Arquivo mensais:junho 2011

VICTOR SJÖSTRÖM NA AMÉRICA

Embora não tivesse sido um sucesso comercial como os filmes de Lubitsch (Madame du Barry / Madame du Barry) ou de Murnau (A Última Gargalhada / Der Letze Mann), exibidos respectivamente nos Estados Unidos como Passion e The Last Laugh, o filme de Victor Sjöström, A Carroça Fantasma / Körkarlen (The Phantom Chariot ou Stroke at Midnight ou Thy Soul Shall Bear Witness nos EUA) / 1920, por suas qualidades artísticas, atraiu a atenção de June Mathis, roteirista e montadora da Goldwyn Company. Mathis propôs que o diretor fosse convidado para trabalhar na América em vez da companhia assumir riscos, distribuindo filmes suecos, que ela considerava difícil de conquistar o público americano. Após semanas de vacilação, Sjöström aceitou o convite, e partiu em 10 de janeiro de 1923 para Nova York, onde foi recebido como uma celebridade, graças a uma campanha de publicidade astuta organizada por seus empregadores. Entre 1923 e 1930 ele dirigiu filmes em Hollywood sob o nome de Victor Seastrom.

Viktor David Sjöström, nasceu no dia 20 de setembro de 1879, na província sueca de Värmland. Quando ele tinha seis anos de idade, seu pai, Olof Adolf Sjöström, emigrou para a América e sua mãe (cujo nome de solteira era Sofia Elizabeth Hartman), ex-atriz de um teatro regional, o acompanhou, juntamente com Victor e a irmã, em 1880. Depois que Sofia morreu, em 1886, Olof casou-se com uma mulher bem mais moça, que havia sido babá da família. O relacionamento tenso entre Victor e essa mulher e o crescente autoritarismo religioso do pai, fizeram com que ele voltasse para a Suécia em 1893, a fim de viver com uma tia em Upsala. Enquanto estava no colégio, Sjöstrom se interessou primeiramente pelo circo e depois pelo teatro, fazendo parte de grupos amadores. Quando Olof retornou à Suécia em 1895, Sjöström  foi morar com ele e a madrasta em Estocolmo, mas teve que sair da escola para ajudar seu progenitor, então com dificuldades financeiras. Depois da morte do pai, Sjöström sentiu-se livre para perseguir suas ambições teatrais num nível mais profissional e, em 1896, entrou para uma trupe itinerante. Nos próximos dezesseis anos, ele trabalhou como ator e diretor em várias companhias e, em 1911, formou sua própria companhia  juntamente com Einar Fröberg.

Em 1913, Sjöström ingressou na Svenska Biograftheatern (depois conhecida como Svenska Filmindustri), cujo gerente de produção era Charles Magnusson, responsável, juntamente como o fotógrafo Julius Jaenzon, pela ênfase dada à qualidade artística, nos filmes que Sjöström fêz.

No início de sua carreira cinematográfica, Sjöström trabalhou como ator, tanto nos seus próprios filmes quanto nos de Mauritz Stiller em particular. Muitos de seus filmes estão hoje perdidos mas alguns, restaurados pelo Svenska Filminstitutet, ainda podem ser vistos em Retrospectivas ou Mostras Internacionais de Cinema. Felizmente, aqueles nos quais ele começou a firmar sua reputação na Europa, tais como Ingeborg Helm / 1913 (título idêntico nos EUA), Terje Vigen / 1917 (A Man There Was nos EUA) e Berg-Ejvind och hans Hustru / 1918 (The Outlaw and his Wife nos EUA), ainda subsistem e estão disponíveis em dvds da Kino Entertainment.

Ingeborg Helm descreve as atribulações de uma jovem quando seu marido, que havia pedido dinheiro emprestado para abrir uma loja, morre subitamente e ela tem que lidar com os credores. Apesar de seus esforços, Ingeborg (Hilda Borgström) não consegue escapar da falência, da pobreza e, finalmente, do asilo de pobres, onde lhe oferecem um serviço de limpeza.  Ela tem que vender a loja, sua casa, e pôr os três filhos num orfanato. Após certo tempo, Ingeborg fica sabendo que um de seus filhos está seriamente doente. Ela pede permissão para visitá-lo, mas o pedido é negado. Ingeborg foge do asilo e, quando encontra o menino, ele está morrendo. Mais tarde, ela fica louca, ao perceber que sua filha não mais a reconhece e corre para os braços da mãe adotiva. Ingeborg passa muitos meses num sanatório, apertando contra seu peito uma boneca como se fosse a filha. Doze anos depois, seu filho mais velho, Erik (Aron Lindgren), agora um marujo, vai visitá-la, e ela recobra a sanidade.

Este drama social, extraído da peça de Nils Krok e anunciado como “uma tragédia moderna em quatro atos”, foi um grande sucesso popular na Suécia e, embora não tivesse causado nenhum impacto na América, granjeou para Sjöström um reconhecimento considerável na Europa. Os críticos na época louvaram  especialmente o tratamento realista do enredo, o comedimento na interpretação de Hilda Borgström, e a fotografia e iluminação imaginativas. O filme tem mais cenários urbanos do que “naturais” mas as cenas em exteriores mostram belas paisagens.

Terje Vigen, baseado num poema narrativo de Henrik Ibsen passado no tempo das Guerras Napoleônicas, é dividido em duas partes. Na primeira, contada parcialmente em retrospecto, o jovem Terje (Victor Sjöström) tenta fugir do bloqueio da costa da Noruega pela Marinha Britânica, a fim de obter comida para sua família. Ele é descoberto e, apesar de sua súplicas, o capitão inglês manda afundar o seu barco com os suprimentos que levava. Terje é enviado para a prisão e fica sabendo, após sua libertação, que sua família morrera de fome. A segunda parte, mostra Terje levando uma existência amarga e solitária, até que um dia ele vai ajudar a salvar um navio em perigo durante uma tempestade; seu capitão é o mesmo oficial que fora responsável por seu infortúnio. Por vingança, Terje, a princípio pensa em matar o capitão e toda sua família; porém desiste da idéia, ao ver a filha pequenina do casal, e salva a vida deles.

O filme foi o maior êxito do cinema sueco no mercado externo e inaugurou o grande período da cinematografia daquele país, no qual o aspecto visual dos espetáculos, e notadamente o uso da paisagem, atraíram a atenção de todo o mundo. A maior parte da narrativa transcorre ao ar livre com cenas espetaculares de seres humanos lutando contra as forças elementares da natureza; em algumas delas, como na da tempestade no final, Sjöström coloca sua câmera não somente a bordo do navio ameaçado mas ainda no pequeno barco de Terje, quando ele parte para o resgate. Sjöström fez com que a natureza se tornasse parte do drama.

Berg-Ejvind och hans Hustru, cujo argumento origina-se de uma peça islandêsa, também é dividido em duas partes. Um homem que diz chamar-se Kári (Victor Sjoström), obtém emprego na fazenda de uma viúva rica, Halla (Edith Erastoff). Os dois acabam se apaixonando. Mas um dia, na igreja, alguém revela a verdadeira identidade  de Kári: ele é  Ejvind, um fugitivo da justiça, sentenciado a dez anos de cadeia, por ter roubado uma ovelha. Ejvind tem que fugir para as montanhas  e Halla decide acompanha-lo. Lá eles vivem muito tempo felizes com sua filhinha, alimentando-se da caça e da pesca, até que aparece um ex-empregado da fazenda, Arnes (John Ekman), agora também um fora-da-lei, que se apaixona por Halla, ocorrendo posteriormente incidentes trágicos.

Neste drama psicológico, Sjöström oferece uma mistura curiosa de algumas cenas de inverno obviamente encenadas e artificiais, juntamente com tomadas de montanhas, rios, lagos, florestas e cachoeiras – maravilhosamente fotografadas por Julius Jaenzon – que não somente enfatizam vigorosamente o esplendor do local como agem sobre os personagens, tal como uma pessoa o faria.

As caracterizações em si não são particularmente sutís. Ejvind é um herói na tradição romântica: ele roubou um ovelha para dar de comer a uns camponeses famintos depois que  o pastor local se recusou a lhes dar qualquer ajuda. Halla é a esposa leal que participa das agruras da vida do companheiro, sem se queixar e, nas cenas finais, prefere matar sua filhinha, para que ela não seja capturada, e morrer ao lado dele,  ambos congelados na neve.

Posteriormente, Sjöström conquistou mais sucesso internacional com uma série de adaptações dos romances de Selma Lagerlöf e de Hjalmar Bergman. Dos filmes baseados em obras de Selma Lagerlöf, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 1909, o mais famoso foi A Carroça Fantasma, que vimos numa cópia em dvd da Criterion (com o brinde de uma montagem feita pela Metro com o título de Stroke at Midnight). Dos filmes baseados em obras de Hajlmar Bergman, destaca-se Vem Dömer / 1921 (Love’s Crucible nos EUA), do qual conhecemos apenas o trecho final, reproduzido no documentário Victor Sjöström, dirigido por Gosta Werner em 1981 e incluido num dos dvds da Kino.

A Carroça Fantasma marca o apogeu da colaboração de Sjöström com o fotógrafo Julius Jaenzon, fazendo uso extensivo de duplas exposições, de uma estrutura narrativa e flashbacks complexos, e efeitos de iluminação, que foram muito inovativos na época e continuam sendo extraordinários nos dias de hoje.

