FERNANDEL

Dotado de um físico pouco comum, com um rosto comprido e longos dentes à mostra, Fernandel se tornou um dos gigantes do cinema francês. Ele divertiu o público por quatro décadas e até hoje é muito estimado na França. Seu sorriso alegre e brincalhão e seu sotaque tipicamente provençal  faziam rir as multidões, mas o grande artista também era capaz de cobrir sua máscara cômica com a sombra da tragédia humana.

Fernand Joseph Désiré Contandin nasceu a 8 de maio de 1903 em Marselha, França. Desde criança, Fernand teve um desejo imperioso e precoce de fazer “a mesma coisa que papai”.  Seu progenitor, Denis Contandin,  dispunha de uma dupla e fascinante personalidade. Durante toda a semana ele se consumia num modesto emprego de escritório mas, no domingo e feriados, o funcionário consciencioso e discreto se tranformava em um cantor de café-concerto sob o nome artístico de Sined.

Aos cinco anos de idade, apresentado por seu pai, Fernand estréia no palco. Ele interpreta uma pequeno soldado do tempo da Revolução  Francesa em Marceau ou les enfants de la Republique no Teatro Chave. Orgulhoso de si mesmo, o menino avança corajosamente na direção do público, tropeça no seu grande sabre e cai estendido no chão sob os aplausos da platéia.

Entretanto, esta experiência desagradável de um gag involuntário não desanima o pequeno ator. Aos sete anos, seu progenitor o conduz ao Palais de Cristal, para ver o grande Polin, a vedeta mais famosa do music-hall e da canção francesa, que se especializara como comique-troupier, isto é, um comediante-cantor, que se vestia de recruta.  Fernand ficou maravilhado e pediu ao seu pai uma farda igual a de Polin.

M. Contandin concordou, desde que ele aprendesse a cantar duas canções extraídas do repertório de Polin, “Mademoiselle Rose” e “Ah! je t’aime tant”.   Quando o pai viu que seu filho estava pronto, que ele havia assimilado as letras, as músicas, os gestos e as mímicas apropriadas, levou-o para enfrentar mais uma vez o público. De repente, ao contemplar o auditório, Fernand fica aterrorizado e se refugia nos braços de Sined. Impulsionado para diante dos espectadores por um pontapé  bem colocado, Fernand esquece suas angústias e exclama a plenos pulmões: “Ah! Mademoiselle Rose / J’ai un petit objet, un petit objet à vous offrir / Ce n’est pas grand-chose / Mais cela vous fera plaisir…”

A partir desse dia, M. Contandin dará a seu filho uma participação cada ver maior no seu próprio número. Fernand estuda novas canções e aprende uma profissão mais séria do que ele pensava. Porque Sined é um perfeccionista, que não deixa nenhum lugar para a improvisação.

Mas, em 1915, M.Contandin foi convocado para servir a pátria e Fernand teve que procurar outra ocupação. Nesta fase de sua vida, o jovem marselhês trabalha em diversos empregos: no Banque Nationale de Crédit, na fábrica de sabão Bellon, na papelaria Grangey, na Societé Marseillaise de Crédit, na Compagnie d’Electricité, na loja do pai (que, após ter retornado da guerra, foi convidado para dirigir uma sucursal de importante casa de comestíveis), nas docas, e em outros bancos e fábricas de sabão; porém não pára de cantar à noite e nos finais de semana.

No primeiro emprego, ele se torna colega de um companheiro inseparável, Jean Manse, cuja amizade preservará durante toda a sua existência. Fernand se apaixona pela irmã de Jean, Henriette, e quando vai visitar a noiva, Mme. Manse o anuncia assim: “Voilà le Fernand d’Elle!”. Sim, ele agora seria Fernandel! Fernand já usa este nome artístico, ao aparecer em cena no Eldorado, pois continua dividindo seu tempo entre espetáculos e trabalhos burocráticos. Ele se casa com Henriette em 4 de abril de 1925 e, na primavera deste mesmo ano, vai fazer seu serviço militar. Sua filha mais velha, Josette, nasce em 19 de abril de 1926, três semanas antes de Fernand ser liberado de suas obrigações militares.

E eis que surge uma grande chance no meio teatral. Fernand é contratado por Louis Valette, diretor do Cinema Odéon de Marselha, para substituir um artista parisiense. Este cinema fazia parte  do circuito Paramount, que apresentava ao mesmo tempo filmes e números de variedades. A representação de Fernandel é um triunfo, ao qual assiste, por acaso, o diretor francês da Paramount, Jean Faraud. Este lhe propõe um contrato para atuar nas salas da Paramount em diversas cidades.

