corman nos anos cinquenta) a série Poe tem um aspecto surpreendentemente luxuoso. Haller também merece crédito pela qualidade expansiva dos cenários, contruidos para dar à câmera o máximo de liberdade de movimento.

Esta liberdade de movimento é traduzida pelos fotógrafos Floyd Crosby , Nicolas Roeg e Arthur Grant (Crosby colaborou em todos os filmes da série menos nos dois últimos, que ficaram a cargo respectivamente de Roeg e Grant) por meio de uma grande quantidade de travelings e gruas, particularmente durante aquelas sequências detalhando a descida do personagem nos lugares mais recônditos da casa. Algumas vezes, os fotógrafos usam um movimento de câmera pouco comum como o zip pan (chicote), para enfatizar uma revelação chocante como, por exemplo, na cena final de A Mansão do Terror, Elizabeth Medina encerrada na caixa de ferro ou a primeira aparição de Verden em O Túmulo Sinistro.

O uso de efeitos especiais foram aperfeiçoados nesses filmes. A Mansão do Terror mostra talvez a utilização mais ambiciosa desses efeitos nas sequências de retrospecto, com as imagens tingidas de um azul fantasmagórico e alongadas para indicar o trauma do personagem, e especialmente durante a sequência culminante do filme, na qual as mudanças das cores vermelho, azul e verde contribuem para dar ainda mais relevância às já muito perturbadoras tomadas do pêndulo oscilante.

Mas o principal trunfo de Corman foi obviamente o ator Vincent Price (1911-1993) que, embora tivesse sido às vezes criticado por superrepresentar, tirou  excelente partido de sua voz suave e dicção perfeita, para expressar com exatidão os seres humanos atormentados e excêntricos dos filmes de Poe. Nunca, desde a Época de Ouro do Horror nos anos 30, um intérprete causou tanto impacto no gênero.

Acompanhei esta série famosa nos cinemas por ocasião do seu lançamento, reví depois em laser disc e recentemente em dvd.

O SOLAR MALDITO / THE FALL OF THE HOUSE OF USHER / 1960.

No século dezenove, após uma longa viagem, Philip Winthrop (Mark Damon) chega à mansão dos Usher à procura de sua noiva, Madeline (Myrna Fahey). Logo ele descobre que os sentidos de Roderick (Vincent Price), o irmão de Madeline, se tornaram dolorosamente aguçados enquanto que Madeline sofre de catalepsia. Roderick diz a Philip que a maioria dos seus  ancestrais sucumbiram à loucura e a uma morte horrível e que ele e Madeline estão morrendo. Após ter ouvido uma discussão entre Roderick e Madeline, Philip encontra-a morta no seu leito. Roderick enterra-a na cripta da família.  Achando que Madeline deve estar viva, Philip desce até a cripta e, quando abre o caixão, o corpo dela não está lá. Madeline despertara e encontrara forças para sair do caixão. Ela ataca Philip e depois Roderick, começando a estrangulá-lo. A casa começa a tremer e a se incendiar, até que desaba sobre os corpos de Roderick e Madeline. Com o auxílio de Bristol (Harry Ellerbe), o único criado dos Usher, Philip consegue escapar das chamas e do desabamento, e vê a casa afundar num lago.

O Solar Maldito foi o primeiro filme da série Poe e estabeleceu as convenções dos filmes que se seguiram. Ele marcou uma mudança decisiva na carreira do diretor sob várias maneiras: foi o primeiro dos seus filmes a despertar uma ampla (e na maioria das vezes positiva) reação crítica; assinalou sua passagem da realização de filmes baratos para os orçamentos mais caros; e lhe deu oportunidade de manifestar seu talento no uso da cor e para a encenação.

Tal como os filmes seguintes da série, o espetáculo cinematográfico diverge da obra original. O narrador da história no conto de Poe é um amigo de infância de Roderick,  que agora  se tornou Philip Winthrop, noivo de Madeline. A introdução deste personagem, amante putativo de Madeline, complica a relação de amor e ódio, pseudo-incestuosa entre ela e seu irmão Roderick, formando-se um triângulo letal entre dois homens e a mulher que ambos querem possuir.

A primeira convenção que o filme estabelece é a introdução de um personagem “normal” num ambiente extraordinário estigmatizado por imagens de morte e decadência. Aqui esse personagem é Philip, mas o mesmo tipo aparece em A Mansão do Terror (Francis Barnard), A Orgia da Morte (Francesca) e O Túmulo Sinistro (Rowena). A chegada desse personagem gera um conflito clássico entre o Bem e o Mal, um conflito que deve terminar na destruição do mundo maléfico e corrupto habitado por Usher ou Medina ou Prospero ou Verden Fell.

Outro personagem importante que o filme traz para a série é Roderick Usher, o esteta com uma sensibilidade mórbida, cabelos “de uma maciez qual teia de aranha”, rosto pálido e aparência frágil, que lhe fazem parecer um defunto. Roderick rejeita o mundo exterior, enclausurando-se na sua mansão, onde criaturas  insólitas, dedilha lânguidamente um alaúde e mantém um controle estranho sobre Madeline.

Ele explica que todo o sangue dos Usher está corrompido e a coisa mais humana seria deixar que a linhagem se extinguisse. A mansão é carregada de lembranças e fatos passados (parece que toda a transmissão genética da família teria ocorrido incestuosamente) e o medo de Usher está ligado a essas reminiscências. O título do conto é uma premonição da queda da casa, tanto da edificação em si quanto da família da qual Roderick e Madeline são os últimos descendentes. Quando fica claro que Madeline planeja desobedecer seu irmão e partir com Philip, Roderick encontra uma solução singular para o seu problema: ele pode mantê-la na casa ao mesmo tempo viva e morta. Philip ouve um grito depois de uma discussão entre Madeline e Roderick,  entra no quarto de Madeline, e vê Roderick, perto da cama da irmã, dizendo, “Ela está morta”. Durante o funeral, o filme mostra o que Roderick sabia: que Madeline estava de fato viva, mas num transe catalético. Ao colocá-la na cripta, Roderick procura eliminar seu objeto de desejo e as lembranças do passado; porém, mesmo após ser enterrada, Madeline continua a se manifestar por meio de ruídos e sons indefinidos até que, como uma fera enlouquecida, com os olhos vermelhos de sangue, ela sai do seu caixão e ataca o irmão. A destruição final da mansão remete à expiação de todos os erros e pecados mantidos ocultos por tanto tempo.

A MANSÃO DO TERROR / THE PIT AND THE PENDULUM / 1961.

Na Espanha do século dezesseis, Francis Barnard (John Kerr) chega ao castelo de Nicholas Medina (Vincent Price), o marido de Elizabeth (Barbara Steele), a irmã de Francis recentemente falecida. Francis fica sabendo que sua irmã estava deprimida pela atmosfera triste do castelo e passava a maior parte do tempo na masmorra construída pelo pai de Nicholas durante a Inquisição. O Dr. Charles Leon (Anthony Carbone), o melhor amigo de Nicholas, diz que Elizabeth  “morreu de medo”. Esta explicação não satisfaz Francis e ele decide permanecer no castelo por mais alguns dias. Uma noite, Nicholas ouve uma voz de mulher chamando seu nome e ele segue o som da voz até a sala de sepultamento, onde vê Elizabeth levantando-se do seu caixão. Ela se encontra com o Dr. Leon, enquanto a mente de Nicholas  entra em colapso, e os dois amantes regozijam-se de seu plano para deixá-lo louco e herdar sua fortuna. Transtornado, Nicholas subitamente assume a identidade de seu pai, luta com o Dr. Leon, que acaba caindo no poço do pêndulo, e tranca sua esposa infiel na caixa de ferro. Francis entra na câmara, é agarrado por Nicholas, e amarrado numa mesa sob um pêndulo oscilante e cortante. Porém, antes que a lâmina do pêndulo o alcance, ele é salvo pela irmã de Elizabeth, Catherine (Luana Anders) e pelo mordomo Maximilian (Patrick Westwood). Este luta com Nicholas que tem o mesmo fim do Dr. Leon, caindo no poço. Catherine resolve fechar a câmara de tortura para sempre – sem saber que dentro da caixa de ferro está a aterrorizada Elizabeth.

Enquanto que a história original de Poe aborda simplesmente  as experiências de um homem numa câmara de tortura da Inquisição Espanhola, o filme de Corman “abre” o original, tal como ocorre em todas as adaptações da série,  incorporando livremente elementos da intriga e/ou temas de outros contos do renomado escritor.

A Mansão do Terror começa, como O Solar Maldito, com a chegada de um personagem “normal”, Francis Barnard, à mansão de Nicholas Medina,  para investigar a morte misteriosa de sua irmã, esposa de Nicholas, Elizabeth. Mas, diferentemente de O Solar Maldito, que começa com uma tomada de estúdio, A Mansão do Terror se inicia com uma tomada exterior do oceano, quando Francis passa do mundo real para um mundo de corrupção e morte. No centro deste mundo encontra-se de novo uma figura frágil e atormentada, Nicholas Medina. E, como em  O Solar Maldito, a causa da agitação de Nicholas tem a ver com algo que ocorreu no passado.

À medida em que a trama se desenvolve, para justificar o diagnóstico do médico, segundo o qual Elizabeth morrera de medo, Nicholas conduz Francis, Catherine e Leon à câmara de tortura construída por seu pai, Sebastian, um Grande inquisidor da igreja espanhola (Vincent Price).

Num retrospecto, introduzido por uma tomada arcaica em íris e tingido de um azul fantasmagórico, uma Elizabeth de aparência sepulcral é vista inspecionando os objetos da câmara – a  roda, a caixa de ferro, os chicotes, os atiçadores – os seus longos dedos tocando-os sensual e vagarosamente. Subitamente, ouve-se um grito. Nicholas entra na câmara e vê Elizabeth trancada na caixa de ferro, com os olhos arregalados através da grade.