Na véspera do Ano Novo, a irmã Edit (Astrid Holm), do Exército da Salvação, pede para ver David Holm (Victor Sjöström) no seu leito de morte. Enquanto isso, David, um alcoólatra, está contando uma lenda para dois outros bêbados no cemitério. De acordo com a lenda, o último pecador a morrer na virada do ano, terá que conduzir a Carroça da Morte, que coleta as almas dos mortos no próximo ano. Quando David se recusa a ver Edit, seus amigos discutem com ele,  brigam, e David morre acidentalmente, pouco antes do relógio bater meia-noite. Quando o cocheiro chega, David reconhece seu amigo Georges (Tore Svennberg), que morrera no final do ano anterior. Georges diz a David que ele deverá ser o próximo cocheiro e lhe mostra em retrospectiva: como sua mulher Anna (Hilda Borgström) o deixou, depois que ele foi preso por intoxicação; como ele foi tratado por Edit e prometeu encontrar-se com ela no ano seguinte,  a fim de que ela verificasse se suas preces por ele haviam sido atendidas; como seu amigo Gustafsson (Tor Wiejden) submeteu-se a Deus numa reunião no Exército de Salvação mas David permaneceu numa atitude cínica; como Edit tentou em vão conciliar David e Anna. Georges leva David ao quarto de Edit, e esta, percebendo o seu arrependimento, morre em paz. Georges leva então David à presença de Anna, que está pensando em matar a si própria e às crianças. David implora a Georges e a Deus para interferir. George permite que David retorne à vida. David e Anna abraçam-se e choram.

Nesta história fantasmagórico-moralista Dickensniana, Sjöström evoca o mundo dos espíritos através da fotografia, misturando realidade e fantasia com muita habilidade e obtendo um lirismo até então desconhecido na tela. O filme dá um passo além de Intolerância / Intolerance /1916, que já havia entrecortado livremente entre quatro centros diferentes de interesse, amplamente separados no espaço e no tempo. A Carroça Fantasma move-se para a frente e para trás entre cinco fios narrativos, três dos quais no presente e dois no passado, incluindo ainda uma sequência puramente imaginária, na qual David Holm conta a lenda no cemitério.

Ingmar Bergman declarou numa entrevista: “Minha relação com A Carroça Fantasma é muito especial. Eu tinha quinze anos de idade quando o ví pela primeira vez (…) Lembro-me dele como uma das maiores experiências artísticas e emocionais da minha vida”.

Em Vem Dömer, no final da Idade Média, Ursula (Jenny Hasselqvist) é acusada de ter envenenado seu marido. Embora ela não fosse tecnicamente culpada, porque na verdade ele morrera de um ataque do coração, ao saber que sua esposa tentara envenenná-lo, Ursula aceita a responsabilidade moral pela sua infidelidade sexual e pela intenção de matar seu cônjuge. Assim, ela concorda em se submeter ao julgamento do fogo. As imagens finais sugerem a sua morte física e também sua redenção espiritual. Ela vê seu marido pregado na cruz no lugar do Cristo e ele desce e a conduz através das chamas, para se ajoelhar numa prece ao pé do crucifixo ao lado do seu amante.

Este melodrama febril passado na Florença do Renascimento foi muito elogiado, principalmente pela criatividade visual demonstrada pelo diretor na combinação sucessiva de imagens, envolvendo Ursula, seu marido, e Jesus Cristo. A beleza visual do filme é inegável, não somente pelos figurinos e cenários suntuosos e pelo manejo das cenas de multidão mas também no que se refere ao uso da luz e da sombra, especialmente nos útimos momentos do espetáculo.

O cineasta francês René Clair descreveu assim a interpretação de Jenny Hasselqvist: “Nunca esqueceremos seus olhos flamejantes, a severidade de seu espírito, suas expressões abruptas e alarmadas, como um animal ameaçado”. O comentarista do Monthly Film Bulletin exclamou: “Sjöström cria uma textura visual barroca que bem pode ter servido de modelo para Von Sternberg”.

Assim como Lubitsch e Murnau, Sjoström obteve cláusulas inusitadamente favoráveis no seu primeiro contrato com uma firma americana: possibilidade de aprovação do script, escolha inicial do elenco, seleção do fotógrafo e do assistente de direção, e o direito de supervisionar a montagem. Entretanto, enquanto Murnau trouxe a sua própria equipe de produção e Lubitsch pôde usar Hans Kraly como seu roteirista, Sjöström teve que trabalhar sem pessoas familiares em volta dele.  Entendimentos para trazer Julius Jaenzon resultaram em nada e, embora Hjalmar Bergman se juntasse a Sjoström durante alguns meses no começo de 1924, a experiência não foi boa.

O primeiro filme de Sjöström na América, Juiz e Réu / Name the Man / 1924 é praticamente considerado um filme perdido. Dos outros oito filmes realizados por Sjoström em Hollywood: Ironia da Vida ou A Vingança do Palhaço / He Who Gets Slapped / 1924, Confissões de uma Rainha / Confessions of a Queen / 1925, Castelos de Ilusões / The Tower of Lies / 1925, A Letra Escarlate / The Scarlet Letter / 1926, A Mulher Divina / The Divine Woman / 1928, Máscaras da Alma / Masks of the Devil / 1928,  Vento e Areia / The Wind / 1928 e Mulher Ideal / A Lady to Love / 1930, apenas três subsistem: Ironia da Sorte, A Letra Escarlate e Vento e Areia, que ví em cópias extraídas do canal TCM francês e americano .

Em Ironia da Vida, baseado numa peça de Leonid Andreev, Paul Belmont (Lon Chaney) é um cientista que trabalhou anos arduamente para provar suas teorias radicais sobre a origem da humanidade. Um dia, Beaumont anuncia à sua querida esposa, Marie (Ruth King) e ao seu patrono, Barão Regnard (Marc McDermott), que está pronto para apresentá-las na Academia de Ciências. Entretanto, quando Paul vai dormir, Marie rouba a chave do cofre que contém seus documentos e os entrega para Regnard. No dia marcado para a apresentação na Academia, Regnard assume a autoria do trabalho de Paul. Este confronta-o na frente dos acadêmicos mas o barão diz que Paul é seu mero assistente e lhe dá uma bofetada. Essa humilhação  provoca o riso de todo o auditório. Mais tarde, Paul procura o apoio de sua mulher, porém ela admite impudentemente que é amante do barão e o chama de “tolo” e  “palhaço. Passam-se cinco anos e Paul é agora um palhaço que se chama “He-who gets slapped”, constituindo-se na atração máxima de um circo perto de Paris. Seu número consiste nele sendo esbofeteado todas as noites pelos outros palhaços. Outro artista do circo é Bezano (John Gilbert), um cavaleiro-equilibrista. Consuelo (Norma Shearer), filha do empobrecido Conde Mancini (Tully Marshall), candidata-se para integrar o número de Bezano. Este apaixona-se por Consuelo, assim como Paul. Uma noite, Regnard aparece no circo e corteja Consuelo. Num passeio romântico no campo, Bezano e Consuelo declaram seu amor um pelo outro. Paul também se declara a Consuelo porém esta pensa que ele está brincando, e rindo, o esbofeteia. Eles são interrompidos por Regnard e Mancini,  que informa Consuelo que ela vai se casar com o barão após o espetáculo daquela noite. Paul revela sua identidade para Regnard e Mancini fere Paul com sua bengala pontiaguda. Regnard e Mancini tentam ir embora mas são mortos por um leão, que havia sido solto por Paul. Este vai até o palco e desmaia. Antes de morrer, ele diz para Consuelo que está feliz e que ela será feliz.

Durante todo o tempo, Paul insiste em expressar sua degradação pessoal e profissional com um grau impressionante de masoquismo e auto-piedade. Toda a estrutura do filme repousa numa série de incessantes humilhações simbólicas e reais, tanto no nível particular como no público, praticadas contra um personagem que não faz nenhum gesto de reação contra elas e parece mesmo incitar ainda mais perseguição, na medida em que a narrativa prossegue (até ao leão, no final, ele implora que lhe dê a última bofetada).

Como símbolo de seu amor desesperado por Consuelo, Paul guarda um coração menor escondido debaixo do coração de pano que ela costura na sua fantasia antes de cada performance. Quando Paul morre nos braços de Consuelo, um close-up revela sua mão estendida apertando o ”coração” menor manchado de sangue. É uma imagem poética comovente, que a gente não esquece.

Porém a melhor cena do filme é o próprio número de Paul no circo. Cercado por 60 palhaços e pelo dono do circo, Tricaud (Ford Serling), ele começa o espetáculo recebendo as bofetadas dos seus companheiros e confunde as gargalhadas dos espectadores com as gargalhadas dos acadêmicos naquela sessão da Academia de Ciências.  De repente, Paul avista Regnard na platéia,  enquadradado em máscara pela câmera. Paul quer falar alguma coisa, gritar contra o maldito traidor, porém os palhaços não deixam, esbofeteando-o, amordaçando-o, amarrando seus braços e depois levando-o para fora do picadeiro. Tricaud traz ele de volta e sucede-se o seu “enterro” num ritual desempenhado pelos palhaços.

Ironia da Sorte foi a primeira produção filmada na récem-formada Metro-Goldwyn-Mayer e impulsionou as carreiras de Lon Chaney, Norma Shearer e John Gilbert. Em breve, todos os três estariam entre os maiores astros de Hollywood.

