Arquivo mensais:novembro 2011

LOUISE BROOKS

Entre 1925 e 1938, Louise Brooks apareceu em 24 filmes porém é mais lembrada pelo seu papel como Lulu em A Caixa de Pandora de G.W. Pabst e pelo seu famoso corte de cabelo curto, copiado por todas as mulheres do mundo.

Ela não era uma das mais importantes atrizes do cinema mudo mas se tornou objeto de idolatria para milhares de fãs, que baseiam esta admiração em biografias e retrospectivas. Hoje Louise é cultuada por seu espírito independente, sua beleza e aptidão artística como intérprete, dançarina e escritora.

Mary Louise Brooks nasceu no dia 14 de novembro de 1906 em Cherryvale, Kansas, filha de um advogado, Leonard  Porter Brooks e de Myra Rude.

Os pais deixavam seus quatro filhos fazerem o que quisessem enquanto ele se dedicava aos negócios e a mãe cultivava o seu interesse pela música e pela literatura. Myra e sua irmã Eva eram ambas pianistas de talento e, além das canções populares do dia, tocavam, sozinhas ou a quatro mãos, obras pianísticas de grande dificuldade. Louise deveu muito da sua sensibilidade estética à Myra e à Eva. Nas raras ocasiões em que Myra voltava sua atenção para seus filhos, ela geralmente se concentrava na alegre e saltitante Louise. “Tanto eu como mamãe tínhamos esperança de que eu me tornaria uma bailarina séria”, Louise recordaria.

A estréia de Louise como bailarina deu-se quando ela interpretou, aos quatro anos de idade, numa produção em benefício de uma igreja, a noiva de “O Casamento do Pequeno Polegar”. Aos oito anos, ela estava na Opera House e, aos dez anos, já atuava em clubes, feiras, teatros e salões de dança em várias aldeias no sudeste do Kansas.

A esta altura, Myra decidiu que Louise precisava de uma nova aparência no palco. Ela levou a filha para um barbeiro e mandou que ele cortasse suas longas tranças pretas, deixando seu cabelo caindo como uma franja sobre a testa. As pessoas chamavam este corte de “Buster Brown cut” (Buster Brown era um personagem dos quadrinhos, conhecido no Brasil como Chiquinho, cujas aventuras eram publicadas na revista O Tico-Tico).

Quando a família se mudou para Wichita, Louise continuou se apresentando nos teatros locais, no Shrine Club, em festas privadas, e estudou dança com Alice Campbell, que acabou expulsando-a da escola por indisciplina. Até que, em 1921, chegou à cidade a companhia de dança moderna de Ted Shawn, da qual faziam parte Martha Graham e Charles Weidman.  Myra e Louise foram aos bastidores após o espetáculo e Shawn, fascinado pela jovem, convidou-a para cursar a sua nova Denishawn Dance School em Nova York no próximo verão.

Os alunos da Denishawn, conforme diretriz imposta pela sua diretora, Ruth St. Denis, esposa de Shawn, “deviam viver em sossego, ler bons livros, ouvir boa música, procurar uma atmosfera de cultura”. Louise, então com quinze anos, cumpriu as três últimas exigências, porém se irritava com a primeira. De repente, na desenfreada e permissiva Era do Jazz, a jovem era confrontada com um código moral desconhecido para ela, mesmo na infância. Certo dia, Louise foi despedida inesperadamente e em público. A senhora St. Denis fez dela “um exemplo” diante do resto da trupe aterrorizada. O motivo de sua demissão não teve nada a ver com sua capacidade como bailarina que, segundo a opinião de Ted Shawn, era bem satisfatória. Louise estava sendo dispensada por causa de sua rebeldia.

Porém Louise não ficou desempregada por muito tempo. Sua amiga Barbara Bennett, irmã de Constance e Joan Bennett, introduziu-a como corista, aos 18 anos, no espetáculo George White’s Scandals de 1924, onde ela chamou a atenção pela boa presença no palco; mas, fora do tablado, ela levava uma vida promíscua, fazendo “programas” com ricaços nos hotéis luxuosos da cidade.

Após uma rápida estadia em Londres, onde foi a primeira jovem a dançar o Charleston no Café de Paris, Louise retornou aos Estados Unidos para ingressar no famoso Ziegfeld Follies. Entretanto, Louise estava insatisfeita. Ela revelou pelo menos uma razão para a sua melancolia: “Para mim, que havia dançado com Ruth St. Denis, Ted Shawn e Martha Graham, minhas pequenas danças no Follies eram enfadonhas”. O seu único momento de prazer acontecia no final do espetáculo com toda a companhia em cena. Para simbolizar a rápida ascensão de Louise na sua organização, Ziegfeld colocou-a na posição mais alta de uma pirâmide de coristas no grande finale.

Ao contrário de suas colegas, Louise não estava procurando fazer uma carreira no cinema, pois achava que os “flickers” eram intrinsicamente inferiores ao teatro; mas, por insistência de Walter Wanger, concordou em fazer um teste nos estúdios Astoria em Nova York. O resultado foi muito bom e, em outubro de 1925, ela assinou contrato com a Paramount.

Antes de seu encontro com o diretor alemão G.W. Pabst, Louise trabalhou em 14 filmes americanos:  O Mendigo Elegante / The Street of Forgotten Men / 1925 (Dir: Herbert Brenon); A Venus Americana / The American Venus / 1926 (Frank Tuttle); Desfrutando a Alta Sociedade / A Social Celebrity / 1926 (Dir: Malcolm St. Clair); Risos e Tristezas / It’s the Old Army Game / 1926 (Dir: Edward Sutherland, primeiro marido de Louise); O Fanfarrão / The Show Off / 1926 (Dir: Malcolm St. Clair); Entre a Loura e a Morena / Just Another Blonde / 1926 (Dir: Alfred Santell); Amá-las e Deixá-las / Love ‘Em and Leave ‘Em / 1926 (Dir: Frank Tuttle); De Casaca e Luva Branca / Evening Clothes / 1927 (Luther Reed); Meias Indiscretas / Rolled Stockings / 1927 (Dir: Richard Rosson); Dois Águias no Ar / Now We’re in the Air / 1927 (Dir: Frank Strayer); Cidade Buliçosa / The City Gone Wild / 1927 (Dir: James Cruze); Uma Noiva em Cada Porto / A Girl in Every Port / 1928 (Dir: Howard Hawks); Os Mendigos da Vida / Beggars of Life / 1928 (Dir: William Wellman) e O Drama de uma Noite / The Canary Murder Case / 1919 (Dir: Malcolm St. Clair).

Merecem destaque: A Venus Americana, por ter mostrado os atributos físicos de Louise com toda a magnificência do Ziegfeld e por ter ocorrido um pequeno escândalo simultaneamente às filmagens, em virtude da divulgação das poses de Louise nua, tiradas pelo fotógrafo teatral John Mirjian; De Casaca e Luva Branca, por Louise (chamada no filme de Fox Trot) ter abandonado temporariamente seu tradicional cabelo curto em favor de um cabelo frizado; Uma Noiva em Cada Porto, por sua importância na carreira de Howard Hawks então um diretor em ascensão – Hawks disse que Louise estava adiante de seu tempo, que era uma rebelde e ele gostava de pessoas rebeldes; Os Mendigos da Vida, por ter proporcionado a Louise um personagem andrógino (ela é uma garota que se disfarça de rapaz para fugir da lei na companhia de vagabundos), sob as ordens de um diretor já de renome, agraciado com o Oscar; e O Drama de uma Noite, pela cena inesquecível de Louise na sequência de abertura do filme como a estrela de “The Canary Revue”, vestida de plumas e se balançando sobre a platéia – ela é uma cavadoura de ouro impiedosa, vítima de um crime, que Philo Vance (William Powell) vai desvendar.

O chamado do chefão da Paramount, B. P. Schulberg, chegou durante a produção de O Drama da Noite, pouco antes da data de opção do contrato, em 12 de setembro de 1928. Todos no estúdio estavam satisfeitos com Louise e ela achou que a reunião seria apenas uma formalidade. A atriz havia cumprido suas obrigações e estava prestes a ter direito a um aumento de salário. Schulberg era um mestre em manipular atores, especialmente aqueles aterrorizados com o cinema sonoro. Ele começou assim: “Não sabemos se a sua voz vai se adaptar aos talkies. Porém, em vez de despedí-la, estamos dispostos a mantê-la em nossos quadros com o seu salário atual. Você pode ficar, ganhando 750 dólares por semana, ou ir embora”. Para grande surpresa de Schulberg, Louise cravou-lhe um olhar destruidor, deu as costas e saiu.

Louise contaria depois que seu amante (mesmo antes de seu divórcio de Eddie Sutherland com quem se casara em 1926) e agente, George Preston Marshall, lhe telefonara de Washington na véspera do seu encontro com Schulberg, avisando-a de que um sujeito chamado Pabst em Berlim queria contratá-la para um filme e que estaria disposto a lhe pagar 1.000 dólares por semana. Pabst tinha visto Louise como artista de circo em Uma Noiva em Cada Porto e fez o pedido de empréstimo da atriz a Schulberg. O diretor Monta Bell, estava então na MGM, mas tinha amigos na Paramount, e deu a deixa para seu amigo Marshall. Este então disse para Louise: “Você deixa Schulberg falar, e quando ele terminar, você diz: ‘Obrigado, Mr. Schulberg, mas eu vou para a Alemanha’. “E isso”, contou Louise, “foi o que eu fiz, para espanto de Mr. Schulberg”.

Marshall e Louise partiram em 6 de outubro de 1928 no S.S. Majestic e, no meio do oceano, chegou um telegrama de Florenz Ziegfeld, oferecendo a Louise um papel para o qual ela servira de modelo: a personagem Dixie Dugan, que fora criada por J. P. McEvoy, numa série de histórias intitulada “Show Girl” (e depois nos quadrinhos), e agora Florenz pretendia levar para os palcos da Broadway. Porém Marshall interceptou a mensagem e tomou a liberdade de telegrafar a seguinte resposta: “Você não pode me oferecer dinheiro bastante para eu fazer o papel”. “Ziegfeld nunca me perdoou”, Louise lamentaria mais tarde.

Os dois últimos filmes silenciosos de Pabst, A Caixa de Pandora / Die Büsche der Pandora / 1929 e Diário de uma Pecadora / Tagebuch einer Verlorenen / 1929 ambos diziam respeito à vida de prostitutas (interpretadas em cada caso por Louise Brooks) e ao meio no qual, suas situações degradantes se relacionavam com a decadência geral da sociedade.

O primeiro filme, inspirado livremente em duas peças de Frank Wedekind, que mostram um universo corrompido, dominado pela sensualidade e “todo organizado  em torno da presença de Louise Brooks  numa atmosfera, raramente igualada, de admiráveis iluminações expressionistas” (Jacques Siclier), não foi bem apreciado na época do seu lançamento e sofreu cortes; porém, a partir de 1950, encantou gerações de cinéfilos e hoje é considerado como um dos clássicos do Cinema Alemão de Weimar.

Sobre a Lulu, uma inocente sedutora, que é explorada por um velho rufião misterioso (que pode ser seu pai), casa-se com um homem de meia-idade e o mata com sua própria arma, apaixona-se pelo seu filho, é amada por uma lésbica, cai na prostituição, e é eventualmente morta por Jack, o Estripador, Lotte Eisner disse que “não foram preciso as frases de Wedekind para acentuar o poder erótico dessa singular criatura terrestre dotada de beleza animal, mas privada de todo senso ético, que faz o mal inconscientemente”.

O segundo filme, hoje também considerado um clássico, baseado num romance de Margarete Böhme, “é, antes de tudo, um drama áspero com um tom anarquisante, no qual Pabst acerta suas contas com uma burguesia que ele julga execrável e hipócrita”(Jean Tulard). Louise faz o papel de  Thymiane, uma jovem  que é seduzida, abandonada, e vai para um reformatório, do qual escapa para um bordel. Lotte Eisner teve razão ao afirmar que “bastava deixar que Louise evoluísse na tela, sem que fosse necessário dirigí-la, pois sua simples presença realizava a essência de uma obra de arte”.

Entre a filmagem de A Caixa de Pandora e Diário de uma Pecadora, a Paramount tentou desesperadamente fazer contato com Louise. Enquanto ela estava na Alemanha, a conversão para o som prosseguia rapidamente e os estúdios resolveram introduzir segmentos sonoros em alguns de seus filmes mudos. O Drama de uma Noite foi um deles e a Paramount queria que Louise retornasse a Hollywood imediatamente para fazer os sound retakes. Louise não atendeu aos telefonemas de Schulberg. A Paramount achou que ela estava se fazendo de difícil e propôs lhe pagar quantias cada vez mais elevadas. Louise recusou todas. ”Volte ou você nunca mais trabalhará em Hollywood”, foi o último ultimato. “Quem quer trabalhar em Hollywood?”, retrucou Louise.

Sua obstinação não somente fez a Paramount perder tempo e dinheiro (pois teve que chamar Margaret Livingston para substituí-la) como também sofrer a humilhação por parte dos críticos, que acharam a dublagem péssima. Louise se vingou de Schulberg e ele, cumprindo suas ameaças, retaliou, espalhando a história de que a voz de Louise não gravava bem – uma mentira que persistiu  pelo resto de sua vida e de sua carreira.