Posteriormente, Fernand recebe uma proposta da agência Lutetia, para se apresentar nos cinemas da cadeia Pathé em Paris. Em março de 1930, a família Contandin se instala na Cidade-Luz, e aumenta em 18 de abril, com o nascimento de sua segunda filha, Janine. Em novembro, Fernand é convidado por Henri Varna para ser uma das atrações de sua revista Nu Sonore …. Seins pour Seins parlant. Este espetáculo no Concert Mayol consagrou Fernandel definitivamente.

Um noite, Marc Allégret bate na porta de seu camarim, a fim de lhe propor um pequeno papel em Le Blanc et le Noir / 1930. Este filme, co-dirigido por Robert Florey e Marc, lhe permite encontrar dois personagens, que se tornarão seus amigos: Sacha Guitry, o autor da peça da qual foi extraído o argumento, e Raimu, ator principal.

Fernandel recordaria: “Foi para mim uma formidável revelação. Porque eu nunca tinha me visto. Quando me ví na tela, este tipo desengonçado, com esta cara inverossímel, compreendí porque, no Concert Mayol, as pessoas riam … Meus dentes, só se via os meus dentes, uma mandíbula gigantesca! … Não era assim que eu me imaginava. Eu era feio …  Felizmente não era feio para causar medo, eu era feio para fazer rir! E foi isto que me salvou … Decidí usar minha feiura, para fazer as pessoas rirem, para torná-las mais felizes … Modifiquei meu modo de andar, acentuei o lado caricatural de meus traços. Mas, também me tornei mais simples, mais sóbrio nos meus gestos”.

No dia 10 de dezembro de 1935, nasceu Franck Gérard Ignace, que se tornaria um cantor e ator, conhecido como Franck Fernandel. O neto de Fernandel, Vincent Fernandel, filho de Franck, seguiu a carreira de cineasta.

Ao longo de sua extensa carreira, Fernandel fez 125 longas-metragens. Extraordinariamente prolífico, foi prejudicado por esta mesma fecundidade. Assim, sua filmografia tem realizações excelentes e medíocres.                                                                                                                                                                                                                                                                                                           Das 125 produções, ví apenas 40 e, para este artigo, selecionei  as minhas doze preferidas: Angèle / 1934, Valente a Muque / François 1er / 1937, Regain / 1937, Le Schpountz / 1938, A Volta ao Mundo com 80 Centavos / Les Cinq Sous de Lavarède / 1939, La Fille du Puisatier / 1940, A Estalagem Vermelha / L’Auberge Rouge / 1951, Cabelereiro das Arábias / Coiffeur pour Dames / 1952, O Pequeno Mundo de Don Camillo / Le Petit Monde de Don Camillo / 1952, Fruto Proibido / Le Fruit Défendu / 1952, O Carneiro de Cinco Patas / Le Mouton à Cinq Pattes / 1954, A Vaca e o Prisioneiro / La Vache et le Prisonnier / 1959.

ANGÈLE (Dir: Marcel Pagnol): Angèle (Orane Demazis), filha única de Clarius Barbaroux (Henri Poupon), fazendeiro na Provença, vive com o pai, a mãe, Philomène (Annie Toinon) e Saturnin (Fernandel), órfão recolhido outrora por caridade e que tem pelos donos da casa uma afeição inquebrantável. Albin (Jean Servais), um montanhês vindo de Baumugnes se interessa por Angèle, mas não ousa abordá-la. Menos tímido, Louis (Andrex), um malandro marselhês,  seduz a bela inocente e foge com ela. Clarius renega sua filha e proíbe que pronunciem seu nome. Saturnin, apaixonadamente devotado a sua donzela, fica sabendo, no curso de uma viagem a Marselha, que Angèle se prostituiu e está grávida. Graças a Saturnin, Angèle volta para a sua cidade, porém seu pai a rejeita e a esconde num porão. Felizmente, ela encontrará o amor com Albin, que quer esposá-la, dando um nome à criança que ela traz dentro de si, e salvando sua dignidade.