No seu próximo filme, A Letra Escarlate, Sjöström abordou um tema e um cenário especificamente americanos mas relacionados com a sua obra sueca. O espetáculo tinha os elementos “Lagerlöf” de adultério, ilegitimidade, as pressões de uma opinião pública intolerante, culpa, punição, reparação e arrependimento – embora o diretor permanecesse fiel ao espírito do livro de Nathaniel Hawthorne,  fazendo com que o par de adúlteros sofresse todas as consequências de suas ações .

Para agradar seu pai, Hester (Lillian Gish), uma donzela de Boston, Nova Inglaterra, casa-se com Roger Prynne (Henry B. Walthall), sem amá-lo. Durante uma longa ausência do marido, ela passeia pela floresta na companhia de seu pastor, o Reverendo Arthur Dimmesdale (Lars Hanson), e eles logo se apaixonam. Quando nasce uma criança, Hester é condenada a usar sobre o peito uma letra A,  a marca de adúltera, e se recusa a divulgar o nome do pai do récem-nascido. Com paciente resignação ela afronta a zombaria e os insultos da inflexível população puritana e luta para ficar com a filha. Hester é exposta no pelourinho e, quando é  levada ao patíbulo, Dimmesdale, que já estava ansioso porém com medo de compartilhar com Hester a degradação pública, confessa seu pecado perante a multidão e morre de angústia nos braços dela.

Sjöström assimila o assunto do livro e o apresenta através de imagens de uma força poética e de uma beleza inesquecíveis (vg. o canário de estimação de Hester cantando no Dia do Senhor e ela correndo atrás dele quando ele foge, escandalizando a população; Hester retirando a letra A do seu vestido, soltando seus cabelos e se oferecendo loucamente para Dimmesdale; Dimmesdale rasgando sua camisa para mostrar a letra A, marcada com ferro quente no seu peito),  dando um sopro lírico ao melodrama dilacerante de Hawthorne, que é também uma denúncia da hipocrisia de uma sociedade, preocupada em manter um equilíbrio moral digno mas incapaz de perceber os verdadeiros caprichos dos membros que a constituem.

Foi Lillian Gish que escolheu Sjöström como diretor de Vento e Areia, preferindo ele do que o inicialmente indicado pelo estúdio: Clarence Brown. Sjöstrom insistiu em filmar os exteriores em locação no Deserto de Mohave e – surpreendentemente para uma companhia cujos executivos haviam sofrido durante a filmagem de Ouro e Maldição / Greed de Erich von Stroheim – obteve permissão para ir. As condições de filmagem eram quase que intoleráveis com  temperaturas muito altas  e nove hélices de avião para fazer o vento açoitando a areia, que se tornou a presença física dominante do filme; Lillian Gish mais tarde descreveria esta filmagem como “uma das minhas piores experiências na realização de filmes” e comparável aos tormentos das massas de gelo flutuante em  Horizonte Sombrio ou Gente do Sertão / Way Down East de D.W. Griffith.

Letty (Lillian Gish), uma jovem de Virginia, vai para o Texas morar na companhia de seus primos Beverly (Edward Earle) e Cora (Dorothy Cummings). Eles vivem numa região onde o terrível vento do Norte é, segundo as crenças indígenas, um cavalo selvagem perdido nas nuvens (um símbolo usado por Sjöström tal como fizera com a carroça fantasma). Um negociante de gado, Wirt Roddy (Montagu Love), encontra Letty no trem e a corteja. Ele lhe diz que aquela região não foi feita para ela. Na estação ferroviária, dois homens aguardam Letty e a levam numa caleça para a casa dos primos. O primo recebe Letty calorosamente porém sua mulher não a vê com bons olhos. Durante um baile, Letty revê Roddy e ele reitera a Letty sua proposta de levá-la para terras mais acolhedoras. Os dois homens que foram buscar Letty na estação ferroviária propõem casamento a Letty. Os dois disputam-na num cara ou corôa. O mais jovem dos dois, Lige (Lars Hanson) ganha. Para sua surpresa Letty descobre que ele falava seriamente. Enciumada de Letty (pensando que esta quer lhe roubar o marido), Cora  ameaça Letty de expulsá-la de casa, se ela não se casar. Letty sente-se mais atraída por Roddy, mas descobre que ele é casado e se casa com Lige. O tempo passa e Letty não se habitua com sua vida solitária numa cabana fustigada pelo vento e pela areia. Um dia, alguns homens trazem Roddy ferido para que ela cuide dele. Lige parte para recolher o gado. Assim que se restabelece, Roddy possui Letty à força. De manhã, Letty apanha um revólver e, quando Roddy tenta desarmá-la, ela o mata, e enterra o cadáver na areia. O marido retorna, e ela confessa seu crime, acrescentando que o ama verdadeiramente e que não tem mais medo do vento nem de qualquer outra coisa.

Numa narrativa fluente, densa, concisa, Sjöström opõe uma criatura frágil a um meio hostil e aos elementos da natureza constantemente enfurecidos. À medida em que a intriga prossegue, a energia e a mente de Letty vão  se desintegrando, até ela chegar a um estado próximo da alucinação – a histeria atinge o auge quando Letty chega na janela e vê a areia encobrindo o cadáver de Roddy.

As cenas do casamento e da noite de núpcias são uma das mais brilhantes de todo o filme, combinando perfeitamente os dois motivos visuais e temáticos que enfatizam a contínua alienação de Letty, tanto do ambiente natural quanto do social. Um close-up do anel matrimonial sendo colocado no dedo de Letty funde-se com uma tomada do seu novo lar, a cabana de Lige desarrumada, com pilhas de pratos sujos. Lige arremessa o chapéu de casamento de Letty para um cabide.  Ela solta os cabelos e tenta lavar os pratos mas a bacia está cheia de areia, que deve ser retirada primeiro; a areia também se infiltrou no leito nupcial, num presságio dos desastres que estão por vir. Numa outra fusão, vemos Letty andando de um lado para outro focalizada pela câmera em plano médio e Lige fora do quarto fazendo o mesmo. Mais uma fusão e vemos agora somente as pernas de Letty e Lige, indo e vindo, até que a câmera sobe e mostra Lige entrando no quarto e beijando Letty fervorosamente. Ela o repele com repugnância e diz: “Você me fez odiá-lo, Lige. Eu não queria odiá-lo”. Desorientado, ele responde: “Você se casou comigo para trabalhar comigo, para me amar” e, após uma pausa, diz: “Não tenha medo. Nunca mais vou tocar em você”.

O filme terminava originariamente com Letty errando pelo deserto, depois de ter cometido o crime; porém, para atender às sugestões dos exibidores, foi filmado o final que conhecemos. Mas, pelo menos, ele conservou uma audácia importante: o crime da heroína permaneceu impune.

Sjöström, voltou para a Suécia em 24 de abril de 1930 por motivos pessoais e profissionais. Ele estava com 52 anos e queria “dar a si mesmo um tempo para ser um ser humano”; além disso, o “círculo sueco” que ele frequentava em Hollywood, começara a se desfazer, quando Lars Hanson, Svend Gade e outros decidiram retornar para a sua terra natal. Sjöström estava também descontente com as crescentes restrições à liberdade criativa do diretor, que estavam sendo impostas pelos estúdios em consequência do advento do som.

Sjöström realizou mais dois filmes: Markurells i Wadköping / 1930 na Suécia e O Poder de Richelieu / Under the Red Robe / 1936 na Inglaterra. Depois disso,  trabalhou somente como ator no cinema (notadamente como o professor Isak Borg em Morangos Silvestres / Smultronstället / 1957 de Ingmar Bergman e no teatro. Ele faleceu em 3 de janeiro de 1960, com a idade de 80 anos.

JEAN MARAIS

Jean Marais foi, ao lado de Jean Gabin e Fernandel, um dos três atores mais populares do cinema francês. Gabin  e  Fernandel  começaram a se destacar nos anos 30; Marais, nos anos 40; e todos tiveram um percurso cinematográfico bastante extenso. Gabin, esteve diante das telas em longas-metragens de 1930 a 1976 (46 anos); Fernandel, de 1930 a 1969 (39 anos). Marais trabalhou mais: de 1933 a 1995 (62 anos), se incluirmos os filmes nos quais trabalhou como figurante. Com exceção de algumas aparições no cinema, os últimos anos de vida de Jean foram consagrados ao teatro, à cerâmica, à escultura e à pintura. Ele faleceu em 8 de novembro de 1998 sem poder realizar sua grande e derradeira aventura:  interpretar o papel de Prospero em The Tempest de Shakespeare.

Neste artigo não pretendo devassar a vida íntima de Jean Marais nem esgotar o assunto no que se refere à sua filmografia. Vou abordar principalmente uma fase de muito sucesso na sua carreira, qual seja, a dos filmes de capa-e-espada que ele fez entre o final dos anos 50 e meados de 60.

No seu livro de memórias, Histoires de Ma Vie (Albin Michel, 1975), Marais contou sua vida com franqueza – e algumas elipses -, sua infância ingrata,  sua mãe possessiva e meio-louca que ele venerava, seus estudos agitados e suas estréias difíceis como ator prejudicado por aquela voz mal colocada com inflexões nasais em desacordo com seu físico atlético.