Em outro flashback, Catherine relata a traumática memória Edipiana que persegue  Nicholas: o menino Nicholas perambula pela câmara de tortura de seu pai e, escondido, presencia seu progenitor conduzindo sua mãe, Isabella (Mary Menzies) e seu amante / cunhado, Bartolome (Charles Victor) num “passeio” pelo museu assustador. As imagens, vistas pelo jovem Nicholas, tornam-se distorcidas quando seu pai pega um atiçador, golpeia Bartolome mortalmente,  começa a torturar sua mãe e depois a coloca na caixa de ferro. Catherine explica que seu irmão sente-se culpado pelo que ocorreu pois, em termos freudianos, ele não pôde “salvar” sua mãe do ataque mortífero do pai.

Uma noite, durante uma tempestade, Nicholas ouve sua mulher chamando-o e segue a voz de Elizabeth. Do caixão de Elizabeth levanta-se a criatura sangrenta de sua “mãe / esposa” (Nicholas não consegue mais distinguir uma da outra), que o insulta, rindo na sua cara, e ele cai no chão em estado de coma. Então chega o Dr. Leon, tornando-se Bartolome nesta reconstrução alucinatória do trauma primitivo. Elizabeth sorri ao abraçar o Dr. Leon, recriando simbolicamente a união sexual que levou o pai de Nicholas à loucura. O Dr. Leon declara Nicholas “morto” enquanto Elizabeth, ainda representando o plano dos dois para enlouquecer seu marido,  continua a escarnecer de Nicholas.

Quando ela  acaricia Nicholas com sua mão banhada de sangue, ele se levanta, renascido como seu próprio pai. “O que está acontecendo Isabella?”, ele diz. Beijando sua “mãe /esposa” Nicholas a empurra para a caixa de ferro. O doutor, aterrorizado, perde o equilíbrio, e cai no poço, mas ele é logo substituido na mente de Nicholas por Francis, que chegara até o local.

A cena final do filme é uma obra-prima de montagem. Nicholas enlouquecido amarra Francis na roda, sobre a qual está suspenso um pêndulo com uma lâmina em forma de meia-lua, que desce lentamente para cortar a vitima ao meio. Numa série de planos rápidos, alternados com mudanças de cor vermelha, azul e verde, o público assiste as roldanas e as engrenagens do terrível mecanismo em ação, a  face demente de Nicholas repreendendo seu “irmão”, a entrada de Catherine e do criado Maximilian, a luta entre Maximilian e Nicholas, a queda de Nicholas no poço, e o resgate de Francis das garras da máquina infernal.

OBSESSÃO MACABRA / THE PREMATURE BURIAL / 1962.

No século dezenove, Guy Carrell (Ray Milland), ajuda seu amigo, Dr. Gault (Alan Napier), a roubar um túmulo, a fim de obter um novo espécime para uma pesquisa científica. Quando abrem o caixão, um corpo em decomposição olha com os olhos fixos os intrusos e  sob a tampa do caixão estão as marcas sangrentas causadas pelas unhas do cadáver. Este acontecimento, combinado com o medo que há muito tempo ele tem de ser enterrado vivo, provoca em Guy uma grande depressão. Certo de que herdou de seu pai a condição de catalético, ele rejeita sua noiva Emily (Hazel Court), filha do Dr. Gault, e se retira com a irmã, Kate (Heather Angel), para a sua casa de campo, onde prefere pintar quadros satânicos e beber laudanum. Emily se recusa a ceder às fantasias mórbidas do noivo e o persuade a aceitar o matrimônio. Para mitigar seu medo, Guy constrói um mausoléu para si próprio, que dispõe de vários mecanismos de fuga, caso ele seja enterrado vivo. Ele tem um pesadelo, no qual isso acontece, e nenhum dos mecanismos de fuga funciona. Finalmente, ele cai num estado profundo de catalepsia, é enterrado vivo e, quando dois ladrões de túmulo desenterram seu caixão, suas mãos sangrentas os agarra, matando a ambos. Guy encontra Emily na cama com Miles Archer (Richard Ney), um amigo da família, deduzindo que sua mulher armara um plano para herdar sua fortuna. Ele arrasta Emily até o cemitério e a enterra viva. Antes que Guy possa matar também Archer, Kate chega, e põe um fim ao seu sofrimento com uma bala.

Alguns críticos reclamaram contra a substituição de Vincent Price por Ray Milland. Entretanto, a utilização de um ator realista como Milland ajuda mais a criar uma atmosfera de horror. Ao contrário de Price, que geralmente faz parte do mundo decadente que ele habita, Milland é uma pessoa normal envolvida em circunstâncias além do seu controle – a pessoa “real” encurralada num ambiente artificial. Enquanto que Roderick Usher e Nicholas Medina criaram o mundo em que vivem, Guy Carrell é a vítima deste mundo, no qual erra, paralizado pelo medo de ser enterrado vivo.

Os roteiristas deixam os espectadores em suspense, retardando a revelação de quem está querendo levar Carrell à  insanidade ou à morte. Eles sugerem que o próprio Guy pode ser o responsável, uma vez que ele é simultaneamente atraído e repelido pela morte; ou pode ser a misteriosa Kate, que aparece em determinados trechos da narrativa com se viesse de lugar nenhum, contradizendo as declarações de Carrell ou administrando-lhe laudanum (tal como Roderick Usher, Carrelll precisa tomar drogas para dormir); ou pode ser ainda Emily, embora o filme mostre a solicitude de seu personagem. Na verdade, a revelação final de que foi Emily que engendrou a morte de Carrelll, causa surpresa.

A melhor sequência é a do pesadelo, filmada com filtros azuis e verdes e marcada pela ausência de som. Carrell desperta dentro do seu caixão e não consegue abrir a tampa, até que ele cai no chão e se espatifa. Desesperado, Carrell tenta as opções de saída do mausoléu, e estas também falham: a escada de cordas se rompe; a dinamite vira cinza em suas mãos; e a sua “peça de resistência”, o cálice de veneno, contém apenas vermes.

Tal como Nicholas Medina, um acontecimento traumático – seu enterro e ressurreição – dá a Carrell uma nova personalidade, poderosa e violenta, determinada a punir seus inimigos. São quatro pessoas: os dois coveiros que tentaram desenterrá-lo para servir de espécime médico para o Dr. Gault; o próprio Dr. Gault; e Emily. Carrell estrangula os dois ladrões de túmulo; eletrocuta o cínico Dr. Gault  e, finalmente, aparece no quarto de Emily. Quando ela desmaia, Carrell a leva para o pântano e a enterra viva.

O cinegrafista Floyd Crosby mostra a sua capacidade pelos movimentos de câmera de caráter sonambúlico e seus close-ups catastróficos; os cenários de Daniel Haller expressam com perfeição a morbidez da história e o romantismo decadente do mundo de Poe / Corman; e Ray Milland dá uma contribuição notável ao espetáculo como intérprete, provando que a sua escolha como protagonista estava certa.

MURALHAS DO PAVOR / TALES OF TERROR / 1962.

MORELLA – Desde a morte de sua esposa, Morella (Leona Gage), Locke (Vincent Price) vive sozinho numa mansão sombria e afoga sua amargura no álcool. Um dia, recebe a visita de sua filha, Lenora (Maggie Pierce), a quem ele culpa pela morte da mãe, cuja saúde declinou rapidamente após o parto. Ao entrar no quarto de Morella, Lenora descobre o corpo mumificado da mãe. Lenora conta ao pai sobre sua doença terminal e sua incapacidade para amar os homens com os quais se relacionou, e os dois se abraçam ternamente. Numa noite, Locke ouve os gritos de Lenora, corre até o seu quarto e a encontra morta. Depois, ele vai ao quarto de Morella,  onde vê com horror o  fantasma de Morella se apoderando do corpo de Lenora. Locke derruba uma vela, causando um incêndio, e todos os três perecem nas chamas.

THE BLACK CAT – O alcoólatra Montresor (Peter Lorre) e o delicado Fortunato (Vincent Price) se encontram numa convenção de mercadores de vinho. Para escapar de Annabel (Joyce Jameson), sua esposa avarenta e, ao mesmo tempo, ter acesso à bebida sem pagar nada, Montresor desafia Fortunato para um concurso de prova de vinhos.  Fortunato acompanha Montresor à sua casa, conhece sua bela mas negligenciada esposa, e os dois se tornam amantes. Ao saber do adultério, Montresor põe uma droga no amontillado de Fortunato e o empareda juntamente com Annabel na adega de sua casa. O gato de Annabel, que Montresor odiava, foi também emparedado, sem que ele se desse conta. Quando um policial, a convite de Montresor, inspeciona a adega, os gemidos do animal denunciam o segredo do assassino.

THE FACTS IN THE CASE OF M. VALDEMAR – O Senhor Valdemar (Vincent Price) sofre de um tumor no cérebro e permite que o hipnotizador Carmichael (Basil Rathbone) o mantenha em um transe entre a vida e a morte,  para aliviar sua dor.  Porém Carmichael cobiça Helene (Debra Paget), a esposa de Valdemar que, embora apaixonada pelo médico de seu esposo, Dr. Elliot James (David Frankham),  permanece fiel ao marido. Enquanto o corpo de Valdemar agoniza em paz no seu leito, sua mente permanece sob o controle de Carmichael e este força o moribundo a consentir o seu casamento com Helene. Quando Carmichael  pressiona Helene fisicamente, seu poder sobre Valdemar cessa. Valdemar   levanta-se do seu leito de morte e estrangula o hipnotizador. Logo depois, o corpo de Valdemar começa a se decompor, até se transformar num líquido putrescente.

Muralhas de Pavor reúne três contos de Poe , “Morella”, The Black Cat”, The Cask of Amontillado” e “The Facts in the Case of M. Valdemar” e os combina em três episódios filmados.

O primeiro, Morella, prefigura O Túmulo Sinistro e, como em O Solar Maldito, a exploração de uma mansão gótica é uma metáfora para uma jornada psicológica. Neste caso, o explorador é a loura Lenora, cujo pai, Locke, a rejeita, enviando-a para um internato após a morte de sua mãe, a morena Morella (com as cores de cabelo opostas das duas mulheres Corman estabelece um contraste de luz e escuridão que é também comum na obra de Poe). Quando Lenora volta para casa seu pai a recebe friamente e diz para o retrato de Morella: “Sua assassina voltou”. Lenora explora a mansão de sua infância e encontra o corpo mumificado da mãe. A insinuação de necrofilia é óbvia quando o pai entra no cômodo e exclama: “Quando ela morreu, eu morrí com ela … tudo o que restou foi este cadáver ambulante”, apontando para si mesmo. Depois que Lenore morre, Morella, como se fosse um vampiro, suga a vida de sua filha, sua rival, e se reúne com seu marido – uma situação edipiana digna de Freud.