Este estudo de costumes – baseado no romance de Jean Giono, “Un de Baumugnes”, esta história de família, com o pai ferido na sua honra, é um melodrama magnífico, tendo por pano de fundo a paisagem da Haute-Provence. Os atores interpretam com uma naturalidade perfeita e Fernandel, até então dedicado ao gênero comique-troupier, se revela como um grande ator. Orane Demazis tem um de seus melhores papéis. Rodado em cenários reais (ou instalados na natureza) e com som direto, Angèle, como Toni de Jean Renoir, realizado na mesma época, precedeu o neorrealismo italiano.

VALENTE A MUQUE (Dir: Christian-Jaque): Honorin (Fernandel) trabalha na pequena companhia teatral Cascaroni, que encena a peça “François 1er ou les amours de la belle Ferronière”. Certo dia, ele é chamado para substituir um ator que ficou doente. A fim de conhecer melhor seu papel, Honorin se deixa hipnotizar por seu amigo Cagliostro (Alexandre Mihalesco), que prediz o futuro no parque de diversões, onde o espetáculo se apresenta. O mago o transporta para o passado e ele se encontra, com um dicionário, na corte de François 1er, onde viverá aventuras espantosas.

Comédia burlesca mais popular do cinema francês de antes da guerra. Um dos motivos do seu sucesso foi a originalidade do relato onírico-fantástico com a utilização satírica do anacronismo. As cenas nas quais Fernandel folheia o Petit Larousse e fascina a corte renascentista com seus conhecimentos maravilhosos e a sequência  do “Suplício da Cabra”, quando seus gritos de terror são, de fato, risos incontroláveis provocados pelas cócegas que o animal lhe faz lambendo seus pés, são hilariantes. Em outros momentos divertidos, Honorin ensina as “palissadas” para M. De La Palisse e o foxtrote para o rei e seus súditos. Quando desperta de seu sonho hipnótico, o ator já está curado. Sem ter mais o que fazer, Honorin pede a Cagliostro que lhe envie  de novo para o passado e reaparece na corte, sob aplausos.

REGAIN (Dir: Marcel Pagnol): Aubignane é uma aldeia perdida na montanha, que está morrendo. Seus últimos habitantes são Panturle, o caçador (Gabriel Gabrio), e La Maméche (Marguerite Moreno), uma velha italiana meio louca. Esta sugere a Panturle que procure uma mulher, a fim de dar vida às ruínas. Chegam Arsule (Orane Demazis), uma jovem miserável, e Gédemus (Fernandel), um amolador de facas ambulante sórdido e egoísta. Arsule abandona Gédémus e vai morar com Panturle. E enquanto La Maméche morre despedaçada pelas aves de rapina, Panturle e Arsule, unidos pelo amor e ardor pelo trabalho, vão enfim regenerar aquele solo árido.

É a história de uma aldeia abandonada por seus habitantes que vai reviver graças ao amor, à coragem e à esperança de um casal de deserdados. Os símbolos são simples e diretos: o sulco nos campos, o nascimento de uma criança, o azul do céu, a fecundidade do solo … a vida ganhando da morte. Panturle e Arsule são personagens de coração puro que vivem no ritmo das estações em comunhão com uma Provença bucólica e profundamente verdadeira. Fernandel, faz um papel antipático, contra seu tipo. Ele compõe um personagem inesquecível de mascate dissimulado, covarde e corrupto, que explora uma mulher, trata-a mal e vem friamente discutir seu “preço de venda”.

LE SCHPOUNTZ (Dir: Marcel Pagnol): Iréné (Fernandel) e Casimir (Jean Castan), são dois modestos empregados no armazém de seu tio Baptiste (Charpin), que os educou. Casimir  gosta do que faz, mas Iréné  só pensa em se tornar um grande astro de cinema. Uma equipe de cineastas parisienses, que veio rodar um filme em exteriores no Midi, diverte-se com as pretensões do pobre “schpountz” (um ingênuo que se acredita dotado para o cinema”). No primeiro teste, Iréné provoca um riso geral. Os cineastas fingem que gostaram de sua apresentação e celebram com ele um falso contrato fabuloso de super-astro. Quando mostra seu contrato ao diretor do estúdio em Paris, o diretor expulsa-o de sua sala; porém, pouco a pouco, seu dom para a comédia, que é inato, acaba por se impor.

Uma meditação sobre a profissão de ator, sobre sua vocação e sobre a importância social do riso, o filme é um testemunho do gênio de Fernandel, cuja interpretação é de uma precisão e de uma eficácia extremas tanto no cômico como no dramático. Ele é um ator que vive e diz admiravelmente o texto, servindo como exemplo, a cena do teste, na qual Iréné repete, nos mais variados tons, a frase “todo condenado à morte terá a cabeça cortada”. É um grande momento de cinema.