Seus biógrafos, recentes, Carole Weisweiller e Patrick Renaudot (Jean Marais, le Bien-Aimé, Rocher, 2002) entraram em mais detalhes sobre suas “amizades particulares”; sobre a afeição de Jean por seu cão Moulouk; sobre sua  participação na Comédie-Française; sobre sua ligação com a atriz Mila Parely, um de seus amores femininos; sobre sua passagem pelo Exército e pela Resistência durante a Ocupação; como Jean quebrou a cara de um crítico de teatro colaboracionista; as preocupações com seu filho adotivo Serge, etc.

Jean Alfred Villain-Marais nasceu em Cherbourg, França, no dia 11 de dezembro de 1913, filho do veterinário Alfred Emmanuel Victor Paul Villain-Marais e de Aline Marie-Louise Vassord (que depois recebeu o nome de Henriette Bezon dado pela tia e o marido desta, que a criaram). Segundo Weisweiller e Renaudot, Henriette  teria nutrido uma paixão por Eugène Houdaille, que pode ter sido o pai biológico de Jean e de seu irmão  Henri.

Foi em Cherbourg que Henriette levou pela primeira vez Jean ao cinema. Eles assistiram à projeção de As Aventuras de Elaine / Les Mystères de New York / 1914 com Pearl White, a heroína loura que realizava façanhas incríveis e pela qual o menino se apaixonou instantaneamente. Desde aquele momento, Jean decidiu que se tornaria ator de cinema.  Muitos anos mais tarde, quando Pearl White terminava os seus dias em Paris, Jean Marais foi visitá-la e lhe disse com admiração: “Era maravilhoso como a senhora escalava os edifícios”. Pearl respondeu: “Não era eu, eu fazia somente os primeiros planos”. “Em suma”- acrescentou Marais – “Toda a minha carreira partiu de minha admiração por aquela mulher que não fazia o que a gente via na tela”.

No curso de sua escolaridade (Colégios Saint German-en-Laye, Petit Condorcet, Janson-de-Sailly,  Saint-Nicolas) Jean se fez notar sobretudo pela sua indisciplina.

Aos dezesseis anos, ele começou a trabalhar com um fabricante de aparelhos de rádio e depois na fábrica Pathé de Chatou. Seu emprego seguinte foi como assistente de um fotógrafo, com o qual o rapaz aprendeu também os rudimentos da técnica da pintura acadêmica. Posteriormente, Jean seguiu os cursos de interpretação de Charles Dullin e paralelamente, entre 1933 e 1936, atuou como figurante em vários filmes de Marcel L’Herbier. Em 1937, ele encontrou Jean Cocteau.

Tudo começou assim: Jean viu, no estúdio de um colega, pintor nas horas vagas, pendurados nas paredes, retratos que lhe agradaram muito. Ele perguntou quem era o autor: “Jean Cocteau, um poeta, autor teatral e desenhista”, respondeu o amigo. Jean fez reproduções daqueles desenhos, que ele colocou em molduras e instalou no seu quarto. Passado algum tempo, Jean estava atuando em Jules César na escola de Dullin quando uma jovem, chamada Dina, aluna de Raymond Rouleau, o convidou para participar de um grupo teatral, que estava formando. A primeira reação de Jean foi a de recusar, pois esperava conseguir um papel mais importante numa próxima representação a ser montada pelo seu mestre. A jovem já ia embora, quando Jean indagou: “Era para que peça?”. Resposta: “Oedipe Roi de Jean Cocteau”. “Isto muda tudo. Que devo fazer?”, perguntou Jean fazendo-a parar com um gesto.

Jean fez um teste e passou: Cocteau lhe deu o papel principal, o de Édipo, e se foi.No dia seguinte, os colegas de Dina protestaram junto ao autor, alegando que Jean Marais não fazia parte da trupe e que havia sido convidado apenas porque  faltavam rapazes e não era justo … Cocteau se rendeu às suas razões, entregou o papel de Édipo para Michel Vitold. A Jean coube aparecer em cena praticamente nú, vestido apenas com uma pequena faixa branca, imóvel como uma estátua,  tendo de cada lado os dois outros atores que compunham com ele o côro.

Numa tarde, Cocteau chamou Jean à parte: “Você quer interpretar o papel  de Galaad em Les Chevaliers de la Table Ronde? Jean Marais recebeu esta proposta como um presente do céu: a oportunidade que ele aguardava finalmente se concretizara. Cocteau se tornaria o Pigmalião de Marais, seu conselheiro no teatro e depois no cinema, seu fornecedor de papéis escritos  sob  medida.

A primeira aparição marcante de Jean Marais no cinema foi em Além da Vida / L’Eternel Retour / 1943, dirigido por Jean Delannoy com roteiro e diálogos de Jean Cocteau, uma transposição da lenda céltica de Tristão e Isolda para o século XX que transformou Jean Marais e Madeleine Sologne em “heróis românticos” da juventude da época. Após Além da Vida, Jean desfrutou de uma popularidade indescritível, sua figura foi publicada nas capas de todas as revistas: ele encarnava os sonhos de uma geração inquieta, perturbada pelo medo e pelas privações  ocasionadas pela Ocupação alemã.

Este sucesso facilitou sem dúvida a realização de quatro longas-metragens que Jean Cocteau escreveu e dirigiu no decorrer dos cinco primeiros anos do pós-guerra, nos quais Marais encontrou seus papéis mais belos. Em A Bela e a Fera / La Belle et la Bête / 1945 ele interpretou Avenant, o Príncipe e sobretudo a Besta, deixando que o público percebesse, por detrás da maquilagem, uma humanidade patética. Depois, acumulou papéis ousados, a meio-caminho entre  o romantismo exacerbado, a dramaturgia, e a poesia em A Águia de Duas Cabeças / L’Aigle a deux Têtes / 1947, O Pecado Original / Les Parents Terribles / 1948 e, enfim,  Orfeu / Orphée / 1949 , tornando-se um ator no sentido mais nobre do termo.

Entre outros filmes de Jean Marais destacam-se: Os Amores de Carmen / Carmen / 1942 (adaptação do romance de Prosper Mérimée e dirigido por Christian-Jacque com Viviane Romance), Entre o amor e o trono / Ruy Blas / 1947 (adaptação da peça de Victor Hugo por Jean Cocteau, dirigido por Pierre Billon com Danielle Darrieux), Le Chateau de verre / 1950 (adaptação do romance de Vicky Baum e dirigido por René Clement com Michele Morgan), Les Miracles n’ont lieu qu’une fois / 1950 e Nez de cuir / 1951 (respectivamente história original sobre a lenta destruição do amor escrita por Jacques Sigurd e adaptação do romance de Jean de la Varende, ambos dirigidos por Yves Allégret, sendo o primeiro com Alida Valli, uma das mulheres que se apaixonaram por Jean), A Princesa de Clèves / La Princesse des Clèves / 1961 (adaptação do romance de Madame La Fayette dirigido por Jean Delannoy com Marina Vlady), Fantômas / Fantômas / 1964 (adaptação do romance de Marcel Allain e Pierre Souvestre dirigido por André Hunebelle, com Jean Marais usando a inquietante máscara verde que ele mesmo desenhou e contracenando com Louis des Funès no papel do paranóico Comissário Juve), Pele de Asno / Peau d’âne / 1970 (adaptação musical do conto de fadas de Charles Perrault dirigido por Jaques Demy com Catherine Deneuve) e, é claro, As Estranhas Coisas de Paris / Éléna et les Hommes / 1955 e Um Rosto na Noite / Nuits Blanches ou Notti Bianche / 1957, por terem sido dirigidos, pela ordem,  por Jean Renoir e Luchino Visconti.

No final dos anos cinquenta, favorecido por sua aparência romântica e seu porte atlético, Marais começou uma nova fase de sua carreira, esgrimindo nos filmes de capa-e-espada de André Hunebelle e de outros diretores como Georges Lampin, Pierre Gaspard-Huit e Henri Decoin, filmes simpáticos desprovidos de qualquer ambição, nos quais ele podia demonstrar suas qualidades esportivas e seu gosto pelo risco físico. Sob a orientação desses realizadores, sobretudo Hunebelle, ele se tornou o herói cinematográfico dos romances populares mais célebres da literatura francêsa: Le Bossu, Le Capitan, Le Miracle des Loups, Le Capitaine Fracasse, Les Mystères de Paris,  etc.

Recentemente pude ver todos esses filmes nas cópias – quase todas restauradas – em dvd da René Chateau Video, Pathé Classique e Gaumont e, a seguir, faço breves comentários a respeito deles, observando que, mais do que o trabalho dos diretores, o que deu grandeza à realizações foi o  carisma de Jean Marais.

LA TOUR, PRENDS GARDE! / 1957

Os exércitos de Louis XV (Jean Lara) e de Marie-Thérèse d’Autriche (Sonja Hlebs) se confrontam. O rei fica furioso ao ver seu estandarte tremular na tenda de sua inimiga. Mas também se diverte vendo Henri La Tour (Jean Marais), membro de uma trupe de artistas ambulantes, ridicularizar o Duque de Saint Sever (Paul-Emile Deiber), responsável por aquela humilhação. Saint Sever se vinga, mandando chicotear La Tour. Este recupera intrepidamente a bandeira de seu soberano, incendiando o acampamento dos austríacos. Como recompensa, Louis XV enobrece La Tour que, assim, pode duelar com o Duque. Quando os dois estão se enfrentando, surge um bando de austríacos, e eles se unem para lutar contra  os inimigos. Durante o combate, Saint Severs é apunhalado mas, antes de exalar o último suspiro, ele pede a La Tour que encontre sua filha natural, Toinon (Cathia Caro), a quem lega todos os seus bens. Escapando de todos os perigos, La Tour consegue encontrar Toinon em Paris e desmascarar o ignóbil Péruge (Renaud Mary), que assassinou o Duque, e o odioso  carcereiro de Toinon, Taupin (Jean Parédes).