Louise fez outro filme na Europa, Miss Europa / Prix de Beauté / 1930, inicialmente previsto para ser mudo, dirigido por René Clair. Finalmente, o argumento, escrito por Clair e Pabst, foi entregue às mãos do diretor italiano Augusto Genina, e sonorizado apressadamente. A história é banal: uma datilógrafa ganha um concurso de beleza apesar da desconfiança de seu noivo. Ela deverá escolher entre a glória e o amor. O filme não era um A Caixa de Pandora ou Diário de uma Pecadora, mas foi salvo por Louise Brooks (mesmo mal dublada “a única mulher que possui o talento de transformar em obra-prima qualquer filme”, como exclamou entusiasmado o crítico surrealista Ado Kyrou) e um final extraordinário, quando  a jovem é morta pelo noivo durante a exibição de um filme no qual ela era a vedete.

Quando Louise voltou para Hollywood, encontrou as portas fechadas. Aos 24 anos de idade, ela estava sem dinheiro e teve que reprimir seu orgulho. As marquises dos cinemas anunciavam “Garbo fala”, mas nenhuma trombeta saudava o primeiro filme sonoro de Louise Brooks, uma comédia de dois rolos intitulada Windy Riley Goes Hollywood, produzida em 1931 pela Mermaid Comedies Company (ex-Educational) e dirigida por William B. Goodrich, um dos pseudônimos humilhantes de Roscoe “Fatty” Arbuckle, ainda em desgraça após seus três julgamentos pelo suposto homicídio de Virginia Rappe.

William Wellman ofereceu a Louise o principal papel feminino em Inimigo Público / Public Enemy / 1931 ao lado de James Cagney, porém ela não estava interessada. Wellman ficou incrédulo. Eles se reencontraram um ano depois no bar do Tony’s Restaurant em Nova York e ele perguntou: “Por quê você sempre odeia fazer filmes, Louise?”. Ela ficou confusa por um momento  mas finalmente respondeu que não era fazer filmes que ela odiava – era Hollywood. Como comentou Barry Paris na sua biografia da atriz (University of Minnesota, 1989), de onde extraímos a maioria das informações para este artigo, a recusa de Inimigo Público marcou o verdadeiro final da carreira de Louise Brooks.

Entretanto, ela ainda conseguiu fazer mais 6 filmes: Poder do Anúncio / It Pays to Advertise / 1931 (Dir: Frank Tuttle) e God’s Gift to Women / 1931 (Dir: Michael Curtiz), em ambos num plano secundário; um western ridículo, O Rancho das Feitiçarias / Empty Saddles / 1936 com Buck Jones; O Amor é um Jogo / King of Gamblers / 1937 (Dir: Robert Florey), do qual a única cena com Louise foi cortada; Prelúdio de Amor / When You’re in Love / 1937 (Dir: Robert Riskin) com Louise apenas em um número de balé; e Bandidos Encobertos / Overland Stage Raiders /  1938 (Dir: George Sherman), um dos filmes mais fracos da série Os Três Mosqueteiros / The Three Musqueteers com John Wayne, Max Tehrune e Ray Corrigan.

No intervalo entre essas filmagens, Louise conheceu um playboy de Chicago, campeão de polo e excelente dançarino, chamado Deering Davis, com o qual se casou e formou a dupla de dança Brooks e Davis. Porém o matrimônio durou apenas seis meses e logo Louise arranjou um novo parceiro, Dario Lee (Dario Borzani). Dario e Louise dançaram juntos de junho de 1934 a agosto de 1935, quando o par se dispersou. Louise então abriu uma escola de dança com o dançarino Barry Shear e um terceiro sócio, Fletcher Crandall, que era um escroque e precipitou o fim da escola.

Desgostosa, deprimida e desprovida de recursos, Louise achou que já era tempo de dizer adeus a Holywood de uma vez por todas. Em 30 de julho de 1940, ela tomou o trem para a sua cidade natal no Kansas.

Louise fundou uma nova escola de dança em Wichita com Hal McCoy e escreveu um folheto,  “The Fundamentals of Good Ballroom Dancing”. Em 1943, ela voltou para Nova York, onde exerceu diversas atividades – desde participações em programas de rádio a emprego de balconista na Saks da 5a Avenida. Cinco anos depois, Louise começou a escrever a sua autobiografia, “Naked on My Goat”, mas destruiu-a, antes que fosse publicada.

Em 1955, Henri Langlois, diretor da Cinemateca Francesa, organizou uma retrospectiva sbre ela em Paris. Quando alguém se aventurou a dizer que um tributo a Garbo ou Marlene Dietrich teria sido mais apropriado, Langlois se exaltou: “Não existe Garbo! Não existe Dietrich! Só existe Louise Brooks!”. Após este renascimento inesperado, Louise se mudou para Rochester, Nova York, onde estudou os filmes mudos nos arquivos da Eastman House e iniciou uma carreira como escritora. Seus artigos apareceram em muitas revistas de cinema e uma coletânea deles foi publicada no livro “Lulu in Hollywood” (1982).

Neste artigo, deixamos de abordar outros fatos marcantes de sua existência – ter sido molestada aos 9 anos de idade por um pintor de paredes de 45 anos, com o nome impróprio de Mr. Flowers (o verdadeiro “Rosebud” de sua vida cf. Paris); seu relacionamento com os amantes mais famosos, Walter Wanger, Charles Chaplin (“um amante sofisticado”, segundo ela),  G. W. Pabst, o jovem William S. Paley, futuro fundador da CBS, e com George Preston Marshall (dono de uma enorme cadeia de lavanderias, que foi também seu agente); sua amizade com Peggy Fears e Pepi Lederer (sobrinha de Marion Davies) e a revelação de que passou uma noite com Greta Garbo; o documentário Lulu in Berlin / 1984 realizado por Richard Leacock, pioneiro do cinema verdade americano; as entrevistas com Kenneth Tynan, John Kobal e Kevin Brownlow, as homenagens de Godard através de sua musa Anna Karina e de Guido Crepax com a sua Valentina dos quadrinhos, etc. -, que você poderá conhecer em detalhes no livro de Barry Paris.

Louise Brooks, que os íntimos chamavam de “Brooksie”, faleceu aos 78 anos de idade, de um ataque do coração, na noite de 8 de agosto de 1985.

Henri Langlois falou assim uma vez sobre Louise Brooks: “Sua arte é tão pura que se torna invisível”.

CINEMA NO RÁDIO

A princípio, o rádio – tal como no futuro a televisão – foi considerado um inimigo pelos executivos de Hollywood. Durante certo tempo, os estúdios proibiram seus astros contratados de trabalharem no novo meio de comunicação, com receio de que suas aparições diminuíssem o seu valor nas bilheterias dos cinemas. Até 1940, alguns exibidores ainda se queixavam de que os estúdios, permitindo os astros a aparecerem no rádio, estavam oferecendo de graça, o que os proprietários das salas tentavam vender.

Porém, tal como ocorreu com relação à televisão, Hollywood eventualmente fez as pazes com o rádio. O cinema e o rádio não somente estabeleceram uma coexistência pacífica como se ajudaram mutuamente, na medida em que os programas radiofônicos passaram a promover os novos lançamentos de filmes e as carreiras dos atores. O cinema finalmente serviu como uma fonte de alimento substancial para o rádio quando as adaptações de filmes de sucesso tornaram-se uma atração no ar.

A primeira pessoa a romper a barreira do controle dos estúdios  foi a colunista Louella Parsons. Em 1934, ela lançou Hollywood Hotel, um programa de variedades, tendo como anfitrião Dick Powell, no qual a própria Louella conduzia as entrevistas e divulgava as últimas notícias sobre as celebridades. Louella era tão temida e poderosa na época, com uma coluna lida diariamente por milhões de pessoas nos jornais de William Randolph Hearst, que ninguém se atrevia a esnobá-la. Ela usava sua influência e poder para fazer com que a elite do mundo do cinema participasse de seu programa – de graça – em troca de generosas inserções de anúncios do seu último filme. Em muitos casos, os astros apareciam em versões radiofônicas de vinte minutos de seus filmes, que eram selecionados por Louella. Em 1938, o Radio Guild tomou uma posição firme contra a radiodifusão gratuita, pondo um fim à era de Parsons.

O próximo programa que ofereceu adaptações radiofônicas de filmes, foi o Lux Radio Theater. Ele tinha os artistas mais famosos, os maiores orçamentos e, durante o seu auge, tinha o diretor de Hollywood mais proeminente como seu mestre-de-cerimônias. O som do programa era austero, quase solene. Quando Cecil B. DeMille abria a transmissão dizendo o seu “Saudações de Hollywood, senhoras e senhores”, ele soava quase como “Aqui é Deus, falando do paraíso”. Muita gente pensava que DeMille era o diretor do programa, porém ele apenas o apresentava e conversava com os astros no final da transmissão, despedindo-se com um floreio memorável: “Aqui é Cecil B. DeMille, dizendo boa noite de Holly – wood!”.

O Lux Theater, patrocinado pela Lever (que fabricava o sabonete e o detergente Lux), começou modestamente em Nova York em 1934 e ofereceu nas suas duas primeiras temporadas adaptações radiofônicas de peças da Broadway. Em 1 de junho de 1936, o programa foi transferido para Hollywood, passando a transmitir radiodramas de filmes, algumas vezes com o mesmo elenco mas, frequentemente, colocando astros diferentes nos papéis principais.

O primeiro dos 387 filmes que tiveram DeMille como apresentador, foi Marrocos / Morocco / 1930,  reintitulado no rádio de The Legionnaire and the Lady, com as vozes de Marlene Dietrich e Clark Gable e podemos cita exemplos de substituições mais curiosas: A Carta / The Letter / 1940 com Merle Oberon e Walter Huston;  Anna Christie / Anna Christie / 1930 com Joan Crawford e Spencer Tracy; Lanceiros da Índia / The Lives of a Bengal Lancer / 1935 com Errol Flynn e Brian Aherne; Adeus Mr. Chips / Goodbye Mr. Chips / 1939 com Laurence Olivier e Edna Best; Pigmalião / Pygmalion / 1938 com Jean Arthur e Brian Aherne; Jezebel / Jezebel / 1938 com Loretta Young e Brian Aherne; Núpcias de Escândalo / The Philadelphia Story / 1940 com Robert Taylor, Loretta Young e Robert Young; Estranha Passageira / Now Voyageur / 1942 com Ida Lupino e Paul Henreid; Relíquia Macabra / The Maltese Falcon / 1941 com Edward G. Robinson e Gail Patrick, Laird Gregar; Sétimo Céu / Seventh Heaven /1937 com Miriam Hopkins e John Boles; Nosso Barco, Nossa Alma / In Which we Serve / 1942 com Ronald Colman e Edna Best, O Cowboy e a Granfina / The Cowboy and the Lady /  1938  com Gene Autry  e Merle Oberon, etc.

O programa era transmitido ao vivo do Music Box Theater, situado no Hollywood Boulevard com Vine Street. O teatro tinha mais de mil lugares, que ficavam completamente lotados a cada semana. O público desempenhava um papel reduzido, mas vital, aplaudindo efusivamente quando ouvia o tema musical ou rindo discretamente durante uma comédia.

Aconteciam alguns contratempos, porém o show sempre continuava. A adaptação de Jornadas Heróicas / The Plainsman / quase não foi ao ar, porque os astros Gary Cooper e Jean Arthur apanharam uma gripe no véspera da gravação. Apesar  de se sentir fraca e febril, Jean conseguiu interpretar seu papel enquanto Fredric March, que fora convocado para substituir Cooper, passou a noite toda treinando para falar num dialeto do Oeste, algo que nunca fizera anteriormente. Outra quase catástrofe ocorreu quando os fãs frenéticos de Robert Taylor e Jean Harlow arrombaram uma porta de saída de incêndio, invadiram o auditório, provocando um tumulto com o público que havia comprado entradas. Mesmo assim, o programa prosseguiu, porque a desordem surgiu num trecho da transmissão que requeria uma cena de multidão.

Certa vez, o Lux colocou no ar um “filme” que não havia sido feito. Barbara Stanwyck descobriu uma peça de teatro, “Dark Victory” (cujo elenco fora encabeçado por  Tallulah Bankhead na Broadway) e percebeu que se tratava de um grande espetáculo. “Eu tinha que fazê-la, tinha que dizer aquelas falas”, ela iria declarar mais tarde, “Tornou-se uma obsessão”. Segundo a atriz, foi ela quem insistiu para que o Lux adquirisse os direitos da peça, que pertenciam então a David O. Selznick. No dia da transmissão, o diretor Edmund Goulding ouviu-o no rádio de seu carro e persuadiu Jack Warner a comprar os direitos de Selznick, a fim de que ele pudesse dirigir o filme. Barbara leu o anúncio sobre a nova produção nos jornais e pensou que fosse ser escolhida para o papel principal no filme. Mas depois soube que haviam dado o papel para Bette Davis.