O segundo episódio, The Black Cat, combina o conto de Poe do mesmo nome com seu outro conto “The Cask of the Amontillado”. É  um tour-de-force cômico para Vincent Price como o delicado Fortunato e Peter Lorre como o alcoólatra Montressor. Ambos brindam o público com uma performance hilariante, que atinge o auge com a competição entre os dois provando vinho. Sem falar na visão surreal de uma sequência de sonho, na qual Fortunato e sua esposa jogam bola com a cabeça de Montressor.

O episódio final, The Facts in the Case of M. Valdemar, tem Basil Rathbone num desempenho arrogante maravilhoso. O filme se inicia com uma cena de hipnotismo, na qual as luzes vermelho, azul e amarelo vindas de uma lanterna passam ritmicamente sobre o rosto em primeiro plano do Senhor Valdemar e termina em um clímax memorável  com aquele efeito delisquescente.

Muralhas de Pavor foi um sucesso financeiro maior do que filme anterior, Obsessão Macabra. Corman afirmou que o lucro de 1 milhão e meio de dólares  encorajou-o a transformar o clássico de Poe, “The Raven”, num projeto de comédia de horror e a contratar os dois ( Price e Lorre) novamente”.

O CORVO / THE RAVEN / 1963.

No século quinze, o mágico estabanado Dr. Erasmus Craven (Vincent Price), lamenta a morte de sua esposa Lenore (Hazel Court). Uma noite ele se espanta com o aparecimento de um corvo falante, que vem a ser o Dr. Adolphus Bedlo (Peter Lorre), um pequeno mágico alcoólatra, irritadiço e também desastrado, transformado num pássaro, por ter desafiado o poder do mestre feiticeiro Dr. Scarabus (Boris Karloff). Depois que Craven o faz retornar à sua forma humana, Bedlo lhe informa que uma mulher parecida com Lenore está vivendo no castelo de Scarabus. Acompanhados pela filha de Craven, Estelle (Olive Sturgess) e pelo filho de Bedlo, Rexford (Jack Nicholson), os dois mágicos visitam o castelo e verificam que Lenore fingiu-se de morta, para se tornar amante de Scarabus. O mestre feiticeiro aprisiona seus hóspedes e ameaça torturar Estelle, a não ser que Craven revele os segredos de seus poderes mágicos. Bedlo, que na realidade era cúmplice de Scarabus, tenta romper seu acordo com o mestre feiticeiro e este o transforma em corvo novamente. Entretanto, o pássaro corta as cordas que prendem Craven, permitindo que ele desafie Scarabus para um duelo de mágica. Durante a formidável disputa, o castelo se incendeia e Scarabus e Lenore  emergem das ruínas, ela reclamando para seu resignado amante, sobre o estado em que ficou seu vestido. Craven leva o corvo para sua casa, mas não tem pressa em lhe devolver a forma humana.

Em O Corvo, Corman parodia o gênero do horror e especificamente a própria série Poe, reunindo e opondo Price, Lorre e Karloff em um conflito burlesco. Um exemplo é a cena em que o Dr. Erasmus Craven brinca com seus poderes mágicos, desenhando um corvo no ar com seu dedo. Quando a ave desaparece inesperadamente, Craven chora como uma criança que quebrou seu brinquedo favorito.

Com a chegada do corvo do poema de Poe, Craven (uma caricatura do hipersensitivo Roderick Usher)  lhe pergunta, tal como no poema, se ele verá de novo sua Lenore. A resposta do corvo, entretanto, não é o agourento “nunca mais” do original. Numa voz estridente e irritada, ele responde: “Como diabos é que vou saber? O que você pensa que eu sou, um adivinho?”.

O ponto alto do filme, no qual Craven e Scarabus se batem “num duelo até a morte”, é uma sucessão de efeitos especiais extravagantes, com os mágicos usando seus dedos telecinéticos para transformar objetos: uma cobra torna-se uma echarpe, um morcego transforma-se num leque japonês, uma bala de canhão atirada contra Craven explode no meio do caminho e se dissolve em confete. Scarabus dá vida às suas gárgulas de pedra e Craven as transforma em filhotes de cachorro latindo. O  torneio mágico aumenta de intensidade, envolvendo transformações cada vez mais elaboradas, até que o castelo se incendeia e suas paredes desabam em volta dos  mágicos.

O CASTELO ASSOMBRADO / THE HAUNTED PALACE / 1963.

Em 1765, no vilarejo de Arkham na Nova Inglaterra, Joseph Curwen (Vincent Price), com a ajuda de sua assistente Hester Tillinghast (Cathie Merchant), vem atraindo as moças da aldeia para o seu velho castelo, trazido da Espanha, “pedra por pedra” (que teria pertencido a Torquemada). Alí, segundo os habitantes da aldeia, Curwen ajuda um dos “deuses antigos” (que tem a forma de um grande réptil) a engravidar as virgens locais, numa tentativa de criar uma nova raça. Os aldeões, liderados por Ezra Weeden (Leo Gordon) e Micah Smith (Elisha Cook Jr.), invadem o castelo e Curwen é queimado vivo. Enquanto agoniza no meio das chamas, ele jura vingar-se dos algozes e seus descendentes. Em 1875,  Charles Dexter Ward (Vincent Price) e sua esposa Ann (Debra Paget) chegam a Arkham, para tomar posse do castelo de Curwen, que receberam de herança. Os moradores se mostram hostís e apenas o médico, Dr. Wlillet (Frank Maxwell) parece amigável. Ward descobre alguns mutantes que, de acordo com o Dr. Willet (Frank Maxwell), o médico da aldeia, são descendentes diretos das vítimas de Curwen.  Auxiliado pelo seu criado Simon Orne (Lon Chaney Jr.), Dexter , incorporando o espírito de Curwen, mata os descendentes de Ezra Weeden e de Micah Smith por meio de  fogo, ressucita Hester, e, finalmente, oferece Ann para o grande réptil; porém,  a esta altura, os aldeões, repetindo o passado, entram no castelo e o incendeiam. Ward recobra o controle de sua mente e liberta sua esposa. Quando Ann lhe pergunta se ele tem certeza de que está bem, Ward, de costas para a câmera, responde, “Estou absolutamente certo”; mas quando Ward se vira, seu rosto é a face arrogante de Curwen.

Este filme, cujo roteiro foi escrito por Charles Beaumont, colaborador constante da série de TV, Além da Imaginação / Twilight Zone / 1959-64, é usualmente citado como fazendo parte da série de Corman sobre Poe, porém o argumento é derivado de uma novela de H.P. Lovecraft chamada “The Case of Charles Dexter Ward”. A única conexão com Poe é o título, retirado de um de seus poemas, publicado em 1839 e mais tarde incorporado ao conto “The Fall of the House of Usher”.

O filme possui todos os elementos típicos do horror gótico como o imenso castelo sombrio localizado numa colina e perto de um cemitério e a aldeia misteriosa que causa medo aos seus visitantes (o condutor da carruagem que trouxe Ward e a esposa insiste para que eles não fiquem na vila). A cena antológica é aquela em que o casal está caminhando à noite pela ruas  de Arkham e são surpreendidos por um grupo de mutantes, pessoas que nasceram deformadas em virtude das experiências de Curwen ao inseminar as moças com as lendárias criaturas.

A ORGIA DA MORTE / THE MASQUE OF THE RED DEATH / 1964.

No século doze, na Itália, Prospero (Vincent Price), um príncipe adorador de Satã, manda enjaular dois camponeses, Gino (David Weston) e Ludovico (Nigel Green), por terem desafiado sua autoridade ao taxar os cidadãos. Francesca (Jane Asher), filha de Ludovico e noiva de Gino, suplica por suas vidas e Prospero concorda em poupar aquele que ela escolher. Mais tarde, o príncipe verifica que a peste da morte rubra chegou à aldeia e ordena que todas as casas da área infetada sejam queimadas. A doença obriga Pospero a se recolher no seu castelo e ele leva Francesca consigo, para que o veja entregando-se aos prazeres sádicos como parte de sua instrução em diabolismo. Juliana (Hazel Court), a amante do príncipe, fica com ciúmes de Francesca, mas ajuda-a na sua tentativa de libertar Gino e Ludovico. O plano falha e, como parte dos acontecimentos que precedem o baile anual de máscaras, o príncipe manda os dois homens se cortarem com cinco facas, uma das quais está envenenada. Ludovico perece pela espada do príncipe, ao tentar matá-lo e Gino é banido para a aldeia queimada. Este encontra uma figura estranha vestida de vermelho que o leva de volta ao castelo, instruindo-o para que aguarde do lado de fora por Francesca. Quando o intruso misterioso penetra no baile, Prospero e seus convidados morrem vitimados pela peste rubra enquanto Gino e Francesca são poupados.

A Orgia da Morte difere de seus predecessores por ser o primeiro filme da sequência de filmes Corman / Poe rodado na Inglaterra e o primeiro que não utiliza a sua equipe técnica costumeira (Daniel Haller como diretor de arte foi exceção). O uso de uma equipe britânica, e principalmente Nicholas Roeg no lugar de Floyd Crosby, mostra como as convenções da série se tornaram formalizadas – de modo que outros além dos criadores do “estilo Poe” puderam  trabalhar nos filmes, obtendo o mesmo resultado – e, por extensão, como os filmes foram um produto das idéias de Corman e de seus roteiristas. O esplêndido trabalho de câmera móbil de Roeg, por exemplo, tem antecedentes claros nos esmerados travelings e gruas em A Mansão do Terror enquanto que o uso de esquemas de cor e efeitos especiais tem precursores em O Solar Maldito e Obsessão Macabra.

O filme funde dois contos de Poe, a história título e “Hop-Frog” mas, apesar da eficiência do episódio de Hop-Frog em si (a vingança do anão artista contra Alfredo vestindo-o de macaco para o baile e então queimando-o vivo), ele não tem nenhuma relação com a história como um todo.