Inspirado na letra de uma canção escrita por Alexandre Dumas, esta super co-produção franco-italo-iugoslava, filmada em Zagreb, tem magníficos cenários e figurinos e oferece cenas espetaculares – o incêndio do acampamento austríaco é um bom exemplo – cuja amplitude e beleza são perfeitamente apresentadas em Dyaliscope e L’Eastmancolor. Sorridente e dinâmico, Jean Marais é um herói de aventuras particularmente simpático e arrebatador. Percebe-se ainda magníficos figurinos e cenários, a presença no elenco de duas atrizes em voga nos anos 50, Eleonora Rossi Drago  no papel da Condessa Malvina d’Amalfi  e de Nadja Tiller  no papel de Mirabelle e a estréia no cinema de Jean-Pierre Léaud (como Pierrot) que apareceria com mais evidência dois anos depois em  Os Incompreendidos / 400 Coups de François Truffaut.

O CORCUNDA / LE BOSSU / 1959

Em 1701, o Duque de Nevers (Hubert Noel) casou-se secretamente com Isabelle de Caylus (Sabine Sesselmann como Sabine Selman), de quem teve uma filha, Aurore (Sabine Sesselmann). Seu primo, o Príncipe Philippe de Gonzague (Francois Chaumette), manda assassiná-lo no curso de uma emboscada, apesar da intervenção do Cavaleiro Henri de Lagardère (Jean Marais). Antes de morrer, Nevers confia Aurore a Lagardère. Este último, acusado por Gonzague do assassinato do Duque, é obrigado a fugir e, acompanhado de seu criado Passepoil (Bourvil), se refugia na Espanha. Em 1717, Lagardère fica sabendo que Gonzague, que se casou com Isabelle, vai reunir um conselho de família para atribuir a si próprio todos os bens de sua esposa. Lagardère retorna à França com Aurore e avisa Isabelle de que sua filha está viva. Disfarçado de corcunda, Lagardère ganha a confiança de Gonzague, que mandara raptar Aurore. Lagardère a liberta e a entrega à sua mãe, depois de ter matado Gonzague num duelo feroz. Enobrecido pelo Regente (Paul Cambo), Lagardère casa-se com Aurore.

O filme marca  a primeira colaboração de André Hunebelle e de Jean Marais, que seria repetida em outros projetos nas décadas seguintes:  Le Capitan, Le Miracle des Loups, Les Mystères de Paris. Entre 1964 e 1966, eles ressuscitariam o personagem de Fantômas, e sua última parceria seria numa minissérie para a televisão: Joseph Balsamo. Baseado no romance popular de Paul Féval, várias vezes levado à tela (inclusive por Jean Delannoy em 1944 com Pierre Blanchar) , o espetáculo tem cenários suntuosos, vestuário luxuoso,  exteriores pitorescos, (novamente favorecidos pelos sistemas de cores e de tela larga), andamento rápido, variedade de ambientes (Versalhes, Pierrefonds, Toledo), ação, movimento, humor (a cargo de Bourvil no papel do criado pusilânime mas astucioso) e drama. Jean Marais interpreta com entusiasmo um Lagardère de coragem indomável, um cavaleiro perfeito, um duelista sem par e suas qualidades esportivas são postas muitas vezes à prova. Sua criação do “corcunda” é uma maravilha de fingimento e de transformação, que inspirou essas palavras de Jean Cocteau: “Uma corcunda, uma barba, uma cabeleira mal penteada, é uma máscara mais do que fácil de  usar para confundir os traços. Mas Jean Marais recusa a facilidade. Um outro rosto, um rosto horrível verdadeiro, eis o que ele arranca de si mesmo, correndo o risco de embaciar a juventude e a graça que ele dissimula”.

O CAPITÃO DO REI / LE CAPITAN / 1960

Em 1616, Concini (Arnaldo Foa), favorito de Marie de Médicis (Lisa Delamare), quer eliminar o jovem Louis XIII (Christian Fourcade), de quinze anos de idade, e se proclamar rei. Um assecla de Concini, Rinaldo (Guy Delorme), cumprindo suas ordens, comete uma série de pilhagens e os assassinatos. François de Capestan (Jean Marais) corre em socorro do Marquês de Teynac, cujo castelo está sendo saqueado. François é ferido e tratado por uma jovem misteriosa. Uma aliança se forma entre grandes proprietários rurais sob a liderança do Duque de Angoulême (Raphael Patorni). Eles decidem enviar um mensageiro a Concini, para se queixar dos ataques. François é escolhido para esta missão. No meio do caminho, ele salva o saltimbanco Cogolin (Bourvil), que o segue até Paris. François chega até Concini e este lhe põe o apelido irônico de Capitan (o personagem fanfarrão da Commedia dell’arte). Concini manda drogar o cavalo de Louis XIII, mas felizmente Capitan está por perto para evitar o acidente. O Capitan reencontra sua estranha enfermeira, que é Gisèle d’Angouleme (Elsa Martinelli) e havia sido feita prisioneira por ordem de Concini. O Capitan a liberta e se apresenta à conjuração de Angoulême, que deseja liquidar ao mesmo tempo, Concini e Louis XIII e nomear o duque rei. Porém o jovem soberano manda matar Concini, provando assim sua firmeza. Angoulême e seus amigos aderem ao rei e François se casa com Gisèle.

Segunda colaboração da dupla Hunebelle – Marais depois de O Corcunda, que alcançou um sucesso gigantesco, trazendo para os cinemas mais de seis milhões de espectadores. Baseado no romance de Michel Zevaco, anteriormente objeto de uma produção dirigida por Robert Vernay em 1945, o filme, ao contrário da realização precedente, que tomava certas liberdades com relação ao quadro histórico, pretende conciliar a grande História da França (a de Louis XIII, de Concini, de Maria de Médicis …) com a pequena, deixando apenas esta última para a imaginação excessiva dos roteiristas. O resultado foi um espetáculo  trepidante, repleto de conspirações maquiavélicas, muitas cenas de ação e um pouco de humor (que Bourvil desempenha com animação). Com um sorriso nos lábios, Jean Marais executa, com muita a audácia, os exercícios mais perigosos como dar voltas pendurado num lustre, pular de uma janela sobre um cavalo, escalar uma muralha abrupta, etc.,  firmando-se de uma vez por todas no gênero de aventura.

LE CAPITAINE FRACASSE / 1961

Nobre arruinado mas cavalheiresco, o Barão de Sigognac (Jean Marais) oferece hospitalidade no seu castelo a uma trupe de artistas ambulantes e famélicos, que ficaram imobilizados numa floresta por causa de um enguiço na carroça que os transportava. Encantado com a ingenuidade autêntica de Isabelle (Geneviève Grad), filha de uma comediante falecida e de um pai desconhecido, Sigognac decide acompanhar a trupe, onde ele acaba substituindo no tablado o mímico Matamore (Sacha Pitoëff), que falecera. Isabelle é cortejada pelo arrogante duque de Vallombreuse (Gérard Barray) que, para conquistá-la, manda dois exímios esgrimistas abaterem seu protetor, o  barão, o qual já o derrotado num duelo. Conseguindo raptar Isabelle, Vallombreuse é gravemente ferido pelo barão, que escapara dos temíveis espadachins e se apressara em socorro da jovem. É então que um anel de Isabelle revela que ela é irmã do duque, o qual antes de exalar o último suspiro, implora o perdão de Isabelle e abençoa o casamento dela com aquele que havia jurado matar.

Nova versão do romance de Théophile Gauthier (na França destacaram-se anteriormente a de 1929 de Alberto Cavalcanti com Pierre Blanchar e a de 1943 de Abel Gance com Fernand Gravey, ambas as quais eu ví sem muito agrado), dirigida por Pierre Gaspar-Huit. Acrobático e intrépido como deve ser um herói dos filmes de capa-e-espada, sempre dispensando o dublê, Jean Marais domina o elenco, onde se nota a presença de Phillipe Noiret como o truculento Hérode, diretor da trupe;  de Louis des Funès como Scapin, um dos comediantes; e Jean Rochefort como Malartic, um dos espadachins contratados para matar Sigognac. O filme tem um clima quase feérico com belas e amplas imagens em cores, muito movimento e melodrama, principalmente no final, quando se descobre o segredo da identidade de Isabelle e Sigognac e Vallembreuse se enfrentam pela última vez.