A VOLTA AO MUNDO COM 😯 CENTAVOS (Dir: Maurice Cammage): Convocado pelo seu tabelião, Armand Lavarède (Fernandel) é informado de que herdará trinta milhões de seu primo, mas só receberá o dinheiro, se conseguir dar a volta ao mundo com vinte e cinco cêntimos. A prova será fiscalizada por dois árbitros: um inglês, Sir Murlington (Jean Dax), cuja filha Aurett (Josette Day) não parece insensível ao charme particular de Lavarède, e o locador deste, Mr. Bouvreuil (Marcel Vallée), ambicioso e intransigente. No caso de fracasso do legatário, a fortuna será dividida entre os dois árbitros. Lavarède dá um jeito de ir de um país para outro, envolvendo-se sempre em confusões, mas acaba finalmente recebendo a herança e se casando com Miss Aurett.

O argumento é delirante, misturando aventura e burlesco, saturado de situações amalucadas, narradas num ritmo “desenfreado” do começo ao fim. Foi um grande sucesso, graças em parte à interpretação de Fernandel, que se entrega a um grande número de metamorfoses físicas e canta algumas canções inspiradas, como a surrealista  “Par Brahma.”

LA FILLE DU PUISATIER (Dir: Marcel Pagnol): Acompanhado de seu assistente Felipe (Fernandel), Pascal Amoretti (Raimu), cava poços de água no campo provençal. Pascal é viúvo e tem seis filhas. Patricia (Josette Day), a mais velha, é seduzida por um aviador, Jacques Mazel (Georges Grey), filho dos ricos proprietários de um bazar (Charpin e Line Noro). Por sua vez, Felipe é apaixonado por Patricia, mas não tem coragem de declarar sua paixão. Jacques tem que partir com urgência para as manobras militares. Sua mãe esconde uma carta de amor, que ele deixou para Patricia. A jovem, grávida, sente-se abandonada. Felipe se declara pronto para esposá-la, apesar de tudo.; porém ela não quer aceitar sua dedicação. A guerra irrompe e Felipe também deve partir. Ao saber da verdade, Pascal procura os Mazel e lhes conta tudo. Mme. Mazel o acusa de chantagem. Ele se retira indignado e, “para evitar o escândalo”, manda Patricia para a casa de sua tia (Milly Mathis). Felipe retorna de licença e Jacques é dado como desaparecido. Felipe vai visitar Patricia e o retrato que ele faz do bebê, comove Pascal, e este acolhe sua filha e o netinho. Os Mazel, desesperados, vêm lhe pedir perdão: eles querem adotar a criança. No final, tudo se resolve: Jacques estava apenas ferido e prisioneiro. Ele se casará com Patricia. O bom Felipe se consolará com Amanda (Claire Oddera), a segunda filha de Pascal.

Não há nada de muito original nesta história de mãe solteira abandonada, que lembra um pouco a de Angèle; porém o pitoresco provençal admiravelmente reconstituído como sempre por Pagnol e o trabalho de Raimu e Fernandel, enriquecem o drama humano e comovente. Embora seu personagem seja um pouco sacrificado e mesmo à margem da ação, Fernandel lhe dá uma tal densidade, que ele se torna um verdadeiro deus ex machina da trama. O filme assumiu um valor histórico, por causa dos acontecimentos que marcaram a sua realização. Iniciado na primavera de 1940, a filmagem foi interrompida em junho. Foi retomada em 13 de agosto, com um roteiro modificado pelas circunstâncias trágicas da época. As famílias dilaceradas por um conflito de classes e de moral, se reconciliavam diante do desastre nacional, após o discurso de 17 de junho, pronunciado no rádio pelo Marechal Pétain (este discurso foi retirado das cópias em circulação após a guerra).

CABELEREIRO DAS ARÁBIAS (Dir: Jean Boyer): Marius (Fernandel) é tosquiador de carneiros na Provença. Sua dextreza o conduz a Marselha, onde passa a cuidar do penteado de cachorros de luxo e depois da peruca de bonecas. Ele pensa que é em Paris que a glória o espera e parte para a capital com Aline (Blanchette Bronoy), com quem se casou. Na cidade-luz, ele se torna cabelereiro de senhoras  e, sob o nome de Mario, fica logo muito apreciado por todas as mulheres elegantes. Uma delas, Mme. Geneviève Brochant (Renée Devillers), à qual ele restituiu graças à sua arte juventude e beleza, o instala nos Champs Elysées. Porém a celebridade lhe vira a cabeça e Mario quer deixar Aline, para se casar com a filha de Mme. Brochant (Françoise Soulie), uma jovem esnobe.  Ele compreende a tempo sua loucura e retorna com Aline para a sua Provença natal.