A Orgia da Morte contrasta duas sociedades opostas – os camponeses sofredores e os convidados ricos dissolutos no castelo –  e focaliza a disputa básica entre o Bem e o Mal, dentro de uma estrutura de questionamento religioso / existencial. Prospero se entrega ao  Satanismo, porém ele não é um admirador do demônio comum, abraçando o Mal pelo Mal. Ele escolheu Satã como uma alternativa mais realista para um Deus Cristão. No quarto preto ele diz para Francesca: “ Você pode olhar este mundo e acreditar na bondade de um deus que o governa? Fome, peste, guerra, doença, morte – elas dirigem o mundo”.

Corman mostra Prospero cometendo crimes abomináveis um atrás do outro: mandando queimar a aldeia dos camponeses; alvejando com flechas o casal de amigos que está procurando refúgio contra a peste; ordenando que seu falcão ataque e mate Juliana. Porém Prospero tem seus momentos de bondade: recusando assassinar uma criança ou implorando para que Morte poupe Francisca da carnificina durante uma dança macabra altamente estilizada no baile. Ela até, num ato de gratidão, beija Prospero na face, um gesto chocante considerando a posição de Prospero como o vilão do drama.

Beneficiando-se do aproveitamento dos cenários de Beckett, o Favorito do Rei/ Beckett / 1964 e influenciado pelo cinema de Ingmar Bergman, Corman elaborou uma mise-en-scène à altura da história do “diabólico” Prospero e suas tentativas de lograr a Morte Rubra (e a morte em geral). Algumas idéias foram tomadas emprestado literalmente de Poe,  por exemplo, os quartos monocromáticos, um amarelo, um roxo, etc., que terminam no quarto preto e vermelho, no qual Prospero adora o diabo. Outras cenas são visualizações originais como os “monges” mensageiros da morte que perambulam pela região rural, cada qual vestido com uma cor diferente.  Sem dúvida, A Orgia da Morte é mais rico em paleta de cores do que os filmes precedentes., sendo particularmente notável o uso do vermelho no traje da Morte Rubra, a encarnação da mortalidade humana, que Prospero tenta desesperadamente repelir.

O TÚMULO SINISTRO / THE TOMB OF LIGEIA / 1965.

Em 1821, Verden Fell (Vincent Price), usando óculos escuros que o protegem de “uma mórbida reação à luz do sol”, enterra sua esposa, Ligéia (Elizabeth Sheperd), no cemitério de uma igreja, apesar das objeções do pastor de que ela não era cristã. Um gato preto empoleirado no caixão, mia com força, e os olhos de Ligéia se abrem por um momento, antes da sepultura ser fechada. Algum tempo depois, Lady Rowena (Elizabeth Shepard), filha de um nobre proprietário rural, ao participar de uma caçada à raposa, cai do cavalo perto do túmulo de Ligéia. Verden aparece subitamente, e logo em seguida Christopher Gough (John Westbrook), admirador de Rowena. Verden leva Rowena até a abadia lúgubre onde vive, a fim de curar seus ferimentos. Rowena sente-se estranhamente atraída por Verden   e,  apesar

dele ter uma conduta reservada, os dois se casam. Após o retorno de sua lua-de-mel, o melancólico Vernon torna-se cada vez mais distante de Rowena. Esta começa a ter sonhos envolvendo o gato preto e Ligéia. Numa noite, ela descobre uma raposa morta na sua cama. Christopher suspeita de que algo estranho está acontecendo, exuma o caixão de Ligeia, e encontra uma figura de cera no seu interior.

Rowena abre as cortinas de uma cama, vê o corpo preservado de Ligeia, cai “acidentalmente” em seus braços num abraço mortal, e luta para se livrar de um véu negro que as envolveu. Neste momento, chegam Verden e depois Christopher e o criado de Verden, Henrick (Oliver Johnston). Henrick  revela o segredo de seu amo: no seu leito de morte, Ligéia hipnotizou Verden , “ela o prendeu com seus olhos” e o obrigou a “cuidar dela” mesmo depois da morte, a ressuscitar seu corpo e substituí-lo por um outro feito de cera, a fim de que “pudesse ser sempre sua esposa”. Rowena tenta ajudar Verden, assumindo a identidade de Ligéia, para libertá-lo da sujeição aquele controle póstumo. Rowena diz que está morrendo e desmaia. Verden abre a cortina do leito e vê Ligéia morta na cama. Ele carrega Ligéia e a joga no fogo da lareira. Surge repentinamente o gato preto, que cai sobre o corpo de Rowena. Verden o espanta. Rowena parece voltar à vida. Verden percebe um vulto vestido de gaze, caminhando em sua direção. Ele levanta o véu que o cobre e vê Ligéia, sorridente. Verden começa a estrangulá-la e ela ri dele. Verden pensa que se trata de Ligéia, mas é Rowena. Finalmente, Verden diz, “Eu sei quem é o culpado” e, enquanto entram Christopher e Henrick e levam o corpo de Rowena, Verden sai à procura do gato preto. O gato pula no seu rosto e Verden, com os olhos sangrando, esbarra num candelabro de pé, e provoca um incêndio. O gato mia, Rowena recobra a vida, e Verden e Ligéia perecem abraçados entre as chamas.

O Túmulo Sinistro foi o último filme da série de adaptações de obras de Poe feitas por Corman, rodado na Inglaterra, a maior parte em exteriores naturais perto da ruinas de Stonehenge e uma abadia de novecentos anos de idade, captadas em cores e esplêndido CinemaScope por Arthur Grant, fotógrafo habitual da Hammer.

O tema do filme é  a possibilidade de vencer a morte pela força da vontade. Numa cena particularmente arrepiante, Verden demonstra para seus convidados uma nova técnica conhecida como hipnotismo. Usando Rowena como sujeito de experiência, ele fica surpreso quando sua esposa hipnotizada fala com a voz de Ligéia (“Eu serei sempre sua esposa … sua única esposa”). Mas não fica claro se é a vontade de Ligéia ou a de Verden que a traz de volta do mundo dos mortos.

Depois de outras ocorrências espectrais, várias aparições do gato preto, uma  sequência de pesadelo e uma exumação reveladora, ocorre a apoteose do horror macabro, quando Rowena encontra Verden catatônico num quarto secreto da abadia, descerra as cortinas do leito de quatro colunas e vê o cadáver de Ligéia de braços abertos enrijecidos.

A sequência final é bastante complexa, com as identidades Rowena-Ligéia se alternando freneticamente, porém bem realizada em termos de cinema.

OS FILMES MUDOS DE FRITZ LANG

Sempre comprometido com a perfeição, Fritz Lang trouxe para a tela uma visão do mundo fatalista, expressa por meio de recursos visuais impressionantes e por uma narrativa econômica e fluente. Ele usou o cinema para explorar uma fascinação pessoal, para usar suas palavras, “pela crueldade, medo, horror e morte”. Lang se relacionou com mais de uma estética (expressionismo, realismo) e com vários gêneros (aventura exótica e de guerra, fantasia, ficção científica, drama criminal e social, western), influenciou diretamente seus contemporâneos (de Eisenstein a Hitchcock), e deixou a sua marca de grande cineasta na cinematografia de dois países e em duas fases da História da 7a Arte.

Friedrich Christian Anton Lang nasceu no dia 5 de dezembro de 1890 em Viena, filho do construtor Anton Lang e de Pauline (Paula) Schlesinger. Ele cursou a K und K Staatsrealschule – um dos melhores colégios secundários de Viena, que preparava rapazes da classe média para exercer cargos no serviço público, comércio ou em profissões técnicas – mas não passou nos exames finais. Em outubro de 1909, Lang se matriculou na Technische Hochshule, uma escola  técnica para estudos avançados nas ciências; porém não obteve a frequência necessária para poder fazer as provas.

Nesta ocasião, começou a trabalhar em dois cabarés, o Femina Revue Bühne e o Theaterkabarett Holle, criando pôsters para os mesmos. A fim de acalmar o pai, quando este soube que o filho estava negligenciando seus estudos, Lang disse ao seu progenitor que ia estudar pintura. Não se sabe se o rapaz fez isso mesmo ou pintou algum quadro; o trabalho artístico de Lang consistia principalmente de pôsters de cabarés, esboços e até cartões postais, para os quais havia uma longa tradição vienense. Todavia, Lang ressentia-se com o fato de ser  financeiramente dependente da boa vontade do pai e, após muitas brigas com ele, resolveu sair da casa paterna e de Viena.

Depois de passar por Bruxelas e Munich, Lang chegou no mês de abril de 1913 em Paris, onde estudou na Maurice Denis École de Peinture em Montparnasse durante o dia e frequentou aulas noturnas na Académie Julian. Ele voltou para Viena em agosto de 1914, e se alistou como voluntário no exército austríaco em 12 de janeiro de 1915, servindo numa divisão da artilharia. Lang foi condecorado mais de uma vez durante a guerra por atos de bravura, culminando com a permissão de usar a cruz militar, a Karl -Truppen – Kreuz.

Numa das ocasiões em que esteve hospitalizado, ele conheceu um “empregado de banco”, que era também compositor, e os dois começaram a escrever roteiros em parceria. Logo, este indivíduo (nunca identificado por Lang nas suas entrevistas) tornou-se somente seu agente e conseguiu fazer negócio com Joe May, dono da May-Film GmbH. May comprou e filmou dois roteiros de Lang, Die Hochzeit im Exzentrikklub / 1917 e Hilde Warren und der Tod / 1917 e, para May, Lang  escreveu o episódio final do seriado A Soberana do Mundo / Die Herrin der Welt.

O próximo passo importante na trajetória de Lang no cinema deu-se quando foi apresentado a Erich Pommer, fundador da Decla (Deutsche Éclair). Pommer ofereceu-lhe um emprego como Dramaturg – que abrangia as funções de leitor de roteiros e roteirista.