O MILAGRE DOS LOBOS / LE MIRACLE DES LOUPS / 1961

Robert de Neuville (Jean Marais) é apaixonado e amado por Jeanne de Beauvais (Rossana Schiaffino), sobrinha do Conde Husselin (Louis Arbessier) e afilhada do Rei da França (Jean-Louis Barrault). O Duque de Bourgogne, Charles le Téméraire (Roger Hanin) cobiça Jeanne. Ele rapta Jeanne e assassina Robert.  Este é recolhido moribundo por camponeses e, bem tratado, recobra a saúde. Robert se introduz com os aldeões no castelo do Téméraire e liberta Jeanne. Louis XI e Charles têm uma entrevista em Péronne. Para que a paz com Bourgogne não seja perturbada, o rei encarrega o Conde Husselin de levar uma mensagem de concórdia aos habitantes de Liège. O infame Charles encarrega sua alma danada, Sénac (Guy Delorme), de se apossar da mensagem e de substituí-la por outra, na qual Louis recomendava ao contrário que os liegezes se revoltassem. Sénac mata Husselin mas o conde havia confiado a missiva a Jeanne. Esta, perseguida pelos asseclas de Charles, implora aos céus. O milagre se produz, e os lobos protegem a jovem de seus perseguidores. Sénac traz sua falsa messagem, deixando o rei da França numa situação difícil. Porém Robert intervém com a verdadeira carta do rei. O tribunal eclesiástico remete ao “Julgamento de Deus” entre Sénac e Robert. A vitória do justo, cuja recompensa é Jeanne, salva a corôa da França.

Dirigido mais uma vez por André Hunebelle, Jean Marais reencontra Jean-Louis Barrault, com o qual já havia trabalhado na companhia de Charles Dullin (que fora o Louis XI na versão muda de Raymond Bernard) e na Comédie-Française, e com a bela atriz italiana Rossana Schiaffino. Numa das cenas do filme, o personagem do cavalheiro de Neuville, interpretado por Marais, devia ser jogado do alto de uma ponte sobre um rio. Na véspera da filmagem, enquanto os dublês – sem que o ator soubesse – ensaiavam a tomada, um deles foi precipitado no vazio e rompeu o tímpano. Hunebelle resolveu então usar um manequim, proibindo que qualquer dublê ou fosse lá quem fosse, e sobretudo Jean Marais, executasse a queda. Porém Marais, desconfiando de alguma coisa, chegou ao local antes do diretor e, descobrindo o manequim vestido com suas roupas, exigiu que a filmagem começasse imediatamente, antes que Hunebelle chegasse. Ninguém teve coragem de desobedecê-lo e a cena foi rodada sem boneco … e sem acidente. Além de perfídias, torneios, e da bela cena do milagre dos lobos na neve, o filme tinha tantas acrobacias que Barrault um dia se espantou de ver Marais entra por uma porta: “Meu Deus! E eu que te esperava pela janela!”.

LE MASQUE DE FER / 1962

Quando o jovem rei Louis XIV (Jean-François-Poron) fica gravemente doente, Mazarin (Enrico Salerno) manda D’Artagnan (Jean Marais) procurar Henri (Jean-François Poron) o irmão gêmeo do rei, que se encontra detido na fortaleza de Sainte-Marguerite e cuja existência é mantida em segredo. Sua semelhança com o rei é escondida graças a uma máscara de ferro, que ele é obrigado a usar permanentemente. Porém isto não impede o prisioneiro de namorar Isabelle de Saint-Mars (Claudine Auger), a filha do Governador (Noel Roquevert). D’Artagnan chega em Saint-Sulpice, pouco depois que o máscara de ferro acabara de fugir. Isabelle, seu pai e D’Artagnan rumam para Paris, onde chega também Henri na companhia da graciosa Marion (Sylva Koscina) e de um amável cúmplice, Lastreaumont (Jean Rochefort). Enquanto isso, o rei recobra miraculosamente a saúde mas múltiplos incidentes vão acontecer entre Isabelle e os dois gêmeos. Ela fica sem saber quem é Louis e quem é Henri. O encontro inevitável entre os dois irmãos acaba acontecendo e o rei convence seu irmão a ficar preso na Bastilha por razões de Estado. Marion e seu cúmplice ajudam o preso a se evadir e reencontar Isabelle, com a qual ele será para sempre feliz. Mas D’Artagnan, e sua eterna noiva, Mme. De Chaulnes (Giselle Pascal), ainda não irão se casar, pois ele é convocado para uma nova missão.

Inspirado livremente no romance de Alexandre Dumas – sempre revivido cinematográficamente –  o filme foi realizado  por Henri Decoin, que soube combinar muita habilidade o humor e a fantasia. A cor  chama a atenção nas cenas da cortes e nos numerosos exteriores onde se desenvolve a intriga. Jean Marais cria com originalidade um d’Artagnan humorístico um D’Artagnan humorístico, que nós vemos interrompendo incessantemente um namoro galante, a fim de partir, por ordem do rei, para novas aventuras. Perseguições, duelos e prisões se sucedem até o inevitável encontro dos dois irmãos gêmeos, um papel duplo bem interpretado por Jean-François Poron, passando da ingenuidade do máscara de ferro à grandeza altiva de Louis XIV. Enrico Maria Salerno dá vida a um Manzarin astucioso e diplomata, como manda a tradição.

LES MYSTÈRES DE PARIS  / 1962

O marquês Rodolphe de Sombreuil (Jean Marais), que vive uma vida despreocupada na companhia de sua amante Irène (Dany Robin), durante uma corrida de carruagens, causa um acidente do qual não suspeita a gravidade. Ele tenta ajudar Marie (Jill Haworth), filha da vítima atropelada. Mas Marie, conhecida como Fleur de Marie, é raptada por uma megera, La Chouette (Renée Gardès). Ajudado por um ex-forçado, Le Chourineur (Pierre Mondy), Rodolphe se disfarça de operário, penetra no submundo, encontra Marie e leva a moça para longe daqueles antro de marginais. Entretanto, Irène, preocupada com as ausências de Rodolphe, e levada pela ambição e pelo ciúme, se une ao Barão de Lansignac (Raymond Pellegrin) um aristocrata inescrupuloso nos negócios, que  com a ajuda de capangas liderados por Le Maître d’Ecole (Jean le Poulain), trama uma armadilha para Rodolphe. Mas, graças à sua coragem e às suas amizades, Rodolphe fará triunfar o direito e a justiça. Lansignac mata Irène e vem a ser morto, ao tentar reagir, quando o marquês e seus companheiros chegam para pôr fim às suas maldades.

Esta versão do fascinante romance de Eugène Sue, tantas vezes transposto para o cinema (só na França houve cinco outras filmagens, entre 1909 e 1943, das quais eu conheço apenas a de 1943, dirigida por Jacques de Baroncelli com Marcel Herrand no papel de Rodolphe), tal como os filmes anteriores da nova fase de Jean Marais, se beneficiou da tela larga e da cor. Hunebelle respeitou o clima da obra e suas grandes linhas para fazer reviver Rodolphe e Fleur de Marie, la Chouette e Le Chourineur com muita verve, sem jamais perder de vista que se tratava de uma bela história de amor. Um critico disse que Jean Marais era um Rodolphe de sonho e Jill Haworth tinha a fraqueza tocante da imortal Fleur de Marie. E eu digo: Raymond Pellegrin compõe um Lansignac terrivelmente malvado como são normalmente os vilões de Eugene Sue.

11 de outubro de 1998

MARY PICKFORD

Existiram centenas de estrelas e excelentes atrizes em Hollywood porém só uma Mary Pickford. Ela foi a maior entre as maiores, uma enorme atração de bilheteria, artista de fama internacional e mulher forte e empreendedora, que soube cuidar muito bem de sua carreira em um negócio árduo e competitivo. Mary queria que seus filmes fossem lucrativos mas também que eles fossem bons. Para isso, infiltrava-se em todos os aspectos da produção, contratando sempre os melhores talentos e acompanhando constantemente o seu trabalho. Ela era boa tanto na comédia como no drama e tinha carisma, muito carisma. Um de seus fotógrafos prediletos, Charles Rosher, disse que ela “conhecia tudo o que era para conhecer sobre cinema”.

Mary aperfeiçoou um estilo de interpretação naturalista e demonstrou um grau de sutileza e comedimento nunca visto antes. Pode-se dizer que ela foi para a interpretação o que D.W. Griffith foi para a direção na fase pioneira do cinema. Como disse o historiador Leslie Wood: “Mary Pickford foi o complemento do gênio de Griffith”. Mary uma vez comentou: “Eu não representava. Eu era o personagem que interpretava na tela”.

A “Pequena Mary”, como ficou inicialmente conhecida pelo público, foi uma das quatro grandes personalidades do cinema silencioso, juntamente com seu marido Douglas Fairbanks, Charles Chaplin e D. W. Griffith. Os fãs a adoravam e foram eles mesmos, e não os agentes de publicidade, que lhe deram o título de America’s Sweetheart (A Namorada da América).

Gladys Marie Smith nascida em Toronto, Canadá em 8 de abril de 1892, enfrentou a pobreza durante a infância. Seu pai, morreu quando ela tinha seis anos de idade, deixando sua mãe, Charlotte, uma viúva sem dinheiro e com três crianças para criar – Gladys, a irmã Lottie, e o irmão Jack, que também trabalharam no cinema. Porém em 19 de setembro de 1898, a vida da família começou a melhorar: foi nesse dia que Gladys, estreou no Princess Theatre em Toronto com a Cummings Stock Company. Dentro de três anos, ela se tornou conhecida no meio teatral e foi convidada para fazer uma tournée numa peça intitulada The Little Red Schoolhouse.