A primeira transmissão  em Hollywood custou 17 mil dólares, aproximadamente 300 dólares por minuto. Quase a metade das despesas foi para as mãos dos dois astros principais: 5 mil para Marlene Dietrich e 3.500 para Clark Gable. Mas o show ficou entre os dez melhores do rádio, permanecendo nesta posição na maior parte de sua existência. DeMille adorava o programa: “Eu não trocaria por um milhão de dólares a experiência que tive no rádio”, ele declarou em 1938. Entretanto , o “mandato de DeMille chegou ao fim abruptamente em janeiro de 1945 por força de uma disputa política com a American Federation of Radio Artists, o sindicato dos atores. A questão em debate era a Proposition 12, uma proposta de votação, de uma lei conhecida popularmente como “lei do direito ao trabalho”. Esta lei permitiria a qualquer pessoa trabalhar no rádio sem ser membro de um sindicato. A AFRA decidiu criar um fundo de campanha para combatê-la, arrecadando a taxa de um dólar de cada membro do sindicato, para este propósito. DeMille recusou-se a pagá-la e não permitiu que isso ocorresse. Ele declarou que simpatizava com os ideais do sindicato mas na verdade não confiava na AFRA. A AFRA extendeu o prazo para que ele mudasse de idéia porém DeMille não cedeu. Assim, ele abriu mão de seu emprego muito bem remunerado no Lux por causa de um dólar.

Então DeMille foi substituído sucessivamente  por William Keighley (1945 a 1952) e Irving Cummings (1952 a 1955). Após a saída de DeMille foram ao ar, entre outros, adaptações de dois westerns famosos: Flechas de Fogo / Broken Arrow / 1950 com Burt Lancaster no lugar de James Stewart e Os Brutos Também Amam / Shane / 1953 com o mesmo Alan Ladd, que interpretara o personagem na tela.

The Mercury Theater foi a culminação de uma parceria entre Orson Welles, o “garoto maravilha” do palco e do rádio e John Houseman, ex-comerciante que demonstrou uma paixão pelo teatro quando o mercado de grãos entrou em colapso. Welles tornar-se-ia mundialmente famoso como cineasta e Houseman ficaria na obscuridade até ganhar fama como ator aos 70 anos de idade. A  sociedade durou apenas três anos, 1935-1938, durante os quais Orson Welles e John Houseman criaram o teatro mais surpreendente e comentado que Nova York havia visto em décadas.

Em junho de 1938 Welles foi abordado pela CBS, que lhe ofereceu um horário para a transmissão de um Mercury Theater on the Air. A notícia causou muita apreensão por parte de Houseman, cuja única experiência com o rádio havia sido como ouvinte. Ele estava acostumado com semanas de ensaio e ficou espantado quando lhe disseram que ia entrar no ar em duas semanas, em 11 de julho. Houseman protestou, alegando que não sabia nada sobre o rádio. Welles disse que seria melhor que começasse a aprender e lhe deu a incumbência de preparar um roteiro com ele.

Eles escolheram “A Ilha do Tesouro” como espetáculo de estréia Tudo o que Houseman teria que fazer, Welles lhe assegurou, era sentar-se com o romance de Robert Louis Stevenson nas mãos e adaptá-lo – praticamente um trabalho de corte. Ele, Welles, seria o diretor, o narrador e, é claro, o astro. Welles narraria a história como se fosse um Jim Hawkins adulto e também interpretaria Long John Silver. O programa seria transmitido somente para os ouvintes sem uma platéia no estúdio e aplausos perturbadores. Foi a primeira vez que o rádio oferecia um horário para uma companhia teatral inteira.

Houseman estava uma semana atrasado na sua tarefa, quando Welles lhe comunicou que estreariam com o clássico de horror de Bram Stoker, “Dracula” em vez de A Ilha do Tesouro. Welles interpretou Dracula com um dialeto marcante e assumiu também o papel do Dr. Seward. Martin Gabel interpretou Van Helsing; George Colouris era Jonathan Harker; e Agnes Moorehead, Mina Harker. Bernard Herrmann cuidou da direção musical, usando como tema de abertura  o Concerto para Piano Número 1 em Si bemol menor de Tchaikovsky.

A imprensa acolheu muito bem o programa e Welles prosseguiu com a transmissão adiada de A Ilha do Tesouro. Houseman continuou como adaptador e Welles tentando novas técnicas. Para O Conde de Monte Cristo, os dois atores que interpretavam as cenas na masmorra a fizeram no assoalho de um banheiro, onde Welles havia colocado dois microfones potentes diante da base do assento  do vaso sanitário, num esforço para obter repercussões subterrâneas realistas. Outro microfone estava dentro do vaso com a tampa aberta. O fluxo da água, recordou Houseman, “causou uma impressão fiel de ondas se quebrando contra as paredes do Chateau d’If.”

Os shows eram criados, semana após semana sob muita pressão. Houseman continuou como adaptador solitário. Ele tinha que resumir para 60 minutos, em três dias, todos os longos romances que Welles decidisse colocar no ar. A certa altura, Howard Koch pediu a Houseman que o empregasse como roteirista e Houseman, com prazer, passou para ele o trabalho incessante de adaptador. Koch nem desconfiou de que estava entrando para a história do rádio.  Um mês depois, ele produziria o script da transmissão radiofônica mais famosa de todos os tempos, que eu ouví entusiasmado há uns anos atrás.

Segundo informação de John Dunning (On the Air –The Encyclopedia of Old-Time Radio, Oxford University / 1998), para a temporada do Dia das Bruxas, Welles queria um programa de assombração e decidiu retirar a poeira da fantasia escrita em 1898 por H. G. Wells, “A Guerra dos Mundos”. As vozes discordantes tinham receio de que a história estivesse irremediavelmente datada e se tornasse entediante no ar. Porém Koch tinha seu prazo para realizar o serviço e a data seria dentro de seis dias. Welles traçou algumas diretrizes gerais: ele queria que a história fosse contada  através de uma série de boletins de notícias entremeados com a narrativa na primeira pessoa. Quando Koch leu o original, teve um sentimento de desespero. H.G. Wells havia situado seu romance na Inglaterra e seu estilo literário estava ultrapassado. Koch compreendeu que só poderia aproveitar do autor a idéia da invasão marciana,  a sua descrição da aparência dos marcianos e de suas máquinas. Em suma: ele estava sendo chamado para escrever quase que um original inteiramente novo em seis dias.

Depois de muito esforço, o script ficou pronto e Welles – que até então não tomara conhecimento de nada, deixando os ensaios por conta  de seu produtor associado Paul Stewart – assumiu a direção dos ensaios finais, fez algumas modificações no script e, às 8 horas da noite do dia  30 de outubro de 1938,  o programa foi colocado no ar.

O locutor Dan Seymour anunciou claramente que o The Mercury Theater on the Air estava apresentando a produção de Orson Welles, baseada em “A Guerra dos Mundos” de H. G. Wells. Welles leu um breve prólogo, situando a história num futuro próximo. Então, entrou no ar um boletim metereológico e depois ouviu-se uma banda (os músicos de Bernard Herrmann fazendo-se passar por Ramon Raquello e sua orquestra), tocando uma versão popular de La Cumparsita. A música foi interrompida por um boletim de noticias anunciando “explosões de gás incandescente a intervalos regulares no planeta Marte”. La Cumparsita terminou e começou a tocar Star Dust, ouvindo-se aplausos. Outro boletim de noticias: o repórter Carl Phillips estava sendo enviado para o observatório de Princeton, a fim de entrevistar o eminente astrônomo, Professor Richard Pierson. Como Pierson, Welles teceu várias considerações sobre astronomia; então foi anunciado, que ele e Phillips iriam correndo para Grovers Mill, em New Jersey, onde um choque “de uma intensidade quase de um furacão” havia sido registrado. Mais noticias foram lidas. Um enorme cilindro havia caído no campo do Fazendeiro Wilmuth, que gostou de falar sobre isso. Ouviu-se também a especulação de Phillips sobre a natureza extraterrestre da caixa de metal. De repente, um estrépito metálico, obviamente a porta do veiculo espacial  atingindo a Terra, foi seguido pelo que muitos ouvintes se lembrariam como as falas mais aterrorizantes que eles jamais escutaram no rádio. Alguém estava rastejando para fora do buraco da caixa … alguém ou algo. Dois discos luminosos eram visíveis … podiam ser olhos, podia ser um rosto. Agora, algo movimentando-se na sombra como uma cobra cinzenta … tentáculos … mais um e mais outro … e o corpo da coisa, grande como um urso. E a face: os olhos negros, brilhando como os de uma serpente, com uma boca em forma de V gotejando saliva. O monstro montou sua máquina de combate e desfechou um raio de calor. Soldados ficaram em chamas e estas se espalharam por toda parte. Subitamente, Phillips saiu do ar. Um tempo morto aumentou  a tensão. Mais boletins. Os trabalhadores da emergência da Cruz Vermelha foram despachados para o local. Houve congestionamento de pessoas correndo aterrorizadas pela ponte.

Finalmente, veio o anúncio que definiu o programa: “Senhoras e senhores, por incrível que pareça, tanto as observações da ciência como a evidência diante dos nossos próprios olhos levam à suposição inescapável de que aqueles seres estranhos que aterrissaram nas terras da fazenda de New Jersey hoje a noite são a vanguarda de um exército invasor vindo do planeta Marte”. Mais boletins de notícias. Cilindros marcianos estavam caindo sobre todo o país. Em Nova York, o inimigo podia ser visto, surgindo no alto dos rochedos Palisades. Em Manhattan, a fumaça estendeu-se pela Quinta Avenida, veio se aproximando e, de novo, fêz-se um silêncio terrível. A última voz patética foi a de um rádio amador: “2X2L chamando QG, Nova York, … Não há ninguém no ar? … Não há ninguém no ar?…Não há ninguém …?”

Mais ou menos neste instante, o supervisor do programa, Davidson Taylor, saiu do estúdio, para atender um telefonema. Quando retornou, seu rosto estava pálido. O pânico havia começado em New Jersey e se espalhado para o Norte e o Oeste. Um hospital de Newark atendeu vinte pessoas em estado de choque. Uma mulher em Pittsburg foi salva por seu marido quando tentava tomar veneno. Uma falta de energia numa pequena cidade do Meio-Oeste  no pico do programa deixou as pessoas gritando nas ruas. Em Boston, famílias se reuniram nos telhados,  e imaginaram que podiam ver um rubor vermelho no céu enquanto Nova York se incendiava.

No Estúdio Um na CBS, Taylor havia recebido informações de que tumultos e acidentes estavam aumentando a cada instante por toda a nação. Alarmado, ele ordenou que o show fosse interrompido imediatamente e que fosse anunciado que tudo não passava de ficção. Porém Welles havia chegado ao intervalo após 40 minutos de transmissão. Dan Seymour foi ao microfone e disse: “Você estão ouvindo a apresentação da CBS de Orson Welles e do The Mercury Theater on the Air numa dramatização original de “A Guerra dos Mundos” de H. G. Wells”. Este anúncio foi seguido por mais 20 minutos da dramatização com Welles, como o Professor Richard Pierson, descrevendo as consequências da guerra. No clímax, os marcianos são eliminados por uma simples bactéria da Terra. Tudo estava bem de novo com o mundo.

Entretanto, mal acabara de tocar o tema musical de Tchaikovsky e a polícia irrompeu pelas portas do estúdio, confiscando scripts e segregando os atores. Estes foram mantidos durante algum tempo num escritório dos fundos e depois entregues aos repórteres. As perguntas eram duras e apavorantes. Sobre quantas mortes eles tinham ouvido falar? … insinuando, como Houseman contou, que eles teriam sabido de milhares de mortes.  Estavam cientes das mortes no trânsito e dos suicídios? As valas devem estar cheias de cadáveres, Houseman pensou. Logo após, os atores foram libertados. Houseman achou “surpreendente ver a vida continuando como sempre nas ruas noturnas”. De fato, não houve mortes. Houve algumas batidas e arranhões, um osso quebrado ou dois, e uma enxurrada de ações judiciais contra a CBS. Quanto a Orson Welles ele se tornou um astro da noite para o dia no mundo do espetáculo.

A Campbell Soups ofereceu-se para patrocinar o programa e, em dezembro, já com o nome de Campbell’s Playhouse, ele foi promovido para o status de primeira classe. A Campbell encorajou Welles a integrar regularmente no programa adaptações de filmes e lhe concedeu verba para contratar astros do cinema. Todavia, isto nem sempre funcionou. Como informou Leonard Maltin  (The Great American Broadcast – A Celebration of Radio’s Golden Age, Dutton / 1970), tendo em vista a transmissão de Beau Geste em 1939, a Campbell recrutou não somente Laurence Olivier mas também Noah Beery Sr. para recriar o papel do abominável Sargento LeJeune, que ele havia interpretado na versão muda do filme em 1926. Infelizmente, nem ele nem Olivier se saíram bem. Aconteceu Naquela Noite com Miriam Hopkins e William Powel, e Welles no papel do pai da herdeira fugitiva, era extraordinariamente maçante apesar dos astros (Curiosamente, o único momento do filme que dependia do som foi desperdiçado nesta produção: o carro freiando, quando a heroína suspende sua saia para atrair o motorista). Na versão radiofônica de Welles, o carro simplesmente para sem nenhum efeito de som exagerado). Mais um exemplo dado por Maltin: Welles, insensatamente, se escalou para o papel de Longfellow Deeds, o personagem de Gary Cooper em  O Galante Mr. Deeds . Apesar de todo o seu brilho, ele não conseguiu convencer como um amável caipira. Entretanto, esta produção incluía uma inside joke. O médico vienense chamado para declarar a insanidade de Deeds  é o grande especialista, Dr. Herman Mankiewicz. Na vida real, Mankiewicz estaria logo colaborando com Welles no roteiro de Cidadão Kane. Mas, na verdade, Welles estava mais preocupado do que nunca com o teatro e projetos de filmes durante este período, o que era visível.  O Campbell Playhouse iria abaixar a sua última cortina em março de 1940.