Em 1919, Lang escreveu roteiros para cinco longas-metragens dirigidos por Alwin Neuss e Otto Rippert (Neuss dirigiu Die Rache ist mein, Die Bettler – GmbH ; Rippert dirigiu: Die Frau mit den Orchiden, Totentanz, Die Pest in Florenz); colaborou com Wolfgang Geiger na redação do roteiro de Wolkenbau und Flimmerst (de diretor desconhecido); fez sozinho o roteiro de Lilith und Ly (dirigido por Erich Kober); estreou na direção com Halbblut (a história de uma mestiça, que dirige um cassino clandestino e, tentando fugir da Europa para o México com o produto de suas trapaças, é morta por uma de sua vítimas) e O Senhor do Amor / Der Herr der Liebe (cuja trama envolve um nobre húngaro e sua noiva, que se traem mutuamente, até que ele a mata e depois se suicida), ambos os filmes hoje considerados perdidos. O ano de 1919 foi também aquele em que Lang  (provavelmente, porque ninguém sabe ao certo) se casou com  Elisabeth (Lisa) Rosenthal e fez Die Spinnen (emduas partes)e Harakiri.

Em Die Spinnen – 1. Der Goldene See, o desportista e playboy Kay Hoog (Carl de Vogt) recolhe uma garrafa no mar. Ela contém uma mensagem  que revela o local do tesouro dos Incas no Lago Dourado. Kay Hoog fala sobre o tesouro no Clube Standard em San Francisco na presença da bela Lio Sha (Ressel Orla), que dirige a organização secreta das Aranhas, encarregada pelo Serviço Secreto da Índia de recuperar um diamante com a cabeça do Buda. Segundo a lenda, aquele que o possuir, libertará os povos da Ásia e se tornará o dono do mundo. Lio Sha, pensando que o diamante talvez estivesse no Lago Dourado, segue Kay Hoog, ocorrendo várias peripécias: Kay Hoog impede que Naela (Lil Dagover), a Sacerdotiza do Sol dos Incas, seja picada por uma serpente; depois, salva Lio Sha, que os Incas pretendem sacrificar à sua divindade; e finalmente o bando dos Aranhas morre na gruta onde está o tesouro, devido a uma inundação. Alguns meses mais tarde, em San Francisco, Lio Sha revela seu amor por Kay Hoog, mas ele se casara com Naela, e Lio Sha decide se vingar. Quando Kay Hoog retorna à cidade, encontra Naela morta sobre um arbusto florido de seu jardim com uma aranha sobre o peito.

Em Die Spinnen – 2. Der Brillantenschiff, os Aranhas ficam sabendo que o diamante com a cabeça do Buda está na posse do Rei do Diamante, o inglês John Terry (Rudolf Lettinger). Depois de alguns contratempos, o bando chefiado por Lio Sha, que se esconde nos subterrâneos de uma cidade chinesa situada debaixo de San Francisco, sequestra  Ellen (Thea Zander), a filha do Rei do Diamante, para trocá-la pela pedra preciosa. Terry apela para Kay Hoog, que descobre que o diamante deve estar nas ilhas Malvinas.  Novos incidentes ocorrem após os quais os Aranhas e Lio Sha morrem envenenados por vapores sulfurosos. Em San Francisco, O Grande Mestre dos bandidos (Georg John) é morto por agentes indianos, que começavam a desconfiar dele,  e Kay Hoog consegue salvar Ellen no último instante.

Die Spinnen reflete claramente a paixão do cineasta pelo universo exótico do romance de aventuras do século dezenove, pelos seriados americanos e de Feuillade, pelas gigantescas arquiteturas que esmagam os personagens e já contém alguns de seus grandes temas: a opressão do indivíduo por um destino incompreensível, a mulher como força salvadora e destrutiva, a  vingança, o fascínio pelo poder, os mundos subterrâneos (a cidade chinesa subterrânea, o território inca), etc.

A 1ª Parte, fotografada por Emil Schünermann, marca a primeira colaboração de Lang com os diretores de arte Hermann Warm e Otto Hunte. Warm foi o mais prolífico dos decoradores associados com o “look” expressionista de O Gabinete do Dr. Caligari / Das Cabinett des Dr. Caligari e serviu a Lang também em Pode o Amor mais que a Morte / Der müde Tod. Hunte, um dos desenhistas de produção mais respeitados  do cinema alemão dos anos10 aos 40, trabalhou ainda com Lang em Dr. Mabuse, o Jogador / Dr. Mabuse, der Spieler; Siegfried / Sigfried – A Vingança de Kriemhild, A Esposa de Siegfried / Kriemhilds Rach / Die Nibelungen; Metropolis / Metropolis; Espiões / Spione;e A Mulher na Lua / Frau im Mond. A 2ª Parte foi o primeiro filme de Lang fotografado por Karl Freund, com o qual faria ainda Metropolis.

Em meados de 1919, Erich Pommer apresentou a Lang um script sobre o diretor de um asilo de loucos que manipulava um sonâmbulo para cometer assassinatos e lhe perguntou se estaria interessado em dirigir este seu novo projeto. Durante as discussões sobre o script, Lang deu pelo menos uma sugestão importante: que o filme tivesse um prólogo e um epílogo realista para transmitir o ponto de vista do personagem principal, um louco, pois isto intensificaria o terror das sequências expressionistas. Pommer adotou esta proposta, adicionando uma cena no jardim do asilo no começo e no final de Caligari. Entretanto, o sucesso extraordinário de Die Spinnen obrigou Lang a deixar a produção de Caligari, para se dedicar à segunda parte  do referido filme.

HarakiriDie Geschitte einer jungen Japanerin foi rodado entre a filmagem das duas partes de Die Spinnen. É uma adaptação da peça “Madame Butterfly” de David Belasco sobre o trágico romance de uma mulher japonesa com um oficial da marinha americana, que produz um filho ilegítimo. No filme, O-Take-San (Lil Dagover) foi escolhida para se tornar Sacerdotisa do Buda na Gruta Sagrada, porém seu pai, Tokujawa (Paul Biensfeldt), quer que ela decida por si própria. O monge local (Georg John) repreende Tokujawa por ter perdido a fé no Oriente. O-Take-San diz ao monge que se sente indigna de ser sacerdotisa. Tokujawa recebe ordem de se suicidar e pratica o haraquiri. O monge prende O-Take-San na Gruta Sagrada, mas um servidor do templo a liberta e a entrega ao proprietário de uma casa de chá no quarteirão dos prazeres – o Yoshiwara de Nagasaki. O oficial da marinha dinamarquesa, Olaf Anderson (Niels Prien), se encontra por acaso na casa de chá e aceita esposar O-Take-San por 999 dias, segundo a lei de Yoshiwara. Seus amigos o desencorajam porque sua viagem de retorno à Europa se aproxima. Ele de fato deve partir, mas promete a O-Take-San que voltará. Já em casa, Olaf mostra para sua noiva Eva (Herta Héden) as lembranças de sua viagem, entre outras, a foto de uma “pequena geisha sem importância”. Quatro anos depois Olaf toma conhecimento do nascimento de seu filho através de uma carta. Ele retorna ao Japão na companhia de Eva, com quem se casara, e aí ocorrem certos incidentes que culminam com o suicídio de O-Take-San com o punhal de seu pai.

Durante muitos anos Harakiri foi considerado um dos “filmes perdidos” de Lang até que, nos anos 80, surgiu uma versão holandesa encontrada no Netherlands Film Museum em Amsterdam. Os críticos da época gostaram das cenas em exteriores, “esplêndidas e pitorescas”, particularmente as das festividades japonesas bem como os efeitos de iluminação, que “aumentam o charme da vida nas ruas à noite”.

Descontente com as circunstâncias de produção da segunda parte de Die Spinnen, Lang cancelou seu contrato com a Decla e assinou contrato com Joe May e a May-Film GmbH. Foi May quem apresentou Lang a Thea von Harbou, uma mulher cuja afinidade estreita com o diretor a tornaria a sua mais importante – e controvertida – colaboradora. Thea foi uma das mais famosas roteiristas da Alemanha, não somente por sua parceria com Fritz Lang mas também por ter escrito scripts para outros cineastas notáveis como F. W. Murnau e Carl Dreyer. Ela estava muito ocupada com a adaptação de seu romance, “Das indische Grabmal”, quando Joe May contratou Lang para ajudá-la e planejar os detalhes da produção.

Ao mesmo tempo, Thea e Lang começaram a desenvolver um segundo projeto, uma história original, “Madonna im Schnee”, recheada de melodrama e mitologia cristã. No enredo, a jovem Irmgard (Mia May) se entrega a John Vanderheit (Hans Marr), um adepto do amor livre, e dá à luz um menino. A mãe solteira se casa com o irmão gêmeo de John, Georg (Hans Marr), para que seu filho tenha um pai. John forja seu próprio suicídio e vai viver como eremita nas montanhas. Ao passar por uma estátua da Virgem Maria com a criança, ele promete que só vai voltar quando a estátua se puser em movimento na direção do vale. Irmgard, desesperada, sai à procura de John. Após alguns acontecimentos, como a morte de Georg, o filme termina com uma tempestade de neve. Uma avalanche espetacular derruba a estátua da Virgem Maria, o eremita pensa que foi a Santa Virgem que realizou o milagre, e retorna para os braços de sua Madona. Os críticos elogiaram as tomadas da natureza impecavelmente fotografadas e principalmente a cena da tempestade, quando uma porta se abre e um clarão ilumina a paisagem de neve.

Joe May deu prioridade à filmagem de Das wandernde Bild, reintitulada como “Madonna in Schnee” , pois estava querendo assumir ele mesmo as rédeas de Das indische Grabmal, que acabou realizando, e se chamou no Brasil, Dono e Senhor. Inconformado com esta traição, Lang voltou a trabalhar para Erich Pommer, levando Thea com ele.

Na Decla eles fizeram então Kämpfende Herzen, também conhecido como Die Vier um die frau. Neste filme, o falsário Meunier (Robert Forster-Larrinaga) entrega um maço de notas falsas para o negociante Harry Yquem (Ludwig Hartan). Este, disfarçado, vai até um lugar subterrâneo, onde se encontra o receptador Upton (Rudolf-Klein Rogge), e compra uma jóia para sua esposa Florence (Carola Toelle), pagando com dinheiro falso. Um outro indivíduo está presente: é Werner Kraft (Anton Edthofer), que deixara a Europa há cinco anos, fora apaixonado por Florence, e tem um irmão gêmeo. Segue-se uma intriga complicada que termina com a solução de todos os mistérios, quando os personagens principais se encontram na casa de Yquem, que se torna cena de uma série de atos violentos e de crimes.