A história de Mary Pickford foi contada – primeiro na sua autobiografia (Sunshine and Shadow, 1955) e depois nas biografias de Scott Eyman (Mary Pickford, America’s Sweetheart, 1990) e Eileen Whitfield (Pickford: The Woman Who Made Hollywood, 1997) – tendo sido também abordada em livros admiráveis de Janine Basinger (Silent Stars, 1999) e Kevin Brownlow (Mary Pickford Rediscovered: Rare Pictures of a Hollywood Legend, 1999). De modo que vamos apenas reproduzir mais ou menos o que eles disseram.

Como lembrou Janine, a lenda de Pickford começa quando uma pequenina e  delicada criatura de belos cabelos cacheados pede uma audiência com David Belasco, o famoso empresário de Nova York. Ele é muito ocupado porém ela persiste, consegue finalmente entrar no escritório dele, e dizer com coragem e firmeza: “Sou uma atriz, mas eu quero me tornar uma boa atriz”. É claro que ela o conquistou e ele imediatamente a colocou no importante papel de Betty Warren na peça de William de Mille, The Warrens of Virginia, ganhando cinco dólares por semana. Desde então, Mary ficou caracterizada como a mulher decidida, que sempre insiste para obter o que quer e sempre consegue.

A trajetória artística de Mary com Belasco ia muito bem até que, em 1909, aconselhada pela mãe, ela se dirigiu ao estúdio da Biograph e, de novo, teve oportunidade de ficar diante de um homem poderoso: D.W. Griffith. Mary se apresentou como “uma atriz de Belasco” e pediu um salário de “pelo menos dez dólares por dia”. Ela foi contratada e, em 20 de abril daquele ano, com sua maquilagem aplicada pessoalmente por Griffith, estreou na tela em Her First Biscuits (segundo Scott Eyman, que consultou os arquivos da Biograph, Mary aparecia em segundo plano, eis que o filme era estrelado por Dorothy Bernard. Mary diria mais tarde que a maquilagem de Griffith fez com que ela ficasse parecida com Pancho Villa).

Depois de ter ido trabalhar com Griffith, Mary tornou-se rapidamente uma favorita do público. Tal como Florence Lawrence antes dela, Mary ficou conhecida com  “A Garota da Biograph e também como “A Pequena Mary” ou “A Mocinha dos Cachos Dourados”. Nos anos de formação, Mary fez dramas e comédias, westerns e filmes românticos, papéis de menina e de jovem adulta, de pobre e de rica. Apareceu em mais de cem filmes de curta-metragem (ver a longa  filmografia completa de Mary Pickford nos livros de Scott Eyman e Eileen Whitfield) e, em apenas três anos, transferiu-se da Biograph para a IMP (Independent Motion Picture) de Carl Laemmle (filmando inclusive nos estúdios de Thomas Ince em Havana, Cuba) e desta para a Majestic, retornando posteriormente à Biograph, sempre aumentando o seu salário.

Em 7 de janeiro de 1911, quando tinha apenas dezoito anos, Mary casou-se com o ator Owen Moore, um alcoólatra inveterado, de quem se divorciou em 1919 embora seu casamento já tivesse acabado há muito tempo. No mesmo ano, ela  e Douglas Fairbanks se apaixonaram e começaram a namorar. Eles eram o maiores astros feminino e masculino de sua época. O público já gostava deles individualmente e adorava vê-los juntos na vida real. Mary relutou um pouco em se casar, porque divorciar-se e contrair matrimônio com um homem que também teria de se divorciar e deixar seu filho (Douglas Fairbanks, Jr.) do primeiro casamento (com a socialite Beth Sully), poderia destruir sua imagem de “A Namorada da América”. Mas foi em frente e, em 28 de março de 1920, casaram-se na casa de Fairbanks, numa cerimônia simples.

Mr. e Mrs. Fairbanks fixaram residência em Hollywood e se tornaram os líderes sociais do mundo do cinema. Eles foram morar numa fabulosa mansão chamada Pickfair, que chegava perto da famosa San Simeon de William Randolph Hearst. O casamento Pickford / Fairbanks  – e os dias felizes em Pickfair –  terminou nos anos 30, quando Doug e Mary tinham deixado de ser os astros brilhantes do passado. Em 8 de dezembro de 1933, Mary pediu o divórcio e, embora eles tivessem quase se reconciliado, ela acabou casando-se, em 26 de junho de 1937, com Buddy Rogers (doze anos mais moço do que ela) e Fairbanks com Lady Sylvia Ashley. Anos depois, ao saber da morte de Douglas, Mary exclamou: “Meu querido se foi”.

Por volta de 1912, Mary já era uma grande estrela de cinema. Sua volta para a Biograph significou atuar novamente sob as ordens de Griffith, um relacionamento laboral que nunca foi confortável para nenhum dos dois. Mary não era dócil como Lillian Gish e enfrentou Griffith em muitas frentes, reclamando que ele só lhe dava papéis que outras atrizes recusavam. Dizem que uma vez ela o mordeu e ele lhe deu um empurrão, derrubando-a (Eileen Whitfield disse que ela caiu no chão e gritou:  “Você diz que é um cavalheiro sulista! Você é não somente uma desgraça para o Sul como também para o Norte! Nunca mais fale comigo, senhor!”). Um dos filmes de maior sucesso da colaboração Pickford / Griffith deste período foi New York Hat, baseado numa história de Anita Loos, exibido em 1913.

No final de 1913, Mary assinou contrato com a Famous Players Film Company de Adolph Zukor e, em 1914, atingiu uma popularidade impressionante em filmes como O Filho do Prisioneiro / The Eagle’s Mate,  As Duas  Monarquias / Such a Little Queen, Cinderella / A Gata Borralheira ou Cinderella, No País das Tormentas / Tess of the Storm Country, Senhorita Nell / Mistress Nell, Ao Alvorecer da Verdade / The Dwan of Tomorrow, Mágoa / Rags, Esmeralda / Esmeralda, A Sombra do Passado / A Girl of Yesterday, Madame Butterfly / Madame Butterfly, etc.

Em junho de 1916, a Famous Players fundiu-se com a Jesse L. Lasky Feature Play Company para formar a Famous Players / Lasky, cujos filmes seriam distribuídos pela Paramount Pictures. Em julho, a companhia organizou a Artcraft Pictures para distribuir os filmes de Mary Pickford e ela se tornou a primeira atriz a ter a sua própria unidade de produção: a Pickford Film Company. Mary podia escolher seu próprio diretor e elenco coadjuvante, aprovar a publicidade, ter controle sob o corte final e o direito de questionar qualquer papel que não lhe interessasse.

Seguiu-se uma  série de filmes de grande sucesso como, por exemplo, A Enjeitada / The Foundling, Pobre Pepinazinha / Poor Little Peppina, Eterna Tormenta / The Eternal Grind, Gulda da Holanda / Hulda from Holland, Menos que o Pó / Less Than the Dust.


Em 1917, nova sucessão de êxitos com Raça de Heróis / Pride of the Clan, Rica e Pobre ou Pobre e Rica / The Poor Little Rich Girl, Perseverança / A Romance of the Redwoods, A Intrépida Americana / The Little American, Rebeca / Rebecca of Sunnybrook Farm, A Princezinha / The Little Princess, etc.

Em 1918,  os três irmãos Pickford estavam juntos na tela em M’liss / M’liss, uma produção de primeira linha baseada numa história de Bret Harte e enriquecida pelos talentos da roteirista Francis Marion, do diretor Marshall Neilan e do galã Thomas Meigham. Nessa época, Mary já era uma mulher de vinte e seis anos porém seus fãs a amavam como uma menina valente e ela vinha – com muita esperteza – mantendo esta imagem. Entretanto, aos poucos, a atriz começou a fazer filmes que lhe permitissem ser uma outra coisa ao mesmo tempo: uma versão adulta da “Namorada da América”. Na temporada de 1918, Mary apareceu em filmes que ofereciam aos espectadores “duas Marys”: Benditoso Esplendor / Stella Maris, Contrastes da Vida / Amarilly of Clothes-Line Alley, o citado M’liss e  Johanna Enlists, nos quais ela interpretava sua personagem tradicional e uma variante mais bem apessoada, mais bem vestida, de si mesma.

Em 9 de novembro de 1918, Mary assinou contrato com a First National e deixou Zukor. Após um tempo de distribuição de cinco a seis anos, a propriedade dos filmes e os direitos autorais seriam revertidos para ela. Durante esse período Mary dissolveu a Pickford Film Company e fundou a Mary Pickford Company, que pertencia metade a ela e metade à sua mãe. Em 1919 ela fez alguns dos maiores êxitos de sua carreira: Papaizinho Pernilongo / Daddy Long Legs, A Garota /  The Hoodlum e Entre Bandidos / The Heart O ’ the Hills.


Diante dos rumores de que a First National ia se associar com a  Famous Players / Lasky, Mary, Douglas Fairbanks, D. W. Griffith, William S. Hart e Charles Chaplin criaram a  United Artists Association (Hart logo deixaria o grupo). Seu plano era incrementar seus lucros, impedir que outras companhias os usassem para fins de venda por pacote e ganhar completo controle, de uma vez por todas, sobre suas carreiras.

Mary produziu vários filmes através da United Artists, destacando-se: Pollyanna ou Menina Travessa / Pollyanna / 1920, Castelos de Espuma / Suds / 1920, O Pequeno Lord Fauntleroy / Little Lord Fountleroy / 1921, Mãos Frívolas / Through the Back Door / 1921, uma nova versão de  O País das Tormentas / Tess of the Storm Country / 1922, Rosita /Rosita / 1923, (dirigido pelo grande Ernst Lubitsch), Entre Duas Rainhas / Dorothy Vernon of Haddon Hall / 1924, Sua Vida pelo seu Amor / Little Annie Rooney / 1925, Aves sem Ninho / Sparrows / 1926 e o seu último filme mudo, Meu Único Amor / My Best Girl / 1927.