Esta sátira ligeira do arrivismo e do esnobismo tem uma narrativa ágil, repleta de situações divertidas e subentendidos marotos, mas também deveu muito de sua graça ao inimitável Fernandel, no papel de um sedutor meridional arrebatado pelo turbilhão da vida parisiense. Segundo testemunho de Robert Chazal (France-Soir), Fernandel fez uma improvisação sensacional no palco da filmagem. Quando o diretor, Jean Boyer, hesitou sobre o tom que iria dar a uma determinada cena, Fernandel disse: “Eu posso interpretar esta cena de várias  maneiras”. Ele então a interpretou quinze vezes seguidas e cada vez de uma maneira diferente. Somente ele podia demonstrar tanto virtuosismo, concluiu Chazal.

A ESTALAGEM VERMELHA (Dir: Claude Autant-Lara): Em 1883, uma diligência e depois um monge (Fernandel) e um noviço, Jeannou (Didier D’Yd), chegam a uma hospedaria em Peyrebelle no planalto de Ardèche. O hospedeiros, Pierre Martin (Julien Carette), sua esposa Maria (Françoise Rosay) e um criado negro, Fétiche (Lud Germain), por cupidez, matam todos os viajantes que ali costumam pedir abrigo. A filha  dos Martin, Mathilde (Marie-Claire Olivia), parece saber de tudo. Os escrúpulos atormentam a hospedeira e ela exige que o monge ouça a sua confissão. Este, impedido pelo segredo da confissão de revelar aos viajantes o perigo que eles correm, tenta desesperadamente salvá-los por outros meios.

É uma farsa macabra, satirizando com espírito voltairiano e de maneira burlesca o sentimento melodramático e o religioso através, respectivamente, do comportamento dos assassinos e do monge.  Nota-se, também, uma crítica da estupidez burguesa (representada pela conduta dos viajantes)  e da candura da adolescência (a heróina pura tradicional é cúmplice dos pais). Autant-Lara consegue equilibrar o elemento trágico e o cômico, extraindo de uma cena aparentemente trágica uma força cômica ou de uma cena aparentemente cômica uma fatalidade trágica. No final da farsa, os celerados são presos, e os viajantes – os hipócritas, os inúteis, os ridículos – encontram a morte logo em seguida.

O PEQUENO MUNDO DE DON CAMILLO (Dir: Julien Duviviver): Na aldeia italiana de Bassa, o prefeito Peppone (Gino Cervi), comunista, acaba de triunfar nas eleições e seu sucesso desagrada a Don Camillo (Fernandel), padre simpático que, nas sombras do presbitério, se entende amigavelmente com Nosso Senhor. Entretanto, uma espécie de amizade, fundada em uma estima recíproca, une Peppone a Don Camillo nos casos graves, e eles agem então de comum acordo para o bem da comunidade e da paróquia.

Nos tempos da guerra fria, o público apreciou esta farsa provinciana, animada pelas saborosas disputas opondo um prefeito comunista e um padre combativo. Humor, emoção, paixões políticas ou sentimentais fizeram desse filme, que podemos chamar de rabelaisiano, um grande sucesso de bilheteria dos anos 1950. Fernandel é um Don Camillo astucioso e truculento, mas de bom coração. Suas conversas  e sua “delicadezas” com Jesus são de uma comicidade irresistível, assim como os seus debates com Peppone, papel que Gino Cervi desempenha com humildade, conformando-se em servir de escada para o seu famoso colega.

FRUTO PROIBIDO (Dir: Henri Verneuil):  O Dr. Charles Pellegrin (Fernandel) se instala em Arles com sua mãe (Sylvie) e suas duas filhas. Viúvo, ele se casa pouco depois com Armande (Claude Nollier), continuando a viver uma existência tranquila, dedicada ao trabalho. O acaso de uma viagem à Marselha, o faz encontrar Martine Englebert (Françoise Arnoul), por quem se apaixona. Ela se torna ao mesmo tempo sua amante e sua secretaria. Armande surpreende Martine nos braços  de seu marido, mas guarda o silêncio. Porém a vida monótona de Arles entedia Martine rapidamente que, seguindo o conselho de Boquet (Jacques Castelot), dono de um bar, decide romper com Pellegrin. Para não perdê-la, Pellegrin decide deixar tudo para seguí-la. Porém Martine parte sem ele. Pellegrin voltará para a companhia de Armande que, mais compreensiva, saberá perdoá-lo.