Alguns críticos viram em Kämpfende Bild uma transição óbvia para Dr. Mabuse, o  primeiro dos seus filmes focalizando com realismo as ruas e a sociedade de Berlim, mostrando o contraste entre os clubes privados dos ricos, jogadores de cartola e o submundo. Juntamente com o filme anterior da dupla Lang-Harbou, Das wandernde Bild, Kämpfende Herzen foi localizado em 1986 na Cinemateca de São Paulo por Walther Seidler da Stiftung Deustche Kinemathek de Berlim.

Mais do que qualquer outra das suas obras precedentes, Pode o Amor mais que a Morte / Der müde Tod / 1921, firmaa reputação de Lang como um grande criador. Uma jovem (Lil Dagover) quer salvar o seu noivo (Walter Janssen) das garras da Morte (Bernhard Goetzke). Esta conduz a jovem até uma catedral gigantesca cheia de velas acesas. A Morte, agente do Destino, lhe mostra três velas, que representam a vida de três almas em perigo em diferentes partes do mundo. Se a jovem conseguir impedir que pelo menos uma vela se extinga, a Morte poupará seu noivo. Nos três episódios, a jovem e seu noivo são perseguidos por um tirano cruel. Três vezes a jovem tenta impedir o tirano de matar seu amado; três vezes o tirano realiza seu intento assassino com a ajuda da Morte que, em cada caso, é encarnada pelo executor das mortes. As três velas se apagam e, de novo, a jovem implora a misericórdia da Morte. Esta então lhe dá a última chance: se a jovem lhe trouxer uma outra alma, ela está disposta a restituir a vida do seu amado. Mas nem um velho farmacêutico que se dizia cansado de sua existência, nem um mendigo miserável, nem as velhas de um hospital que viviam dizendo que a Morte tinha esquecido delas, aceitam fazer tal sacrifício. Um incêndio irrompe no hospital e a jovem salva um bebê que ficara esquecido no local. Neste momento, a Morte, cumprindo sua promessa, estende as mãos para tomar sua vida; porém ela entrega o bebê para a mãe aflita. No meio das chamas, a Morte guia a jovem moribunda até o seu noivo morto e, unidos para sempre, suas almas caminham em direção ao céu.

Filme estranho, conjugando o fantástico, o onírico, a alegoria e a fábula, para contar o jogo fascinante de uma jovem com a morte (lembrando o Sétimo Selo / Der Sjunde Inseglet de Bergman), que nos leva para a Bagdad das Mil e uma Noites, a Veneza da Renascença e uma China antiga, onde se desenrolam as provas sobre as quais a heroína deve triunfar, a fim de salvar a vida do seu amado. O tema abordado é o diálogo / disputa que a Morte trava com o Amor com a conclusão de que a nossa existência é um combate perdido com o Destino,  axioma que vem da literatura romântica alemã.

Lang expõe esta idéia com extraordinária riqueza narrativa e visual, colocando as linhas verticais (das velas) e as linhas horizontais (dos degraus da escada da morte) em contraste perpétuo. A audaciosa interação entre luz e sombra, as imagens refletidas na água e nos espelhos, a fumaça das chamas noincêndio final, o desfile das almas entrando no reino dos mortos, a floresta de velas acesas servem como exemplo das qualidades fotográficas do espetáculo. O segmento da China está repleto de feitos miraculosos: o seu cavalo alado, o exército liliputiano e o tapete voador inspiraram Douglas Fairbanks a fazer O Ladrão de Bagdad / The Thief of Bagdad / 1924, uma exposição de truques mágicos semelhantes.

No elenco, sobressaem Lil Dagover e Walter Janssen como os dois amantes (que voltam em todos os episódios), Rudolf Klein-Rogge, que está no segmento oriental e veneziano e Bernhard Goetzke, como a Morte esquelética e angustiada. Um número impressionante de colaboradores, cada qual um artista no seu domínio – destacando- se o decorador Herman Warm e o fotógrafo Fritz Arno Wagner, nesta sua primeira colaboração com Lang (eles estariam juntos novamente em Espiões, M, o Vampiro de Dusseldorf / M e O Testamento do Dr. Mabuse / Das Testament des Dr. Mabuse) – , criaram em uma harmonia rara uma obra que desperta sentimentos  profundos e cria uma atmosfera quase religiosa.

No dia 25 de setembro de 1920, a mulher de Lang, Elisabeth, morre em circunstâncias misteriosas. Não era segredo que Lang e Thea von Harbou haviam se apaixonado quase que à primeira vista. Quando Thea se separou de seu marido, Rudolf Klein-Rogge, ela se mudou para um apartamento no mesmo prédio em que Lang morava. Elisabeth teria surpreendido Lang e Thea em flagrante e teria ficado com raiva ou em estado de depressão. O que aconteceu em seguida ninguém sabe. Apenas uma coisa é certa: Elisabeth foi morta naquele dia por uma bala que varou o seu peito, desferida por um revolver Browning, de propriedade de Fritz Lang. Segundo uma versão, Elisabeth depois de ter visto Lang nos braços da sua roteirista no sofá do seu apartamento, foi para o seu quarto e se matou. Karl Freund  e Hans Feld, editor do Film-Kurier, lançaram a suspeita de que Lang teria, intencional ou acidentalmente, assassinado Elisabeth. Lang insistiu que foi suicídio e Thea confirmou o depoimento dele. O atestado médico que apontou a causa da morte dizia  “tiro no peito, acidente”. Fritz Lang se casaria com Thea von Harbou em 26 de agosto de 1922.

Devido ao sucesso alcançado por Pode o Amor mais que a Morte, Lang e Thea puderam pensar num projeto mais ambicioso: um filme baseado num romance  de Norbert Jacques sobre um criminoso que dissemina o medo e a desordem na Berlim da época, capital de um país assolado pela crise financeira e pela corrupção moral. Dividido em duas partes, Der grosse Spieler, tendo como subtítulo, Ein bilt der Zeit (Um retrato de nossa época) e Inferno, com o subtítulo, Ein Spiel von Menschen unserer Zeist (Uma peça sobre os homens de nossa época), Dr. Mabuse, o Jogador / Dr. Mabuse, der Spieler / 1922 se concentra num gênio do crime que declarou guerra à sociedade.

À frente de uma verdadeira organização, que ele controla pelo terror, Mabuse (Rudolf Klein-Rogge) prepara seus atos criminais com uma precisão científica, disfarçando-se em múltiplos personagens – banqueiro, falsário, boêmio elegante, médico psicanalista ou vagabundo – , uma espécie de Fantomas germânico, encarnando o mal absoluto. Seu grande adversário é o promotor von Wenck (Bernhard Goetzke), guardião da lei escrupuloso e meticuloso que, com muita dificuldade e sacrifícios, acaba encontrando o supercriminoso megalômano, completamente louco na sua oficina de fabricação de moeda falsa, onde ele havia se refugiado, mas de onde não conseguira escapar, porque o edifício estava todo cercado.

Inspirando-se ao mesmo tempo na tradição do seriado e nos acontecimentos contemporâneos o filme é ao mesmo tempo uma obra expressionista e um quase-documentário da Alemanha decadente e perdida dos anos 20. O caráter demoníaco do personagem exprime a profunda inquietação dos tempos, perfilando-se no horizonte do século XX como uma figura premonitória ao nível das atrocidades politicas que se aproximavam.

No plano estritamente estético, avultam numerosas cenas como, por exemplo, aquela da da Bolsa de Valores, a cena do encontro de Mabuse (disfarçado) com o promotor von Wenk no clube Andalusia; a cena da performance de Mabuse (usando um outro disfarce) no teatro fazendo com que uma caravana árabe surja no palco e desça até a platéia, para demonstrar uma experiência de sugestão de massas; a cena da dançarina semi-nua,  que desce do teto do Petit Casino para esconder as mesas de jogo no caso de a polícia chegar;  a sessão de espiritismo; a cena do cerco à casa de Mabuse, suas alucinações e a compreensão de sua impotência, etc.

O ritmo do filme, numa montagem sofisticada, impressionou o público e os técnicos de cinema (inclusive o eminente diretor russo Eisenstein) e a estupenda fotografia de Carl Hoffmann (com Lang também em Siegfried – A Vingança de Kriemhilde) estabeleceu com precisão o clima noir da narrativa.

O filme seguinte de Lang e Thea, Die Nibelungen / 1922-24, grande produção de Erich Pommer para a Decla-Bioscop – UFA, também é em duas partes: Siegfried / Siegfried e A Vingança de Kriemhilde, A Esposa de Siegfried / Kriemhilds Rache, cada qual dividida em sete Cantos.

Na primeira parte, Siegfried (Paul Richter), mata um dragão e, banhando-se no seu sangue, torna-se invulnerável, a não ser no ombro esquerdo. Depois, ele derrota o Rei dos Anões, Alberich (Georg John) que, antes de morrer, entrega ao vencedor o tesouro dos Nibelungos e  a malha mágica, que torna a pessoa que o usa, invisível ou capaz de se transformar em qualquer pessoa. Sigfried deseja casar-se com Kriemhild (Margaret Schön), princesa dos burgúndios, mas o irmão dela, o rei Gunther (Theodor Loos), só aceita conceder a sua mão, se o pretendente ajudá-lo a conquistar Brunhild (Hanna Ralph), a rainha amazona da Islândia, que jurara esposar o homem que a vencesse nas armas. Brunhild esperava que seu pretendente fosse Sigfried, e não Gunther. Graças à malha mágica, Siegfried se transforma em Gunther e vence a guerreira nas três provas exigidas. Em Worms celebra-se o casamento de Siegfried com Kriemhild e o de Gunther com Brunhild bem como a cerimonia que faz de Siegfried e Gunther dois irmãos de sangue. Brunhild diz a Gunther que é sua prisioneira e não sua esposa. Gunther pede de novo auxílio a Siegfried e este, assumindo a forma de Gunther, passa a noite de núpcias com Brunhild. Chega a Worms o presente de casamento de Siegfried para Kriemhild: o tesouro dos Nibelungos. No caminho da missa, Kriemhild e Brunhild discutem e Kriemhild, ofendida, lhe conta como Siegfried, e não Gunther a derrotou. Para se vingar, Brunhild diz a Gunther que Siegfried foi seu amante e o incita a matar Siegfried. O assassinato será cometido por Hagen von Tronje (Hans Adalbert von Schlettow), o conselheiro de Gunther. Kriemhild, inadvertidamente, lhe revela qual é o único ponto vulnerável de Siegfried e Hagen o mata, arremessando um dardo naquela parte do corpo. Brunhild suicida-se diante do túmulo de Siegfried.