Mary estreou no cinema falado em Coquette / Coquette / 1929, que lhe deu o Oscar de 1928-29 como Melhor Atriz. No papel de Norma Besant, interpretado por Helen Hayes no teatro, ela apareceu diante do seu público completamente transformada, não somente porque tinha uma voz e cortara o cabelo bem curto. Como disse Janine, agora Mary “era uma nova pessoa, e definitivamente uma mulher com uma vida sexual”. Depois de Coquette, Mary fez apenas mais três filmes: Mulher Domada / The Taming of the Shrew / 1929, (no qual contracenou com Douglas Fairbanks), Kiki / Kiki / 1931 e Segredos / Secrets / 1931, ambos os quais eram refilmagens de filmes mudos estrelados por Norma Talmadge.

Mary Pickford fez ao todo, 52 filmes de longa-metragem. Só vi 10 filmes dela: Contrastes da Vida, Benditoso Esplendor, Mães Frívolas, Pequeno Lord Fauntleroy, No País das Tormentas (2a versão), Aves sem Ninho, Meu Único Amor, Coquette, Mulher Domada, e Segredos. Destes nove, gostei mais dos três filmes sobre os quais falarei: No País das Tormentas, Aves sem Ninho e Meu Único Amor.

No País das Tormentas, apresenta Mary como Tessibel ‘Tess’ Skinner, garota pobre e esfarrapada, filha de um pescador que vive numa comunidade miserável instalada à beira-mar. Todos os homens do lugar, desde o brutal Ben Letts (Jean Hersholt) ao patético Ezra Longman (Danny Hoy), cobiçam a jovem bela e corajosa. No topo da montanha que fica acima dos casebres, vive uma família rica, cujo patriarca, Elias Graves (David Torrence), despreza seus “vizinhos” e tenta expulsá-los, para ter uma visão “irrestrita” do mar. O filho de Graves, Frederick (Lloyd Hughes), simpatiza com os “intrusos” e se apaixona por Tess. No decorrer da trama, o pai de Tess (Forrest Robinson) é acusado injustamente de assassinato durante um confronto com os capangas de Graves, Tess assume a maternidade do filho ilegítimo de Teola (Gloria Hope), filha de Graves, e ensina ao velho milionário o verdadeiro sentido do cristianismo.

Nesta refilmagem do mesmo melodrama dirigido em 1914 por John S. Robertson e belissimamente fotografada por Charles Rosher, Mary recria a sua personagem favorita, passando do humor às cenas de arrancar lágrimas com extraordinária desenvoltura. Basta citar a sequência intensamente dramática, na qual Mary entra na igreja com o bebê de Teola moribundo no colo. Logo na entrada, ela se ajoelha diante de um vitral reproduzindo a figura do Cristo com uma criança nos braços. Depois caminha em direção ao altar e pede que o padre batize o pequenino. Diante da recusa, ela vai à pia batismal e realiza ela mesma o sacramento. O menino morre, a verdadeira mãe não se controla, e grita “Me dá o meu bebé! “, diante do sacerdote, dos fiéis, de Ezra e de Frederick estupefactos.

Em Aves sem Ninho, numa região pantanosa do Sul dos Estados Unidos, um casal de camponeses, os Grimes (Gustav von Seiffertitz, Charlotte Mineau) e seu filho Ambrose (Spec O’Donnell), exploram um grupo de crianças abandonadas, obrigando-as a trabalhar na sua fazenda. Os menores são tratados como prisioneiros, para não dizer escravos, e são muitas vezes brutalizados e privados de comida. Uma adolescente chamada Mollie (Mary Pickford) cuida dos pequenos “pardais” da melhor maneira possível, os reconforta, e lhes assegura que Deus vela sobre eles. Doris (Mary Louise Miller), uma menininha, é raptada da cidade e entregue aos Grimes. A fim de que a polícia não descubra seu paradeiro, Grimes manda seu enteado afogá-la no pântano. Mollie salva Doris e, depois de se opor violentamente contra Grimes, organiza a fuga de seus protegidos. Percorrendo o pântano infestado de crocodilos, as crianças passam por situações difíceis, livrando-se de todos os perigos. A polícia prende os Grimes e persegue os raptores, que encontrarão a morte nas areias movediças. Mollie tem a felicidade de ver todos os seus “pardais” adotados pelo milionário Dennis Wayne (Roy Stewart), pai de Doris.

Aos trinta e três anos Mary ainda podia interpretar adolescentes destemidas, cheias de vitalidade e alegria, ajudando os outros a enfrentar as piores calamidades. Eileen Whitfield descreveu o filme  com precisão: “um conto de fadas narrado num estilo brilhante; um Grand Guignol; um thriller expressionista”. Scott Eyman acrescentou com igual perspicácia: “Dickens entrelaçado com uma dose forte de Edgar Allan Poe”. Richard Corliss na revista Film Comment sintetizou: “Uma angustiante história de horror na mata”.

O espetáculo foi dirigido com muito acêrto por William Beaudine, auxiliado pela extraordinária direção de arte estilizada de Harry Oliver e pela excelente fotografia de Charles Rosher e seus colaboradores Hal Mohr e Karl Struss, influenciada pelo estilo expressionista germânico dos anos 20.

Nossas emoções atingem o auge durante a fuga no final, cheia de suspense, quando Mollie conduz as crianças através do pântano para a liberdade. Perseguida  pelo cão de Grimes, a meninada usa uma corda como cipó para atravessar a área de areia movediça, trepa nas árvores e se arrasta pelos seus galhos, pairando pouco acima dos répteis ferozes, que escancaram suas terríveis mandíbulas (Mary andou espalhando para a imprensa que a filmagem dessas cenas foi muito perigosa mas na verdade elas não passaram de habilidosas dupla-exposições).

Porém a cena que mais impressionou foi aquela na qual Mollie embala um bebê morto em seus braços enquanto Jesus Cristo aparece no fundo do quadro com um rebanho de ovelhas. Ela adormece, Jesus se aproxima, toma o bebê nos seus braços, e se afasta. É uma das cenas mais lindas que eu já vi no cinema.

Meu Único Amor, dirigido por Sam Taylor e fotografado por Charles Rosher, é uma simples e deliciosa comédia romântica, que tem algo a ver com a história de Cinderella. Maggie Johnson (Mary Pickford), arrimo de uma família modesta e excêntrica (o pai, Lucien Littlefield; a mãe, Sunshine Hart; a irmã, Carmelita Geraghty), trabalha numa grande loja de departamentos, onde se apaixona por Joe Grant (Charles “Buddy” Rogers), um novo empregado, sem saber que ele é na realidade Joe Merrill, filho do milionário dono da loja (Hobart Bosworth), e está noivo de uma jovem da sociedade. Quando Maggie fica sabendo da verdade ela tenta convencer Joe de que sabia tempo todo quem ele era e estava tentando seduzí-lo.

As cenas de amor entre Mary Pickford e Buddy Rogers são maravilhosas: belas, puras e comoventes. Os momentos cômicos têm um charme irresistível.  Logo no início, Mary surge sobrecarregada de baldes, frigideiras e panelas. Ela deixa cair uma panela, apanha-a, deixa cair outra, e mais outra, até que, finalmente, enfia seu pé em uma das panelas, para arrastá-la consigo. Quando está quase chegando onde queria ir, sua anágua escorrega e cai no chão. Mary se livra dela e corre para um balcão da loja, para pensar no que vai fazer. Neste ínterim, uma mulher aparece, vê a anágua, pensa que é a dela, e a recoloca rapidamente no seu corpo num canto escuro do estabelecimento.

Numa outra cena, “Buddy” acompanha Mary até sua casa. Ela o convida para entrar mas, antes de abrir a porta, ouve a discussão reinante entre seus familiares no interior da casa. Mary pede que “Buddy” aguarde um pouco na varanda, explicando aquele caos como sendo um ensaio para um clube dramático.  “Que lindo uniforme, você parece um policial”, ela diz para um guarda que chega atrás do namorado meio suspeito de sua irmã, fazendo crer a “Buddy”, que ele é outro membro do grupo teatral que chegara para o “ensaio”.

Na grande cena em que Mary diz que estava enganando “Buddy”, para que ele possa se casar com a sua noiva, mostra a habilidade que Mary tinha – tal como Chaplin – de fazer o público rir e chorar ao mesmo tempo. Ela anda de modo afetado, lambuza seu rosto de batom, quase se sufoca com um cigarro que tenta fumar e dança um Charleston frenético, enfim, finge que é uma jovem desregrada. Porém Mary não consegue levar adiante esta farsa, cai em prantos e se pendura nos ombros de “Buddy”, dizendo: “Eu não sou uma garota má, Joe. Eu te amo mas não posso me casar com você”. Entretanto, ela acaba se casando com “Buddy”, na tela e na vida real. Em 29 de maio de 1979, Mary faleceu de hemorragia cerebral em Santa Monica, Califórnia, com “Buddy” ao seu lado.

Kevin Brownlow resumiu a importância de Mary Pickford de maneira correta: “Ela tinha legiões de imitadoras mas nenhuma rival”.