Com o patrocínio da Maxwell House, a Metro-Goldwyn-Mayer produziu o programa Good News of 1938, tornando cada astro do seu elenco (“exceto Garbo”) disponível no ar pela NBC. Era um programa com  música (a cargo de Meredith Wilson e sua orquestra e alguns convidados), comédia, e alguns instantâneos dos bastidores de Hollywood.  A cada semana havia a pré-estréia de um novo lançamento da MGM, dramatizado em versão condensada com os artistas originais nos papéis radiofônicos. Após oito semanas no ar, Fanny Bryce (como Baby Snooks) e Frank Morgan passaram a integrar o elenco, tornando-se a atração mais popular e divertida do espetáculo. Entretanto,  ao contrário do Lux, um programa exclusivamente dramático de uma hora de duração, Good News era um show de variedades, que tornou a conexão com um estúdio de cinema menos atraente do que deveria ter sido.

The Screen Guild Theater foi um programa de rádio (tendo como anfitrião George Murphy em parte da fase patrocinada pela Gulf Oil), no qual todos os astros se apresentaram voluntariamente. Ele foi criado quando a indústria do cinema estava empenhada na construção do Motion Picture Country House, um retiro para os artistas idosos e indigentes. As primeiras transmissões colocaram diante do microfone nada menos do que quatro astros ou estrelas de primeira grandeza por semana. As remunerações que normalmente teriam ido para o bolso dos artistas eram entregues ao Motion Picture Relief Fund, quase 880 mil dólares no verão de 1942 (porém os estúdios não eram inteiramente altruístas; no final de cada programa, anunciavam o novo filme do artista que participava da transmissão).

O programa (que mudou de patrocinador e de nome várias vezes: Gulf Screen Guild Show, Gulf Screen Guild Theater, The Lady Esther Screen Guild Theater, The Camel Screen Guild Players) começou como um show de variedades mas, após um ano no ar, passou a apresentar dramatizações de filmes de longa-metragem numa duração mais curta, tarefa que não era nada fácil. Norman Corwin, o primeiro adaptador contratado pelo produtor-diretor Harry Ackerman, escreveu um roteiro brilhante para A Loja da Esquina, no qual o personagem de Frank Morgan era o narrador e o espetáculo funcionou tão bem quanto na tela. (Porém nem toda adaptação radiofônica era bem sucedida. Um programa rival do Screen Guild, chamado Academy Award – que oferecia versões de filmes em cujo elenco se incluía pelo menos um artista que fora indicado para o Oscar – estreou em 1946 e saiu do ar 39 semanas depois. A adaptação de Correspondente Estrangeiro foi um exemplo perfeito de como um grande filme podia ser exaurido de todo o seu valor dramático).

Em matéria de novidade, entretanto, nenhum programa ultrapassou Suspense, uma antologia de histórias criminais (conhecida como um “o mais extraordinário teatro de emoções do rádio”) adorada pelos astros e estrelas de Hollywood. “Se eu fizer mais algum trabalho no rádio, quero fazê-lo em Suspense, porque ali terei a oportunidade de representar”, declarou Cary Grant em 1943, quando o show estava entrando na sua “era de ouro”. A razão deste entusiasmo era o produtor-diretor William Spier, que guiava cada aspecto do espetáculo, modelando história, vozes, sonoplastia e música em obras-primas radiofônicas. “Ele sabe tudo sobre música”, disse o  compositor Lucien Moraweck sobre Spier. “Algumas vezes ele conhece até mais do que o músico”.

Os atores sentiam que, contribuindo para um programa de qualidade superior como Suspense, aumentariam mais sua reputação do que ouvindo algumas insignificantes condensações dos filmes. Spier ficou conhecido como “o Hitchcock das rotas aéreas”. Ele exigia pouco ensaio dos astros, apenas algumas horas antes de o programa entrar no ar. Spier queria vê-los tensos diante do microfone e eles o recompensavam com desempenhos que eram quase uniformemente ótimos, igualando o nível alcançado pelos seus coadjuvantes mal pagos, os profissionais do rádio.

O programa se comparava com  histórias de detetives nem era um show de horror. Suspense estava mais relacionado com um indivíduo envolvido numa situação que se intensificava e logo se tornava insuportável. Geralmente, a solução era contida “até o último momento possível”.

A trama mais famosa de Suspense foi Sorry, Wrong Number, escrita por Lucille Fletcher e interpretada por Agnes Moorehead. Agnes desempenhou o papel da inválida Mrs. Elbert Stevenson  – que escuta por acaso uma linha cruzada  e ouve a voz de dois homens planejando o assassinato de uma mulher acamada – numa histeria crescente (como só ela podia fazer), que chegou a desmaiar durante a transmissão. Orson Welles proclamou Suspense o maior show radiofônico de todos os tempos e ele mesmo protagonizou vários excelentes espetáculos no mesmo programa. Eu tive a oportunidade de ouvir (com muito prazer) tanto Sorry Wrong Number como The Hitchhiker, uma poderosa história de um viajante através dos Estados Unidos, atormentado pela visão de um carona indefinido, que aparece dia após dia na margem da estrada. A popularidade daquele primeiro episódio levou a uma adaptação cinematográfica com Barbara Stanwyck em 1948 e depois ela recriou o papel no Lux Radio Theatre. O segundo episódio foi adaptado para a televisão em 1960 por Rod Serling no seu programa inesquecível, Além da Imaginação / Twilight Zone.

Algumas vezes Spier revertia o óbvio, convidando atores para interpretar personagens “contra seu tipo” como, por exemplo, Peter Lorre no papel de um cavalheiro ou Harry Carey como um assassino; Spier trouxe artistas que raramente tinham se associado a um drama forte como Lucille Ball, Judy Garland, Danny Kaye, Betty Grable, Mickey Rooney ou Donald O’Connor, os quais foram envolvidos no mundo sinistro de Suspense.

Nos meados dos anos 40, a competição por conteúdo relacionado ao cinema para ser usado no ar era intensa, para não dizer feroz mas Fletcher Markle descobriu, quando ele produziu e dirigiu Studio One, que ainda havia possibilidade de realizar um programa de sucesso.

Markle, um canadense de 26 anos, anunciou que o Studio One não ia empregar grandes astros (ele usaria o programa como uma companhia de repertório formada por experientes atores radiofônicos de Nova York como Everett Sloane, Mercedes McCambridge, etc.) e se concentraria em romances e peças de teatro, que haviam sido pouco exploradas no ar. Fiel a essa diretriz, ele estreou com a adaptação de “Under the Volcano” de Malcolm Lowry e continuou apresentando histórias que raramente ou nunca haviam sido ouvidas.

Porém quando as pesquisas de audiência caíram num nível muito baixo, Markle teve necessidade de contratar nomes mais famosos e de recorrer aos filmes, sobressaindo, entre outras, quando a Ford Motor Company assumiu o patrocínio do show (que passou a se chamar The Ford Theater), as versões radiofônicas de Madame Bovary / Madame Bovary / 1949 com Marlene Dietrich, Van Heflin e Claude Rains, e a de Satã Janta Conosco / The Man Who Came to Dinner / 1941 com Jack Benny. No cinema, Fletcher Markle realizou um filme muito bom e curioso, O Homem das Sombras / Man With a Cloak / 1951, com Barbara Stanwyck, Joseph Cotten, Leslie Caron e Louis Calhern, em cuja intriga de mistério, passada em Nova York no século dezenove, surge a figura  – mantida incógnita até o final – de Edgar Allan Poe.

Um dos últimos shows relacionados com Hollywood foi The Screen Directors Playhouse, lançado em 1948. Inspirando-se em seus colegas atores, os membros do Directors Guild resolveram levar ao ar um programa semanal em benefício do proprio fundo de pensão. A versão radiofônica de estréia, Stagecoach, apresentada pelo Presidente do Screen Directors Guild, George Marshall, reunia os astros do filme de nove anos atrás, John Wayne e Claire Trevor, com seu diretor, John Ford. Depois disso, cada show era apresentado pelo diretor do filme original, que voltava no final para btincar com os astros, quase sempre os mesmos atores principais dos filmes. A relação de diretores convidados, impressionava: John Ford (Sangue de Heróis / Fort Apache / 1948), Alfred Hitchcock (Um Barco e Nove Destinos / Lifeboat / 1994 e Quando Fala o Coração / Spellbound / 1945), Billy Wilder (A Mundana / A Foreign Affair / 1948), John Cromwell (O Prisioneiro de Zenda / The Prisoner of Zenda / 1937), William Wyler (Jezebel / Jezebel / 1938) e Henry Hathaway (Sublime Devoção / Call Northisde 777 / 1948), para citar apenas alguns.

Ao mesmo tempo em que a televisão estava nascendo no horizonte, mais uma instituição de Hollywood fez uma incursão no rádio quando a MGM resolveu tirar proveito de alguma de suas séries. Assim, Ann Sothern foi convocada para repetir o seu papel de Maisie, Mickey Rooney o de Andy Hardy e Lew Ayres o do Dr. Kildare no programa intitulado The MGM Theater of the Air, apresentado por Howard Dietz, vice-presidente do estúdio. Por ironia, no que dizia respeito a trabalho no cinema, a MGM deixou o contrato de Ann Sothern expirar, demonstrou desinteresse evidente por Mickey Rooney e não quís mais dar emprego para Lew Ayres na tela.

Finalmente, no Brasil, existiu, no final dos anos 40, um programa de rádio, Cinema em Casa, criação de Otávio Gabus Mendes na Rádio Difusora, feito, após sua morte, na Tupi, por Walter George Durst. Conforme nos informou Antonio Adami no seu trabalho “Walter George Durst na Rádio Tupi e o Cinema em Casa”, a adaptação dos filmes era fiel ao original: diálogos mantidos quase intactos; trilhas sonoras – geralmente gravadas durante a exibição dos filmes em sessões comuns dos cinemas – aproveitadas da melhor forma possível; a linguagem cinematográfica transposta com habilidade para o rádio.

Alguns dos filmes adaptados dentro do Cinema em Casa foram: Casablanca / Casablanca / 1942, O Diabo Disse Não / Heaven Can Wait / 1943 , Carícia Fatal / Of Mice and Men / 1939, Crepúsculo dos Deuses / Sunset Boulevard / 1950, Os Melhores Anos de Nossas Vidas / The Best Years of Our Lives / 1946, O Morro dos Ventos Uivantes / Wuthering Heights / 1939, O Tesouro de Sierra Madre / The Treasure of the Sierra Madre / 1948, O Idiota / L’ Idiot / 1945, Os Amantes de Verona / Les Amants de Verone / 1948, Sinfonia Pastoral / La Simphonie Pastorale /  Na Solidão da Noite / Dead of Night / 1945, etc.

O elenco básico do programa incluía: Walter Forster, Cassiano Gabus Mendes, Heitor de Andrade, Lima Duarte, Lia de Aguiar, Guiomar Gonçalves, Flora Geni, Laura Cardoso, Wilma Bentivegna, Néa Simões, Walter Avancini, Celia Rodrigues, Fernando Baleroni, Milton Ribeiro, Xisto Guzzi, João Monteiro, Manoel Inocêncio, Araken Saldanha, Amaral Novais, Luiz Orioni e Julio Nagib, nomes que, como disse Adami, se inscreveram mais tarde nos primeiros capítulos da história da televisão brasileira.

MICHEL SIMON

Em mais de cinquenta anos de vida no mundo do espetáculo, Michel Simon conseguiu construir uma carreira rica e abundante tanto no cinema como no teatro.

Filho de Joseph Simon e de Véronique Burnat, François-Michel nasceu em Genebra, Suiça, no dia 9 de abril de 1895.  Seu pai era salsicheiro e numismata de coração, especializado em moedas antigas, gregas ou romanas.

Em 1912, Simon afastou-se dos estudos e de sua família e foi para Paris, onde exerceu várias profissões (palhaço acrobata contracenando com um par de dançarinos ou com um prestidigitador, professor de boxe, fotógrafo) mas o encontro com Georges Pitoeff decidiu seu futuro como ator.

Fazendo pequenos papéis na trupe de Pitoeff em peças de  Shakespeare, Theckov e Bernard Shaw, Simon chamou a atenção dos críticos, que reconheceram seu enorme talento, principalmente quando ele interpretou o diretor de teatro em “Seis personagens à procura de um autor de Pirandello.

No começo de 1922 a trupe de Pitoeff transferiu-se para a Comédie des Champs Élysées porém, um ano depois, Simon deixou-a, para atuar em vaudevilles de Tristan Bernard, de Yves Mirande e de Marcel Achard,  e também em comédias musicais escritas por Albert Willlemetz.