Na segunda parte, o rei dos Hunos, Átila (Rudolf Klein-Rogge), pede a mão de Kriemhild. Ela aceita, e parte para o país dos hunos, a fim de preparar sua vingança. Kriemhild dá um filho a Átila e consegue convencer seu marido a convidar Gunther e sua comitiva para uma visita ao seu reino. Kriemhild pede a Átila que mate Hagen Tronje, porém ele se recusa, alegando que um convidado é considerado sagrado. Kriemhild oferece ouro para os hunos pela cabeça de Hagen Tronje. Os hunos atacam os burgúndios durante um festim. A saber do ataque traiçoeiro, Hagen Tronje mata o filho de Átila. Os hunos mantém os burgúndios cercados dentro da casa de hóspedes de Átila. Num ato final de desespero, Kriemhild manda incendiar o edifício. Hagen Tronje e Gunther escapam das chamas. Kriemhild ordena que Hagen Tronje diga onde está o tesouro dos Nibelungos, que ele roubara. Quando Hagen Trojen lhe conta que jurou não revelar o esconderijo do tesouro enquanto um de seus reis ainda estivesse vivo, Kriemhild manda decapitar Gunther. Como Hagen Trojen continua se negando a indicar o local do tesouro, Kriemhild o mata com a espada de Siegfried e morre em seguida de um ataque do coração. Nas palavras finais de Átila,  Kriemhild deve ser levada para perto de seu falecido marido, Siegfried, porque ela nunca pertenceu a outro homem.

O filme é na verdade um puro filme de Lang, parecido com muitos outros anteriores e posteriores do autor: uma história de ódio, morte e vingança. O ódio e o desejo de vingança trazem a morte,  o incessante avanço das trevas onde perecem, um a um, todos os personagens. Thea e Lang  quiseram mostrar os heróis da lenda como simples homens. Die Nibelungen é mais uma história de homens e de mulheres do que de Heróis e de Deuses.

Siegfried Kracauer estigmatizou o filme  como um incipiente documento nazista, que antecipou a propaganda de Goebbels do Terceiro Reich, mas Lang explicou que, para contrariar o espírito pessimista da época, ele queria apenas filmar a grande lenda de Siegfried, a fim de que a Alemanha  pudesse se inspirar no seu passado épico.

Transformando uma série de pinturas célebres (de Wilhelm von Kaulbach, Franz von Stuck, Gaspar David Friedrich, Arnold Böcklin, Heinrich Vogeler, Max Klinger, etc.) em imagens cinematográficas, Lang ilustrou a lenda em todo o seu esplendor bárbaro com imagens muito belas – percebendo-se uma tendência para a abstração e estilização formal -, que permanecem constantemente fiéis ao mito: Siegfried forjando sua espada na caverna do ferreiro iluminada em esplêndido claro-escuro; Siegfried cavalgando seu corcel branco pela floresta gigantesca invadida pela bruma e por raios de sol; a fileira de soldados como pilares em primeiro plano de costas para a câmera, e ao fundo a procissão da corte que se aproxima lentamente da catedral de Worms; Brunhild saindo de seu navio e os soldados fazendo uma espécie de ponte flutuante com os seus escudos; os interiores do castelo e da catedral de Worms; o caminho pedregoso e o mar de fogo que circundam o castelo de Brunhild; o jardim florido onde se encontram Siegfried e Kriemhild; a cerimônia do casamento duplo; o conflito entre Brunhild e Kriemhild na longa escadaria; o corpo de Siegfried no caixão cercado de velas, tendo a seu pé, à esquerda,  Brunhild vestida de preto, morta pelo seu próprio punhal e, à sua cabeceira à direita, Kriemhild ainda com sua roupa branca, pranteando-o; as crianças nuas com grinaldas no cabelo ao lado de uma árvore bem fina e de Atila numa armadura montado no cavalo; e a visão, particularmente notável, dos anões acorrentados servindo de pedestal para ornamentar uma urna imensa, que contém o tesouro de Alberich – quando amaldiçoados por seu mestre, as criaturas escravizadas se metamorfoseiam em figuras de pedra gigantesca.

A arquitetura plástica do filme é quase sempre baseada na simetria, no equilíbrio, na ordem e numa busca evidente de harmonia. Porém na segunda parte estes valores degeneram, se destróem: o espaço da ação torna-se um espaço asfixiado, onde triunfam a selvageria e o caos. Aos castelos majestosos, às arcadas e nichos, ao arco-íris em torno da montanha, aos gestos e trajes com desenhos geométricos, correspondem, na segunda parte, as tendas apertadas e apinhadas de gente, o chão de barro, as peles de animais nas paredes, as estepes áridas, em marcante contraste com o ambiente nativo de Kriemhild. O ritmo também muda entre as duas partes, passando de majestoso, solene para um maior dinamismo, por causa do número incessante de cenas de ação.

Lang disse que seu fotógrafo, Carl Hoffmann, foi capaz de executar visualmente tudo o que o diretor havia imaginado por meio da luz e da sombra. Mas também importante foi a contribuição do inventivo segundo cameraman, Günther Rittau (que realizou duplas exposições com a câmera em vez de usar o laboratório), dos decoradores Otto Hunte, Erich Kettelhut e Karl Vollbrecht (construtor do dragão), sem falar no “sonho dos falcões”, um trecho de pura animação, providenciado por Walter Ruttmann e na contribuição de Eugen Schüfftan na petrificação dos anões.

Em 2 de outubro de 1924, Lang, Erich Pommer e a Gertrude, mulher Pommer foram aos Estados Unidos para a estréia americana de Die Nibelungen. A primeira visão  que Lang  teve de Nova York  foi do convés do navio. “Alí”, Lang gostava de declarar em várias entrevistas, “Eu concebí Metropolis”. Entretanto, Erich Pommer já vinha comentando sobre este novo projeto de Lang durante os últimos dias de filmagem de Die Nibelungen , meses antes da viagem à América.

Reunindo quase a mesma equipe técnica de Die Nibelungen (com exceção de Carl Hoffmann, agora substituído por Karl Freund), Metropolis foi concebido para ser o filme mais caro e ambicioso feito até então na Europa, com milhares de figurantes, cenários monumentais e efeitos especiais. O criativo Günther Rittau idealizou alguns dos melhores efeitos especiais do filme, inclusive a mutação diante da câmera do robô-Maria de uma criatura de metal cubista para um ser de carne e osso enquanto Eugen Shüfftan, com o seu famoso processo de espelhos, tornou imensas as maquetes da cidade.

Thea von Harbou imaginou uma cidade futurista construída sobre os ombros do trabalho escravo. No alto da cidade vive uma classe ociosa presidida por Joh Fredersen (Alfred Abel), o senhor de Metropolis; no subsolo, labutam  os trabalhadores escravos. Um dia, nas portas do Jardim Eterno, onde Freder  (Gustav Fröhlich), o filho de Fredersen passa dias felizes na companhia de seus amigos, aparece Maria (Brigitte Helm), rodeada por um grupo de crianças miseráveis. Maria é expulsa do local, mas Freder fica como que hipnotizado pela moça. Tentando reencontrá-la, ele descobre a cidade em baixo, revolta-se contra o sistema odioso, e decide compartilhar a sorte de seus irmãos, substituindo um dos operários na manutenção da Máquina Central. O descontentamento dos operários é refreado por Maria, uma pregadora que, nas profundezas da antigas catacumbas, anuncia para breve a chegada de um mediador que “unirá as mãos com o cérebro, porque ele será o coração”. Informado pelo contramestre Groth (Heinrich George) dos planos de insurreição dos operários, Fredersen pede ao cientista Rotwang (Rudolf Klein-Rogge), que mora numa casa antiga no centro da cidade, para construir um robô, duplo perfeito de Maria, a fim de desmoralizar e confundir as massas. Aproveitando para se vingar de Fredersen, que no passado havia lhe roubado a noiva, Hel, Rotwang programa a Maria-robô para liderar a revolta dos operários, a fim de destruir o império do senhor de Metropolis.  O plano do cientista surte efeito, a falsa Maria provoca o caos nos subterrâneos, causando a destruição das máquinas e uma inundação. Freder e Maria salvam as crianças do afogamento. Rotwang, enlouquecido, pensa que Maria é Hel, e a persegue, acabando por despencar do telhado da catedral, após uma luta com Freder. Groth e os operários revoltam-se contra a Maria robô e a queimam em uma fogueira. Finalmente, Fredersen cai em si, e se reconcilia com os trabalhadores.

Tal como em Die Nibelungen, estão presentes o estilo decorativo, a monumentalidade dos cenários, as cenas de multidão, e a direção criativa de Lang,  resultando uma sucessão de visões alucinantes, nas quais se encontram  expressionismo e surrealismo, e que são trechos de antologia: os grupos geométricos de trabalhadores, vestidos de uniforme, marchando sincopadamente  com os ombros arqueados e de cabeça baixa em direção aos elevadores que conduzem ao subsolo, onde estão as máquinas; Freder vendo a Máquina Central como um Moloch de boca aberta e olhos brilhantes, devorando os homens; Freder no paredão branco e os feridos passando em silhueta; Maria pregando nas catacumbas com as cruzes brancas ao fundo contrastando com os vultos negros e pálidos dos operários; a coluna ondulante de milhares de escravos de cabeça raspada arrastando uma pedra enorme  na construção da Torre de Babel; a criação de Maria-robô diante de um líquido borbulhante e flashes de eletricidade, fumaça e vapor; o delírio de Freder na catedral vendo as estátuas dos Sete Pecados e a da Morte com sua foice se animarem; Rothwang perseguindo Maria nas catacumbas, a escuridão iluminada apenas por um simples feixe de luz de sua lanterna, que revela o horror do ambiente cheio de esqueletos e caveiras; Maria-robô piscando o olho para Freder e depois tudo começando a rodar quando ele a avista com seu pai; os frequentadores do Clube Ioshiwara fascinados pela falsa Maria dançando com um vestido transparente e coberta de jóias; a destruição da Máquina Central pela população sublevada; a pirâmide de braços que se elevam em súplica durante a inundação  e as crianças agarradas ao corpo de Maria na última ilhota de concreto ainda não submersa pelas águas.