Sólida adaptação do romance “Lettre à mon juge” de Georges Simenon, reunindo a pin-up dos anos cinquenta e o comediante número um da época. No papel do quarentão, dominado pelo “demônio do meio-dia”, Fernandel demonstra, de uma vez por todas, que seu talento lhe permite ser tão pungente no drama quanto é insuperável na comédia. Esta história banal de um adultério de província termina com a vitória tranquila da mulher legítima. É um filme “de qualidade”, que os rapazes da Nouvelle Vague fustigavam.

O CARNEIRO DE CINCO PATAS (Dir: Henri Verneuil): A municipalidade de Trézignan decide organizar uma festa para os quíntuplos, filhos de Edouard Saint-Forget. Eles deixaram a cidade há quarenta anos e o prefeito encarrega o padrinho deles, o Dr. Bollène (Édouard Delmont), de encontrá-los. Alain dirige um luxuoso instituto de beleza; Désiré vive de expedientes para sustentar sua mulher Solange (Paulette Dubost) e seus quatro filhos; Etienne é capitão de um navio cargueiro; Bernard, responsável pelo consultório sentimental de uma revista,  salva a jovem Marianne (Françoise Arnoul) de um casamento imposto pelos pais: Charles tornou-se um padre atormentado, por ser sósia do famoso Don Camillo.

Esta comédia sem pretensões obteve um êxito estrondoso. Fernandel, no auge de sua fama, encarna seis personagens distintos (Edouard Saint-Forget, Alain, Bernard, Désiré, Étienne Charles), com uma veracidade e maestria perfeitas. A cada um ele assegura uma personalidade própria, um temperamento diferente, um rosto dessemelhante. Se o “jogo da mosca e do açúcar” ganha longe a palma da originalidade, o episódio do falso Don Camillo desenvolve em meia-tinta uma idéia encantadora. Esses dois esquetes e mais aquele reunindo Fernandel e Louis de Funès, então um mero coadjuvante, são os mais engraçados.

A VACA E O PRISIONEIRO (Dir: Henri Verneuil): Em 1943, no interior da Alemanha, Charles Bailly (Fernandel), prisioneiro de guerra francês, trabalha com três companheiros na fazenda de Josefa (Ellen Schwiers), cujo marido partiu para a frente russa. Charles decide fugir de uma maneira original: ele atravessará a Alemanha até a fronteira, acompanhado de Marguerite, uma vaca do rebanho da fazendeira. Depois de muitos contratempos, Charles chega perto da fronteira onde, com o coração partido, se separa de sua companheira. Finalmente na França, para escapar do controle aduaneiro, ele se esconde no vagão de um trem, mas o comboio parte … em direção de Stuttgart. Charles será libertado como todo mundo em 1945!

A ação se desenrola preguiçosamente, mostrando as aventuras sucessivas, comoventes ou divertidas, que acontecem com o prisioneiro fugitivo e sua vaca. Quase sempre sozinho em cena, Fernandel, carrega, com sua eficiência habitual, todo o peso do filme. Sua simplicidade, sua humanidade, dão a essa história  a sua dimensão. E podemos perceber, mais uma vez, a qualidade de seu bom humor, de sua emoção, de sua dicção e o seu despojamento, que faz um grande comediante.

No dia 14 de março de 1968, Fernandel aceitou participar da grande homenagem que Guy Lux lhe prestou no seu famoso programa de televisão, ”Le Palmarès de la Chanson” e levou o público ao delírio, quando cantou, entre outras canções, “Les Gens riaient”, “Félicie aussi “e “Il en est” (ver no You Tube).

No dia 3 de maio, o grande ator foi convidado pelo Presidente Charles de Gaulle para jantar no Palais de l’Élysée. Apertando sua mão, o general se voltou para os outros convidados e disse: “Não preciso apresentar M. Fernandel: ele é o único francês mais célebre do que eu no mundo!”.

Vitimado pelo câncer, Fernandel faleceu em 28 de fevereiro de 1971, de um ataque cardíaco, no seu apartamento na Avenue Foch em Paris. Ele foi enterrado no cemitério de Passy.

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