Em seguida, ele foi contratado por Louis Jouvet, que havia substituído Pitoeff na Comédie des Champs Élysées, e foi com Jouvet, numa peça de Marcel Achard, Jean de la Lune, que Simon se impôs de uma vez por todas de maneira brilhante. Seu talento inimitável transformou o papel secundário de Cloclo na principal atração do espetáculo.

A trajetória teatral de Michel Simon prosseguiria de sucesso em sucesso mas foi o cinema que lhe trouxe uma imensa popularidade. Ele estreou na tela em 1925, primeiramente ao lado de Ivan Mosjoukine em Feu Mathias Pascal de Marcel L’Herbier, baseado em Pirandello e, quase ao mesmo tempo, em um filme realizado na Suiça, La Puissance du Travail ou La Vocation D’André Carrell realizado por Jean Choux.

Após ter participado de mais alguns filmes (vg. La Passion de Jeanne d’Arc / 1928 de Carl Dreyer), sua carreira cinematográfica se iniciou verdadeiramente com a versão para a tela de Jean de Lune / 1931, na qual ele contracenou com Madeleine Renaud e René Lefevre. Segundo seu depoimento, Simon teria participado ativamente da direção do filme, que foi porém assinada por Jean Choux.

Jean Renoir dirigiu-o nas suas obras de encomenda, Tire au Flanc / 1928 e On Purge Bébé / 1931 e uma relação se estabeleceu entre o cineasta e o intérprete, os quais resolveram associar-se a projetos mais pessoais, mais ambiciosos como A Cadela / La Chienne / 1931, sucedendo-se uma outra realização muito importante, Boudu Sauvé des Eaux / 1932.

Excetuando um casamento de alguns meses com Yvonne Prieur (que lhe deu um filho, François), Simon era um misantropo, que vivia à margem da sociedade no meio de seus animais (quatro macacos, uma cadela, cinco gatos, e um papagaio) e da natureza na sua vila de Noisy-le-Grand. Ele detestava seu físico grosseiro e, como não podia fazer o galã, era frequentemente escalado para interpretar personagens mais velhos. Simon demonstrava sempre uma versatilidade virtuosística retratando figuras brincalhonas ou grotescas em acréscimo aos seus muitos papéis trágicos.

Durante a Ocupação, Simon foi denunciado à Gestapo como judeu e acusado de comunista. Quando veio a Libertação, ele foi apontado como colaboracionista e convocado, como tantos outros, diante de um Comitê de Purificação. Simon escapou ileso de todas as acusações. Após sua morte, um jornal político, l’Evénement du Jeudi, revelou que ele teria sido agente da N.K.V.D. mas não surgiu uma prova sólida a respeito

A proeminência de Simon  nos filmes franceses foi ameaçada no final dos anos 50 em virtude de uma alergia, provocada por uma tintura que usou numa maquilagem, a qual atacou seu sistema nervoso, paralisando parte de seu corpo e de sua face. Porém ele se recuperou e teve um retorno triunfante como astro com uma magnífica performance em Le Viel Homme et l’Enfant / 1967 (Dir: Claude Berri) como um camponês anti-semita, cuja natureza humanista é revelada através do relacionamento com um menino judeu durante a guerra.

Ao longo de sua extensa carreira, Michel Simon fez 100 longas-metragens, entre os quais estão algumas obras-primas do cinema francês. Destas 100 produções, ví apenas 25 e, para este artigo, relacionei as minhas 15 interpretações favoritas do ator: A Cadela / La Chienne / 1931, Boudu Salvo das Águas / Boudu Sauvé des Eaux / 1932, Atalante / L’Atalante / 1934, Família Exótica / Drôle de Drame / 1937, O Mistério do Colégio / Les Disparus de Saint-Agil /1938, Caís das Sombras / Quai des Brumes / 1938, Paixão Criminosa / Le Dernier Tournant / 1939, La Fin du Jour / 1939, Fric Frac / 1939, O Demônio de Paris / Vautrin / 1943, Pânico / Panique / 1946, Trágica Inocência / Non Coupable / 1947, Entre a Mulher e o Diabo / La Beauté du Diable / 1949, La Poison / 1951, La Vie d’un Honnête Homme / 1952.

A CADELA (Dir: Jean Renoir): Maurice Legrand (Michel Simon) é um homem  respeitável  que, sem poder se livrar de Adèle (Magdeleine  Bérubet), sua esposa rabugenta, e da função monótona de caixa de um estabelecimento comercial, dedica-se à pintura nos fins de semana. Uma noite, Legrand conhece a prostituta Lulu (Janie Marèze), que é explorada pelo rufião Dédé (Georges Flamant). Para sustentá-la em um pequeno apartamento, Legrand dá um desfalque na firma. Dédé convence Lulu a vender os quadros de Legrand, assinando-os como se fossem de uma artista americana. Legrand surpreende Lulu mas é Dédé que será acusado da morte e executado.

Legrand pequeno burguês tímido é capaz das mesmas vilanias que o rufião Dédé. Ele não sente o menor remorso por ter cometido o crime e até assiste, com uma alegria selvagem, a execução de seu rival. Simon traduz perfeitamente os tormentos de seu personagem, expressando uma violência muda. Obedecendo a Renoir, que lhe pediu para não elevar a voz nas situações extremas, ele pronuncia no mesmo tom as réplicas mais terríveis: ”Você não é uma mulher. Você é uma cadela”. Fora da tela, Simon estava apaixonado pela atriz porém foi Flamant quem a conquistou. Terminada a filmagem, Flamant ofereceu a Janie uma viagem e eles partiram num carro esporte, que haviam comprado para a ocasião. O acidente, que aconteceu na estrada de Sainte-Maxime, matou a atriz mas poupou o condutor. “Michel Simon sofreu o golpe tão dolorosamente – contou Renoir –   que ele desmaiou no enterro”. Segundo consta, Charles Chaplin possuía uma cópia de A Cadela, que projetava para seus amigos dizendo-lhes: “Vou lhes mostrar o maior ator do mundo”.

BOUDU SALVO DAS ÁGUAS (Dir: Jean Renoir): Boudu (Michel Simon), simpático mendigo parisiense, tenta se suicidar mas é salvo por Lestingois (Charles Granval), que tem como amante a própria empregada, Anne-Marie (Séverine Lerczinska). Sentindo-se responsável por Boudu, Lestingois leva-o para sua casa. Em pouco tempo, Boudu corteja Anne-Marie e conquista Mme. Lestingois (Marcelle Hainia) até que os dois casais, Boudu – Mme. Lestingois e Lestingois – Anne Marie descobrem reciprocamente o duplo adultério. Para salvaguardar as aparências burguesas, Lestingois resolve casar Boudu com Anne-Marie. Porém Boudu prefere a liberdade.

Boudu nunca diz obrigado, comporta-se mal à mesa, resmunga quando não consegue o que quer, saqueia a cozinha, cospe nos livros (logo no livro mais querido de Lestingois, A Fisiologia do Casamento, de Balzac), bolina Anne – Marie, acalma “os nervos” de Mme. Lestingois. Fauno anarquista e amoral, ele só segue o seu instinto e se choca com a sociedade burguesa, cujas regras é incapaz de respeitar. Boudu é o selvagem que reage contra a hipocrisia social, as regras e os costumes. Era preciso um ator como Michel Simon para fazer sentir a desordem que Boudu introduz no lar de Lestingois. “Simon é extraordinário”, disse Renoir durante as filmagens, “e não se pode imaginar um selvagem mais natural”.

ATALANTE (Dir: Jean Vigo): Jean (Jean Dasté), proprietário da barca Atalante, casa-se com Juliette (Dita Parlo) e a leva para bordo, onde a moça aprende a viver na companhia do marido, do Père Jules (Michel Simon), velho lobo do mar pitoresco e resmungão, e de um jovem grumete. A única distração para Juliette é o Père Jules, com seu gato nos ombros e seu acordeão, e ela aguarda com impaciência a chegada a Paris. Quando a Atalante atraca no porto, Jean leva Juliette a um baile. Um camelô (Gilles Margaritis) flerta com Juliette e Jean, enciumado, põe fim à escala. O camelô vem procurar Juliette na barca mas ela Ju parte, e Père Jules a traz de volta.

Com a inserção de uns detalhes curiosos sobre os personagens e de lampejos surrealistas, Vigo transformou uma intriga banal e melodramática em um poema de amor. A encarnação do Père Jules por Michel Simon representa a grande atração do filme. Coberto de tatuagens, fumando com seu umbigo, vestido de mulher para fazer a dança do ventre, capaz de fazer nascer a música com um gesto (seu dedo substitui a agulha do fonógrafo), dono de um museu secreto de objetos estranhos, o ator demonstrou o seu imenso talento.

FAMÍLIA EXÓTICA (Dir: Marcel Carné): O pastor Archibald Soper (Louis Jouvet) denuncia como perniciosos os romances policiais de Felix Chapel (Michel Simon). Depois, vai jantar na casa de seu primo, o botânico Irwin Molyneux, que não é outro senão o misterioso Chapel. A esposa de Irwin, Margaret (Françoise Rosay) havia despedido sua empregada e se esconde na cozinha para preparar a refeição. Intrigado com a ausência de Margaret e com as respostas embaraçosas de Irwin, o pastor pensa que o primo matou a mulher e aciona a Scotland Yard.

Extraída de um romance humorístico inglês, a intriga põe em cena personagens extravagantes: um apreciador de mimosas que escreve em segredo romances policiais (Michel Simon), um assassino (Jean-Louis Barrault) que ama os carneiros e mata os açougueiros porque eles matam os carneiros, um leiteiro (Jean – Pierre Aumont) de imaginação fértil que inventa histórias horríveis, um pastor libidinoso (Louis Jouvet) que perde uma foto erótica com a dedicatória de sua amante, etc. Michel Simon eleva a arte da composição ridícula ao seu nível mais alto. Por um incômodo na garganta ou uma gagueira súbita, Simon valoriza a menor sílaba de seu texto de uma maneira provavelmente insuperável,  prestando um valioso serviço a um espetáculo burlesco delirante, para o qual contribuem também o elenco de intérpretes de prestígio.

O MISTÉRIO DO COLÉGIO (Dir: Christian-Jaque): No colégio Saint-Agil, três alunos, Beaume (Serge Grave), Sorgue (Jean Claudio) e Macroy (Marcel Mouloudji), constituíram uma sociedade secreta com a finalidade de partir para os Estados Unidos e fazer fortuna. Uma noite, Sorgue vê um homem sair de uma parede e depois sumir precipitadamente. No dia seguinte,  Sorgue desaparece. O professor Lemel (Michel Simon) acusa seu colega estrangeiro Walter (Erich von Stroheim) de ser o responsável pelo desaparecimento. Depois, Macroy e Beaume também somem. O mistério tem a ver com uma quadrilha de falsários, chefiada por M. Boisse (Aimé Clariond), o diretor do estabelecimento.

Nos corredores sombrios, nas salas de aula noturnas e ameaçadoras, nos dormitórios gelados de Saint-Agil, confrontam-se dois mundos: o mundo  da infância, encantador e misterioso, e o mundo dos adultos, habitado por seres  nocivos. São professores que se caluniam entre si, manifestam sua xenofobia e, enfim, o chefe do bando de malfeitores é o próprio diretor da instituição. O filme propicia um duelo de interpretação entre dois monstros sagrados do cinema: Erich von Stroheim e Michel Simon. Stroheim está magnífico como o professor de inglês que serve de bode expiatório de seus colegas para os quais representa o “boche” e Michel Simon como o professor de desenho alcoólatra.

CAIS DAS SOMBRAS (Dir: Marcel Carné): Jean (Jean Gabin), um desertor, chega ao Havre e procura um abrigo. Trazido por um mendigo, Quart-Vittel (Aimos), ele é hospedado na taverna do velho Panama (Edouard Delmont), onde conhece um pintor alucinado, Michel Krauss (Robert Le Vigan) e uma bela jovem triste, Nelly (Michèle Morgan). Esta é assediada por seu tutor, Zabel (Michel Simon), um traficante, que vem sendo espreitado por um bando de malandros, cujo chefe é Lucien (Pierre Brasseur). Uma manhã, quando Lucien importunava Nelly, Jean o esbofeteia. Michel se suicida, deixando para Jean suas roupas e seu passaporte e o desertor decide embarcar para a Venezuela. Jean encontra Zabel, querendo abusar de Nelly,  e o mata. Ao se dirigir para o porto, é abatido a tiros por Lucien enquanto o navio parte.

A beleza do filme reside primeiramente na sua atmosfera, as docas inundadas de brumas e as ruas de calçadas reluzentes, onde os personagens passeiam ao ritmo de uma música extraída de uma velha canção dos marinheiros. Obra-prima plástica, uma das mais representativas do realismo poético, o filme apoia-se também nos atores, perfeitamente encaixados em um pessimismo lírico, que muitos viram como um eco de certo fatalismo que sucedeu ao fracasso da Frente Popular. Simon nos oferece mais uma interpretação magistral como o repugnante receptador e assassino, apaixonado por música religiosa (na cena em que ele é morto por Jean o fundo musical é cantado pelos Petits Chanteurs à la Croix-de-bois!).