Lang manipula admiravelmente a iluminação. A luz chega mesmo a dar uma impressão de sonoridade: o assobio da sirene da fábrica é representado por quatro faróis, cujos fachos luminosos se ejetam como gritos. A luz desempenha igualmente um papel essencial na criação do robô assim como na sinfonia das máquinas.

Além de ser palco de uma manifesta luta de classes, Metropolispode ser vista também como o espaço de um conflito entre o mágico e o oculto (o mundo de Rothwang) e a tecnologia moderna (o mundo de Fredersen). É pela magia que Rothwang quer se vingar de Fredersen e o intermediário escolhido é uma mulher, que no seu duplo aspecto e no seu duplo rosto, é a única que tem acesso aos dois mundos.

Muitos críticos não se conformaram com o sentimentalismo e ingenuidade do desenlace, quando os operários fazem (superficialmente) as pazes com o senhor de Metropolis no pórtico da catedral gótica; mas ele não obscurece a enorme realização técnica do filme.

Em junho de 1927, Lang anunciou que havia formado sua própria companhia, Fritz Lang-FilmGmbH, com dois sócios, Herman Fellner e Joseph Somlo. Porém na tela o título de “produtor” seria somente de Lang enquanto a UFA cuidaria da distribuição e publicidade dos filmes da nova empresa. Lang e Thea começaram então a preparar seu próximo projeto, um thriller de mistério e espionagem chamado simplesmente, Espiões / Spionen.


O banqueiro Haghi (Rudolf Klein-Rogge) é o chefe de uma organização de espionagem. Ele manda uma de suas agentes, a russa Sonja Barranikowa (Gerda Maurus), seduzir o Coronel Jellusic (Fritz Rasp), a fim de comprar documentos importantes de seu país. Ela cumpre sua missão e Jellusic, confrontado com seus superiores, é obrigado a se matar. Haghi obriga Sonja, cada vez menos disposta a realizar este tipo de trabalho, a ganhar a confiança  do agente 326 (Willy Fritsch), o melhor elemento de que dispõe o chefe dos serviços secretos, Burton Jason (Craighall Sherry), para lutar contra os espiões. Sonja e o agente 326 apaixonam-se. Haghi suspeita dos sentimentos de Sonja pelo agente 326 e, quando ela se recusa a agir contra ele, Haghi tranca-a num quarto de seu esconderijo secreto. Enquanto isso, Haghi manda outra de suas colaboradoras, Kitty (Lien Dyers), atrair o Dr. Masimoto (Lupy Pick), encarregado da segurança do cofre que contém um tratado secreto de importância vital para o Japão. Kitty se apodera do documento e o entrega para Haghi. Em desgraça, Masimoto comete haraquiri. O agente 326 envia a Jason o número das séries das notas do banco usadas para pagar Jellusic e Jason as transmite para o agente 719, que trabalha disfarçado como o palhaço Nemo num circo, a fim de que ele siga o rastro das notas. O agente 326 escapa de um desastre de trem preparado por Haghi . Em seguida, ele manda cercar o banco de Haghi e todo o bando de espiões escondido no subsolo é preso. Um funcionário do banco informa a Jason e ao agente 326 que o número das séries das notas de banco que o agente 719 lhe deu para rastrear não são as notas verdadeiras. Os dois agentes secretos percebem que o agente 719 era o próprio Haghi. Quando o palhaço Nemo entra em cena no circo, ele percebe que está cercado pela polícia, e se mata com uma bala na cabeça, antes de dizer: “Cortina”. O público, pensando que a cena  faz parte do espetáculo, aplaude.

Considerado como um dos filmes precursores dos filmes de espionagem, mais dinâmico do que Dr. Mabuse, o Jogador, Os Espiões oferece inúmeras sequências admiráveis: a primeira expondo, numa montagem excitante, uma série de crimes  – roubo de documentos secretos e assassinatos – , as reações frenéticas da polícia e de outros agentes que termina com um dos policiais gritando: ”Meu Deus, quem está por detrás disso?” e, logo em seguida, o close-up de Haghi olhando diretamente para a câmera  e declarando: “Eu”; a sequência no salão de danças onde, após uma luta de boxe, surgem pares de dançarinos rodopiando em torno do ringue; o haraquiri de Masumoto depois de ver os fantasmas de seus três emissários; as cenas da colisão dos trens, com os números 33-133 sobrepostos às rodas da locomotiva, que corre a toda velocidade e vai se chocar com o vagão, onde se encontra o herói; a sequência de suspense e sensualidade (e de um jogo de luz e sombras) na qual Sonja tenta se livrar das cordas que a prendem a uma cadeira enquanto o chofer luta contra dois asseclas de Hagui; a sequência do banco sendo invadido metodicamente pelas forças policiais, Haghi contra atacando com o gás mortal e o agente 326 tentando desesperadamente salvar Sonja; a sequência final quando o palhaço Nemo / Haghi, em sua performance no palco, avista os policiais armados na platéia e nos bastidores do teatro e, abruptamente, dá um tiro na cabeça. Esta última sequência é um dos maiores desfechos de filme da História do Cinema.

As semelhanças entre Os Espiões e Dr. Mabuse são inequívocas. Em ambos os filmes, Rudolf Klein-Rogge interpreta um criminoso onipresente e misterioso e em ambos Lang se aproxima do mundo “real” e de personagens reais, um mundo imediatamente reconhecível pelo público, descartando os elementos fantásticos, que eram predominantes nos seus primeiros trabalhos.

Em Os Espiões, o diretor abandonou o formalismo e a estilização de Die Nibelungen e Metropolis e retornou ao estilo de Dr. Mabuse, realizando um filme de aventuras de tirar o fôlego, afastando-se cada vez mais do pictórico e do visual, para privilegiar o movimento e os acontecimentos da trama. Também, tal como no filme Dr. Mabuse, todos os elos da intriga mirabolante se entrosam, um incidente faz surgir e precipita o próximo por uma associação de idéias e ainda existe o  uso da elipse para acelerar a ação, a mesma lógica matemática, como observou Lotte Eisner.

O derradeiro filme mudo de Fritz Lang, A Mulher na Lua / Die Frau im Mond / 1929 focaliza a tripulação da primeira expedição à lua. Ela inclui Wolf Helius (Willy Fritsch), um cientista dedicado, que atua como piloto; Hans Windegger (Gustav von Wangenheim), o engenheiro-chefe de caráter fraco; Friede Welten (Gerda Maurus), uma  estudante de astronomia; Walt Turner (Fritz Rasp), representante sinistro de uma obscura organização financeira; e  Georg Manfeldt (Klaus Pohl), um velho professor cuja teoria favorita – a de que na lua  existe muito ouro – tornou-o alvo do ridículo na comunidade científica. O jovem Gustav (Gustl Stark-Gstettenbaur), apaixonado por revistas de ficção científica, junta-se ao grupo como clandestino. Wolf Helius está enamorado secretamente de Friede, noiva de Hans. Entretanto, Friede sente-se cada vez mais afastada do seu noivo durante a viagem à lua. Walt mostra que está disposto a tudo para se apoderar dos depósitos de ouro espalhados pelo nosso satélite. No decorrer da história, o professor Manfeldt descobre ouro nas cavernas lunares. Ele encontra Turner, assusta-se, e cai numa fenda na rocha. Turner parte em direção ao foguete e amarra Hans. Turner não consegue penetrar no foguete, porque Friede fechou as portas. Hans consegue se libertar e luta contra Turner que, antes de morrer, atira num dos tanques de oxigênio. Hans e Helius examinam os danos; uma pessoa deverá permanecer na lua. Eles tiram a sorte, Hans perde e entra em pânico.  Então Helius decide  ficar. É Gustav que pilota o foguete de volta à Terra. Helius vê o foguete alçar vôo e desaparecer. Ele chora e, olhando para trás, vê que Friede também ficou na lua.

A Mulher na Lua é uma mistura de dois gêneros: espionagem e ficção científica. Na sua primeira parte, passada na Terra, predomina a trama de espionagem (roubo de documentos, chantagem, perseguição, etc.); na segunda, passada na Lua, sobressai a ficção científica (as grandes estruturas metálicas, a partida do foguete,  os círculos de gravitação em torno da Terra e da Lua, o espaço vazio do solo lunar magnificamente iluminado por Curt Courant / Otto Kanturek, etc.).

Alguns críticos consideraram o argumento banal e os personagens esquematizados, implicando também com o conflito amoroso melodramático; porém ninguém  contestou a inventividade formal do diretor e a sua habilidade na condução das tensões psicológicas entre os personagens.

A preocupação principal de Lang foi com a autenticidade e, por isso, ele contratou como conselheiros técnicos Hermann Oberth e Willy Ley, dois grandes especialistas em construção de foguetes e viagens interplanetárias, que lhe forneceram preciosas informações a respeito. Isto porém não impediu que ocorressem algumas licenças artísticas em benefício da intriga como, por exemplo, a existência de ouro e  oxigênio na lua; mas, muito do que ele e seus consultores idealizaram, se tornaria realidade a contagem regressiva por ocasião da partida do foguete e o seu lançamento em dois estágios.

Segundo Lang, em  1937, a Gestapo confiscou os dossiês da produção que ainda existiam, as maquetes, e todas as cópias do filme que pôde recuperar, “porque eles tiveram receio de que o foguete se assemelhasse muito ao projeto dos mísseis V 1 e V 2”. O filme foi proibido sob o Terceiro Reich. Oberth ficou na Alemanha e contribuiu para a pesquisa científica nazista. Ley fugiu do regime nazista e se radicou nos Estados Unidos, onde se tornou um convidado frequente para  jantar na residência de Fritz Lang em Hollywood.