PAIXÃO CRIMINOSA (Dir: Pierre Chenal): Frank (Fernand Gravey) torna-se empregado de Nick Marino (Michel Simon), proprietário de um posto de gasolina nas montanhas da Provença. Nick é casado com Cora (Corinne Luchaire), mulher  bem mais jovem do que ele. Cora seduz Frank e os dois decidem se desembaraçar de Nino, fazendo crer que ele foi vítima de um acidente. Depois de conseguirem seu objetivo, o casal de amantes leva uma vida difícil entre as suspeitas da justiça e as ameaças de chantagem feitas por um primo da vítima. Um dia eles sofrem um acidente de carro. Cora morre. Todas as suspeitas recaem sobre Frank, que é acusado e condenado à morte.

Chenal impregnou seu filme de um clima sensual e lúgubre em que a paixão adúltera se mistura com a fatalidade para traduzir o mistério desse casal de amantes, inocentado pelo assassinato que cometeu e separado por uma morte acidental, que levará o homem  a ser condenado por um crime que não ocorreu. Simon encarna o marido de Corinne Luchaire, que nos deixou o seguinte testemunho: “Como marido, ele tinha naturalmente o direito, bem entendido sob  os refletores, a algumas familiaridades. Numa cena, ele devia me abraçar pela cintura. Era natural. Mas Michel Simon achou que este gesto era muito banal e não hesitou em me agarrar com uma certa violência e um aspecto verdadeiramente lúbrico”. Diga-se de passagem: Corinne não foi a única atriz que reclamou dos “avanços luxuriosos “ de Simon durante uma filmagem.

LA FIN DU JOUR (Dir: Julien Duvivier): Em um retiro de artistas, três velhos atores se confrontam: Raphael Saint-Clair (Louis Jouvet), antigo galã de sucesso, que perdeu sua fortuna no jogo; Gilles Marny (Victor Francen), ator estimado pelo seu talento mas que jamais conheceu o êxito (sua mulher foi seduzida por Saint-Clair e morreu em um acidente de caça, suspeitando-se de um suicídio); e Cabrissade (Michel Simon), um fracassado, que só conseguiu ser o eventual substituto de outros atores. Para manter sua reputação de Don Juan, Saint-Clair seduz Jeannette (Madeleine Ozeray), jovem empregada da casa, e quase a conduz ao suicídio, mas ela é salva por Marny. Cabrissade, incapaz de dizer um verso em uma representação em benefício do retiro, sofre um ataque cardíaco. Saint-Clair enlouquece.

Artistas idosos sem as luzes da ribalta, as lembranças que os deprimem, a amargura que atiça as rivalidades de outrora, os rancores e as mesquinharias senis exacerbando-se no ambiente fechado de um pensionato. Com esse assunto, Duvivier construiu um drama cruel e mórbido sobre o egocentrismo feroz dos velhos atores e a dificuldade de envelhecer, que traz a marca do seu pessimismo em relação ao gênero humano. Nesse meio avulta a figura imponente e egoísta de Saint-Clair, magnificamente vivido por Louis Jouvet, mas Michel Simon foi responsável pelo momento mais alucinante do filme, quando se esquece do texto na única oportunidade que teve de se realizar como ator e murmura: “Eu sou velho … Não sei mais … Perdão … Eu sou velho …”.

FRIC-FRAC (Dir: Maurice Lehmann e Claude Autant-Lara): O joalheiro Mercandieu (Marcel Vallée) tem três empregados: sua filha Renée (Helène Robert), seu guarda-livros, M. Blain (Réné Genin), e o jovem Marcel (Fernandel), por quem Renée se apaixonou. Um domingo, Marcel encontra no velódromo a prostituta  Loulou (Arletty) e seu amigo Jo (Michel Simon), um vadio. Marcel se encanta por Loulou e ela e Jo resolvem roubar a joalheria. Eles embebedam Marcel e o amarram num divã. Renée surpreende os dois ladrões e Marcel, libertando-se, vai socorrê-la. Mercandieu não fica sabendo de nada e Marcel  compreendendo que Loulou não pertence ao seu mundo, fica ao lado de Renée, pois é ela quem ele ama de verdade.

Um dos biógrafos de Michel Simon, Jacques Lorcey (Michel Simon, Un Sacré Monstre, Séguier , 2003) registrou: “Michel Simon é a verdadeira sensação de Fric-Frac … Estamos na presença de uma das mais prodigiosas encarnações de Simon, este artista sobrehumano, ao qual cometemos o erro de dar o título de comediante, porque ele foi antes de tudo um criador genial, constantemente inspirado. Como sempre, Simon não interpreta, ele vive. Sua identificação com Jo é total e ele dá a impressão de uma improvisação constante”. Fernandel  contou a dificuldade que ele tinha de se concentrar diante dele: “Simon hipnotizava seus parceiros tal como fazia com o público”.

O DEMÔNIO DE PARIS (Dir: Pierre Billon): Vautrin (Michel Simon), conhecido como “Trompe la Mort”, foge da prisão de Rochefort com um outro prisioneiro, Théodore Calvi (Marcel Mouloudji). Vautrin assume a identidade do “abade Herrera, agente secreto do Rei de Espanha” e encontra o jovem Lucien de Rubempré (Georges Marchal), que arruinou e desonrou sua família em Angoulême. Ele impede Lucien de se suicidar e o introduz na alta sociedade parisiense. Enquanto Vautrin  põe mãos a obra pelo casamento de Lucien com Clotilde de Grandlieu (Gisèle Casadessus), o jovem se enamora de uma moça chamada Esther Gobseck (Madeleine Sologne). Descobrindo esta ligação, Vautrin torna-se conselheiro de Esther e se entende com ela, para arruinar o velho banqueiro Nucingen (Louis Seigner), que a deseja.

Inspirado no romance “Splendeur et misère des courtisanes”, o filme recria a atmosfera balzaquiana com todo o cuidado mas o espetáculo vale, sobretudo, pela interpretação de Michel Simon. Maquiavélico e insensível, Simon passou para  Vautrin a grandeza tenebrosa que Balzac lhe deu.

PÂNICO (Dir: Julien Duvivier): Um crime é cometido e o fotógrafo amador e misantropo Monsieur Hire (Michel Simon), que leva uma vida dupla mantendo um consultório de astrologia sob o nome de doutor Varga, é logo tido como suspeito pela polícia e por seus vizinhos. O verdadeiro assassino é Alfred (Paul Bernard), amante de Alice (Viviane Romance), que faz caírem as suspeitas sobre Hire, que está secretamente apaixonado por ela. O infeliz, encurralado pela multidão, refugia-se no telhado de uma casa, escorrega e morre. Ao lado do cadáver é encontrada sua máquina fotográfica com uma foto que denuncia o verdadeiro culpado.

É a história trágica de um homem solitário que não molesta ninguém mas guarda distância de seus semelhantes e por isso sofre o drama da incompreensão e da baixeza humana, tema que se encaixa perfeitamente no universo pessimista de Duvivier. A composição de Michel Simon é emocionante, principalmente quando exprime os tormentos “inconfessáveis” e a paixão erótica do seu personagem.

TRÁGICA INOCÊNCIA (Dir: Henri Decoin): O dr. Ancelin (Michel Simon), médico de província considerado medíocre, atropela, bêbado, um motociclista, e consegue disfarçar o seu homicídio involuntário. Assim, ele se reabilita a seus próprios olhos e segue seu caminho no crime, assassinando o amante de sua companheira, Madeleine (Jany Holt), e depois o colega que mais o desprezava; finalmente, empurra a própria Madeleine para a morte. Angustiado, Ancelin se denuncia à polícia mas o inspetor Chambon (Jean Debucourt) não acredita nele. Por despeito, Ancelin se suicida, deixando uma carta de confissão. Porém um gato empurra a carta  para a lareira e ela não será lida por ninguém.

Dessa história astuciosa , Henri Decoin, soube tirar um excelente partido e criar um suspense psicológico – a lenta alteração da razão de Ancelin – para o qual contribuiu poderosamente a fotografia noturna, obtida com o auxilio da perícia técnica do cinegrafista. O papel do assassino, que se angustia por não ter  sido levado a sério e reconhecido como um gênio do mal, caiu como uma luva para Michel Simon. Ele usou todos os recursos de grande ator para dar originalidade e intensidade dramática a esse curioso policial à francesa.

ENTRE A MULHER E O DIABO (Dir: René Clair): O velho professor Fausto (Michel Simon) recebe a visita de Mefistófeles (Gérard Philipe). Fausto se recusa a lhe vender sua alma em troca da juventude, o que, no entanto, Mefistófeles lhe concede, sem fazer nenhuma exigência. Fausto recupera  sua aparência de vinte anos de idade e encontra a cigana Margarida (Nicole Besnard), que se apaixona por ele. Porém ele se dá conta de que a juventude não vale nada sem dinheiro e assina o pacto com o diabo. Mefistófeles, que tomou as feições do velho Fausto, ensina-lhe a fabricar ouro e o introduz na corte do príncipe regente. Fausto recebe todas as honrarias e se torna amante da princesa. Quando Mefistófeles cobra a sua parte no acordo, Fausto não quer mais cumprí-lo.

O espetáculo propicia um confronto entre dois atores absolutamente fora de série: Gérard Philipe como um Fausto diabolicamente rejuvenescido e Michel Simon como um diabo truculento. As cenas nas quais Fausto ainda não está habituado como o seu corpo de jovem e conserva a maneira de andar e os tiques de um ancião ou aquelas cenas nas quais, até então desligado dos bens deste mundo, ele é subitamente possuido por um anjo do mal barbudo, debochado e concupiscente, elas bastam para demonstrar o talento extraordinário dos dois intérpretes.

LA POISON (Dir: Sacha Guitry): Paul Braconnier (Michel Simon) se apresenta como cliente a um grande advogado, Maître Aubanel (Jean Debucourt), dizendo que acabara de matar sua mulher, uma megera que bebe, o insulta constantemente, e quase nunca toma banho. Através das perguntas que lhe faz o causídico, para preparar sua defesa, Braconnier percebe qual é o método menos perigoso de cometer o crime. De volta ao lar, ele mata sua mulher, seguindo os conselhos involuntários do advogado. Defendido por Aubanel (na verdade por si próprio), Braconnier é triunfalmente absolvido.

Obra-prima do humor negro, amoral e anárquica, marcando o início de uma nova fase na carreira de Sacha Guitry. Ele sai de cena como ator e se afirma como autor, manifestando mais uma vez a sua verve inesgotável. A partir da cena irresistivelmente cômica da consulta ao advogado, o diretor faz uma  descrição satírica dos costumes provincianos, não poupando instituições como o casamento e a justiça – evidentemente – e a religião, haja vista a visita dos cidadãos ao cura, pedindo-lhe que providencie um falso milagre, para estimular o comércio. A interpretação fascinante de Michel Simon concorre em grande parte para o êxito do espetáculo.

LA VIE D‘UN HONNÊTE HOMME (Dir: Sacha Guitry): Albert Ménard-Lacoste (Michel Simon), industrial  respeitável, tem um irmão gêmeo, Alain, indivíduo boêmio e alegre, que reaparece após anos de ausência. Durante um encontro entre os dois, Alain morre de uma crise cardíaca. Albert assume a identidade do irmão, a fim de dar credulidade à sua própria morte, depois de ter legado sua fortuna para Alain. Ele espera, conservando as vantagens de sua posição burguesa, realizar enfim as fantasias e as aventuras que um homem respeitável é obrigado a recusar.

Sacha Guitry renova o tema clássico dos irmãos gêmeos que são confundidos um com o outro,  abordando-o de uma maneira cáustica e amarga. O enredo mostra dois seres solitários: Alain, em um estado de miserabilidade, mas contente com a vida divertida que levou, não se lastimando de nada; Albert, descontente com sua existência tediosa e hipócrita de homem honesto e invejoso do outro. Entrando na pele de Alain, Albert pensa em recomeçar sua vida, mas acaba “fugindo na noite”, desencantado com a natureza humana. Michel Simon compõe seu personagem duplo de maneira admirável: ele tem duas fisionomias, dois olhares, duas vozes e, poderíamos até dizer, duas almas. É verdadeiramente duas pessoas.

Sacha Guitry, ao qual Simon estava ligado por uma amizade profunda e uma admiração recíproca, prestou-lhe homenagem nos célebres créditos de La Poison: “Você é excepcional. Eu diria mesmo único … porque entre o momento em que você deixa de ser você mesmo e aquele em que interpreta o seu papel, é impossível ver a soldagem … Você possui esta virtude preciosa que não se adquire e que não é transmissível: o senso do teatro, quer dizer a faculdade de transmitir aos outros os sentimentos que você não sente”.

Michel Simon faleceu em 30 de maio de 1975 no Hospital Saint-Camille de Bry-sur-Marne , vítima de uma embolia, aos 80 anos. Em 9 de janeiro de 1977, seus herdeiros puseram à venda em Genebra sua coleção fabulosa de relógios antigos  e, alguns meses mais tarde, seu imenso “museu erótico”, contendo  mais de 20 mil fotografias e muitos objetos e filmes obscenos.

WESTERN: FANTASIA OU HISTÓRIA?

O western é um folclore americano: uma mitologia que depende mais da fantasia do que da história.

Muitos livros (vg. The Western Hero in History and Legend, 1965 de Kent Ladd Steckmesser; The Gunfighter: Man or Myth?, 1969 de Joseph G. Rosa; The American West on Film: Myth and Reality, 1974 de Richard A. Maynard: There Must Be a Lone Ranger – The American West in Film and Reality, 1974 de Jenni Calder, God Bless You, Buffalo Bill – A Layman’s Guide to History and the Western Film, 1983 de Wayne Michael Sarf) compararam os fatos e a ficção na História do Oeste. Graças a eles pude escrever este artigo.

Poucos dos muitos defensores da paz no Velho Oeste foram honrados com a imortalidade cinematográfica e somente eles tiveram seus nomes conhecidos pelo público em geral. Dois deles se destacam: Wild Bill Hickok e Wyatt Earp.

James Butler Hickok, mais conhecido como Wild Bill, tornou-se uma celebridade nacional após uma entrevista que deu em 1865 para o Coronel George Ward Nichols, que havia sido ajudante de campo do General Sherman na sua marcha através da Georgia, publicada no número de fevereiro de 1867 da Harper’s New Monthly Magazine sob o título de “Wild Bill”. O artigo era no mínimo pitoresco, particularmente quando citava o que era supostamente a descrição do próprio Hickok, de um combate que aconteceu no início da Guerra Civil com alguns secessionistas arruaceiros em Rock Creek Station, Nebraska. O relato vívido deste combate, complementado pelos comentários de Nichols sobre outra façanha do herói na sua luta contra os M’Kandlases, emocionou inumeros leitores, que acreditaram em cada palavra, muito embora o texto divergisse bastante dos verdadeiros fatos, menos divulgados, revelados depois por outros escritores.

Em 12 de julho de 1861, Dave McCanles (e não M’Kandlas) foi realmente morto, provavelmente por Hickok, porém existe a possibilidade de que um de seus amigos tivesse sido o responsável. Quem quer que estivesse escondido atrás de uma cortina, matou Dave com um tiro de seu rifle no momento em que ele se encontrava diante da estação de diligências de Rock Creek, onde Hickok trabalhava. Dois companheiros de McCanles foram feridos com uma pistola por Hickok e perseguidos por vários de seus colegas, que o assassinaram sem piedade. Apenas o filho de doze anos de McCanles, Monroe, escapou da carnificina. Como parece improvável, embora não impossível, que um homem com a intenção de começar um combate  levasse seu filho para ver a luta e como todas as três vítimas parece que estavam desarmadas, Hickok e seus colegas foram denunciados por assassinato; entretanto, sua alegação de auto defesa no interrogatório preliminar foi aceita, e o caso não teve andamento. A causa da disputa teria sido sobre algum dinheiro que a companhia de diligências devia a McCanles.

Tendo em vista as verdadeiras e sórdidas circunstâncias por trás do tiroteio da Rock Creek, os parentes de McCanles protestaram contra o uso do nome da família no filme de William S. Hart, Beijos que Torturam / Wild Bill Hickok / 1923,  no qual se mostrava uma ação semelhante ao ocorrido. Hart amavelmente mudou o nome – mas manteve o combate.

Se não fosse a entrevista concedida a Nichols, é bem possível que Hickok permanecesse uma figura relativamente obscura na história do Western, pois sua carreira pré-Harper, não foi mais excitante do que a de qualquer pessoa ousada habitante das planícies.

Nascido em Illinois em 1837, Hickok primeiro conseguiu emprego no Nebraska como peace officer (policial) em 1858. No ano seguinte, tornou-se condutor de carroças de carga, e em 1861 liquidou David McCanles, no que seria basicamente mais uma violenta e desinteressante (salvo por seu seus aspectos enigmáticos)  briga de fronteira. Hickok serviu à União como batedor civil, trabalhou algum tempo novamente como condutor de carroças, e depois voltou a ser batedor, aliás, muito eficiente. Em 1865, quando exercia a profissão de jogador, em um duelo arranjado de antemão na praça pública de Springfield, Missouri, Hickok matou um homem chamado Dave Tutt, com o qual havia discutido por causa de um jogo de cartas e uma mulher. Este duelo aterrorizou muitos cidadãos e Hickok foi julgado por homicídio; ele foi absolvido, embora o juiz tivesse cuidadosamente instruído os jurados a condená-lo, caso ficasse provado que o duelo havia sido de alguma forma premeditado pelo acusado”.

Após a conversa com Nichols que ocorreu em Springfield, Hickok continuou sua carreira de jogador, atuou como delegado, caçando desertores do exército e ladrões de cavalos e desempenhou novamente a função de batedor do Exército. Entre seus feitos nesta última colocação sobressaiu uma luta com guerreiros comanches, um dos quais arremessou uma lança que penetrou fundo na sua coxa.

Em agosto 1869, depois que sua fama foi espalhada pela Harper, ele foi eleito xerife de Ellis  County, Kansas, com seu centro de operações em Hays City, onde exterminou dois homens, que tentaram matá-lo ou ferí-lo primeiro. Candidatando-se à reeleição em novembro, Hickok foi derrotado pelo seu próprio auxiliar, Peter Lanihan, e deixou a cidade pouco tempo depois que seu período de função expirou. Hickok retornou a Hays, onde participou de um tiroteio defensivo com alguns cavalarianos desordeiros da famosa Sétima Cavalaria, matando um e ferindo seriamente o outro; a lenda diz que o irmão do General George Custer, Tom, estava envolvido neste incidente mas não é verdade.

Em 1871, Hickok foi nomeado delegado de Abilene.  Contrariamente aos mitos difundidos pelos seus biógrafos mais deslumbrados, Wild Bill não “domou” Abilene, principalmente porque ela já havia sido domada por Thomas James “Bear River Tom” Smith que, empossado como delegado em 4 de julho de 1870,  fez cumprir imediatamente a postura municipal proibindo o porte de armas na cidade. Quando encontrava resistência por parte dos vaqueiros buliçosos do Texas, que vinham fazer algazarra na cidade, Smith usava seus punhos, desconcertando os texanos, os quais geralmente usavam suas armas para decidir as disputas e eram incapazes de pensar num meio de defesa contra esta nova ameaça.

Smith foi morto fora de Abilene por um proprietário rural, Andrew McConnell, acusado de assassinato, que ele tentou prender;  um cúmplice então decapitou o delegado com um machado. Apesar de suas realizações, “Bear River Tom” nunca se tornou um herói folclórico ou um favorito dos contadores de histórias do Oeste, possivelmente porque pouco se conhece sobre sua infância ou  porque ele nunca matou quando era delegado.

A única “aventura” de Hickok em Abilene, durante os seus oito meses de serviço como delegado, resultou na morte de dois homens. Ouvindo tiros numa noite, ele correu para o lugar de onde vinham os disparos e se confrontou com Phil Coe, um jogador do Texas e alguns amigos desordeiros. Coe, que não gostava de Hickok, estaria ou não (dependendo da versão na qual quisermos acreditar) carregando uma pistola, com a qual teria atirado num cão e depois apontado para o delegado. Seja lá como for, Hickok atingiu Coe duas vezes na barriga enquanto que duas balas do jogador atravessaram o seu paletó. Mike Williams, colega e amigo de Hickok, tentando ajudá-lo, entrou na linha de fogo, e Hickok acabou alvejando-o também. O jornal local apoiava o trabalho de Hickok porém o conselho municipal dispensou-o assim que a temporada de comercialização febril do gado terminou.

Hickok consequentemente ingressou no show business como mestre de cerimônias de um espetáculo em Niagara Falls sobre a fronteira e a caça ao búfalo. O empreendimento foi um desastre financeiro e Hickok então voltou a ganhar a vida como jogador até que Buffalo Bill Cody lhe ofereceu um papel num drama teatral sobre o Oeste, The Scouts of the Plain. Ele não se deu bem nesta nova atividade e acabou sendo despedido por Cody por abuso de bebida e mau comportamento. Hickok costumava atirar imprudentemente muito perto dos atores que faziam o papel de índios, deixando-os com queimaduras de pólvora.

Em seguida a este interlúdio na ribalta, Hickok passou a maior parte do seu tempo em Cheyenne, Wyoming, jogando e planejando uma expedição para encontrar ouro nas Black Hills de South Dakota. Ele foi eventualmente acusado de vadiagem mas  saiu da cidade no dia marcado para seu julgamento e depois voltou sem ser molestado. Em 5 de março de 1876, Hickok casou-se com a viúva do dono de um circo, Agnes Lake Thatcher. De Cheyenne, ele partiu para Deadwood, South Dakota esperando ganhar dinheiro suficiente para seu sustento e de sua esposa, preocupado com sua deficiência de visão, e pensando se ainda conseguiria se proteger numa luta com arma de fogo.

No dia 2 de agosto, quando Hickok estava numa mesa de carteado num saloon, ele foi morto pelas costas por um sujeito estrábico e desajeitado, Jack McCall. Este alegou que Hickok havia matado seu irmão mas como se descobriu que esta pessoa jamais existira, o assassinato tem sido atribuído a um desejo patético de matar um pistoleiro famoso. As cartas que estavam na mão de Hickok no seu derradeiro jogo de pôquer – par de ases e de oitos – ficou conhecida com a Dead Man’s Hand (A Mão do Morto).

Como disse Wayne Michael Surf, O “Príncipe dos Pistoleiros” era um indivíduo bravo e certamente intrigante mas, como um “herói”, no melhor sentido da palavra, ele não era melhor do que muitos outros que  perambularam pelo Oeste durante o mesmo período. Entretanto, por sua aparência (cabelos compridos entrelaçados, roupas de camurça pitorescas e a maneira insólita de usar seus revólveres com a coronha virada para a frente), personalidade marcante e aptidão extraordinária para o uso de armas, Hickok realmente se destacava dos demais. De acordo com relatórios contemporâneos parece que ele impressionava os observadores (alguns indubitavelmente influenciados na sua opinião pelo que haviam ouvido ou lido) mais por causa de suas qualidades pessoais – por ser simplesmente Wild Bill Hickok – do que por qualquer uma de suas façanhas.

Jornadas Heróicas / The Plainsman / 1936 foi um dos filmes mais famosos e populares sobre Hickok apesar de toda a sua distorção histórica e da dessemelhança física entre os atores e os personagens verdadeiros. O enredo coloca Wild Bill (Gary Cooper), Calamity Jane (Jean Arthur) e um récem-casado Buffalo Bill Cody (James Ellison) lutando contra contrabandistas de armas e índios, sendo que o romance tumultuado entre Hickok e Calamity é contrastado com a situação doméstica estável de Cody. O romance de Hickok com Calamity foi baseado numa prova bastante frágil: “Sabe-se que certa vez ele comprou um vestido para ela”, explicou DeMille anos depois. “Isto é perfeitamente conhecido. Não se sabe é como e porque ele comprou o vestido.” O romance entre Wild Bill de Gary Cooper e a famosa mulher-macho da fronteira (Martha Jane Cannary) foi o único elemento desse western épico que DeMille admitiu (na sua Autobiografia póstuma) ter sido antihistórico. “Confesso que tomei algumas liberdades na escolha do elenco: fotografias que ví da verdadeira Calamity Jane eram bem distantes do encanto picante de Jean Arthur. Todavia, se eu posso dizer assim, foi uma boa distribuição de papéis”. Apesar da lenda, é improvável que Hickok tenha se envolvido romanticamente com Calamity.

A figura de Wild Bill Hickok, como personagem principal ou secundário, herói ou vilão, foi explorada pelo cinema em vários outros filmes (vg. O Cavalo de Ferro / The Iron Horse / 1924 (John Padjan), A Última Aventura / The Last Frontier / 1926 (J. Farrell MacDonald), O Fantasma Vingador ou A Última Fronteira / The Last Frontier / 1932 / seriado (Yakima Canutt), Frontier Scout / 1938 (George Houston), A Invasão dos Peles-Vermelhas / The Great Adventures of Wild Bill Hickock /1938 / seriado (Gordon (Bill) Elliott), Sede de Ouro / Young Bill Hickok / 1940 (Roy Rogers), O Caveira / Deadwood Dick / 1940 / seriado (Lane Chandler), Traição de Irmãos / The Badlands of Dakota / 1941 (Richard Dix), Tropel de Bárbaros / Wild Bill Hickok Rides / 1942 (Bruce Cabot), Vingador Impiedoso / Dallas / 1950 (Reed Hadley),  Bando de Renegados / The Lawless Breed / 1952 (Robert Anderson), As Aventuras de Buffalo Bill / Pony Express / 1953 (Forrest Tucker), Ardida como Pimenta / Calamity Jane / 1953 (Howard Keel), O Alçapão Sangrento / Jack McCall Desperado /1953 (Douglas Kennedy), Son of the Renegade / 1953 (Ewing Miles Brown), I Killed Wild Bill Hickok / 1956 (Tom Brown), Bandoleiros do Oeste / The Raiders / 1964 (Robert Culp), Os Reis do Faroeste / The Outlaw is Coming / 1964 (Paul Shannon), Deadwood’76 / 1965 (Robert Dix), Respondendo à Bala / The Plainsman / 1966 (Don Murray), O Pequeno Grande Homem / Little Big Man / 1970 (Jeff Corey), O Grande Búfalo Branco / The White Buffalo / 1977 (Charles Bronson), The Legend of the Lone Ranger / 1981 (Richard Farnsworth), Uma Lenda do Oeste / Wild Bill / 1995 (Jeff Bridges), predominando sempre a imaginação sobre a verdade.



Wyatt Earp, Frontier Marshall, a biografia de Wyatt Earp escrita por Stuart N. Lake e publicada em 1931, após ter sido serializada nas páginas do Saturday Evening Post,  fixou a lenda colossal de Earp. Este relato excitante, cheio de ação na luta de um homem contra a ilegalidade no Velho Oeste contribuiu para distorcer e confundir a história do Oeste mais do que qualquer outro livro. Devido à sua aceitação como uma obra de referência modelar, suas falsidades incríveis foram incorporadas como verdade histórica por vários autores respeitáveis.

A crônica dramática de Lake foi muito vantajosa financeiramente e ele procurou protegê-la de possíveis revisionistas. Quando, em 1946, Frank Waters publicou no seu livro, The Colorado, alguns fatos revelados pela viúva de Virgil Earp, Allie, e corroborados pela pesquisa, Lake ameaçou acioná-lo na Justiça, se não fosse feita alguma retratação. Waters se recusou, amparado nos dados que colhera; um dos advogados de Lake subsequentemente dirigiu-se aos arquivos da Arizona Pioneer’s Historical Society e desistiu de propor a ação após consultar o manuscrito de Waters contendo as reminiscências de Allie Earp, que afinal seriam publicadas em 1960 como The Earp Brothers of Tombstone.

Das mentiras de Lake, um das mais exorbitantes e largamente aceita foi o relato de como o ex-condutor de carroça e caçador de búfalos Wyatt Berry Sharp Earp tornou-se delegado da turbulenta Wichita, Kansas em 1874, “limpando” a cidade rapidamente. Wyatt nunca foi delegado em Wichita. Ele foi, em 1875, um simples policial, que não realizou nada de importante durante o seu tempo de serviço. Multado em 30 dólares e custas por ter agredido um candidato a delegado opositor, Wyatt teve que entregar seu distintivo, e parece que surgiram dúvidas sobre se ele havia ficado com o dinheiro arrecadado em multas em favor da comunidade. Logo, os “dois Earps”, Wyatt e um de seus irmãos, foram expulsos da cidade por vagabundagem.

Em 1955, Jacques Tourneur dirigiu para a Allied Artists um western “épico” muito bom estrelado por Joel McCrea no papel de Wyatt Earp. Baseado vagamente na biografia de Stuart Lake, mas  também inverídico, o espetáculo contava a história do imortal Wyatt pacificando uma cidade sem lei. O filme, em glorioso Technicolor e fotografia em CinemaScope de tirar o fôlego,  foi intitulado Choque de Ódios / Wichita.

Depois do breve período como policial em Wichita e em seguida como assistente de delegado em Dodge City, Warp, acompanhou seus irmãos Virgil, Morgan e James e respectivas esposas a Tombstone no Território do Arizona, onde os Earp destruíram seus inimigos, os Clanton no O.K. Corral, o acerto de contas mais lendário do Oeste fictício.

A versão de Stuart Lake da história, reproduzida em variados graus por Hollywood, apresenta Earp encontrando uma Tombstone convulsionada pela desordem. Opondo-se ao xerife corrupto John Behan e ajudado pelo enigmático e tuberculoso dentista, jogador e pistoleiro “Doc” Hollliday, os irmãos Earp finalmente liquidaram o clã dos Clanton no OK Corral sob o aplauso dos homens de bem da cidade.

Vou reproduzir as informações que colhí no livro de Sarf.  Disse ele que, em 1 de dezembro de 1879, Wyatt, três dos seus irmãos, e respectivas esposas, chegaram em Tombstone, onde Wyatt arranjou um emprego como guarda de diligência na linha da Wells Fargo, tornando-se depois xerife. Ele logo pediu demissão e foi substituído por John H. Behan. Wyatt então obteve uma participação na propriedade do Oriental Saloon and Gambling House, onde instalou o irmão Morgan como crupiê; neste ínterim, seu irmão Virgil concorreu para o cargo de delegado e perdeu a eleição. Nessa ocasião, os Earps estavam num aperto financeiro e os ganhos obtidos no jogo tinham que ser complementados pelo trabalho de costura de suas esposas. A mulher de Wyatt, Mattie, fez a sua parte mas Wyatt mostrou sua gratidão traindo-a abertamente com a atriz Sadie, que “roubara” do seu antigo amante – o xerife John Behan.

Em 15 de março de 1891, uma diligência foi emboscada perto de Tombstone e o cocheiro e um passageiro foram mortos. Uma posse da qual faziam parte os Earp e alguns de seus amigo, liderada por Behan, prendeu um cúmplice dos assaltantes que logo escapou, aproveitando-se de uma distração de seus captores. Os Earps, culpando Behan pelo acontecido e sugerindo publicamente que ele estava de conluio com os ladrões, ficaram furiosos quando souberam dos rumores implicando seu amigo, Doc Holliday (que fora visto galopando na vizinhança momentos após o duplo assassinato). A conexão de Holliday com o assalto nunca foi provada mas houve indícios de que não só o próprio Holliday disparou os tiros fatais como também de que Wyatt era o chefe de um bando de assaltantes de diligência, que recebia regularmente informações sobre as remessas de numerário por parte de um agente da Wells Fargo (a viúva de Virgil Earp confirmou isto embora ela suspeitasse de que o introvertido James Earp  era quem planejava os roubos). O assassinato do cocheiro foi aparentemente uma tentativa frustrada de Doc contra a vida de um detetive enviado para investigar os roubos audaciosos, o qual havia trocado de lugar com o cocheiro pouco antes da emboscada.

Os outros três bandidos procurados pela emboscada da diligência parece que ficaram aborrecidos com Doc por este ter estragado o assalto atirando em duas pessoas em vez de apontar para os cavalos que iam na dianteira, ação que poderia ter interceptado a diligência efetivamente; se fossem capturados pelos homens de Behan eles poderiam concebivelmente contar o que sabiam assim como os irmãos Clanton e McLaury – os primeiros,  insignificantes ladrões de gado ligados ao bando de Earp; os últimos, rancheiros de pequena escala e amigos tanto dos Clanton como dos três bandidos foragidos. Devido à suspeita sobre o “Bando de Earp”, Wyatt decidiu matar dois coelhos com uma só cajadada: ele ofereceria seis mil dólares de recompensa para os Clantons e os McLaurys se eles atraíssem os três foragidos para uma emboscada de modo que os Earps pudessem liquidá-los, eliminando assim três testemunhas potenciais, subornando outras, e transformando Wyatt Earp e companhia em guardiães da lei. Porém quando Wyatt contou para Ike Clanton o seu esquema, Ike rejeitou sua oferta.

A este revés  seguiu-se um período de sorte para o grupo de Earp. Virgil Earp  foi nomeado delegado temporariamente e se tornou permanente quando a pessoa incumbida desta função, que havia se ausentado brevemente de Tombstone, resolveu nunca mais voltar. Os três ladrões da diligência foram mortos em tiroteios ocorridos em outro lugar. Doc Holliday, que fora preso por tentativa de roubo e assassinato, graças ao depoimento de sua companheira, Kate Elder, foi libertado, quando Wyatt, insistindo que o xerife Behan a embriagara e a fizera assinar um documento, cujo teor ela ignorava, forneceu a Doc um álibi. A esta altura, boatos sobre a oferta de Wyatt se espalharam pela cidade. Ike Clanton se defendeu, dizendo que Earp estava contando mentiras a seu respeito e que   havia recusado a proposta. Ike reuniu em torno dele vários partidários, incluindo Billy Clanton, Frank and Tom McLaury, e Billy Claiborne.

A fim de proporcionar alguma espécie de justificação para o que viria a acontecer, Wyatt começou a falar em voz alta sobre lei e ordem e o relacionamento de Behan com certos ladrões de gado e outros malfeitores; emprestando um ar de legalidade ao acerto de contas vindouro, Virgil Earp nomeou  Wyatt, Morgan e Doc Holliday como seus assistentes. Várias tentativas foram feitas para incitar os membros da família Clanton a um combate.

No dia 26 de outubro de 1881, à tarde, o xerife Behan, tendo ouvido conversas sobre um combate iminente, dirigiu-se à frente do Hafford’s Saloon, onde os Earps estavam reunidos, e disse a Virgil que ele deveria tentar desarmar os Clantons. Virgil respondeu que, em vez disso, ele iria lhes dar uma chance de  decidir pelas armas. Behan andou mais um pouco e viu os Clantons e os McLaurys num beco atrás do O.K. Corral, onde eles aparentemente estavam se preparando para deixar Tombstone. Behan pediu que eles se desarmassem; Ike e Tom Laury disseram que não carregavam armas enquanto Billy Clanton e Frank McLaury se recusaram a depô-las.

Descendo a rua, os Earps  passaram por Behan e ignoraram seus protestos quando ele lhes implorou que parassem e então se separaram para enfrentar seus oponentes no duelo mais famoso da história da América ou da lenda. O confronto durou talvez trinta segundos, ao fim do qual Tom, Frank e Billy estavam mortos. Ike Clanton fugiu e Virgil e Morgan ficaram feridos. Um pedaço  de pele das costas de Doc Holliday foi arrancada por uma bala.

Virgil foi imediatamente destituído do cargo de delegado e muitos cidadãos obedientes à lei não gostaram do ocorrido. Um interrogatório preliminar teve lugar e apesar de um grande número de depoimentos – pessoas afirmando que dois homens do grupo Clayton-McLaury estavam desarmados, que os homens que foram mortos estavam com as mãos levantadas e assim por diante – os Earps escaparam do castigo, talvez porque o Juiz de Paz era muito amigo deles e os declarou “totalmente justificados em cometer aqueles homicídios”.

Em 28 de dezembro, Virgil Earp ficou aleijado para o resto da vida após ter sido alvejado por desconhecidos quando saía do Oriental Saloon e , em 18 de março de 1881, Morgan Earp foi morto por uma bala disparada através da janela de uma sala de sinuca quando ele marcava com giz no quadro negro a vitória num jogo. Despachando o aleijado Virgil e o resto da família para a California, Wyatt começou a matar vários homens que ele considerava responsáveis pelos tiros que alvejaram seus irmãos e depois sumiu no horizonte para escapar às acusações de assassinato e de abandono de sua mulher na California. Mattie Earp, cujo esposo havia, por razões dele próprio, mantido seu casamento em segredo, finalmente compreendeu que Wyatt não iria se unir a ela e voltou para o Arizona. Ali, desamparada, recorreu à prostituição para sobreviver até que decidiu que este tipo de sobrevivência não valia a pena e tomou uma dose fatal de láudano (medicamento à base de ópio). Wyatt prosseguiu sua carreira de jogador, dono de saloon, e trapaceiro. Em 1911, com a idade de 63 anos, ele foi acusado de cumplicidade num jogo fraudulento em Los Angeles, onde veio a falecer, em 13 de janeiro de 1929, aos 81 anos.

O personagem de Wyatt (com o seu próprio nome) apareceu no cinema como protagonista ou coadjuvante em muitos filmes além de Beijos que Torturam e Choque de Ódios: A Lei da Fronteira/ Frontier Marshall / 1939 (Randolph Scott), Horas de Perigo / Tombstone, The Town Too Tough to Die / 1942 (Richard Dix),  Paixão dos Fortes / My Darling Clementine / 1946 (Henry Fonda), Winchester 73 / Winchester 73 /  1950 (Will Geer), Duelo de Morte / Law and Order / 1953 (Ronald Reagan), De Homem Para Homem / Gun Belt / 1953 (James Millican), Ases do Gatilho / Masterson of Kansas / 1954 (Bruce Cowling), Sem Lei e Sem Alma / Gunfight at O.K. Corral / 1957 (Burt Lancaster), A Morte a Cada Passo / Badman’s Country / 1958 (Buster Crabbe), Valentão é Apelido / Alias Jesse James / 1959 (Hugh O’Brian), Crepúsculo de uma Raça / Cheyenne Autumn / 1964 (James Stewart), Os Reis do Faroeste / The Outlaw is Coming / 1964 (Bill Canfield), A Hora da Pistola / Hour of the Gun / 1967 (James Garner), Tombstone, A Justiça Está Chegando / Tombstone / 1993 (Kurt Russell), Wyatt Earp / Wyatt Earp / 1994 (Kevin Costner), sem que a verdade completa sobre sua vida fosse abordada.

Em Hollywood, Wyatt Earp fez amizade com W. S. Hart, Tom Mix e John Ford. Ford afirmou que, em Paixão dos Fortes, ele filmou o duelo em O.K. Corral tal como havia ocorrido porém o que foi mostrado na versão fordiana não corresponde à realidade dos fatos: dois membros da família Earp, James e Virgil,  são mortos antes do duelo, no qual perecem também Doc Holliday e o velho Clanton.
Mas, diante de um western extraordinário como Paixão dos Fortes, quem se importa com a verdade?